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População em situação de rua: Expressão (im)pertinente da “questão social”* * Apoio: CAPES

Population in street situation: (Im)pertinent expression of the social issue

Resumo

Ensaio teórico-reflexivo que discute o fenômeno da População em Situação de Rua (PSR) como expressão da “questão social”. A PSR é um fenômeno secular, enquanto expressão das desigualdades sociais, que outrora apresentava-se e era nomeado de outras formas. Nas últimas décadas, diante dos efeitos das condições estruturantes da sociedade moderna e do modo de produção capitalista, além do agravamento das crises econômicas, reestruturação produtiva, financeirização e precarização da vida, a PSR tem se expandido no mundo. Salienta-se a importância de resgatar o debate acerca da “questão social”, especialmente entre os psicólogos envolvidos com esse campo, como modo de afirmar a dimensão estrutural do fenômeno em situação de rua, além de distanciar-se das visões que o individualizam e o despolitizam.

Palavras-chave:
capitalismo; questão social; população em situação de rua; psicologia

Abstract

Theoretical and reflexive essay aiming to discuss the phenomenon of the Population in Street Situation as expression of the social issue. While expression of social inequalities, this is a secular phenomenon which once presented itself and was denominated in other ways. During the last decades, the PSR has expanded in the world following the effects of the society structuring and capitalism means of production, as also the aggravation of crises, productive restructuration, financialization and the precariousness of life. We point out the importance of rescuing the debate about this social issue, especially among psychologists involved with this field, as a way of affirming the structural dimension of the street situation phenomenon, besides holding off from outlooks that individualize and depoliticize it.

Keywords:
capitalism; social issue; population in street situation; psychology

Este estudo compreende um ensaio teórico-reflexivo, com o objetivo de discutir o fenômeno da População em Situação de Rua (PSR) enquanto expressão da “questão social”. Motivou-nos esta reflexão a inserção dos psicólogos, mais recentemente, na área da Saúde e Assistência Social, nos serviços voltados para acolher e assistir às necessidades da PSR no Brasil.

Na Saúde, em 2012, por meio da Portaria nº 122, se instituiu o Consultório na Rua, serviço que integra a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no nível de Atenção Básica. Este serviço é composto por equipes multiprofissionais, apresenta funcionamento itinerante e tem como proposta a ampliação do acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e oferta de atenção integral à saúde da população em situação de rua em todo o país (Brasil, 2012). No campo da Assistência Social, tem-se o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), previsto no Decreto nº 7.053/2009 e na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Trata-se um serviço que integra a rede de Proteção Social Especial (PSE), de média complexidade, configurando-se como um espaço essencial para a oferta de atenção especializada no Sistema Único da Assistência Social (SUAS) às pessoas em situação de rua (Brasil, 2011Brasil. (2011). Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua - Centro Pop. Brasília. ).

Os estudos sobre o tema abordam em maior ênfase a atenção à saúde da PSR, especificamente no nível básico de atenção (Estratégia de Saúde da Família [ESF] e Consultórios na Rua), ressaltando perfis sociodemográficos, necessidades sociais e de saúde, manutenção de práticas de intolerância e violência contra esta população, bem como a violação de seus direitos sociais e políticos. Pontuaram ainda a urgência das políticas de saúde incorporarem práticas de cuidados específicas para esses sujeitos, transversais a todos os níveis de atenção, acompanhado da reorientação dos processos de trabalho, com foco na atenção integral, contínua e longitudinal, inclusive intersetorial, como ponto de partida para a organização da assistência (Barata, Carneiro Jr., Ribeiro, & Silveira, 2015Barata, R. B., Carneiro Jr., N., Ribeiro, M. C. S.A., & Silveira, C. (2015). Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, 24(supl.1), 219-232. ; Carneiro Jr., Jesus, & Crevelim, 2010Carneiro Jr., N., Jesus, C.H., & Crevelim, M.A. (2010). A Estratégia Saúde da Família para a equidade de acesso dirigida à população em situação de rua em grandes centros urbanos. Saúde e Sociedade,19(3), 709-716.; Kunz, Heckert, & Carvalho, 2014Kunz, G. S., Heckert, A. L., & Carvalho, S. V. (2014). Modos de vida da população em situação de rua: inventando táticas nas ruas de Vitória/ES.Fractal: Revista de Psicologia , 26(3), 919-942.; Silva, Cruz, & Vargas, 2015Silva, C. C., Cruz, M. M., & Vargas, E. P (2015). Práticas de cuidado e população em situação de rua: O caso do Consultório na Rua.Saúde em Debate,39(spe), 246-256.). No âmbito da Assistência Social, o tema dialoga com os aspectos outrora citados, apesar de ganhar outros contornos envolvendo conflitos, desapoios e dificuldades na vivência familiar, consumo de substâncias psicoativas, problemas com o tráfico, além da burocracia e morosidade da rede de atendimento, quantitativo reduzido ou mesmo a inexistência de serviços e violência institucional (Balieiro, Soares, &Vieira, 2017Balieiro, E., Soares, C., & Vieira, E. (2017). Morador de rua: Causas, entraves e serviços ofertados. Temporalis, 17(34), 333-353.; Serafino & Luz, 2015Serafino, I., & Luz, L.C.X. (2015). Políticas para a população adulta em situação de rua: questões para debate.Revista Katálysis,18(1), 74-85.https://dx.doi.org/10.1590/1414-49802015000100008
https://dx.doi.org/10.1590/1414-49802015...
).

Porém, apesar dos desafios postos diante deste quadro, há uma questão anterior que, em nossa opinião, figura como uma das mais importantes e que não tem ganhado a importância ao problematizar as práticas profissionais da Psicologia nesse contexto. Trata-se do reclame feito por Yamamoto (2007Yamamoto, O. H. (2007). Políticas sociais, “terceiro setor” e “compromisso social”: perspectivas e limites do trabalho do psicólogo. Psicologia & Sociedade, 19, 30-37., 2012Yamamoto, O. H. (2012). 50 Anos De Profissão: Responsabilidade social ou Projeto ético-político? Psicologia: Ciência & Profissão, 32(num. esp.), 6-17), de que apesar do alcance social e do alargamento da profissão nas últimas décadas no âmbito das políticas sociais no Brasil, os psicólogos não têm apreendido suficientemente as “determinações macroestruturais de sua inserção profissional no setor do bem-estar social público”, muito menos buscado “alargar o campo de ação para além dos limites de executor terminal da política, intervindo na gestão e, principalmente, na sua formulação” (p.11).

Talvez o ponto central seja a pouca atenção da Psicologia à chamada “questão social” e suas expressões, no sentido de aprofundar o grau de compreensão e formulações que alimentem as dimensões que compõem o fazer profissional dos psicólogos no âmbito das políticas sociais: dimensão teórico-metodológica (capacidade de apreensão das teorias e métodos orientadores da ação), dimensão ético-política (finalidade da ação) e dimensão técnico-operativa (meios e instrumentos da ação).

Nossa aposta é que esse exercício amplie o universo de mediações apreendidas pela Psicologia acerca da “questão social”, para além do repetitivo debate que reclama, mais e mais, sobre as insuficiências da atuação e formação profissional nas políticas sociais. Debate este, apesar de muito qualificado e sempre evocado, tem constatado, mesmo depois de décadas de insistência, avanços pouco significativos quanto a reorientação de práticas e posturas ético-políticas contra hegemônicas na profissão. Como constatação, recorre-se a pesquisa nacional sobre o psicólogo brasileiro, que evidencia a manutenção do trabalho dos psicólogos, especialmente no setor público e do terceiro setor, nos moldes da clínica tradicional, acompanhado da aplicação de testes psicológicos, do psicodiagnóstico e da psicoterapia (Bastos & Gondim, 2010Bastos, A.V.B., & Gondim, S.M.G. (Orgs.). (2010).O Trabalho do Psicólogo no Brasil. Porto Alegre: Artmed.).

