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A pesquisa Psicanalítica na Universidade: Estratégias Metodológicas de Investigação

Resumo

A máxima da investigação psicanalítica é propiciar condições para descobertas, mas não necessariamente descobrir o que se procurava. Por outro lado, no âmbito universitário, exige-se frequentemente a prévia delimitação de objetivos gerais, objetivos específicos, hipóteses e resultados esperados. Como é possível, então, diante das reivindicações clínicas e universitárias, estudar os fenômenos inconscientes de modo a não violentar a natureza do objeto de estudo? O presente artigo se propõe a realizar uma discussão teórica sobre a epistemologia da pesquisa psicanalítica e seu lugar dentro da pesquisa universitária. Conceitua-se a investigação psicanalítica como uma matriz de estratégias de investigação orientada pela prática clínica e a pesquisa. Nesse contexto, o enfoque deste artigo é direcionado ao estudo de caso.

Palavras-chave:
pesquisa psicanalítica; pesquisa universitária; estudo de caso; metodologia; psicanálise

Abstract

The principle of psychoanalytic investigation is to provide conditions for discoveries, but not necessarily to discover what was sought. On the other hand, at the university level, a frequent requirement is the delineation of general objectives, specific objectives, hypotheses, and expected results. How is it possible, then, in the face of clinical and university claims, to study unconscious phenomena so as not to violate the nature of the object of study? This article proposes to conduct a theoretical discussion on the epistemology of psychoanalytic research and its place within university research. Psychoanalytic research is conceptualized as a matrix of strategies guided by clinical practice and research. In this context, the focus of this article is directed at the case study.

Keywords:
psychoanalytic research; university research; case study; methodology; psychoanalysis

Há muitas psicoterapias e muitos métodos de investigação da psique humana. De acordo com Freud (1905/2006, p. 243Freud, S. (2006) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. II). Imago. (Obra original publicada em 1905).), “todos os que levam à meta da recuperação são bons”. Porém, ele se restringiu a um único procedimento terapêutico, o método analítico, abandonando, inclusive, outras formas de tratamento que utilizara anteriormente, como a sugestão hipnótica. Essa escolha de Freud decorre de sua convicção de que esse método que resolveu explorar e com base no qual desenvolveu sua técnica é o mais profundo e, também, o mais investigativo em relação à psicogênese das psicopatologias.

O método analítico de psicoterapia é o mais penetrante, aquele que chega mais longe, aquele pelo qual se consegue a transformação mais ampla do doente... ele é o mais interessante, o único que nos ensina algo sobre a gênese e a interação dos fenômenos patológicos. (Freud, 1905/2006Freud, S. (2006) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. II). Imago. (Obra original publicada em 1905)., p. 246)

Dessa forma, a psicanálise procura atuar nos conflitos inconscientes que estão nas raízes dos sintomas. Almeja também trabalhar em análise as resistências do analisando, as quais impedem o acesso ao conteúdo inacessível à consciência para chegar a essas raízes e suas incidências psicopatogênicas. Portanto, a psicanálise não se limita ao alívio dos sintomas, a tornar a vida do paciente menos sofrível. Ela pretende remexer essa vida, na medida em que o próprio paciente se dispõe a submetê-la a uma revisão, para alcançar um saber mais abrangente sobre si mesmo e para enfrentar certas verdades sobre si (Bucher, 1989Bucher, R. (1989). A psicoterapia pela fala: Fundamentos, princípios, questionamentos. EPU., p. 187).

A partir disso, a investigação psicanalítica se constituiu como uma forma fidedigna de acessar os processos mentais que “são quase inacessíveis por qualquer outro modo” (Freud, 1923/2006Freud, S. (2006). Dois verbetes de enciclopédia. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XVII). Imago. (Obra original publicada em 1923)., p. 287). A psicanálise é, nesse sentido, tanto um procedimento de investigação, quanto um método de tratamento que culmina na efetivação de um arcabouço teórico de informações psicológicas em constante desenvolvimento.

Na psicanálise tem existido desde o início um laço inseparável entre cura e pesquisa. O conhecimento trouxe êxito terapêutico. Era impossível tratar um paciente sem aprender algo de novo; foi impossível conseguir nova percepção sem perceber seus resultados benéficos. Nosso método analítico é o único em que essa preciosa conjunção é assegurada. É somente pela execução do nosso trabalho pastoral analítico que podemos aprofundar nossa compreensão que desponta da mente humana. Essa perspectiva de ganho científico tem sido a feição mais orgulhosa e feliz do trabalho analítico. (Freud, 1926/2006Freud, S. (2006). A questão da análise leiga: Conversações com uma pessoa imparcial. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XX). Imago. (Obra original publicada em 1926). p. 246).

