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Projeto Pesquisa-Ação Participante: entrevista com Ernesto Morales Morales sobre uma Política Pública de formação para a cidadania em Barcelona 1 2 3

Proyecto Investigación-Acción Participativa: entrevista con Ernesto Morales Morales sobre una Política Pública de formación para ciudadanía en Barcelona

Resumo

A entrevista com o professor Dr. Ernesto Morales Morales, do Instituto de Governo e Políticas Públicas (IGOP), da Universidade Autônoma de Barcelona, traz uma análise do projeto Pesquisa-Ação Participante (IAP, do castelhano Investigación-Acción Participativa), levado à frente pelo professor – atual coordenador – e outros pesquisadores/estudantes desde 2013. São nove anos em que o projeto vem se caracterizando como uma política pública de formação social para a cidadania que, com financiamento da Prefeitura de Barcelona, vem aproximando a universidade das escolas públicas da região. A IAP busca investigar e atuar nos problemas locais, melhorando as questões em torno das desigualdades sociais emergidas pelas crises que assolaram o mundo em 2008. O professor indica as bases fundacionais do projeto, seu desenvolvimento ao longo dos anos, uma avaliação de seu andamento e suas possibilidades para o futuro, indicando ser esta uma política que, mesmo diante de desafios a serem superados, se mostra com enorme capacidade de produzir efeitos positivos ao que se espera de sujeitos integrantes de uma sociedade democrática, cidadã e de direitos.

Palavras-chave
cidadania; formação social; pesquisa-ação participante; política pública

Resumen

La entrevista con el profesor doctor Ernesto Morales Morales, del Instituto de Gobierno y Políticas Públicas (IGOP) de la Universidad Autónoma de Barcelona, presenta un análisis del proyecto Investigación-Acción Participativa (IAP), encabezado por el profesor – actual coordinador – y otros investigadores/estudiantes desde 2013. Durante nueve años, el proyecto fue caracterizado como una política pública de formación social para la ciudadanía que, con la financiación del Ayuntamiento de Barcelona, acerca la universidad a las escuelas públicas de la región. La IAP busca investigar y mejorar los problemas locales de desigualdad social que emergieron por las crisis mundiales desde 2008. El profesor indica las bases fundacionales del proyecto, su desarrollo durante los años, una evaluación de su andamiento y sus posibilidades para el futuro, indicando ser una política que, mesmo con desafíos a superar, se muestra con grande capacidad de producir efectos positivos al que se espera de sujetos integrantes de una sociedad democrática, ciudadana y de derechos.

Palabras-claves
ciudadanía; formación social; investigación-acción participativa; política pública

Introdução

O projeto Pesquisa-Ação Participante, do castelhano Investigación-Acción Participativa (IAP), é constituído a partir das metodologias de Pesquisa-Ação e Pesquisa Participante. Tais metodologias, bastante utilizadas e conhecidas nas ciências sociais e na educação, desenvolvem-se aproximando o “objeto” de estudo dos investigadores em uma prática que envolve os sujeitos pesquisados na resolução de problemas concretos. Assim sendo, a IAP carrega em sua concepção a atuação efetiva diante dos problemas identificados e a participação ativa dos grupos envolvidos, rompendo com a noção de que conhecimento e políticas públicas devem ser gestados apenas na universidade e nos governos.

Em Barcelona, o projeto IAP é implantado em escolas públicas secundárias de alta complexidade, situadas em regiões de vulnerabilidade social, onde os estudantes e os voluntários da Escola do IGOP (e de outras instituições de ensino superior) atuam como pesquisadores, buscando construir conhecimento e propostas de ação para problemas do bairro em que se localizam. A própria IAP surgiu como uma proposta de ação de uma dessas investigações e veio mais tarde a se tornar um projeto de formação social para a cidadania, financiado pela Prefeitura de Barcelona.

Foi no ano de 2013 que pesquisadores da Universidade Autônoma de Barcelona se reuniram na tentativa de compreender os efeitos da crise de 2008 nos bairros da cidade. A partir da identificação da crescente desigualdade social, viu-se a necessidade de atuar na melhoria dos bairros com base em uma metodologia de pesquisa-ação. Para tanto, ingressaram em escolas secundárias, onde ampliaram a metodologia para uma pesquisa-ação participante, uma vez que os estudantes secundários passaram a se envolver como parte ativa da investigação local.

Segundo Morales e Terés (2019)Morales, E., & Terés, B. Q. (2019). La investigación-acción participativa en las escuelas como instrumento de conscientización sobre los derechos humanos. In José Blanes Sala, & Gilberto M. A. Rodrigues (Orgs.), Educação em direitos humanos: Aproximações teóricas e experiências didáticas. Contribuições do Brasil e da Catalunha (pp. 198-211). Universidade Federal do ABC., um conto deu início ao projeto. O conto do colibri e dos leões[4] foi apresentado para estudantes da Escola Mestre Morera, no bairro Ciutat Meridiana em Barcelona, e a partir dessa narrativa se discutiram os problemas do bairro diante da crise. A história trata da relação entre os animais mais poderosos da selva (os leões), que, para reduzir o calor que sentiam, fizeram uma piscina, colocando pedras no curso do rio. Os outros animais, em especial os colibris, se deram conta de que o rio estava secando pelo impedimento criado pelos leões e que, assim, a floresta toda sofria com a seca. Ao fim, um colibri passa a retirar as pedras do rio, uma por uma, ao que é acompanhado pelos outros animais, mesmo temendo os leões.

O conto, como relatado por Blanco e Morales (2013)Blanco, I., & Morales, E. (2013). “Barris i Crisi” al CEIP Mestre Morera (Ciutat Meridiana). Barris i Crisi. https://barrisicrisi.wordpress.com/2013/12/10/barris-i-crisi-al-ceip-mestre-morera-ciutat-meridiana/
https://barrisicrisi.wordpress.com/2013/...
, se relaciona com a questão da crise:

A história fala da crise (a seca), de como os mais poderosos (os leões) aproveitam a oportunidade para se colocarem no controle dos bens comuns (a água), e de como a resistência e a transformação desta realidade somente se pode produzir através da ação corajosa das pessoas (como o colibri) e, sobretudo, através da ação coletiva (entre todos os animais)5 5 Tradução livre das autoras do catalão. Texto original: “La història ens parla de la crisi (la sequera), de com els més poderosos (els lleons) aprofiten l’avinentesa per fer-se amb el control dels béns comuns (l’aigua), i de com la resistència i la transformació d’aquesta realitat només es pot produir a través de l’acció valen ta de les persones (com el colibrí) i, sobretot, a través de l’acció col•lectiva (entre tots els animals).” . (s.p.)