Especificamente em relação ao fenômeno da PSR (uma novidade em termos de inserção profissional dos psicólogos com serviços especializados nas políticas sociais), parece que a história tende a repetir-se. Entretanto, há alguns aspectos que precisam ser recuperados por meio de uma reflexão histórico-crítica acerca das múltiplas determinações ligadas a produção do fenômeno, com o objetivo de problematizar a compreensão trivial e impertinente, muito comum na racionalidade hegemônica que norteia tradicionalmente nossa profissão, que trata da individualização da “questão social” ao restringi-la ao âmbito da responsabilidade e adversidade individual. Tal operação de naturalização corresponde para Telles (1999Telles, V. S. (1999). A “nova questão social” brasileira. Mimeo.) aquilo que denomina de esvaziamento do potencial crítico deste fenômeno.

A pertinência desse debate é de suma importância para os psicólogos que lidam cotidianamente com a PSR, tanto quanto para aqueles inseridos nas políticas públicas de maneira geral, especialmente pelo risco de tomar as manifestações da “questão social” como fenômenos autônomos e de responsabilidade estritamente individual ou de determinados grupos sociais, produzidos pelo comportamento dos próprios sujeitos em função de déficit educativo acompanhado de problemas sociais e familiares, que resultam em aspectos da personalidade do sujeito (Montaño, 2012Montaño, C. (2012). Pobreza, questão social e seu enfrentamento. Serviço Social e Sociedade, 110, 270-287.).

Operar por esses processos de naturalização e esvaziamento crítico do qual nos alerta Telles (1999Telles, V. S. (1999). A “nova questão social” brasileira. Mimeo.), ao tratar sobre o fenômeno da PSR, é negar que tal problemática está inscrita e produzida no seio social. Tal operação não só esvazia a capacidade de trazer à cena pública o caráter de problema político que esse fenômeno apresenta, como invisibiliza as questões chaves que o produzem. Contrapor-se a isso, é tomar o fenômeno da PSR enquanto efeito dos processos estruturais e da dinâmica social da qual é decorrente.

Por isso o resgate da “questão social” enquanto caminho para compreender o fenômeno da PSR enquanto expressão alarmante das desigualdades sociais gerada no seio da sociedade capitalista, mais especificamente nos conflitos referentes à esfera da socialização da produção e apropriação privada dos lucros e condições de trabalho.

Para compreensão desta proposta, faz-se necessário discutir o que está sendo designado de “questão social”, como a problemática surge e se coloca na cena social, os modos de compreensão e enfretamento no decorrer histórico, e suas expressões mais contemporâneas. Paralelo a este caminho, discutir como o fenômeno da situação de rua encontra na “questão social” suas raízes estruturais, é o que objetivamos em termos gerais com este trabalho.

Alguns Esclarecimentos sobre a “Questão Social” e a Emergência da PSR como uma de suas Expressões

Ao abordar a “questão social”, Santos (2012Santos, J. S. (2012). Questão social: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez.) alerta que não se está falando de uma categoria que exista na concretude do mundo e da vida, a partir do qual é possível fazer abstrações, e sim de um conceito reflexivo. Deste modo, alerta a autora que o que existe concretamente não é a Questão Social, mas suas expressões: pauperização, exclusão, desigualdades sociais, violência, analfabetismo, trabalho infantil, desemprego, situação de rua, fome, etc. Expressões estas que encontram nas desigualdades postas pelo desenvolvimento do capitalismo seu seio comum de produção. É nesta perspectiva que a proposta de resgaste da “questão social” mostra-se relevante e pertinente para resituar o debate sobre a PSR sem recair em análises fragmentadas e individualizantes do fenômeno. Pois, enquanto um conceito reflexivo, a “questão social”, segundo Iamamoto (2001Iamamoto, M. (2001). A questão social no capitalismo. Temporalis, 2(3). ), apresenta uma potencialidade totalizadora, ou ainda, a possibilidade de unidade.

Feito essas ressalvas, apoiamo-nos em Silva (2006Silva, M. L. L. (2006). Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 1995-2005 (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. ) quando toma a População em Situação de Rua como uma expressão radical da “questão social”. Por PSR, adotamos a definição da Política Nacional para População em Situação de Rua, entendida enquanto grupo populacional marcado pela heterogeneidade, que tem em comum: (a) ausência de moradia regular, habitando praças, viadutos, calçadas, locais abandonados, casas de acolhimento; (b) exercício de atividades próprias ao contexto da rua para obtenção de renda: trabalho de flanelinha e catação de papel, dentre outras; (c) e fragilidade dos vínculos sócio familiares (Brasil, 2009Brasil. (2009). Decreto nº 7.053, 23 de dezembro de 2009. Brasília.). Em linhas gerais trata-se de uma população marcada pela pobreza extrema, em condições precarizadas de vida e trabalho, expressão clara de uma sociedade desigual e excludente.

Nota-se tratar de um fenômeno que se intercruza com outras expressões da “questão social”, como desemprego, pobreza e ausência de moradia. Assim, ao se estudar a PSR é necessário ter clareza que se trata de um fenômeno de ordem multidimensional, a fim de não trazer uma visão reducionista para o mesmo. Silva (2006Silva, M. L. L. (2006). Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 1995-2005 (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. ) aponta três conjuntos de fatores que compõem e alimentam a questão: os fatores estruturais (mutações no mundo do capital e no papel do Estado e suas repercussões ao mundo do trabalho, ausência de moradia); fatores biográficos (relacionado com as histórias de vida e trajetórias individuais, como fragilidades e rompimentos nos vínculos familiares, transtornos mentais, uso abusivo de álcool e outras drogas, perdas); fatores de natureza ou desastres de massas (terremotos, enchentes etc.).

Compreender a PSR à luz destes três fatores, entendendo que eles não se apresentam dissociados, pelo contrário, se atravessam e se retroalimentam, isso é o que remete ao caráter multideterminado deste fenômeno. E nunca é demais lembrar que esta expressão contundente da “questão social” tem como causa estrutural as relações capitalistas, estando vinculada aos processos de “acumulação do capital, no contexto da produção contínua de uma superpopulação relativa ou exército industrial de reserva, excedente à capacidade de absorção do mercado de trabalho no capitalismo” (Silva, 2006Silva, M. L. L. (2006). Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 1995-2005 (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. , p. 82).

A emergência da “Questão Social” e os Condicionantes do Fenômeno da PSR nos Países Centrais e Periféricos: Diálogos e Convergências

É no surgimento da “questão social” que se encontra as condições objetivas para compreender a historicidade do fenômeno da PSR, em termos de como emergiu e complexificou ao associar-se a outros elementos. A “questão social” se gesta no século XIX, expressa no fenômeno que ficou conhecido como pauperismo. Salienta-se, conforme aponta Montaño (2012Montaño, C. (2012). Pobreza, questão social e seu enfrentamento. Serviço Social e Sociedade, 110, 270-287.), que a compreensão histórico-crítica desse fenômeno é necessário analisar sua emergência a partir do desenvolvimento do capitalismo desde a chamada acumulação primitiva, analisada por K. Marx, a partir da decomposição da sociedade feudal. A gênese reside, portanto, no conflito capital/trabalho onde a produção é socializada, ao passo que ocorre a dissociação do trabalhador dos seus meios de produção, como a expulsão violenta do campesinato de sua base fundiária, expropriação de sua produção familiar e usurpação de terras comunais para pastagens, acompanhado de leis sanguinárias, gerando massas de indigentes e desocupados (Marx, 2011Marx, K. (2011). O Capital: Crítica da Economia Política (Livro 1). São Paulo: Boitempo.).