Dessa forma, Freud sempre manteve uma postura investigativa. Por mais que tenha criado recomendações à prática analítica, essas não se engessaram em um método fixo e consolidado, pois a investigação psicanalítica, desde o seu início, foi orientada pelas transformações da experiência clínica. O conhecimento adquirido com os pacientes tornou-se uma fonte para se pensar e repensar as configurações teóricas e técnicas da teoria psicanalítica. Portanto, Freud inicialmente desenvolveu um método de investigação dos sintomas, até chegar a uma forma de tratamento, que, por sua vez, retroalimentava o próprio método de investigação. Por isso, é mais coerente pensar a metodologia da psicanálise, conforme situam Figueiredo e Minerbo (2006Figueiredo, L. C., & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: Algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70), 257-278. ), não como um método de pesquisa, mas como uma matriz de estratégias de investigação. A noção de ‘método’ está, “desde Descartes, comprometida com a pretensão do homem da modernidade de exercer um pleno controle sobre seus próprios processos volitivos e cognitivos” (Figueiredo & Minerbo, 2006Figueiredo, L. C., & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: Algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70), 257-278. , p. 263).

Já as estratégias vão se formando e transformando, engendrando táticas e propiciando "sacadas", em função das condições atuais em que são efetivadas; estratégias deixam uma larga margem para o improviso e para os processos primários, para as descobertas e para as invenções. A menos que se desconstrua a acepção corrente de "método", forjada em muitos séculos da cultura ocidental, para retomar uma acepção mais arcaica e original do termo, deixando de lado suas ressonâncias modernas e "científicas". (Figueiredo & Minerbo, 2006Figueiredo, L. C., & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: Algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70), 257-278. , p. 263).

Assim, a pesquisa em psicanálise se distancia da pesquisa empírica que é balizada pelos seus ideais de replicabilidade e controle de variáveis da epistemologia científica. Enquanto nas pesquisas empíricas a relação entre sujeito e objeto implica um sujeito ativo que estuda metodicamente seu objeto, respaldado por conceitos, instrumentos e técnicas de descoberta e verificação de hipóteses, na pesquisa psicanalítica verifica-se precisamente o oposto: o não controle das variáveis. A técnica psicanalítica, tanto referente à clínica quanto à pesquisa, é fundamentalmente constituída a partir do que emerge de nosso controle: as manifestações inconscientes. Dessa forma, não é arbitrário que a investigação psicanalítica não tenha se constituído como um manual com diretrizes rígidas a serem seguidas. Foi exatamente por não ter tornado seu método explicitamente delineado que Freud conseguiu trilhá-lo e transmiti-lo. “A escassez de recomendações técnicas é imanente ao método psicanalítico na medida em que impede o risco de reduzi-lo à técnica, que o tornaria passível de aplicabilidade” (Vorcaro, 2010Vorcaro, A. (2010). Psicanálise e método científico: O lugar do caso clínico. In F. Kyrillos Neto & J. O. Moreira (Eds.), Pesquisa em Psicanálise: Transmissão na Universidade (pp. 11-23). EdUEMG. , p. 11).

A investigação clínica psicanalítica exige que se abra mão do controle para acessar seu objeto de estudo, justamente para “evitar que os ideais (inclusive os científicos) do psicanalista o cegassem/ensurdecessem em relação ao material que estivesse por vir, principalmente aquele que fosse capaz de causar surpresas e reviravoltas na situação e processo psicanalíticos” (Castro, 2010Castro, J. (2010). O método psicanalítico e o estudo de caso. In F. Kyrillos Neto & J. O. Moreira (Eds.), Pesquisa em Psicanálise: Transmissão na Universidade (pp. 24-35). EdUEMG. , p. 26).

Nesse contexto, Figueiredo e Minerbo (2006Figueiredo, L. C., & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: Algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70), 257-278. ) discriminam duas formas de pesquisa em psicanálise: a pesquisa em psicanálise propriamente dita e a pesquisa a partir da investigação psicanalítica. A primeira é mais ampla, sendo constituída por um conjunto de atividades voltadas para a produção de conhecimento, que mantém relações com a psicanálise. Não há, aqui, exigência de um psicanalista engajado e atuando em atendimentos clínicos. Qualquer pessoa interessada pode colocar as teorias da psicanálise no centro de seu objeto de pesquisa para conduzir estudos sistemáticos, históricos, sociais ou epistemológicos. Por outro lado, a pesquisa a partir da investigação psicanalítica exige um psicanalista. Essa pesquisa em psicanálise precisa respeitar, na medida em que está intrinsecamente atrelada à prática clínica, a especificidade de seu método clínico, a associação livre, que responde mais à lógica da descoberta do que à de uma meta planejada de acordo com um projeto preestabelecido de confirmação de hipóteses.

Ao se inserir em um contexto acadêmico, diante de diversas exigências universitárias, poderia a pesquisa a partir da investigação psicanalítica manter sua essência ou teria que ser adaptada, correndo o risco de romper com a natureza de seu objeto de estudo? Considerando esse questionamento, o presente estudo se propõe a realizar uma discussão teórica sobre a epistemologia da pesquisa psicanalítica e seu lugar dentro da pesquisa universitária.