Neste sentido, a ação coletiva foi sugerida como possibilidade de romper ou minimizar os efeitos da crise no bairro, o que mais tarde passou a ser um projeto maior, atuando em escolas de diversos bairros de Barcelona.

Visando contribuir para a divulgação e análise crítica do projeto, o professor Ernesto Morales Morales, um dos idealizadores e coordenadores, nos cedeu esta entrevista, realizada na Escola do IGOP, no distrito de Nou Barris, em Barcelona, no dia 18 de fevereiro de 2022, ao fim de nosso período como pesquisadoras em doutorado sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona pelo Programa de Internacionalização Capes-Print. Assim como o projeto coordenado pelo professor Ernesto, nossa formação também é interdisciplinar (voltadas para Educação e Políticas Públicas): estivemos cada uma vinculada a um Grupo de Pesquisa.

O professor Ernesto Morales é doutor em Políticas Públicas e Transformação Social pela Universidade Autônoma de Barcelona, coordenador da Escola de Políticas Sociais e Urbanas do IGOP e professor do Mestrado em Políticas Sociais e Ação Comunitária (UAB). O professor realizou, ainda, entre 2007 e 2009, pesquisas na região Sul do Brasil, mais especificamente no município de Porto Alegre, reconhecido por suas políticas públicas de participação (notadamente por ter sido o primeiro município brasileiro a implementar o Orçamento Participativo, na gestão de Olívio Dutra, do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 1990).

Assim, é relevante indicar que participamos do projeto IAP como voluntárias no ano de 2021, no Institut Escola El Til•ler, no bairro Bon Pastor, com uma turma mista de estudantes, compreendendo as idades de 12 a 14 anos. Neste ano, o tema abordado foi Violência/Convivência. O projeto é constituído de 6 etapas, sendo a primeira anterior à entrada na sala de aula, com uma formação teórica para os voluntários da Escola do IGOP. Esta formação conta com materiais acerca da metodologia e com aulas dinâmicas do Teatro-Imagem, para facilitar o contato com os estudantes, uma vez que, no geral, os voluntários não são docentes e nem sempre dispõem de ferramentas didáticas necessárias para atuar com jovens.

As outras cinco etapas são desenvolvidas em conjunto pelos voluntários e estudantes. São elas: 1. Conceitualização e desenho de pesquisa; 2. Trabalho de campo (em geral contando com entrevistas e questionários); 3. Análises e conclusões; 4. Ação e divulgação; 5. Ação comunitária. Para isso, foram realizados dez encontros em sala de aula e com saídas de campo pelo bairro, com duração de uma hora cada[6], buscando sempre iniciar com uma dinâmica de aquecimento, como descrevemos brevemente a seguir[7].

Sessão 1: buscamos debater o que é um pesquisador social. Ao fim desta sessão, os estudantes levantaram possíveis temas a serem pesquisados por um investigador social. Sessão 2: voltamos a trabalhar o tema de pesquisa: a partir dos levantamentos do encontro anterior, as professoras da turma selecionaram um dos temas sobre o qual a pesquisa seria desenvolvida, sendo este “Violência/Convivência”. Sessão 3: selecionamos o recorte do tema a ser trabalhado: “Insegurança cidadã/Violência de rua”. Explicamos o conceito de agentes ativos do bairro e os estudantes elencaram alguns conhecidos. Sessão 4: foram realizadas atividades a partir das dinâmicas do teatro-imagem, ensaiando entrevistas, e estruturadas as questões a serem feitas aos entrevistados. Sessões 5 e 6: realizamos as oito entrevistas com agentes ativos do bairro. Sessão 7: aplicamos questionários pelas ruas do entorno da escola; Sessão 8: divulgamos e analisamos os resultados obtidos com as entrevistas e os questionários. Sessão 9: foram desenvolvidas propostas de intervenção/ação no bairro. Sessão extra: apresentamos as propostas para os agentes ativos do bairro que foram entrevistados.

A experiência completa e os resultados do Projeto foram apresentados no IV Congresso Internacional de Pedagogia, realizado em Braga, Portugal, com a temática: Educação, justiça e direitos humanos em um mundo em transformação. O que segue é a entrevista realizada com o professor Doutor Ernesto Morales Morales, idealizador e coordenador do Projeto IAP, que nos recebeu logo após o término de nossa participação no projeto e de nossa estância no doutorado sanduíche.

Projeto Pesquisa-ação Participante: entrevista com Ernesto Morales Morales sobre uma experiência de política pública de formação para a cidadania em Barcelona

Entrevistadoras: Olá, bom dia, professor. É um enorme prazer estar aqui com você depois de fazermos um trabalho juntos no âmbito do Projeto IAP, ter acompanhado de perto nossas atividades e, além disso, aceitar a proposta de buscar uma aproximação de nossos grupos de pesquisa por meio da difusão dos resultados desta formação. Muito obrigada por nos ceder esta entrevista. Começamos perguntando: o que é o IGOP, e a partir de que contexto surge a necessidade de pensar um projeto como a IAP?

Ernesto Morales Morales: O IGOP – Instituto de Governo e Políticas Públicas é um centro de pesquisa e de formação vinculado à Universidade Autônoma de Barcelona, no entanto, um instituto de pesquisa próprio. O que o IGOP tem de diferente é que, em um dado momento, cerca de dez anos atrás, se decidiu que ele deveria ter um projeto e um espaço físico fora do campus da universidade. Criou-se, assim, o que é hoje a Escola do IGOP, também conhecida como Escola de Políticas Sociais e Urbanas. O objetivo da escola era poder gerar coprodução e transferência de conhecimento e ter impacto no território. Ou seja, que o conhecimento universitário se fizesse útil. Assim, viemos ao Distrito de Nou Barris que tinha uma situação com indicadores socioeconômicos consideráveis. Ou seja, um bairro trabalhador ao mesmo tempo que humilde. Diríamos que não é a classe econômica alta da cidade.

A respeito do projeto de Pesquisa-ação Participante (IAP), ele surge a partir de uma pesquisa concreta que fizemos em um bairro. Localizo-as: nos anos 2000, logo depois da crise de 2008, foi desenvolvida aqui uma pesquisa que se chamava Barrios y Crisis, que buscava analisar os processos de segregação urbana a nível de Catalunha. Um processo muito interessante, porque se fez um mapeamento das rendas e dos vários indicadores em toda Catalunha, buscando ver como haviam se dado os deslocamentos da população e seus movimentos de locação no território. A questão que norteava a pesquisa girava em torno de questões acerca da relação renda-migração como: em quais cidades, como em Barcelona, existiriam lugares empobrecidos? E, como as pessoas com mais renda foram agrupadas em certas partes dessas cidades? Começamos a investigar e conhecer como acontecia esse processo de segregação e como se davam as iniciativas de inovação social. Entendendo inovação social como processos que localizam as relações de poder entre a instituição pública e os cidadãos, e tentam responder às necessidades que nem o Estado nem o mercado respondem (ou o mercado de que as pessoas não podem fazer parte).