Para Iamamoto (2001Iamamoto, M. (2001). A questão social no capitalismo. Temporalis, 2(3). ), na modernidade e em sua na nova ordem emergente (capitalismo), o homem é considerado um trabalhador livre. Assim, tem na venda de sua força de trabalho o único meio para atender suas necessidades, pois foi expropriado dos meios de produção. Segundo Polanyi (1980Polanyi, K. (1980). A grande transformação: As origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus. ), a venda da mão obra era necessária em um contexto de desenvolvimento industrial que impunha a lógica mercantil e ruptura com a ordem tradicional do sistema feudal e suas relações servis e comunais. Era vigente a necessidade do estabelecimento de um mercado de trabalho que ofertasse em grande escala mão de obra para alimentar as fábricas e impulsionar o acúmulo de capital.

Deste modo, todos os elementos essenciais à indústria deveriam transformar-se em mercadoria. É nesse sentido que elementos como o trabalho, a terra e o dinheiro adquirem essa posição. O trabalho, por meio do salário, vira mercadoria (Polanyi, 1980Polanyi, K. (1980). A grande transformação: As origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus. ). Assim, o trabalhador é expropriado dos meios de produção, ou como diz Antunes (2005Antunes, R. (2005). O caracol e sua concha: Ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo. ), é expropriado do que lhe garantia proteção. O capitalismo, para o autor, operou uma separação que era do âmbito insolúvel: trabalhador/meios de produção, transformando os meios de produção em capital, dando base para acumulação capitalista.

Tem-se um quadro que Pastorini (2004Pastorini, A. (2004). A categoria “questão social” em debate. São Paulo: Cortez.) denomina da perda do direito ao trabalho (direito a viver trabalhando) e passa a se ter o direito de trabalho (livre acesso ao mercado de trabalho). Entretanto, como diz Iamamoto (2001Iamamoto, M. (2001). A questão social no capitalismo. Temporalis, 2(3). ), esse suposto direito de livre acesso ao mercado de trabalho é bloqueado pela lei geral da acumulação capitalista, a qual se expressa em uma lógica contraditória, sendo responsável por produzir e reproduzir as expressões da “questão social”. Para esta autora, essa lei cria uma relação inversa onde a expansão do capital não representa uma expansão da incorporação de mão de obra, pelo contrário, a expansão do capital é acompanhada da expansão do exército industrial de reserva.

Para Iamamoto (2001Iamamoto, M. (2001). A questão social no capitalismo. Temporalis, 2(3). ), com base na análise do capital proposta Karl Marx, esta lógica contraditória é explicada mediante a implantação das novas tecnologias no processo de produção, que repercute tanto na diminuição do emprego da força viva de trabalho, quanto no tempo de trabalho para produção da mercadoria; processos que incidem no aumento da produtividade (peça chave para prosperidade do capitalismo). Sob esta lógica se produz mais em menos tempo, como resultado tem-se a diminuição do valor da mercadoria e o aumento do trabalho excedente (mais valia), já que, precisaria de menos tempo para produção. Entretanto, a jornada de trabalho é aumentada, bem como é restringido o número de trabalhadores para produção, aumentando a exploração. Há, portanto, um movimento de aumento do capital constante (parcela do capital destinada à compra dos meios materiais de produção), ao passo que, ocorre a diminuição do capital variável (parcela do capital destinada a compra da força de trabalho).

Por esta lógica, de acordo com Marx (2011Marx, K. (2011). O Capital: Crítica da Economia Política (Livro 1). São Paulo: Boitempo.), a procura por trabalho sempre será maior que a oferta. Tem-se, portanto, um quadro que apresenta o trabalhador livre, portador da capacidade de trabalho, mas que está apartado das condições necessárias à sua realização. Cenário que contribui para produção de uma população supérflua ao capital, mas funcional a lei da acumulação, ao propiciar que a relação trabalhador/oferta/procura, seja favorável ao capital, acirrando assim a concorrência entre os trabalhadores.

Em outros termos, tem-se que a acumulação do capital produz a acumulação da miséria, pois como manifesta Ianni (1992Ianni, O. (1992). A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense.), pauperização e progressos andam equiparados. Nas palavras do autor: “a mesma sociedade que fabrica a prosperidade econômica fabrica as desigualdades sociais que constituem a questão social” (Ianni,1992Ianni, O. (1992). A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense., p. 111). Assim, há uma significação estrutural para o conjunto de desigualdades e contradições sociais que compõem esse fenômeno e suas múltiplas expressões. Iamamoto (2001Iamamoto, M. (2001). A questão social no capitalismo. Temporalis, 2(3). ) também corrobora com esta ideia encontrando no processo de acumulação a gênese da produção/reprodução da “questão social” na sociedade capitalista.

O surgimento da horda supérflua, do exército de reserva, fruto do contexto industrial e da exploração dos trabalhadores, intensifica ainda mais o contingente da superpopulação relativa, gerando pelo menos três formas: a flutuante, a latente e a estagnada. Nesse sentido, Marx (2011Marx, K. (2011). O Capital: Crítica da Economia Política (Livro 1). São Paulo: Boitempo.) lembra que o “sedimento mais baixo da superpopulação relativa habita a esfera do pauperismo” (p. 874), constituído pelo aptos ao trabalho, aos órfãos e os filhos de indigentes, e os degradados, maltrapilhos e incapacitados para o trabalho.

Este fenômeno, para Behring e Boschetti (2007Behring, E. R., & Boschetti, I. (2007). Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez.), representa a expressão mais aguda da “questão social”, pois integra a parte da superpopulação relativa que está em maior grau de degradação das condições de vida, sendo constituído por aqueles que, embora aptos para o trabalho, não são assimilados pelo sistema capitalista (Iamamoto, 2001Iamamoto, M. (2001). A questão social no capitalismo. Temporalis, 2(3). ; Netto, 2001Netto, J. (2001). Cinco notas a propósito da “questão social”. Revista Temporalis, 3, 41- 51. ; Pastorini, 2004Pastorini, A. (2004). A categoria “questão social” em debate. São Paulo: Cortez.).

Nos países centrais o pauperismo se difunde no final do século XVIII e ganha expressão no século XIX. Surge tendo como palco as sociedades pré-industriais, no momento histórico da acumulação primitiva (século XVI a XVIII), processo que operou a expropriação violenta das terras dos camponeses, conforme referimos anteriormente, gerando intenso êxodo rural, inchaço das cidades, além de ampla oferta de mão de obra. A população expropriada dos meios de produção se dirigia a área urbana, mas não era assimilada, seja em razão do incipiente mercado manufatureiro nascente, seja por causa da inadaptação dos camponeses a este formato de trabalho. Essa horda excedente, que se aglomerava nas periferias da cidade, massificou o contingente de pessoas que vagavam pelas ruas das cidades e estradas, materializados anteriormente pela figura do “mendigo” (Marx, 2011Marx, K. (2011). O Capital: Crítica da Economia Política (Livro 1). São Paulo: Boitempo.).