Princípios da investigação psicanalítica

Mesmo que a investigação psicanalítica seja orientada por uma busca, muitas vezes respondendo às demandas universitárias de pesquisa e de conselhos de ética em pesquisa, que exigem a prévia delimitação de objetivos específicos, objetivos gerais e resultados esperados, é essencial que essa busca não inviabilize o resultado dos desvelamentos ocorridos nas sessões clínicas. A máxima da investigação psicanalítica é propiciar condições para descobertas, mas não necessariamente descobrirmos o que estávamos procurando (Mijolla-Mellor, 2004Mijolla-Mellor, S. (2004). La recherche en psychanalyse à l'Université.Recherches en psychanalyse, (1), 27-47.).

Nesse tipo de pesquisa, o pesquisador se transforma com o objeto, deixa-se fazer por ele e, em compensação, o constrói na medida em que avançam suas elaborações e descobertas, fazendo dessa pesquisa “um momento na história de uma relação que não deixa nenhum dos termos tal como era, antes de a própria pesquisa ser iniciada” (Figueiredo & Minerbo, 2006Figueiredo, L. C., & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: Algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70), 257-278. , p. 260).

As relações transferenciais e contratransferenciais dão a marca da singularidade ao que se descobre e ao que se inventa na pesquisa investigativa da clínica psicanalítica. O clínico pesquisador, nesse caso, se coloca disponível para um outro que aparece na sua frente, expressando seu sofrimento das mais diversas formas: fazendo exigências, desafiando sua capacidade de atenção e acolhimento, testando seu conhecimento, saindo do domínio confortável que é a rigidez da teoria. Esse outro que se coloca à sua frente o desaloja, o coloca em outro lugar e é importante que o faça, pois é aí que se possibilita o surgimento do novo. É imprescindível que, na sua habilidade de clinicar, o analista possa se dispor a aprender com e sobre esse outro que está diante de si. A técnica clínica e investigativa da psicanálise é, portanto, essencialmente de permitir tempo e espaço para que o outro apareça e se mostre na sua condição de alteridade. Tanto analista, quanto analisando fazem-se outros no encontro com o outro (Figueiredo, 1996Figueiredo, L. C. (1996). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes.).

Trata-se de uma atividade em que se constituem e se transformam "objetos", "pesquisadores", "meios" ou "instrumentos" de investigação. E, dessa forma, "sujeito de pesquisa", "objeto de pesquisa" e "meios de investigação" são construídos em sua qualidade transformativa preocupada em acessar as dimensões inconscientes do sofrimento. Para atingir essa finalidade transformativa, a clínica psicanalítica se desenvolve a partir da atenção flutuante. Isso quer dizer que o analista não deve privilegiar a priori qualquer elemento do discurso de seu analisando. Se esse é orientado a associar livremente, comunicar tudo o que lhe ocorre à mente, sem crítica ou seleção, o analista, por sua vez, deve deixar-se em um estado de suspensão quanto a suas motivações inconscientes para escutar o mais livremente possível o material produzido na análise (Freud, 1912/2006Freud, S. (2006) Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Imago. (Obra original publicada em 1912)., Figueiredo & Minerbo, 2006Figueiredo, L. C., & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: Algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70), 257-278. ).

Daí, talvez, a precedência de escuta sobre o olhar quando se trata de metaforizar a experiência clínica na originalidade de sua ética: o olhar sugere a soberania e o distanciamento de quem vê e ao ver se apodera do que é visto, enquanto a escuta coloca o que ouve numa posição mais próxima, passiva, padecente. É mais fácil dirigir o olhar que a escuta; é mais fácil abrir e fechar os olhos que os ouvidos. Os olhos pedem luz para funcionar, os ouvidos funcionam melhor no silêncio. Os olhos se lançam sobre o mundo iluminado à procura, enquanto os ouvidos esperam silenciosamente. (Figueiredo, 1996Figueiredo, L. C. (1996). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes., p. 167)

O que Figueiredo poeticamente nos aponta é que a análise, em sua dimensão clínica e de pesquisa, exige que o analista/pesquisador deixe-se despertar para um novo que contrarie suas expectativas. Figueiredo (1996Figueiredo, L. C. (1996). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes., p. 170) e, também, Pontalis (2003Pontalis, J. (2003). O laboratório central. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 371-378). Editora Imago., p. 376) retomam a frase de Picasso, assumida por Lacan: “Eu não procuro, eu acho”. E o que estão querendo dizer com isso é que só se acha caso se aceite o risco de não procurar. O ditado popular “quem procura acha” se mostra aqui pertinente, pois entende-se que quem procura acha algo relacionado ao que se está procurando. Seu achado é direcionado por uma procura que se fecha para o que não se está procurando.