Nesse processo de investigação fizemos um trabalho de campo, um estudo de caso no Bairro Ciutat Meridiana, que é um bairro que teve mais despejos, mais desabrigamento de população em toda a Europa. Foi um lugar de impacto muito forte da crise socioeconômica, porque muitas trapaças foram feitas por bancos e credores, e muitas famílias acabaram perdendo suas moradas. Eu já cheguei a explicar sobre a Lei de Habitação para vocês, não? Bem, quando chega uma hora em que você não consegue mais pagar o empréstimo ao banco, se abre um processo judicial em que sua casa acaba sendo apreendida e vai a leilão. Nesse leilão público, o banco que emprestou o dinheiro pode ficar com a casa pela metade do preço. O que acontece é que os bancos ficam com a casa, mas, ainda que o valor do imóvel tenha caído muito ao longo dos anos, você permanece endividado por causa da dívida anterior que ainda tem com o banco. Imagine, você paga duzentos mil por um apartamento, pede um empréstimo de duzentos mil mais juros, e demora muito para quitar, fazendo uma bola de neve enorme. Vai a leilão por cem mil. O banco liquida a sua dívida por cem mil euros, mas você ainda tem mais duzentos mil para pagar por uma casa que já não vale isso. Não é um absurdo? Um dos bairros que mais sofreu com isso foi Ciutat Meridiana.

Nesse estudo de caso, falamos com a diretora de uma escola, que nos pediu para explicar essa pesquisa aos estudantes. E é aí que entra a história do Conto do Colibri, toda aquela história envolvendo o lugar da pesquisa social... E quando terminamos, foi uma experiência muito forte para as crianças, e para os próprios professores, porque pela primeira vez as crianças conseguiram conectar o que estavam passando com um processo de geração de conhecimento. Isso se dava em uma situação muito difícil, porque as crianças iam para uma escola na qual a polícia os ameaçava na porta do prédio, algo muito complicado. Então, tínhamos que fazer alguma coisa. Eu, junto com Ismael Blanco[8], que naquela época ainda não era diretor do IGOP, nos sentamos e pensamos “o que podemos fazer?’, e eu lhe propus esta ideia: “e se fizéssemos uma pesquisa-ação participante, criando um grupo misto de pesquisadores, entre pessoas da Escola do IGOP, que voluntariamente se aplicariam, e alunos das escolas?”. E assim fizemos. Foi dessa forma que surgiu a IAP.

Entrevistadoras: Então começou com uma explicação de uma pesquisa?

Ernesto Morales Morales: Sim, sim, um ponto de partida foi a inquietação gerada nas crianças ao se verem refletidas naquela história do colibri e em uma pesquisa que falava sobre desigualdade social. Vimos que isso era como um elemento que movimentou muito a consciência e o emocional das crianças, uma vez que passaram a se perguntar por que eles estavam em uma relação de jogo, na qual uns perdiam e outros saiam ganhando. Com a crise, os bancos ganharam muito dinheiro, mas eles estavam ficando sem casas. E isso foi o que fez emergir um pouco a inquietação. Então, com a diretora – e tenho que dizer aqui, que era uma diretora muito disposta e engajada na escola –, planejamos um modelo de trabalho assim: grupos mistos, uma semana de aula e outra semana na qual os alunos saíam pelo bairro. Nossa experiência inicial era uma/uma. Não acumulávamos tanto o trabalho de campo no final, mas isso exige um envolvimento muito alto da escola.

Entrevistadoras: Como você definiria o projeto?

Ernesto Morales Morales: Eu definiria como sendo um projeto que busca uma estratégia de gerar consciência sobre as desigualdades sociais. Por um lado, em alunos e professores para que entendam seu ambiente, seu contexto, que nem tudo é igual em todos os lugares. Por outro, buscando fortalecer os vínculos entre a escola e a comunidade do entorno, valorizando a própria escola dentro de sua comunidade. Na verdade, bebemos muito da filosofia, da visão da educação popular, do que propomos na própria pesquisa. Tentamos construir estruturas de aprendizagem cognitiva que desafiem diretamente as pessoas a refletir sobre qual é sua situação e qual é sua posição no que está acontecendo para, a partir daí, poder aprofundar, poder investigar.

Entrevistadoras: Notamos que nas práticas da IAP há muita relação com a Pedagogia de Paulo Freire. Levando isso em conta, o que você pode nos dizer sobre as bases da IAP?

Ernesto Morales Morales: O que pretende a Pesquisa-Ação Participante é: que seja um processo que gere conhecimento e organização ao mesmo tempo. Portanto, há muita incerteza sobre aonde nosso processo vai levar. A ideia é que isso acabe gerando uma organização que pode ser transformada ou cristalizada em ação para a mudança. Esse é um desafio do projeto. Se fossemos um ator do bairro que tivesse presença no dia a dia, seria uma coisa. Barcelona, do ponto de vista da Espanha, é uma cidade de tamanho médio. Os bairros têm 150 mil habitantes, para uma cidade brasileira é muito pequeno, mas para uma cidade da Espanha é de peso relativo. Portanto, não temos uma presença contínua, como você sabe, neste bairro em particular. Estou um pouco perdido, qual era a pergunta?

Entrevistadoras: Sobre as bases da IAP.

Ernesto Morales Morales: Sim, as bases: gerar organização e gerar conhecimento. A ideia é que, a partir do momento em que você começa a fazer perguntas e conhecer a realidade, você está questionando os próprios atores que também estão nessa situação de desigualdade, com a ideia de que no final temos que considerar como cada um de nós pode contribuir para transformar essa situação que não gostamos, superar esse desafio do bairro, essa situação de desigualdade.

Há também uma posição muito ideológica no sentido de que se entende que esse contexto de desigualdade precisa ser transformado de diferentes formas: uma que é se organizar para fazer coisas para melhorá-la, e outra que é se organizar para pressionar o poder público e fazer políticas mais justas. E é um princípio que está aí. Dentro desse processo houve momentos de diálogo com a instituição pública, algumas experiências com a regedoria, houve também momentos de encontro com os pais, as mães, para pensarmos no que poderíamos fazer a partir de nós.

Entrevistadoras: Há algum vínculo institucional com a prefeitura?