Por outro lado, o violento processo de pauperização também conduziu ao descontento da classe operária que se formava com a crescente industrialização, fator para emergência dos movimentos de luta e resistência à exploração do trabalho pelo capital. Discutir a “questão social”, como assinala Behring e Boschetti (2007Behring, E. R., & Boschetti, I. (2007). Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez.), implica debater as lutas da classe trabalhadora, pois é na emergência do trabalhador livre, como demonstra autores como Cerqueira Filho (1982Cerqueira Filho, G. (1982). A questão social no Brasil. Rio: Civilização Brasileira.) e Ianni (1992Ianni, O. (1992). A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense.), que também houve possibilidade para sua exposição e negociação dos conflitos. Foi nesse contexto que a “questão social” emergiu na cena pública como questão política, com a luta pelo direito ao trabalho, o que inclui a demanda por condições e jornada de trabalho, salário e apropriação coletiva das riquezas produzidas.

Montaño (2012Montaño, C. (2012). Pobreza, questão social e seu enfrentamento. Serviço Social e Sociedade, 110, 270-287.) lembra que esses movimentos de luta também confrontavam o modo como a pauperização figurava na cena pública, pois o pauperismo trazia traços estruturais distintivos para formação da pobreza e das desigualdades, que embora sempre tivessem existido, na ordem do capital, passam a ser produzidas em bases diferentes. Netto (2001Netto, J. (2001). Cinco notas a propósito da “questão social”. Revista Temporalis, 3, 41- 51. ) explica que o fator gerador do pauperismo do século XIX reside na mesma base estrutural que daria condições para sua supressão. Nas sociedades pré-capitalistas a pobreza era forjada em uma sociedade da escassez, onde ainda era incipiente o nível desenvolvimento das forças produtivas materiais e sociais, o que corroborava para uma produção aquém do atendimento das necessidades da totalidade da população. Com o desenvolvimento do capitalismo, o quadro que se apresenta é outro: o cerne da “questão social”, como aponta o autor, já não resulta de um quadro de escassez, e sim, do amplo desenvolvimento das forças de produção a partir do conflito capital/trabalho (socialização crescente das forças produtivas e apropriação privada dos frutos do trabalho). Portanto, o pauperismo em meio a sociedade capitalista não é entendido como qualquer pobreza, mas uma pobreza vinculada às contradições capital/trabalho.

Na segunda metade do século XIX, assiste-se à entrada do pensamento conservador nesse debate com releituras e deslocamento de sentidos da “questão social” e suas expressões. Se por um lado havia nesse debate o resgate das questões estruturais do pauperismo, a partir da emergência da classe operária na contestação das desigualdades, na correlação de forças, também houve o interesse burguês de manutenção desta ordem. O pensamento conservador oferece uma leitura do fenômeno da “questão social” desarticulada da fundamentação política e econômica que a sustenta (conflito capital/trabalho), compreendida, neste caso, como problema de ordem cultural, moral e comportamental dos indivíduos (Montaño, 2012Montaño, C. (2012). Pobreza, questão social e seu enfrentamento. Serviço Social e Sociedade, 110, 270-287.).

Por essa perspectiva conservadora, as expressões da “questão social” (pauperismo, desigualdades sociais, analfabetismo, desemprego, violência, situação de rua, por exemplo), ganham ar de naturalidade e irreversibilidade, visto figurarem como uma fatalidade necessária do desenvolvimento, desqualificando-as, portanto, como questão política. As respostas para tais “problemas” se limitariam a oferecer ações filantrópicas, ficando os sujeitos entregues à própria sorte, sob o julgo do discurso meritocrático, moralizador, repressivo e higienista (Ianni, 1992Ianni, O. (1992). A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense.; Silva, 2006Silva, M. L. L. (2006). Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 1995-2005 (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. ; Sposati, 1995Sposati, A. (1995). Comentários dos assessores sobre o perfil da população de rua. In C. M. M. Rosa (Org.), População de rua: Brasil e Canadá. São Paulo: Hucitec.).

Se nos países centrais, a origem da PSR é produto de processos que se apresentam articulados e geradores do desemprego em massa que fez surgir o pauperismo, como o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, industrialização e urbanização. No Brasil, há distinções postas pelas características históricas da formação social do país, o que imprime particularidades ao estudo do fenômeno. É pertinente assinalar o alerta feito por Santos (2012Santos, J. S. (2012). Questão social: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez.) ao ratificar que a compreensão das expressões da “questão social” no Brasil deve ultrapassar o transplante dos elementos universais do modo de produção capitalista.

No contexto de acumulação do capital, os países da América Latina, caso do Brasil, serviram como mecanismo para acelarar a acumulação primitiva de capital para as metropóles européias, mediante a colonização. Assim, a inserção do Brasil na ordem do capital desde seu início é marcada por um caráter predatório e dependente. A colonização produziu reflexos para formação social do Brasil, tais como: a construção de um país agro-exportador, pautado no latifúndio e na escravidão, de conservação de suas estruturas arcaicas e conformação de um Estado comprometido com os interesses privados e das elites (Carvalho, 2003Carvalho, J. M. (2003). Cidadania no Brasil. Rio, Civilização Brasileira.; Kowarick, 1985Kowarick, L. (1985). Capitalismo e marginalidade na América Latina (4 ed., Col. Estudos Latino americanos). Rio de Janeiro: Paz & Terra.).

O próprio ideário liberal (universalismo, liberdade e igualdade) que aportou em solo brasileiro ainda no período do Império, e se fez presente na Constituição de 1824, apesar do ímpeto modernizador, ficou tolhido a fim de conservar a estruturas existentes. A incompatibilidade dessas ideias com a sociedade brasileira é fruto da mediação do favor, do clientelismo e da escravidão que aqui se instalou em meio ao processo de modernização conservadora (Pastorini, 2004Pastorini, A. (2004). A categoria “questão social” em debate. São Paulo: Cortez.; Santos, 2012Santos, J. S. (2012). Questão social: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez.). Isto é corroborado pelo caráter dependente do país e de seu capitalismo que faz com que o desenvolvimento do capitalismo brasileiro não seja um processo orgânico, resultado da maturação de sua formação social, mas como resultado de enxertos impostos pelos países centrais, corroborando para uma configuração não clássica do capitalismo no contexto brasileiro (Kowarick, 1985Kowarick, L. (1985). Capitalismo e marginalidade na América Latina (4 ed., Col. Estudos Latino americanos). Rio de Janeiro: Paz & Terra.). De acordo com Carvalho (2003Carvalho, J. M. (2003). Cidadania no Brasil. Rio, Civilização Brasileira.), o que se apresentou foram soluções monárquicas conservadoras que não incorporam as reformas capitalistas, apenas promoveram adaptações a sabor dos interesses do setor agroexportador.

Interessa compreender os desdobramentos dessas particularidades, em especial, a partir do regime escravocrata, que forjou uma sociedade rigída e dicomotizada na figura do senhor-escravo e impossibitou outras formas de inserção produtiva. Mas estes não foram os únicos a compor a sociedade colonial havendo amplo contigente de livres e libertos (negros libertos, brancos, índios, grupos miscigenados, mendigos) que sem espaço neste modo de produção vagavam pelos campos e ruas em mendicância itinerante, vistos como vadios e inutéis ao modelo agroexportador (Kowarick, 1985Kowarick, L. (1985). Capitalismo e marginalidade na América Latina (4 ed., Col. Estudos Latino americanos). Rio de Janeiro: Paz & Terra.). Porém, diferente do contexto europeu, as lutas e insurgências no Brasil não representaram a assimilação e proteção social desse contingente populacional.