Pontalis (2003Pontalis, J. (2003). O laboratório central. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 371-378). Editora Imago., p. 376) provoca: “mais achados e nós nos deleitaríamos menos com a palavra ‘pesquisa’”. Dessa forma, a escuta clínica psicanalítica consiste fundamentalmente em dar lugar ao desconhecido, encontrar o “inesperado na sua irredutível alteridade, um encontro com o que se eleva à minha frente invalidando-me e intimando-me a ser, desatualizando-me e conclamando-me à atualização” (Figueiredo, 1996Figueiredo, L. C. (1996). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes., p. 170). Portanto, é essencial que se consiga dar espaço para a desconstrução que abrirá o caminho à reconstrução, fugindo, assim, da armadilha de reduzir a prática à teoria. Caso se caia na armadilha de não se estar aberto ao novo na clínica, qualquer que seja a resistência do analista ao tratamento do sujeito, como, por exemplo, o desejo de curar ou a ânsia de procurar reconhecimento científico, nada de novo se apresentará e a investigação clínica se restringirá a confirmar as afirmações teóricas já realizadas (Vorcaro, 2010Vorcaro, A. (2010). Psicanálise e método científico: O lugar do caso clínico. In F. Kyrillos Neto & J. O. Moreira (Eds.), Pesquisa em Psicanálise: Transmissão na Universidade (pp. 11-23). EdUEMG. ).

O pesquisador pode se restringir a querer confirmar afirmações teóricas já feitas, oferecendo manifestações clínicas a serviço de testemunhar a própria psicanálise. Nessa situação, longe da função de investigação, o caso torna-se mero exemplo que pode obturar o próprio método, configurando um ato de abandono do mais essencial à psicanálise. Funcionando como resistência do analista à manifestação subjetiva singular, o pesquisador pode operar tentando fazer caber o singular do caso no universal da necessária generalização teórica. (Vorcaro, 2010Vorcaro, A. (2010). Psicanálise e método científico: O lugar do caso clínico. In F. Kyrillos Neto & J. O. Moreira (Eds.), Pesquisa em Psicanálise: Transmissão na Universidade (pp. 11-23). EdUEMG. , p. 15)

Assim, por mais que pesquisa e clínica andem lado a lado na prática psicanalítica, elas não são absolutamente complementares. O estudo do caso clínico tem a função de problematizar o conhecimento teórico por meio de sua singularidade marcada pelo inconsciente. O desafio desses estudos é conseguir transitar entre o que é da ordem do particular e o que é da ordem do geral, o que pode tanto confirmar a generalização, quanto ser uma exceção a ela (Castro, 2010Castro, J. (2010). O método psicanalítico e o estudo de caso. In F. Kyrillos Neto & J. O. Moreira (Eds.), Pesquisa em Psicanálise: Transmissão na Universidade (pp. 24-35). EdUEMG. ). Contudo, o caso particular nunca pode ser uma exemplificação banal do que é geral, um caso exemplar que perde sua singularidade e sua capacidade de surpreender (Miller, 2009Miller, J. A. (2009). Cosas de finura en psicoanálisis. Cuadernos de psicoanálisis, 31, 11-28.).

A atenção flutuante é a marca da atuação do analista para deixar-se surpreender. Nas palavras de Freud (1912/2006Freud, S. (2006) Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Imago. (Obra original publicada em 1912).), o analista “deve conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à ‘memória inconsciente’. [...] Ele deve simplesmente escutar e não se preocupar se está se lembrando de alguma coisa” (p. 150). Caso contrário, se o analista deliberadamente concentra sua atenção em um ponto fixo, a seleção que se faz do material produzido na análise privilegiará o que é esperado de suas expectativas ou inclinações subjetivas. Consequentemente, o analista correrá o risco de nunca descobrir algo além do que já se sabe, pois negligenciará o emergente conteúdo do novo.

A escuta da investigação psicanalítica é, portanto, uma escuta descentrada do tema central aparente, que instala a possibilidade de uma fala povoada pelo inconsciente e exige do analista uma posição ética de se encontrar disponível mentalmente para participar do encontro com o inconsciente de seu analisando. Assim, a emergência do material clínico se orienta a partir da disposição do analista para o procedimento de acompanhamento das trilhas associativas surgidas em análise. A preocupação de isolar-se dos estímulos perturbadores, tão presente nas pesquisas empíricas, equivale, na investigação psicanalítica, a isolar-se da intencionalidade do analista (Botella & Botella, 2003Botella, C., & Botella, S. (2003). A pesquisa em Psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 421-442). Imago.).