Ernesto Morales Morales: Nós começamos a experiência, como eu disse, a pulmões. Nos unimos com os professores e lhes dissemos: “na semana que vem estamos aqui”. E começamos a nos envolver nas aulas, eu, Bernat Quintana, e alunos que faziam o mestrado. Nossas primeiras experiências foram assim, durante três anos. Eu acredito que a partir da quarta [experiência], não sei se foi justo quando houve a troca de governo aqui na prefeitura, passaram a se interessar pelo projeto. Ou um pouco antes de haver a troca de governo, na última legislatura, se interessaram pelo projeto e criamos um convênio de colaboração com o Distrito de Nou Barris. O Distrito de Nou Barris tem uma área de educação, e nós apresentamos um projeto para dar suporte à iniciativa.

Entrevistadoras: E agora?

Ernesto Morales Morales: Isso está se mantendo ao longo do tempo. Então nós tivemos, nos últimos 4 anos, apoio do distrito de Nou Barris. Tivemos cinco, ou seis, ou sete... Muitos anos. Acho que a próxima edição, aquela que começa agora, vai ser a décima edição.

Entrevistadoras: Por nossa conta sim, porque começou em 2013, não?

Ernesto Morales Morales: Sim.

Entrevistadoras: Você nos falou como começou nas escolas, mas também gostaríamos de saber se há projetos do IGOP em outras instituições, outros espaços, como igrejas, centros esportivos, centros cívicos?

Ernesto Morales Morales: Não, na verdade, a Escola do IGOP se encarrega de fazer a parte da pesquisa aplicada e de formação. Na parte mais comunitária damos suporte a instituições, grupos e coletivos que nos pedem. Então, por exemplo, nós temos há vários anos com outra secretaria da prefeitura, a de Desenvolvimento Social, toda a responsabilidade de formação e intervenção comunitária com profissionais do serviço social. Acompanhamos as equipes que estavam trabalhando nos bairros para ver como lidam com o trabalho junto à comunidade. Também trabalhamos em questões de promoção da economia solidária em diferentes bairros, oferecendo apoio, conceituação, ou mesmo desenho de políticas públicas, pensando na promoção da economia solidária com grupos vulneráveis. Aqui, havia experiências, por exemplo, de catadores de sucata, coletores de, como posso dizer…

Entrevistadoras: Ah, sim, de papel, de…

Ernesto Morales Morales: De papel não, porque é um circuito muito institucionalizado. Mas sim, toda questão de sucata de ferrugem ou ferro. Bom, aí nós avaliamos e pensamos em alguma experiência, inclusive na prefeitura. Nós avaliamos e no final ajudamos a desenhar o que poderia ser um processo de acompanhamento de grupos nessa situação a partir de políticas públicas. E fizemos muitas pesquisas desse tipo. A metodologia também é muito inspirada na IAP.

Tivemos dois projetos muito importantes, um que foi "Nova Liderança nos Bairros”, que é uma política pública de Pla de Barris[9] em andamento, e temos formação baseada em educação popular e metodologia de imersão, etc. Trabalhar com as crianças em etapas, três dias com eles durante três etapas, mas entre as etapas também ter contato direto, criar vínculo. E que fosse para eles uma experiência transformadora. Na verdade, não havia o objetivo de que as crianças terminassem a formação e montassem um projeto, mas isso aconteceu. Elas se juntaram à APA [Associação de Pais de Alunos] e continuaram fazendo coisas. Fizemos isso com jovens desses bairros em situação de vulnerabilidade, e realizamos como uma seleção de meninos e meninas através do que chamávamos de um sistema de antenas, do qual tínhamos informantes-chave em cada bairro, que nos indicavam jovens entre 18 e 30 anos. Fizemos a seleção dos jovens pensando na consolidação de um grupo. Era importante pensar que teria que ser um grupo diversificado, que tinha que crescer. Ou seja, não havia apenas uma medição individual, mas uma de grupo e fizemos isso de três em três. Cerca de quarenta jovens já passaram por esse programa. Fizemos o mesmo com um programa de renda garantida, que foi realizado aqui, em uma das regiões com situação de renda mais vulnerável e de grande fragilidade socioeconômica. Trabalhamos com pessoas que tinham renda garantida. Aliás, ali, mais tarde, em alguns bairros, foram criados os chamados “Grupos Colibri[10]” para realizar projetos de economia solidária, inspirados por essa experiência. Eram grupos que se consolidaram no bairro, e isso foi algo muito inspirador para eles.

Entrevistadoras: Ao longo dos anos, que resultados podem ser elencados do projeto nas escolas?

Ernesto Morales Morales: A grande questão é se isso teve impacto na relação escola-comunidade. O que as escolas e as pessoas dos bairros nos dizem é que tem sido um projeto útil. Para nós, o grande desafio é saber se isso tem melhorado, também, o vínculo entre as crianças e o processo educativo. Se as crianças que tiveram uma experiência desse tipo dizem que querem continuar estudando. E aí há um buraco negro que não está resolvido. Eu acredito que é necessário realizar uma pesquisa mais aprofundada. Porque aqui há um salto muito importante entre o que é a educação primária e a secundária. Na troca de instituto, uma criança acaba se perdendo. Aqui a educação primária é obrigatória até os 12 anos, e dos 12 aos 16 anos e há uma troca de institutos e é uma situação muito forte. Aliás, esta figura do instituto-escola está agora sendo instalada. O instituto-escola reagrupa os dois ciclos de formação, é uma nova política pública que busca, na minha opinião, economizar infraestrutura, por um lado, e por outro, evitar essa mudança tão forte que há entre um salto de ciclo a outro. Então, saber o resultado que teve nas crianças é algo interessante para nós. A prefeitura de Barcelona fez uma avaliação no ano passado, um pequeno estudo, mas ao final não foi algo muito aprofundado, foi algo mais como reagrupar, recapitular um pouco a experiência e algumas chaves que haviam sido importantes, mais do que uma investigação. Portanto, há um negócio inacabado aí.

Entrevistadoras: Pensando na relação entre a universidade e os alunos das escolas, há também alguma coisa que volta para a universidade, por exemplo, novos temas de pesquisa que nascem nas salas de aula, novos problemas nos bairros passam a ser explorados, etc.?

Ernesto Morales Morales: Claro, temos em conta, também, que um tentáculo da pesquisa do Instituto de Governo e Políticas Públicas nos bairros somos nós, a Escola do IGOP. Então, saber o que acontece no cotidiano te dá muitas pistas. Às vezes a gente tem reflexões com colegas que fazem pesquisa, que até falam dos bens comuns, de várias coisas do projeto, pois este é um projeto super comunitário.