Com a abolição no final do século XIX ocorre intenso processo migratório do excedente europeu para o Brasil. Segundo Ribeiro (1995Ribeiro, D. (1995). O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. ) foram cerca de 7 milhões de imigrantes europeus aqui aportados que, somado aos ex-escravos e a população pré-existente de livre e libertos, promoveu um exorbitante crescimento da mão de obra disponível. Ademais, o excedente nacional (ex-escravos, livres e libertos) ganhou maior ênfase devido a preferência pela mão de obra européia, por razões como: a lassidão e rebeldia dos escravos e sua inadaptação ao formato de trabalho assalariado; a ideologia de embraquecimento do país; além do subsídio do Estado para imigração (Theodoro, 2005Theodoro, M. (2005). As características do mercado de trabalho e as origens do informal no Brasil. In L. Jaccoud & F. B. Silva (Orgs.), Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília: IPEA.).

O deslocamento do eixo agroexportador para o industrial se fortalece em 1930, no governo Vargas, período em que a hegemonia agroexportadora perde a surpremacia e o país adentra em um novo padrão de acumulação pautado na atividade urbano-industrial (Silva, 2006Silva, M. L. L. (2006). Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 1995-2005 (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. ). Este período é marcado por forte intervenção estatal no desmonte do padrão de acumulação anterior (agrário-exportador) e na construção das condições para o novo modelo de acumulação. Isto traz mudanças para configuração da sociedade brasileira, consequentemente, para o fenômeno estudado.

O Brasil tem uma industrialização que se consolida tardiamente no século XX, fruto dos percalços postos pela elite no período anterior a 1930, na conformação da modernização conservadora. A primeira fase da industrialização, chamada por Santos (2012Santos, J. S. (2012). Questão social: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez.) de industrialização restringida é acompanhada por um acelerado processo de industrialização e urbanização, em especial entre os anos de 1940-1950, alimentada em parte pelo intenso êxodo rural que fornecia grande contingente para atender aos interesses do capital.

Anterior a industrialização, o Brasil tinha uma população eminente rural, tanto em sua composição, como na base econômica. Todavia, o desmonte do modelo agroexportador liberou um grande contingente de mão de obra que se dirigia às cidades culminando no êxodo rural, que por sua vez intensificou o excedente, que como já discutido é histórico e anterior a própria abolição. Agora, se soma ao excedente mais um expressivo grupo na composição do exército de reserva: a população rural. De acordo com Silva (2006Silva, M. L. L. (2006). Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 1995-2005 (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. ), essa a população vai compor o exército industrial de reserva que passou a alimentar os centros urbanos recém-criados pelo processo de industrialização.

O processo de êxodo rural deflagrado nos países da América Latina e, mais especificamente no Brasil, teve proporção maior do que decorreu nos países europeus. Visto que, nos países europeus, os índices demográficos eram menores, bem como houve exportação do excedente, contribuindo para que o movimento campo-cidade fosse menor. Além disso, a industrialização europeia apresentava maior capacidade de absorção, ao passo que, no Brasil, a capacidade de absorção da indústria nascente era incipiente e a formação social já trazia a herança de um excedente histórico (Kowarick, 1985Kowarick, L. (1985). Capitalismo e marginalidade na América Latina (4 ed., Col. Estudos Latino americanos). Rio de Janeiro: Paz & Terra.). Ademais, as cidades brasileiras não apresentavam condições de acompanhar o acelerado crescimento populacional.

Segundo Ribeiro (1995Ribeiro, D. (1995). O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. ), em 1920 a população urbana representava cerca de 30,6 milhões de pessoas, em 1960 já era equivalente a 70, 9 milhões. O Brasil apresentou um dos êxodos rurais mais violentos, gerando uma situação alarmante de miséria nas cidades. Para o autor, o problema brasileiro residia em administrar um expressivo contingente urbano que sem ter a possibilidade de exportação, tal como fez a Europa ao enviar seu excedente para América, reassentava no solo nacional em condição de extrema expropriação e miséria.

Salienta-se, portanto, que as origens da PSR no Brasil remetem a formação social do país, aos sentidos e heranças da colonização, com a constituição de um excedente que é anterior ao próprio desenvolvimento do capitalismo brasileiro, mas que é intensificado por seu desenvolvimento, dada as particularidades enquanto tardio e dependente. O conjunto dos processos aqui elencados contribui para que a contradição capital/trabalho e as expressões da “questão social” no país fossem intensificadas quando comparado aos países centrais.

Mudanças no Mundo Capital: Repercussões para o Debate Contemporâneo da “Questão Social” e para o Fenômeno da PSR nos Países Centrais e Periféricos

O debate proposto nos tópicos anteriores possibilitou regatar o contexto histórico em que emerge a “questão social”, corroborando para resgatar a base estrutural do fenômeno da PSR. Destarte, uma discussão contemporânea é necessária a fim de compreender como o fenômeno figura no cenário atual. Para isto, resgate-se o contexto da crise na década de 1970 e seus desdobramentos para “questão social” e uma de suas expressões: a População em Situação de Rua.

Nos países centrais, no pós-Segunda Guerra, o capitalismo avança para sua fase madura, caracterizada por crescimentos exponenciais, aumentos nas taxas de lucro e produtividade, que também beneficiou os trabalhadores pela montagem de um Estado Social, doravante chamado de Welfare State. Nessa conjuntura se estabeleceu o regime de acumulação fordista-keynesiano, pautado no pleno emprego e na igualdade social. Esta última tinha como uma das vias a promoção de políticas sociais (Behring & Boschetti, 2007Behring, E. R., & Boschetti, I. (2007). Política Social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez.; Netto, 2001Netto, J. (2001). Cinco notas a propósito da “questão social”. Revista Temporalis, 3, 41- 51. ). Nesta conjuntura, estabeleceu-se o regime de acumulação fordista-keynesiano, que tinha por finalidade a ampliação da acumulação capitalista, tentando concilia-la com benefícios aos trabalhadores. Assim, tal regime foi pautado no pleno emprego, na igualdade social, no aumento da renda, acarretando melhoria no padrão de vida das massas e aumento do consumo. Trata-se de um momento peculiar onde se vislumbrava como possível uma face civilizadora para o capitalismo (Behring & Boschetti, 2007; Montaño & Duriguetto, 2011Montaño, C., & Duriguetto, M. L. (2011). Estado, classe e movimento social. São Paulo: Cortez.; Netto, 2012Netto, J. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429.).

Mas ao final da década de 1960, este modelo começou a dar sinais de esgotamento, atingindo uma crise na década de 1970, de ordem sistêmica, perpassando toda a estrutura do capital (Netto, 2001Netto, J. (2001). Cinco notas a propósito da “questão social”. Revista Temporalis, 3, 41- 51. , 2012Netto, J. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429.). Para Montaño e Duriguetto (2011Montaño, C., & Duriguetto, M. L. (2011). Estado, classe e movimento social. São Paulo: Cortez.) a crise tem com uma de suas primeiras expressões a alta do petróleo em meados de 1973-1975. Segundo os autores a raiz da crise situa-se no excesso de produção que não encontra vazão no mercado consumidor, levando a baixa das mercadorias ou ainda a não venda, seguida pela consequente queda da taxa de lucros.