Tendo em mente essa preocupação, Freud faz uma recomendação importante que nos auxilia a situar nossa pesquisa. Ele afirma que não é bom trabalhar cientificamente em um caso enquanto o tratamento ainda estiver sendo conduzido (Freud, 1912/2006Freud, S. (2006) Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XII). Imago. (Obra original publicada em 1912).). Ou seja, não se deve reunir as características do caso, realizar diagnósticos e prognósticos, de tempos em tempos, a fim de monitorar o andamento do tratamento e a eficácia terapêutica. Segundo Freud, os casos mais bem-sucedidos são aqueles em que se avança sem um intuito em vista, sem pressupostos especulativos, o que permite ao analista ser tomado por surpresa diante de qualquer nova reviravolta. Por isso, não se recomenda fazer anotações durante as sessões. Permite-se, assim, ao analista oscilar de acordo com as exigências clínicas de cada caso e, apenas após a conclusão da análise, levar o material obtido a um estudo de caso.

O estudo de caso como estratégia metodológica de investigação clínica

As exigências universitárias que são impostas aos pesquisadores não se alinham perfeitamente com as exigências éticas da pesquisa com casos clínicos. A cronologia das pesquisas universitárias, inclusive, dificulta a recomendação freudiana de teorizar sobre o material obtido de um caso clínico após a análise ter sido concluída. Ao seguir as recomendações de pesquisa universitária, o pesquisador de mestrado ou doutorado, por exemplo, terá dois ou quatro anos para terminar sua pesquisa e apresentar seus resultados e, ainda, deverá formular um projeto de pesquisa para que seja submetido à análise de um conselho de ética.

Nesse contexto, devemos, então, levantar o questionamento de como a intencionalidade de uma pesquisa psicanalítica pode impactar na condução dos casos clínicos. Existe nesse ponto um conflito identificatório para todo analista que realiza pesquisa: sou analista ou sou pesquisador? (Giuily, 2017Giuily, C. (2017). De l’acte criminel au travail de subjectivation adolescent, la violence sexuelle à la recherche d’une interprétation [Thèse de doctorat, Université Paris Descartes]. http://www.theses.fr/2017USPCB228
http://www.theses.fr/2017USPCB228 ...
). Para que a autenticidade e o valor de um encontro clínico sejam alcançados, tanto referente ao âmbito clínico, quanto ao da pesquisa universitária, é necessário que o analista pesquisador esteja ciente desse conflito. A posição de mestrando/doutorando pesquisador/analista pode fazer eco às problemáticas dos pacientes. Seria, então, necessário encontrar um compromisso entre as exigências das várias autoridades, que são a universidade e a especificidade dos campos de pesquisa, a fim de construir um referencial bom o suficiente para que a temporalidade da universidade não sobrepuje a temporalidade do analista e de seu paciente. A ética em psicanálise é não transformar o sujeito em objeto de pesquisa, mas o instituir como um estatuto único e individualizado (Giuily, 2017Giuily, C. (2017). De l’acte criminel au travail de subjectivation adolescent, la violence sexuelle à la recherche d’une interprétation [Thèse de doctorat, Université Paris Descartes]. http://www.theses.fr/2017USPCB228
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).

No trabalho de juntar e recolher os dados para análise e desenvolvimento teórico, como vimos, é necessário estar aberto ao novo e, inclusive, estar aberto a não encontrar nada sobre a temática estudada no caso. Também é necessário permitir que o tratamento se desenvolva em uma direção não intencional, e manter, assim, a ética necessária à pesquisa psicanalítica, de estar em uma posição de neutralidade, abstinente, sem impor ao paciente uma demanda que não é sua e que comprometeria o desenvolvimento psicoterapêutico. Caso contrário, o "conhecimento" do analista sobre a teoria e sua "experiência" clínica sobrepujaria o "conhecimento" do analisando (Mijolla-Mellor, 2004Mijolla-Mellor, S. (2004). La recherche en psychanalyse à l'Université.Recherches en psychanalyse, (1), 27-47.).

Diante disso, o estudo de caso, desenvolvido a partir das anotações do analista posteriores à sessão e, de acordo com a recomendação freudiana, posteriores ao término dos atendimentos, segue uma leitura diferente do tratamento clínico propriamente dito.

O tratamento psicanalítico é marcado pelo método da associação livre - que a cada sessão exige a realização sob transferência de uma fala (feita de improviso e sem pré-textos), o mais desprendida possível das resistências do eu. Enquanto o estudo de caso, por sua vez, é marcado pela escrita (feita pelo pesquisador sobre fragmentos de um sujeito), a qual tende ao enquadre científico-universitário. (Castro, 2010Castro, J. (2010). O método psicanalítico e o estudo de caso. In F. Kyrillos Neto & J. O. Moreira (Eds.), Pesquisa em Psicanálise: Transmissão na Universidade (pp. 24-35). EdUEMG. , p. 27)