Sim, tem gente da comunidade que mora lá, mas são pessoas como você e eu, que tem uma carreira universitária, que tem formação. Você sai por este bairro e vê que os 60% da população do bairro não é nascida neste país. Essa gente não está neste projeto comunitário. Nunca viram nenhuma atividade, nunca viram nenhum projeto. Então são muitas perguntas, que às vezes a gente faz um pouco... vamos fazer algumas perguntas contundentes, se a comunidade está liderando não sei o quê, ou está conseguindo não sei quanto, e não lhe dá o contraponto de uma visão muito fundamentada. E a escola, dentro do sistema de provisão pública de serviço universal, te dá muitas pistas, porque pela escola passa todo mundo. Ao final, ela é um reflexo do bairro na sociedade. E estar na escola te permite observar processos de segregação do bairro por origem ou por etnia. Há escolas em que temos trabalhado, por exemplo, em que o conflito era que a população de origem cigana, árabe frequentava esta escola e vão a mesma escola pessoas que não são ciganas e nem árabes. Te permite ver que são coisas que se dão na escola do bairro, não só em escala de cidade.

Entrevistadoras: No mesmo bairro?

Ernesto Morales Morales: Isso acontece, isso acontece, também. Embora ainda sejam vizinhos do mesmo prédio, ocorrem essas lógicas de cada um. Se há uma escola com estigma, um rótulo é capaz de fazer com que algumas famílias prefiram levar seus filhos para outros bairros, pensando mais em quem eles vão ter como colegas, e não no projeto educacional. E às vezes há projetos educacionais e apostas muito poderosas no bairro.

Entrevistadoras: Pensando na IAP como uma estratégia didática, de aula, como os professores colaboram, como recebem esta proposta, como mudam suas práticas?

Ernesto Morales Morales: Uma coisa que eles nos explicam é que somos um vetor diferente, alguém diferente que entra e que passa a ser um referente para os meninos e meninas. Alguém que tem estudo universitário, que não é seu professor, e que em muitas ocasiões pode ser do seu próprio grupo étnico, de origem etc. Uma coisa boa que tem o mestrado. Por exemplo, este ano havia colaborado um rapaz de Gana e ano após ano colaboram pessoas de Centroamerica, da Bolívia... Também ajuda muito as crianças, ter alguém na sala que tem um papel que é como professor, mas não é professor, que me ajuda a aprender, me ajuda a investigar e é igual a mim. Isso é algo muito poderoso que os professores nos explicam.

Isso por uma parte. Por outra parte, nós entramos aí, não conhecemos quem é o mais espertalhão, o que fala mais, o mais eloquente, o mais conflitivo. Tudo isso não sabemos. Então, você vai construindo um marco de relações diferentes em que, às vezes, os rótulos que algumas pessoas carregam vão sendo desmontados. E, então, trabalhar uma metodologia a partir da aproximação, como, por exemplo, em pequenos grupos, é algo que é um luxo, porque eles não podem fazer isso. Vocês estiveram nas aulas, trabalharam em grupos de 4 crianças, certo? Bem, isso é algo que é valorizado muito positivamente. Então, em geral, há uma boa avaliação.

Aprendemos, também, a modular um pouco a relação com o corpo docente. Tivemos que definir diretrizes, porque, quando você entra em contato com uma escola, você pode ter um diretor muito motivado, mas os professores estarem super desanimados. Aí eles podem pensar pela lógica: vem alguém ficar com os alunos uma hora e meia, e eu descanso. Isso também é comum de acontecer, e algo que teve que ser coordenado para garantir a presença e colaboração dinâmica dos professores. E cada ano é diferente. Existe um quadro geral, mas cada ano é diferente, depende da escola, do grupo, do professor, das crianças. Sim, há uma intenção e uma visão, mas isso varia depois de aterrissar. Imagino como qualquer programa educacional: quando você tenta colocar em prática, você encontra a realidade.

Entrevistadoras: Falamos um pouco dos voluntários, que de maneira geral não são da pedagogia, nem da educação formal, e que isso pode ser positivo, mas também há algum fator negativo nisso? O fato de eles não serem da área, que estejam em outros campos do saber, como o das ciências sociais? Perguntamos isso no sentido de pensar um pouco nessa didática, porque nos parece que, talvez, para quem nunca entrou numa sala de aula, pode se encontrar um pouco perdido nos modos de fazer. E, neste sentido, vimos que a atuação das professoras é primordial, porque estiveram o tempo todo com a gente, observando tudo, acompanhando e também salvando algumas situações. Por isso, como são pessoas que não vem da educação, não tem uma práxis – em diálogo com Paulo Freire – para saber, como por exemplo, em que momento chamar a atenção, pedir silêncio, essas coisas.

Ernesto Morales Morales: Claro, é uma questão de aprendizagem. Aqui tentamos dar umas ferramentas para finalmente aprender com a prática. O que vocês falam é interessante, porque tem gente que, por exemplo, se puder se envolver no projeto e vem da área mais do magistério, da pedagogia, pelo perfil ou pela idade, pode ser alguém também que não teve nenhum contato com uma sala de aula em sua vida. Desse ponto de vista, todos estão prestes a construir esse perfil. Sim, é verdade também, que as pessoas que são boas nisso são pessoas que tiveram contato com estudantes e já têm algumas ferramentas de gestão. Por exemplo, aqui há um movimento muito importante de trabalho no tempo livre, de apoio educacional. Não é um modelo internacional, mas há um movimento muito auto-organizado nos bairros, no tempo livre. Isso foi muito forte na década de 1980, em bairros que também eram das classes mais populares, mais da classe média. É um movimento pedagógico muito forte e, por exemplo, uma das pessoas que foram fundamentais nesse projeto, é Bernat Quintana. Ele teve essa experiência. E ele tinha muito dessa visão, desde a gestão de conflitos até a geração de motivação, algo que estava muito enraizado nele. Então, claro, tem gente que faz voluntariado, que entra na sala de aula e não sabe [atuar], e tem gente que, sem ter formação universitária, tem mais ferramentas.

Entrevistadoras: E também acreditamos que, por conta disso, são necessárias essas aulas teóricas que acontecem antes dos voluntários entrarem na escola, e que são importantíssimas, porque dão uma visão geral, por exemplo, do teatro de imagem, que tem práticas que são essenciais para desenvolver as relações interpessoais. Acreditamos que esta parte teórica que se faz antes também é fundamental no projeto. Que os voluntários sejam de outros países, de centroamérica, de américa latina isso é normal, sempre ocorreu ou foi mais neste ano que passou?