O contexto de baixa dos lucros e de taxas de crescimento aquém robusteceu a inviabilidade civilizadora do capital. Para Chesnais (1996Chesnais, F. (1996). A mundialização do capital. São Paulo: Xamã. ) e Netto (2012Netto, J. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429.) as respostas do capitalismo maduro à crise apontam para a promoção da barbárie. É o ruir das utopias e da ingenuidade civilizatória do capital. Segue-se então com medidas como a reestruturação produtiva, reorientação do Estado e financeirização do capital como respostas para saída da crise.

A agenda de reestruturação do capital foi apoiada, segundo Netto (2012Netto, J. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429.), no projeto neoliberal. Isto trouxe mudanças ao mundo do trabalho na medida em que rompeu com o regime de acumulação fordista-keynesiano e o pacto de classes existente. Em substituição tem-se o regime de acumulação flexível: o toyotismo, adotado como estratégia para manter o lucro no contexto adverso da crise, pois intensificava a base de acumulação do capital - a exploração capital/trabalho.

O toyotismo caracteriza-se pelo incremento tecnológico e um modelo de produção enxuto, que exige menor grau de investimento e de trabalhadores estáveis, além da diminuição do trabalho vivo. Entre as repercussões deste regime estão: expulsão de grandes contingentes do mercado formal de trabalho, promovendo um exército industrial de reserva do capitalismo maduro; aumento do desemprego estrutural; exploração crescente dos trabalhadores; baixa dos salários; subcontratações e precarização dos empregos (Antunes, 2005Antunes, R. (2005). O caracol e sua concha: Ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo. ; Montaño & Duriguetto, 2011Montaño, C., & Duriguetto, M. L. (2011). Estado, classe e movimento social. São Paulo: Cortez.; Netto, 2012Netto, J. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429.).

Outra linha de ação deste projeto foi a reorientação do papel do Estado com ações de desmantelamento do Welfare State por meio de contras reformas, expressas nos ajustes estruturais de vertente neoliberal. Assim, para que os Estados viessem a garantir sua inserção no plano econômico mundial deviam comprometer-se em desmontar o sistema de bem-estar, que passa então a ser uma herança de épocas passadas, quando garantias sociais condiziam aos interesses capitalísticos, deixando a sociedade mais vulnerável aos jogos de interesse do capital (Montaño & Duriguetto, 2011Montaño, C., & Duriguetto, M. L. (2011). Estado, classe e movimento social. São Paulo: Cortez.; Netto, 2012Netto, J. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429.).

O processo de desmonte é corroborado pela desregulamentação das relações comerciais mundiais que agenciou a livre abertura das fronteiras nacionais ao capital financeiro, promovendo um movimento que Chesnais (1996Chesnais, F. (1996). A mundialização do capital. São Paulo: Xamã. ) aponta como a mundialização do capital. Trata-se de um novo ciclo de expansão, que sob a hegemonia do capital financeiro comanda a ordem econômica mundial a partir das estruturas globais de poder (Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio/OMC, Fundo Monetário Internacional/FMI) (Ianni, 1996Ianni, O. (1996). A era do globalismo. Rio: Civilização Brasileira.). O processo descrito até aqui será ainda mais violento nos países periféricos, de desenvolvimento tardio e dependente e que não chegaram a efetivar um sistema robusto de proteção social, como o Brasil, conforme veremos mais adiante.

Autores de países centrais, como Castel (1998Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.) e Rosanvallon (1998Rosanvallon, P. (1998). A nova questão social. Brasília: Instituto Teotônio Vilela.), apontam que essas transformações no mundo do capital sinalizam para o surgimento de uma nova questão social. Para Castel (1998) esse fenômeno é tão grave quanto o pauperismo do século XIX e se expressa por meio de três processos: “desestabilização dos estáveis”, os que se encontravam solidamente assimilados, assalariados e protegidos das vicissitudes e anseios do capital, agora estão vulneráveis a ele; “instalação na precariedade”, os trabalhadores vivem um quadro de desemprego recorrente, oscilando entre trabalhos provisórios e desemprego; por último um “déficit de lugares”, compreendido como a perda de lugares na estrutura social. Em outros termos, no caso deste último, é o ressurgir dos inúteis para o mundo, os supranumerários, não pertencentes à ordem social, desqualificados civil e politicamente.

O déficit de lugares conduz ao ressurgimento de uma categoria que se imaginava ter esvaecido, como os “vagabundos” e “mendigos” das cidades pré-industriais dos países centrais (Castel, 1998Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.). Se no contexto do século XIX, encontra-se no pauperismo a produção desta expressão da “questão social”, no contexto contemporâneo são as violentas mudanças engendradas no mundo do capital que faz proliferar os chamados “supranumerários”, “exército de reserva”, “população excedente”, “inúteis ao mundo”, ou como mais costumeiramente tem se nomeado nesses países de população sem-abrigo.

Os programas de luta contra a pobreza e exclusão social nos países centrais, particularmente os europeus, reconhece, desde a crise dos anos de 1970, o fenômeno dos sem-abrigo como uma questão complexa e atravessado pela pobreza e outras determinações. De acordo com os relatórios mais recentes que têm tratado a questão na União Europeia, o perfil dessa população passou de predominantemente masculino, meia-idade, com um percurso extenso de problemáticas sociais, problemas mentais e uso de substâncias psicoativas, para um perfil muito mais abrangente relacionado a recessão e a crise econômica. Em suma são: imigrantes, jovens, recém-desempregados, vítimas de uma agressiva cultura de facilitação do crédito. Há ainda a preocupação com determinados grupos, a exemplo das mulheres, das famílias monoparentais e famílias numerosas, idosos, comunidades ciganas, dentre outros, por certo, mais vulneráveis à situação de sem-abrigo (Brasil, 2013Brasil (2013). Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Diálogos sobre a população em situação de rua no Brasil e na Europa: Experiências do Distrito Federal, Paris e Londres. Brasília: SDH.).

Apesar da complexidade de questões, autores como Netto (2001Netto, J. (2001). Cinco notas a propósito da “questão social”. Revista Temporalis, 3, 41- 51. , 2012Netto, J. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429.) e Pastorini (2004Pastorini, A. (2004). A categoria “questão social” em debate. São Paulo: Cortez.) insistem não se tratar de uma nova questão social, visto que, o elemento básico, a exploração capital/trabalho, não apenas se mantém como se acentua ao se reconfigurar sob a lógica do mercado financeiro internacional que impõe medidas de austeridade econômica aos Estados Nacionais. O movimento analítico, segundo Pastorini (2004Pastorini, A. (2004). A categoria “questão social” em debate. São Paulo: Cortez.), seria então visualizar o que há de novo nesta velha “questão social”.

Partindo desta proposta analítica, retomamos o diálogo com Castel (1998Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.) para observa que, enquanto elemento novo, o fato que, diferente das sociedades pré-industriais, onde os pobres miseráveis subordinados aos desmandos eram explorados e úteis, os supranumerários sequer são explorados, foram descartados, pois são dispensáveis ao funcionamento social. Portanto, fica então estabelecido um novo parâmetro para o acirramento da desmedida do capital para expropriar e espoliar o trabalhador: além da ameaça de poderem integrar o exército de reserva engrossando as fileiras do desemprego, do subemprego e da informalidade, categorias estas completamente funcionais ao capitalismo contemporâneo, é a partir daí que se extrai novas formas de explorar a massa trabalhadora sem emprego com o mercado de cursos, da subcultura e da demanda empreendedora, caso não se submetam ou se modelem as condições dadas, restará integrar a massa dos inempregáveis, dos desqualificados e dos supérfluos.