A escrita do estudo de caso tem como objeto de estudo os processos psíquicos inconscientes originários da sessão analítica (Jardim & Rojas Hernández, 2010Jardim, I. L., & Rojas Hernández, M. C. (2010). Investigación psicoanalítica en la universidad. Estudos de Psicologia, Campinas, 27(4), pp. 529-536.). Esse estudo não se limita ao paciente, mas refere-se ao encontro que a clínica promove. O “encontro entre inconscientes” da sessão analítica dão lugar a uma forma de produção de um novo. Nessa, o conteúdo produzido na análise será evocado de anotações pós-sessão e da memória do analista, fazendo uma seleção que privilegia temas, expressões, brechas, palavras ou quaisquer elementos, de acordo com as intenções do pesquisador. Por mais que o estudo de caso almeja a compreensão mais próxima possível da complexidade da experiência analisada, sabe-se, porém, que analisar todos os aspectos de uma questão é uma tarefa inexequível e mesmo impossível do ponto de vista da compreensão psicanalítica. Sendo assim, “a totalidade de qualquer caso é uma construção essencialmente intelectual, pois suas variáveis constituintes encontram-se, em última instância, relacionadas entre si” (Sanches Peres & dos Santos, 2005Sanches Peres, R., & Dos Santos, M. A. (2005). Considerações gerais e orientações práticas acerca do emprego de estudos de caso na pesquisa científica em Psicologia. Interações, 10(20), 109-126., p.121). Logo, deve-se executar recortes e enfocar aspectos que são considerados de maior relevância para a análise, evitando perder-se em emaranhados de informações, já que um mesmo conteúdo pode ser desdobrado de diversas formas, de acordo com as intenções e com a experiência de vida do pesquisador.

A "descoberta" da "transicionalidade" de Winnicott, por exemplo, não é o único resultado de observar o uso de uma criança diante de seu ursinho de pelúcia. Ao contrário, se Winnicott foi capaz de observar esse fenômeno, é porque ele já tinha uma teoria sobre a relação entre o externo e o interno, o Eu e o não-Eu (Mijolla-Mellor, 2004Mijolla-Mellor, S. (2004). La recherche en psychanalyse à l'Université.Recherches en psychanalyse, (1), 27-47.). Dessa forma, na medida em que a fala na análise se constitui pela associação livre e a escuta por meio da atenção flutuante, a escrita “existe em função da revisão e correção permanentes de erros. Por isso mesmo, (ela) filtra e apaga o que seria da ordem das manifestações do inconsciente, por exemplo, os lapsos de escrita” (Castro, 2010Castro, J. (2010). O método psicanalítico e o estudo de caso. In F. Kyrillos Neto & J. O. Moreira (Eds.), Pesquisa em Psicanálise: Transmissão na Universidade (pp. 24-35). EdUEMG. , p. 27).

Nesse sentido, a escrita necessita vir após os caminhos da sessão serem percorridos. O trabalho de escuta difere do trabalho de escrita. O trabalho longitudinal de escuta dentro do processo analítico, enquadrado no contexto da relação transferencial e contratransferencial, produz com profundidade um material clínico oriundo da comunicação dos fatos ocorridos dentro e fora da sessão. Sucede-se a esse um trabalho laborioso de releitura do conteúdo produzido, que não tem como objetivo apresentar a história integral do analisando, mas privilegiar, por meio da palavra, delimitações específicas do caso (Silva & Macedo, 2016Silva, C. M. da, & Macedo, M. M. K. (2016). O método psicanalítico de pesquisa e a potencialidade dos fatos clínicos.Psicologia: Ciência e Profissão,36(3), 520-533.). Assim, o estudo de caso não tem por objetivo esgotar a história do sujeito, atendo-se a articular fragmentos dessa narrativa para ser “testemunho de uma mudança de posição do sujeito em relação ao desejo e ao gozo” (Castro, 2010Castro, J. (2010). O método psicanalítico e o estudo de caso. In F. Kyrillos Neto & J. O. Moreira (Eds.), Pesquisa em Psicanálise: Transmissão na Universidade (pp. 24-35). EdUEMG. , p. 27). Desse modo, os registros de cada atendimento clínico, realizados a posteriori em caderno particular, devem ser relidos a partir de uma leitura dirigida por uma escuta clínica. Essa análise se desenvolve na pós-sessão, “onde a experiência da sessão desempenha o papel de um “resto de sessão” em parte inconsciente” (Botella & Botella, 2003Botella, C., & Botella, S. (2003). A pesquisa em Psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 421-442). Imago., p. 439). Os acontecimentos das sessões dão lugar a uma elaboração secundária dos vestígios deixados pela experiência dessas sessões.