Ernesto Morales Morales: Normalmente, os grupos costumam ser meio a meio, mais ou menos. Nós, sim, diríamos que existe um músculo importante que alimenta o IAP, que são os alunos que fazem o mestrado. Aproximadamente um terço dos alunos que cursam o mestrado são da América Central e da América Latina. São pessoas que vêm especificamente para estudar aqui. E, então, seja qual for a proposta que fizermos a eles, eles querem se envolver, como vocês. Bem, vocês podem passar dois meses aqui lendo jornais – que é uma coisa possível de ser feita no próprio país de vocês, ou vocês podem dizer “E aqui, o que está acontecendo? Isso? Bem, isso me interessa, eu quero me envolver”. Esse perfil é um perfil que se engaja muito.

Entrevistadoras: Bom, pode ser positivo, como você disse, mas também há a questão de não conhecer a realidade dos bairros antes, e isso seria também algum tipo de problema? Não seria, talvez, mais interessante ter pessoas voluntárias dos próprios bairros, que conhecessem as instituições e mediações para contribuir com o projeto?

Ernesto Morales Morales: Não, acho que o nosso objetivo era ter uma certa estratégia de autonomia em relação à promoção de projetos nos bairros. Como imaginávamos: depois de ter as primeiras experiências, com o apoio do distrito, a escola IGOP passaria a disponibilizar formação e acompanhamento, de forma que houvesse alguma associação, alguma entidade de bairro, que quisesse se envolver nisso além dos estudantes universitários. A ideia sempre foi a de envolver outros jovens do bairro, mas vocês percebem que, pelo perfil dos bairros que temos, não é tão fácil conseguir essa estrutura. Para nós, o ideal seria, mesmo dentro da nossa abordagem como Escola IGOP, não querer que isso seja uma franquia do povo, mas um espaço para proporcionar a experiência, o conhecimento, a reflexão compartilhada. O ideal seria promover de forma autônoma investigações nas quais os moradores do bairro também pudessem entrar na sala de aula. Ou seja, não colocamos como barreira (mesmo nessa parte mais pedagógica que eu estava comentando) que alguém que não tenha estudos universitários não possa participar do projeto. Acreditamos que, no final, você é quem promove a reflexão, essa vontade que tem uma intencionalidade muito transformadora, e a sua própria experiência é algo que contribui muito em sala de aula. Vemos essa parte da educação popular, não como uma questão de doutrinação, mas de poder fazer boas perguntas também, e de ter uma boa capacidade de ouvir e orientar. E isso é algo que você aprende na faculdade, ou não? Nossa hipótese também era essa: que com um bom acompanhamento, tendo espaços de reflexão, isso pudesse acontecer.

Entrevistadoras: Víctor, este ano, também foi importante como essa referência do bairro, porque conhecia o bairro. Ele estava como coordenador do projeto; você poderia nos dizer qual é o papel do coordenador?

Ernesto Morales Morales: A ideia de sua figura é gerar um vínculo, poder aterrissar a experiência fazendo pontes com o bairro e com a comunidade. Poder dizer de que maneira as crianças podem sair, aonde ir, a quem perguntar, que informações buscar. Acompanhar um pouco a sequência da pesquisa, ter claro que passos vem primeiro e depois, ser capaz de dar segurança às pessoas que entram na sala de aula e que nunca estiveram ali. Na verdade, Victor é um rapaz do bairro, e ele não tem nenhuma experiência prévia em sala de aula. Ele não era universitário quando iniciou suas atividades como coordenador, se matriculou na universidade agora. Ele havia tido alguma pouca experiência no tempo livre, e foi um participante do programa “Nuevos Liderazgos” que promovemos aqui. Quer dizer, é alguém que não estava no seu imaginário frequentar uma universidade. Mas tivemos um pouco de influência em seu trajeto.

Então, a função do coordenador é um pouco essa, acredito que a mensagem, ao final, é essa: as pessoas, quando entram em sala, têm que estar seguras, tranquilas, têm que saber o que tem que fazer, têm que ter algumas ferramentas para gestionar algumas situações, e depois há um processo lógico que temos que ser capazes de transmitir para que seja um processo que os meninos e meninas da escola também aprendam.

Entrevistadoras: E existe alguma devolutiva dos voluntários? Como é a participação deles? O quão importante o projeto é para a formação do voluntário?

Ernesto Morales Morales: Bom, os voluntários valorizam muito a formação, e tem gente que diz “eu poderia fazer mais”, porque eles querem muito, eles se envolvem muito e querem aprender. Outros, em contrapartida, são muito contidos, isso faz parte. Algo que fizemos este ano, que nunca fizemos antes, foi apoiar o transporte. Estamos assumindo isso daqui da Escola do IGOP, através de nossos próprios recursos. Ou seja, não é algo pago por alguma instituição pública, mas pelo programa, e os voluntários valorizam todo tipo de ajuda que podemos dar. Então a figura do coordenador ajuda muito, também, não sei qual é a experiência de vocês, mas é uma figura que ajuda um pouco a se localizar no projeto. Ele é uma figura importante para ajudar os voluntários.

Entrevistadoras: Para a formação acadêmica dos voluntários, existe alguma proposta a mais?

Ernesto Morales Morales: Para a formação acadêmica, quando propusemos quais ferramentas eram fundamentais para poder trabalhar com voluntários, vimos aqui que havia três elementos: um, que era ter ferramentas de gestão de relacionamento, dizer como gerenciar um conflito, como gerenciar expectativas, como motivar a reflexão, isso foi fundamental. E essa parte não pode ser teórica, tem que ser experiencial, porque você só aprenderá quando vivenciar as relações, são elas que te darão as ferramentas. As experimentações se dão num contexto muito controlado, e depois você pode dar uma aula, que também não deixa de ser um contexto controlado, mas já estará dando um salto a mais. Vimos que tinha que haver ferramentas sobre o que exatamente é um processo de pesquisa-ação participativa, e tem um marco mais teórico, mas também tudo que te obriga a fazer as coisas. Com o Joel, este ano, não sei se foi possível fazer, porque a pandemia ainda estava lá, mas lembro que as pessoas que fizeram o treinamento saíram para fazer entrevistas na rua, voltavam e discutiam os resultados. Agora, no processo de pandemia, tudo ficou um pouco mais complexo. E tinha também que haver critérios e noções sobre desigualdade educativa. Nós víamos isso de igualdade social como um elemento importante. [Para] nós do IGOP, enquanto escola que quer trabalhar para contribuir na luta contra a desigualdade social, ir para uma escola onde oitenta por cento das crianças têm pais graduados e aqui nascidos, o seu veículo linguístico é catalão, e todo mundo tem apartamento, isso não nos motiva. Ou seja, vimos que a nossa função tem que ser nos lugares onde acontecem mais situações, onde a desigualdade é mais parecida, porque [nesses lugares] tem o compromisso de trabalhar em certas coisas em todas as escolas.