Outro ponto importante na proposta de Castel (1998Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.) é não analisar a “questão social” unicamente pela margem, pois engendrada por estes novos processos tem-se a desestabilização dos estáveis, processo que torna mais grupos populacionais vulneráveis e desprotegidos, com as desregulamentações das legislações trabalhistas no mundo todo e o avanço da informalidade e do subproletariado, bem como do precariado, como afirmam Antunes (2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo. ) e Braga (2017Braga, R. (2017). Rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo.), mais recentemente.

Resultado disso, é que, somado aos clássicos segmentos desprotegidos incorpora-se outros segmentos, trazendo uma maior heterogeneidade para as camadas que estão no rés do chão, conforme assinala Netto (2012Netto, J. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429.). Isto traz como elemento novo para o fenômeno estudado uma maior heterogeneidade dos segmentos que poderão compor a PSR e não apenas a figura clássica do “mendigo” e do “pedinte”, assim como vimos na alteração do perfil dos sem-abrigo nos países da Europa nos últimos anos.

No Brasil, os efeitos da crise da década de 1970 são sentidos dado a forte associação e dependência do país com o capital internacional, próprio dos países que não chegaram a passar pela revolução industrial. Essa associação se intensificou, na verdade, ainda na primeira fase da industrialização pesada, iniciada em 1956, no governo de Juscelino Kubitschek, com a adoção do modelo de Estado desenvolvimentista, marcado pela aceleração da economia e do parque industrial, via internacionalização econômica. Este momento era corroborado pela conjuntura favorável de expansão do capital nos “anos de ouro”. Apesar do crescimento, será somente na segunda fase da industrialização pesada (pós-1964 aos dias atuais) que o capitalismo tardio brasileiro completa o ciclo, aproximando-se dos países centrais. Se a associação ao capital internacional propiciou o milagre econômico da década de 1970 e o amadurecimento do capitalismo tardio brasileiro, também deixou o país exposto aos reveses da crise, aprofundando o cenário crônico de desigualdades e de desemprego, consequentemente, da pobreza urbana e rural, além de proliferar o número de pessoas que faziam da rua seu lugar de sustento e morada (Santos, 2012Santos, J. S. (2012). Questão social: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez.).

Na América Latina os processos engendrados como a reestruturação produtiva, reorientação do Estado e financeirização do capital ocorrem em temporalidades distintas, mas com a característica comum de subordinação aos mandos e desmandos do capital internacional. Comparado aos países latinos, o Brasil tem inserção tardia na ordem neoliberal com a eleição do presidente Fernando Collor de Melo (Soares, 2002Soares, L. T. (2002). Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo: Cortez. ). Mas foi, marcadamente a partir de 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), que vimos consolidar no país as propostas neoliberais, com as medidas econômicas adotadas e a ofensiva ao trabalho, a desproteção, precarização, flexibilização, consequentemente, o crescimento do desemprego estrutural, a destruição do parque industrial nacional, o aumento da desigualdade social, acentuando assim a questão social no seu seio produtor: o conflito capital/trabalho (Montaño & Durigueto, 2011Montaño, C., & Duriguetto, M. L. (2011). Estado, classe e movimento social. São Paulo: Cortez.; Soares, 2002Soares, L. T. (2002). Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo: Cortez. ).

Quanto a política macroeconômica adotada nos Governos do PT (Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff), se comparado ao período FHC, não foi muito diferente pois reafirmou uma política de desenvolvimento alinhada com os limites impostos pelo capitalismo e seu projeto neoliberal, figurando o Estado como complementar ao mercado. Porém, não podemos esquecer que dentro de uma lógica neodesenvolvimentista, os Governos do PT adotam uma postura de conciliação entre os interesses do grande capital e o estabelecimento de políticas e ações voltadas para o campo social, com medidas de combate à pobreza e desigualdades (Paiva & Hillesheim, 2016Paiva, B. A., Hillesheim, J. (2016). Ainda sobre os 80 anos do Serviço Social: Direitos sociais em tempos de ruptura democrática. Textos e Contextos, 15(2), 234-249.), que depois tornou-se insustentável com a crise econômica, política e jurídica, que culminou no processo de ruptura democrática vivido no Brasil atual.

Propor esse balanço histórico ajuda a compreender a dimensão histórica das determinações da PSR no Brasil. A introdução ao debate sobre esse fenômeno, no âmbito acadêmico e na gestão das políticas públicas, remonta a década de 1970, como bem situa Neves (2011Neves, D. P. (2011). Habitantes de rua e vicissitudes do trabalho livre. Antropolítica, 29, 99-130.), a partir da figura do “mendigo”. A autora aponta que na literatura sociológica da época a mendicância era tida como fenômeno social, portanto, passível de ser estudada a partir da reprodução social da massa trabalhadora, relacionada ao lumpemproletariado, pois enquanto parte da classe trabalhadora considerada apta não era absorvida pelo mercado de trabalho e, por isto, encontrava-se no pauperismo. Tomada pela necessidade de abordar o debate percorrendo as especificidades que atravessava o tema, a autora propôs investigar acerca das condições e os percursos de vida dos “mendigos”, no objetivo de compreender o sistema de diferenciações e as complexas relações que configuram tais sujeitos, inclusive quanto a forma de perceberem a si mesmos e as condições sobre as quais tentavam sobreviver.

Porém, com o crescimento acelerado do número de pessoas vivendo na/da rua, ao longo das décadas de 1980 e 1990, por imposição das condições estruturantes outrora relatadas, houve, nas palavras de Neves (2011Neves, D. P. (2011). Habitantes de rua e vicissitudes do trabalho livre. Antropolítica, 29, 99-130.), a “requalificação do fenômeno” em que mesmo reconhecido nas metrópoles e grandes centros urbanos de países centrais e periféricos, “recebeu designações de significados aproximados, homeless, sans domicile fixe”. Mas, no Brasil, além de não contarem com habitação, conforme “designações anteriores”, agrega-se a isso outro elemento que refere sobre aqueles que “não têm casa” ou lhes resta “um quase-direito”: “(ser) população de rua” (p. 113).

Esse deslocamento é fundamental para compreender o conjunto amplo de mediações que conformam o fenômeno da situação de rua e sua inserção no debate público sobre a “questão social” no caso brasileiro, culminando nas décadas seguintes, com a proposição de políticas específicas, inclusive com o reconhecimento de não somente serem moradores, mas também trabalhadores de rua: xepeiros (catadores de resto de comida), papeleiros (catadores de papel para reciclagem), garrafeiros (catadores de garrafas para reaproveitamento), lateiros e madeireiros (catadores de latas e madeiras nos entulhos das construções de imóveis), guardadores e limpadores de carros, além de ajudantes e vigias de áreas de concentração de comércio ambulante (Neves, 2011Neves, D. P. (2011). Habitantes de rua e vicissitudes do trabalho livre. Antropolítica, 29, 99-130.).

O turbilhão democrático vivido no final dos anos 1980 com o processo constituinte luta por direitos disparou profícuos debates acerca deste tema, resultando na década seguinte com a realização do Fórum Nacional de Estudos sobre População de Rua, em 1993, e do Grito dos Excluídos a partir de 1995, além dos Seminários Nacionais, do 1º Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e da 1ª Marcha do Povo da Rua, em 2001. Porém, o trágico acontecimento ocorrido no centro de São Paulo em 2004, com o ataque a 15 pessoas em situação de rua, resultando na morte de 7, acabou contribuindo para a organização do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), apoiado pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, para exigir do Estado proteção e políticas públicas para essa população (Brasil, 2013Brasil (2013). Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Diálogos sobre a população em situação de rua no Brasil e na Europa: Experiências do Distrito Federal, Paris e Londres. Brasília: SDH.).