É a partir dessa metodologia de investigação que a psicanálise desenvolve seu arcabouço teórico e seus instrumentos investigativos, afirmando-se como uma legítima e criteriosa estratégia de pesquisa, com fundamentação e embasamentos técnicos e éticos próprios (Silva & Macedo, 2016Silva, C. M. da, & Macedo, M. M. K. (2016). O método psicanalítico de pesquisa e a potencialidade dos fatos clínicos.Psicologia: Ciência e Profissão,36(3), 520-533.). Por outro lado, essa estratégia de investigação não envolve, em seus objetivos, uma inferência generalizadora de seus resultados para uma amostra ou uma população (Iribarry, 2003Iribarry, I. N. (2003). O que é pesquisa psicanalítica? Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 6(1), 115-138.), também não se presta para análises estatísticas e não é adequada para descobrir relações de causa e efeito, pois a produção de verdade da interpretação psicanalítica é sempre relativa ao processo que a produziu. E esse processo é singular, e, portanto, irrepetível. Essa metodologia se apresenta muito mais coerente para “interpretar qualquer fenômeno que faça parte do universo simbólico do homem: sessões de psicoterapia, entrevistas, qualquer tipo de material apresentativo-expressivo (projetivo), fenômenos sociais ou institucionais, material clínico colhido de grupos de pacientes (colostomizados, fóbicos etc.)” (Figueiredo & Minerbo, 2006Figueiredo, L. C., & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: Algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70), 257-278. , p. 274).

À guisa de conclusão

O debate sobre o caráter científico da psicanálise não é novo. Freud se preocupou muito com esse tema. Durante sua vida, o autor se esforçou para que a psicanálise fosse inserida no domínio das ciências, com receio de que, caso contrário, ficasse restrita a uma conotação mística e especulativa (Botella & Botella, 2003Botella, C., & Botella, S. (2003). A pesquisa em Psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 421-442). Imago.). Contudo, o problema que se colocou diante do seu percurso está na natureza de seu objeto de estudo.

Os dados com que lidamos não são os dos mecanismos do mundo inanimado da natureza (as ciências naturais ou físicas ou químicas), ou os dos mecanismos operantes do mundo vivo da flora e da fauna onde os fenômenos da mente não são estudados (ciências biológicas), mas as expressões especificamente mentais do desejo, da vontade e da intenção em toda a sua subjetividade, sua natureza esquiva e sua ambiguidade. (Wallerstein, 2003Wallerstein, R. (2003). A trajetória da psicanálise: Onde estamos hoje? In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 101-114). Imago., p. 110)

Em vista disso, a psicanálise não se constitui como uma ciência experimental propriamente dita, pois seu objeto de estudo não é mensurável e quantificável. Como “vamos medir a angústia de castração e a dor psíquica?”, questiona Pontalis (2003Pontalis, J. (2003). O laboratório central. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 371-378). Editora Imago., p. 377). Se, por exemplo, o objeto de estudo em análise é um caso individual, não se trata de analisar os sinais e sintomas produzidos pelo paciente, mas todo o percurso intrapsíquico que se estabelece tanto nos processos de produção desses quanto em seu tratamento (Widlocher, 2003Widlocher, D. (2003). O lugar da pesquisa clínica em psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 51-64). Imago). Não é o objeto externo o objeto da psicanálise, não é o acontecimento em si mesmo,

mas os movimentos e sentidos inconscientes que lhe são subjacentes, os quais constituem a vida psíquica simultaneamente do observado e do observante. Na experiência da sessão participam os dois inconscientes, o do analista e do analisando, o que organiza uma unidade profunda entre o instrumento de observação (o psiquismo do analista), o objeto de estudo (o psiquismo do paciente), e a relação recíproca entre os dois, funcionando ambos em estado de regressão; é esse conjunto que forma o verdadeiro objeto de estudo da psicanálise. (Botella & Botella, 2003Botella, C., & Botella, S. (2003). A pesquisa em Psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 421-442). Imago., p. 435)

É por reconhecer que a própria observação é marcada por uma profunda subjetividade que a psicanálise a toma como parte do objeto de estudo. Não é a relação interpessoal entre analista e analisando que é posta em foco, mas a relação intersubjetiva dos dois psiquismos em comunicação, na qual se inserem os processos individuais inconscientes. Por isso se desenvolvem em psicanálise os conceitos de transferência. A psicanálise visa dar conta do que está para além do objeto exterior, que é, em sua complexidade, o inconsciente. “Esta tripla situação que ocorre na prática individual da psicanálise (individualidade do caso, complexidade, intersubjetividade) impõe regras metodológicas diferentes da pesquisa dita científica” (Widlocher, 2003Widlocher, D. (2003). O lugar da pesquisa clínica em psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 51-64). Imago, p. 53).

Assim, o objeto de estudo da psicanálise não é traduzível para as linguagens das estatísticas e das matemáticas. Verificação, quantificação, previsibilidade, replicabilidade se distanciam da especificidade da psicanálise. “O domínio explorado pela psicanálise exige o reconhecimento objetivo de uma verdade subjetiva e teme que, por esse fato, o pensamento analítico jamais seja admitido no mundo das ciências” (Botella & Botella, 2003Botella, C., & Botella, S. (2003). A pesquisa em Psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 421-442). Imago., p. 437). Não é no seu conteúdo que reside o abismo entre a psicanálise e as ditas ciências naturais, mas no seu método de investigação, que, por sua vez, é o que define o que é ciência e o que não é. Como a investigação psicanalítica é uma prática metodológica antes de almejar o lugar de ser uma ciência, o desafio da pesquisa psicanalítica consiste em estudar os fenômenos inconscientes pelo seu método próprio, de modo a não violentar a natureza de seu objeto de estudo (Wallerstein, 2003Wallerstein, R. (2003). A trajetória da psicanálise: Onde estamos hoje? In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 101-114). Imago.).