Vocês entendem isso? Eu acho fundamental que quem tenha ferramentas para isso esteja ciente de que o sistema educacional, embora tente ou proponha, desde o início, a igualdade de oportunidades, não é real. Afinal, a igualdade de oportunidades teria que ser atravessada por igualdade de resultados, igualdade de processos e procedimentos, e isso não acontece tanto. Colocar uma experiência assim em uma escola que tem essas dificuldades é uma realidade muito mais significativa do que em outro lugar onde seria só mais uma coisa, e onde todas as famílias estão envolvidas, e onde não há conflito, e onde não há problemas.

Entrevistadoras: E você conhece algum voluntário que começou a utilizar a metodologia da IAP em suas aulas?

Ernesto Morales Morales: Sim, no ano passado participou um professor, alguém que estava estudando magistério em uma escola, e ele a colocou em prática. Essa pessoa, pode ser interessante entrevistá-la também, podemos buscar o contato.

Entrevistadoras: É que na educação se usa muito a pesquisa-ação participante e por isso perguntamos sobre os professores em sala, se eles depois do projeto também passam a utilizá-la para fazer investigações com suas turmas.

Ernesto Morales Morales: Claro, muito trabalho é feito com a consciência de que o projeto é uma oportunidade de trabalhar habilidades básicas. Não ficamos só com o fato de que esta é uma experiência bonita e significativa. Ou seja, essas crianças, quando saem da escola, têm que saber ler, escrever, se expressar, como em qualquer escola da Catalunha. Não pode ser que, a favor da desigualdade e da diversidade e abraçando a diferença, essas crianças saiam com menos capacidades. Então, ter a oportunidade de trabalhar a leitura, a escrita, a análise de dados, no transcurso do projeto, esse é o desafio. No entanto, isso não pode ser feito se a escola não se envolver. O ideal é que você tenha um elemento, um vetor, que introduza na sala de aula, que seja motivador, para desafiar e ajudar as crianças, instigá-los a sair para o bairro. Isso é um fio condutor que permite você trabalhar mais tarde no resto das disciplinas.

Entrevistadoras: Essa metodologia tem sequências de sessões, e vimos que, por exemplo, este ano tivemos a necessidade de fazer duas sessões extras para finalizar tudo, e ainda temos essa necessidade de voltar para a escola para coletar os depoimentos dos estudantes. Então, nós gostaríamos que você falasse um pouco sobre isso, sobre como essas sessões foram construídas ou pensadas, e também sobre a questão da flexibilidade que elas abarcam. Tínhamos no nosso grupo a presença da Alejandra, que é uma moça voluntária que vive no bairro, e nos ajudou muito a nos localizar melhor no projeto e suas demandas, mas também, ter no projeto essa abertura, essa maleabilidade para que tenhamos autonomia de nos posicionar, de tomar decisões, de adaptá-lo conforme as situações, é muito importante. Poderia falar um pouco sobre isso?

Ernesto Morales Morales: Bom, adaptar é superimportante, no final você tem que ver como o grupo respira, quais passos, qual horário, isso tudo é importante. Tem uma coisa que gera muita incerteza para os professores, que é “e hoje, o que vai acontecer?”. Então eles precisam de planejamentos que deixem tudo um pouco arrumado: primeiro isso, depois isso, depois aquilo. Mas dentro dessa geração de visão e segurança integradas, aí você tem que modular. Para se adaptar a cada lugar é preciso ser flexível. Essa flexibilidade também é dada pela experiência, até mesmo para o próprio coordenador. Eu lembro que tem dias que são assim “Olha, hoje a gente vai fazer isso, amanhã fulano faz aquilo”, e tem dias [que alguém vai perguntar] “O que a gente vai fazer?” e você [vai responder] “Tranquilo, vamos fazer isso, eu sei aonde vamos, não se preocupe”. No final das contas, temos que saber aonde vamos, e que todos os passos dados nos aproximem desse lugar. E o projeto foi construído um pouco assim. Acho que o próprio Bernat, quando era coordenador, aos poucos foi aprendendo a modular. E nesse processo, com o Víctor, agora acabou de modular o que podia. Não sei, mas é sempre um desafio. Eu diria, por exemplo, se você quiser colocar uma experiência desse tipo em outro lugar, eu pensaria muito nessa questão. Tem alguns princípios, bem mais metodológicos, tem alguns valores que estão por trás disso, tem um jeito de fazer, “eu quero ir daqui pra cá”, “pra isso acontecer, algumas coisas tem que acontecer”, mas às vezes não é tudo linear, às vezes tem coisas que não voltam atrás. E conseguindo se adaptar ao ritmo, até mesmo ao calendário de atividades que a própria escola tem, é possível aproveitar a oportunidade. Por exemplo, na escola Mestre Morera, que foi a primeira vez que colocamos em prática o projeto, as crianças saíram para fazer confraternizações, alguns acampamentos na cidade. Mas eles vivem em um bairro, então, pegaram o metrô e por dois dias dormiram na cidade. E todos nós da IAP também nos adaptamos, acreditando que naquela ida para a cidade eles iam ver experiências, conhecer o espaço público, o que é comunitário, o que é privado. Viram experiências auto-organizadas, a autogestão do espaço público aqui na cidade. No final das contas, um dos princípios da metodologia de trabalho da IAP é essa ideia de que, para acontecer coisas diferentes, você tem que ser capaz de imaginar. Então o input que os voluntários recebem no projeto, sim, é o mesmo, porque há uma projeção, ou uma visão de um além possível, um projeto vital diferente. É difícil que não aconteça nada. A própria experiência tem que possibilitar abrir um pouco a janela e ver outras coisas.

Entrevistadoras: Ao final das sessões, fazemos propostas, as crianças fazem propostas para os problemas do bairro. Alguma proposta já foi implantada?

Ernesto Morales Morales: Veja, já nos primeiros anos houve uma intervenção no espaço público, com a modificação de uma pracinha, por exemplo. No entanto, as propostas que foram implementadas foram aquelas em que a própria gestão da escola desempenhou um papel central. Vou dar um exemplo: quando trabalhamos questões de conflito no espaço público e dentro da escola, entre grupos e afins, lembro que uma escola fez regras de como o recreio poderia funcionar para que alguns grupos não se imponham aos outros. E foi interessante, todo o processo foi registrado em imagens. No final, saíam coisas como essa tomada de consciência de “bom, legal, aqui somos nós os leões”. Assim, eles conseguiram chegar a um acordo sobre uma forma de fazer o pátio funcionar para que essas situações não ocorressem.