Daí então houve o I Encontro Nacional sobre População de Rua em Situação de Rua, em seguida foi formado um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), coordenado pelo Ministério de Desenvolvimento Social, porém, composto por outros ministérios (Saúde, Educação, Trabalho e Emprego, Cidades, Cultura e Secretaria Especial de Direitos Humanos), além da sociedade civil organizada (MNPR e Pastoral do Povo da Rua), dente outros, na perspectiva de elaborar estudos, promover iniciativas para ampliar o debate com a participação da sociedade civil na discussão e formulação de políticas públicas destinadas a essa população (Brasil, 2013Brasil (2013). Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Diálogos sobre a população em situação de rua no Brasil e na Europa: Experiências do Distrito Federal, Paris e Londres. Brasília: SDH.).

Entre 2008 foi publicado o resultado do I Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (PSR) nas capitais brasileiras, para orientar a elaboração da Política Nacional para População em Situação de Rua (PNPR), em vigor pelo Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. O censo revelou a época que pelo menos 31.992 pessoas viviam em situação de rua em todo o país. Sem dúvida um número expressivo de pessoas e que reunia características variadas: majoritariamente masculina (82%), com menor número entre as mulheres (18%), de cor parda (39,1%) e negra (27,9%); destacavam-se aqueles com idade entre 25 e 44 anos (53%); realizam trabalho informal (70,9%), com renda variando entre R$20,00 a R$80,00 semanais, como: catador de materiais recicláveis (27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Percebe-se, portanto, um perfil que contrariava o rótulo de mendigos, vagabundos e desocupados, já que uma minoria (15%) declarou pedir esmolas em espaços públicos como principal forma de sobrevivência (Brasil, 2008Brasil. (2008). Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua. Brasília. ).

Esse perfil suscitou perceber que a PSR é marcada tanto por fatores estruturais quanto de ordem biográfica relacionados a aspectos familiares e/ou acentuada marginalização, estando exposta as mais diversas formas de desigualdades, condições insalubres de vida e de trabalho, violência nas suas múltiplas expressões, inclusive física e sexual, sendo alvo de agressões e extermínios. Portanto, esta é uma população sujeita a um delicado quadro de vulnerabilidade e desfiliação, com determinações à saúde física e mental, demandando atenção e proteção social.

Outro fator que, mais recentemente, tem contribuído para expansão contemporânea da PSR é a grande leva de refugiados que chegam ao Brasil, advindos, segundo Moreira (2014Moreira, J. B. (2014). Refugiados no Brasil: Reflexões acerca do processo de integração local. Revista Interdisciplinar de Mobilidade Humana, XXII(43), 85-98. ), de países do Sul que sofrem com um grave quadro de desigualdades socioeconômicas, questões étnico-culturais, pobreza, miséria e instabilidade política. Aydos, Baeninger e Dominguez (2008Aydos, M., Baeninger, M., & Dominguez, J.A. (2008). Condições de Vida da População Refugiada no Brasil: Trajetórias migratórias e arranjos familiares. In Anais do III Congresso da Associação Latino Americana de População. ) já alertavam naquele ano sobre o perfil de refugiados que chegavam ao pais para se instalar em São Paulo e no Rio de Janeiro, em que o maior percentual (37%) já esteve ou ainda estava em situação de rua.

Apreender, portanto, esse conjunto de determinações que conformam o fenômeno da PSR no Brasil possibilita enriquecer a capacidade analítica e reflexiva dos atores que atuam na complexa realidade das políticas sociais, especialmente quando a urgência de respostas se impõe ao cotidiano das equipes e gestores, levando-os a ações funcionais às demandas mais imediatas que chegam aos serviços.

Considerações Finais

Com base no exposto, tem-se que a PSR encontra seu seio produtor no conflito capital/trabalho, com raízes no pauperismo da era industrial e nas recentes mutações do mundo do capital e do trabalho. Conjuntura que produziu em série trabalhadores precarizados, instáveis, desempregados e supranumerários, tanto nos países centrais, quanto nos periféricos, sendo que no caso brasileiro, em meio ao contexto de capitalismo tardio e de modernização conservadora, seguido da estruturação das políticas neoliberais no país, resultou na exarcebação das expressões da “questão social”, assim como no fenômeno estudado.

Tal debate faz-se necessário para requalificar nossa compreensão acerca da complexidade do tema, possibilitando tomá-lo além de suas expressões mais imediatas com que lidamos nos serviços. Além disso, revisitar o tema a partir das condições históricas de possibilidade de emergência do fenômeno da PSR, certamente contribui para também compreendermos acerca das determinações macroestruturais da nossa inserção profissional no setor do bem-estar social público e as possibilidades e limites de atuação nesse campo (Yamamoto, 2007Yamamoto, O. H. (2007). Políticas sociais, “terceiro setor” e “compromisso social”: perspectivas e limites do trabalho do psicólogo. Psicologia & Sociedade, 19, 30-37., 2012Yamamoto, O. H. (2012). 50 Anos De Profissão: Responsabilidade social ou Projeto ético-político? Psicologia: Ciência & Profissão, 32(num. esp.), 6-17).

Isso exige trilhar por caminhos críticos e posturas ético-políticas vinculadas às lutas democráticas e em defesa dos direitos e da emancipação humana, que no contexto atual, pede que fiquemos, mais e mais, atentos aos impertinentes investimentos do capital na despolitização e esvaziamento crítico desta expressão, que comumente figura enquanto questão de polícia ao invés de política, para usar a terminologia de Cerqueira Filho (1982Cerqueira Filho, G. (1982). A questão social no Brasil. Rio: Civilização Brasileira.), ou ainda como questão de cunho comportamental, moral e pessoal. O alerta é para que os psicólogos não transponham para esse campo suas velhas práticas de diagnóstico e psicoterápicas reforçadores do viés individual, decorrentes do comportamento, portanto, responsabilizadoras do sujeito por sua condição (Parker, 2014Parker, I. (2014). Revolução na Psicologia: Da alienação à emancipação. Campinas: Alínea. ).

A transposição acrítica dessas práticas para toda e qualquer situação reflete numa grande marca da Psicologia brasileira, ainda organizada sob a lógica de uma certa “psicologia aplicada”. Esse expediente reflete uma falsa expectativa de que a teoria passa a condição de prática profissional, sem considerar as devidas mediações que compõem esse processo de transição entre as dimensões teórico-metodológica e a técnica-operativa do fazer profissional do psicólogo; ou quando esta última é supervalorizada de forma que uma teoria só carrega valor próprio quando se encaixa diretamente na prática. Nas palavras de Santos (2012Santos, J. S. (2012). Questão social: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez.), isso ocorre quando a “ação prática oferece, também de imediato, a teoria, a qual seria, portanto, apenas a sistematização da prática” (p. 13).

Traçando, pois, um paralelo com o campo de possibilidade que se abre para os psicólogos que atuam nos serviços voltados para PSR (Consultório na Rua e Centro Pop) e nas políticas sociais em geral, precisamos aprofundar nossas discussões na profissão não apenas sobre como escolhemos e desenvolvemos nossos pressupostos teóricos no campo do “bem-estar social”, mas como esta é apreendida, processada e utilizada como condicionante para a escolha das nossas ações práticas e implicada com os valores e projetos emancipatórios (dimensão ético-política). Ignorar esse exercício pode significar a manutenção das velhas práticas psicológicas no âmbito das políticas sociais.

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    Apoio: CAPES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2016
  • Revisado
    31 Jul 2018
  • Aceito
    10 Set 2018
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