Dessa forma, a psicanálise teve de criar seus critérios de pesquisa próprios, cujo princípio fundamental foi “deixar de considerar os modelos já estabelecidos de pesquisa científica como os únicos possíveis” (Botella & Botella, 2003Botella, C., & Botella, S. (2003). A pesquisa em Psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 421-442). Imago., p. 423). A grande criação de Freud foi, portanto, a invenção de uma estratégia metodológica de investigação, a qual tem como marco inicial o estudo de Freud de si mesmo.

Por mais que estivesse estudando seus pacientes, a “obra inaugural” da psicanálise foi derivada da autoanálise de Freud dirigida aos seus próprios sonhos. A obra A interpretação dos sonhosFreud, S. (2006) A interpretação dos sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. IV). Imago. (Obra original publicada em 1900)., publicada em 1900, apresenta o rigor, a clareza e a sistematização de um autor muito preocupado em convencer o meio científico da solidez de sua descoberta.

Se Freud se tivesse simplesmente limitado a uma demonstração racional da ideia de que o sonho tem um sentido, fosse este, inclusive, o de uma realização de desejo, ele teria podido reivindicar muito mais facilmente o caráter científico de sua abordagem, mas não seria mais do que, com Maynert e Griesinger, um cientista entre tantos outros; e não teria inaugurado uma nova disciplina. (Botella & Botella, 2003Botella, C., & Botella, S. (2003). A pesquisa em Psicanálise. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 421-442). Imago., p. 437)

Entretanto, a inversão da posição, até então incomum, de pesquisador a pesquisado, abriu um mundo do qual Freud não conseguiu mais sair. O desenvolvimento de seu método de estudo, então, pautou-se pelo objetivo de criar condições para apreender esses elementos que foram fundadores da psicanálise: o inconsciente e suas manifestações. Para isso, criou e desenvolveu uma regra fundamental à situação analítica. “A regra fundamental é a do falar livremente sem nada omitir do que vem. Fazer o esforço para não omitir o que surge e se apresenta como fora de propósito - fútil ou insensato (o desconexo), ou inconveniente e desagradável” (Laplanche, 2003Laplanche, J. (2003). Contracorrente. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 357-370). Imago., p. 359). Consiste em ir na direção da contracorrente do controle que a consciência impõe na produção da comunicação. Quanto à situação analítica, a técnica é a de não fornecer ao paciente a síntese que ele tanto busca. Não se trata de recusar a ajudar o outro, mas sim recusar a dar conselhos, a impor o seu saber ao outro e controladamente fabricar soluções. Novamente à contracorrente, o movimento de análise objetiva a dissolução das sínteses previamente construídas para que, nessa desconstrução, surja algo novo (Laplanche, 2003Laplanche, J. (2003). Contracorrente. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 357-370). Imago.).

Portanto, há uma resposta simples aos ataques contra o caráter científico da psicanálise, que se baseiam na asserção de que o método psicanalítico não satisfaz os critérios da ciência, pois os conceitos não têm definições explícitas e observáveis: “as regras de correspondência são inadequadas e pouco confiáveis, os meios que permitiram atestar a confiabilidade das observações não são levados em consideração” (Canestri, 2003Canestri, J. (2003). O recurso do método. In A. Green (Ed.), Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise (pp. 85-100). Imago., pp. 86-87). A psicanálise surgiu como uma nova técnica de pesquisa, na qual a sua especificidade é inseparável de sua práxis. A natureza e a complexidade de seu objeto de estudo necessitam de uma adequação do método para não perder justamente a singularidade desse objeto. A transcrição do objeto ao domínio quantitativo aniquila sua natureza.

Diante dessa discussão, é possível estabelecer uma comparação: a psicanálise é científica tal como a acupuntura é medicinal. A acupuntura é uma técnica milenar oriental que se consolidou no Ocidente como medicina alternativa. Contudo, apesar de estar sendo apropriada por alguns médicos e ser palco de disputas políticas quanto ao seu exercício, a acupuntura é uma alternativa à medicina, se considerarmos esta como o conjunto de métodos e práticas que regem a profissão do médico. A acupuntura só é medicina alternativa se medicina referir-se ao campo teórico de estudo do ser humano. Assim, a psicanálise é científica, por ter métodos e práticas próprios que culminam em uma produção de conhecimento que desenvolve seu arcabouço teórico, mas se constitui como uma alternativa à ciência, se esta se referir somente à pesquisa empírica naturalista hipotético-dedutiva.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2019
  • Aceito
    24 Maio 2021
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