Entrevistadoras: Além da escola, fizemos as entrevistas com essas pessoas do bairro, do centro cívico, da biblioteca, da Associação de Vizinhos, e parece que também é fundamental que essas figuras se envolvam no projeto, porque nossos alunos apresentaram suas propostas a eles, e depende de alguém colocá-las em prática. Porque, senão, acontece que os alunos se sentem um pouco de mãos amarradas, do tipo "Chegamos até aqui, mas precisamos de outras pessoas, se não a coisa não sai do papel de jeito nenhum". O que vimos e sentimos participando do projeto é que existe uma comunidade preocupada em melhorar os espaços comuns e que busca participar dessas atividades junto com os alunos, acreditando que é importante que eles também se integrem mais, desempenhando esse papel de agentes preocupados com o bem público, e também como agentes de transformação ao seu redor.

Gostaríamos de lhe agradecer, Ernesto, por nos permitir participar desta formação, vivenciar outras realidades, poder fazer um pouco de análise comparativa das diferenças de desigualdades sociais em nossos países e trazer para as escolas uma prática que pode ser muito útil para recuperar o sentido do que é cidadania. Além disso, obrigada por nos receber para esta entrevista aqui na Escola IGOP com tanto carinho e receptividade. Muito obrigada!

Apontamentos finais

Essa entrevista com o Professor Ernesto Morales Morales teve como objetivo apresentar o projeto Pesquisa-Ação Participante (IAP) como uma experiência de política pública de formação para a cidadania, que vem apresentando efeitos no sistema educacional da cidade de Barcelona, Espanha, no decorrer de seus nove anos de duração. Acreditamos que esta entrevista proporciona base contextual para o entendimento do que é o projeto IAP, como ele surgiu, com que intenções e quais suas dimensões em nível local e global. Ademais, complementará outros trabalhos de difusão de resultados que em breve serão publicados, relatando essa experimentação.

O IGOP, ao proporcionar este projeto de formação social a toda comunidade interessada, seja ela nacional ou internacional, se pretende um canal de vínculo entre a universidade e a sociedade extramuros. Ao mesmo tempo, coloca-se como um canal de estreitamento e intercâmbio de vivências, culturas, modos de olhar e de pensar o comum, o espaço público, o direito à cidadania. É na interação com o outro e com outros contextos que a IAP faz com que possamos repensar nosso próprio lugar e o nosso papel como cidadãos diante dos problemas sociais, sobretudo, das desigualdades que afetam em maior ou menor escala todos os países, sejam eles emergentes ou não. Repensar nossas relações com o coletivo e com os espaços dos quais fazemos parte, compreendendo nosso papel de agentes ativos de transformação. Trazer essa atitude de refletir o nosso entorno para dentro da sala de aula a partir de diferentes culturas e saberes é, talvez, senão mais um suporte a uma educação para a cidadania que se faz na pluralidade e no respeito às diferenças.

Sabemos da complexidade que é a resolução de problemas, que se faz por meio da diversidade e do dissenso. Todavia, acreditamos que só por meio do dissenso é que pode haver uma verdadeira democracia, para pensar com Chantal Mouffe (2015)Mouffe, C. (2015). Sobre o político. Martins Fontes.. Compreendemos, ainda, o quão distante são os problemas sociais e políticos que assolam Barcelona e as diversas cidades do Brasil. Por isso, pensar a metodologia de Pesquisa-Ação Participante como essa forma disforme de encarar tais complexidades, potencialmente molecular e flexível de adaptar-se a cada realidade, faz dessa formação algo possível. Possível de ser posto em prática aqui, em nossas escolas, mirando nossos problemas regionais e locais, lidando diretamente com nossas singularidades. Como o professor Ernesto mencionou, "a própria experiência há de ser capaz de abrir as janelas”. Somente arriscando-se no desenhar de outros riscos é que uma nova paisagem se faz. A intenção primeira desta entrevista é que ela nos sirva como essa pulsão de pegar o lápis.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com
  • 3
    Apoio: CAPES-PRINT (Programa Institucional de Internacionalização), processos 88887.574741/2020-00 e 88887.478210/2020-00
  • 4
    Ver “El cuento del colibrí y los leones” completo em Terés e Morales (2019, pp.198-199)Morales, E., & Terés, B. Q. (2019). La investigación-acción participativa en las escuelas como instrumento de conscientización sobre los derechos humanos. In José Blanes Sala, & Gilberto M. A. Rodrigues (Orgs.), Educação em direitos humanos: Aproximações teóricas e experiências didáticas. Contribuições do Brasil e da Catalunha (pp. 198-211). Universidade Federal do ABC..
  • 5
    Tradução livre das autoras do catalão. Texto original: “La història ens parla de la crisi (la sequera), de com els més poderosos (els lleons) aprofiten l’avinentesa per fer-se amb el control dels béns comuns (l’aigua), i de com la resistència i la transformació d’aquesta realitat només es pot produir a través de l’acció valen ta de les persones (com el colibrí) i, sobretot, a través de l’acció col•lectiva (entre tots els animals).”
  • 6
    Dos dez encontros, nove foram programados anteriormente e um foi adicionado por necessidade identificada no processo.
  • 7
    A descrição e a análise completa das atividades desenvolvidas no Projeto IAP se encontram no artigo: Correa, M. et al. (2023). Pesquisa-Ação Participativa: um relato de experiência de uma política educativa de formação social em Barcelona. In Educação, Justiça e Direitos Humanos num Mundo em Transformação (pp. 299-324). Axioma Series in Pedagogy and Philosophy of Education, 4.
  • 8
    Atual diretor do IGOP.
  • 9
    O “Pla de Barris” ou, em tradução literal, Plano de Bairros, é um programa da prefeitura de Barcelona que visa reduzir desigualdades a partir de políticas públicas voltadas para o bairro, e elaboradas em conjunto com os cidadãos. https://www.pladebarris.barcelona/ca/el-pla-dels-barris-de-barcelona.
  • 10
    Em referência ao conto do colibri e dos leões.

Referências

  • Blanco, I., & Morales, E. (2013). “Barris i Crisi” al CEIP Mestre Morera (Ciutat Meridiana). Barris i Crisi https://barrisicrisi.wordpress.com/2013/12/10/barris-i-crisi-al-ceip-mestre-morera-ciutat-meridiana/
    » https://barrisicrisi.wordpress.com/2013/12/10/barris-i-crisi-al-ceip-mestre-morera-ciutat-meridiana/
  • Morales, E., & Terés, B. Q. (2019). La investigación-acción participativa en las escuelas como instrumento de conscientización sobre los derechos humanos. In José Blanes Sala, & Gilberto M. A. Rodrigues (Orgs.), Educação em direitos humanos: Aproximações teóricas e experiências didáticas. Contribuições do Brasil e da Catalunha (pp. 198-211). Universidade Federal do ABC.
  • Mouffe, C. (2015). Sobre o político Martins Fontes.
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Editor responsável: Silvio Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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