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O Infinito Infantil: Caminhos de Alteridade na Ludoterapia de Axline

Children’s Infinity: Paths of Alterity in Axline's Play Therapy

Resumo

A Ludoterapia humanista de Axline postula que as vivências terapêuticas se dão através do brincar. Este artigo buscou refletir possíveis lacunas éticas e o lugar da alteridade na relação ludoterapêutica, a partir do filósofo Emmanuel Lévinas. A alteridade em Lévinas exige sensibilidade que se afeta com a diferença e remete à escuta ética. Encontrar a criança em atendimento é lidar com uma alteridade absoluta, em uma comunicação lúdica. Conclui-se que o ludoterapeuta precisa ir em direção à criança, por vias de afetação e responsabilidade. Ademais, embora existam desencontros entre a LCC e a ética levinasiana, postula-se que há caminhos de aproximação no acolhimento oferecido e na consideração da criança enquanto pessoa, ativa em seu processo terapêutico.

Palavras-chave:
ludoterapia; alteridade; Emmanuel Lévinas; terapia centrada na pessoa

Abstract

Axline's Humanist Playtherapy postulates that the therapeutic experiences are given through play. This article sought to reflect possible ethical gaps and the place of alterity in the playterapeutic relationship, from the philosopher Emmanuel Lévinas. The otherness in Lévinas requires sensitivity that affects difference and refers to ethical listening. Meeting the child in session is to deal with an absolute otherness, in a ludic communication. It is concluded that the therapist must go towards the child, through affectation and responsibility. In addition, although there are disagreements between the LCC and the Levinasian ethics, it is postulated that there are ways of approach in the reception offered and in the consideration of the child as a person, active in its therapeutic process.

Keywords:
playtherapy; alterity; Emmanuel Lévinas; Person-Centered therapy

Inserida no contexto da Abordagem Centrada na Pessoa, a Ludoterapia humanista se propõe ao trabalho em que o terapeuta pauta seu modo de relação assumindo que a responsabilidade e a direção do processo são da criança (Axline, 1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.). Nesse sentido, esse lugar destacado do universo infantil nos traz o seguinte questionamento: Qual o lugar do Outro, como elucidado pelo filósofo Emmanuel Lévinas, na Ludoterapia humanista de Virginia Axline e como o encontro com a diferença pode ser promovido dentro dessa abordagem?

A teoria proposta por Axline origina-se ampla e livremente dos conceitos de Carl Rogers, enquanto Lévinas é um pensador ainda não muito divulgado na psicologia, porém com importantes contribuições. Na literatura atual, encontram-se poucas referências a estudos que aproximem a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), de Rogers, aos conceitos do Outro levinasiano (Branco & Cirino, 2017Branco, P. C. C., & Cirino, S. D. (2017). Circulação de artigos brasileiros sobre Carl Rogers: Ascensão, renascimento ou declínio? Revista Subjetividades, 17(2), 1-11.). A escassez da literatura se acentua ao adentrarmos na temática da Ludoterapia Centrada na Criança (LCC).

Mas qual a relevância de buscar uma aproximação entre a filosofia ética de Lévinas e a psicologia? Por que este tema se faz importante para a ciência psicológica, em especial a psicoterapia infantil com base humanista?

Para responder a estas perguntas, é preciso compreender que a ciência psicológica é, em grande parte, herdeira da tradição filosófica ocidental (Miranda, 2012Miranda, C. S. N. (2012).Ética radical e psicoterapia centrada na pessoa: A abertura à alteridade radical na relação terapêutica a partir de discursos de psicoterapeutas sobre o inusitado em sua prática clínica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/6837
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) e que se insere em um contexto ético-político, moldada a partir das demandas do modelo social (Freire, 2001Freire, J. C. (2001). As psicologias na modernidade tardia: O lugar vacante do outro.Psicologia USP, 12(2), 73-93.; Miranda, 2012Miranda, C. S. N. (2012).Ética radical e psicoterapia centrada na pessoa: A abertura à alteridade radical na relação terapêutica a partir de discursos de psicoterapeutas sobre o inusitado em sua prática clínica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/6837
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), sendo, de forma geral, reforçadora de uma sociedade individualista.

O pensamento de Lévinas critica justamente esse modelo individualista, que reduz a diferença ao previamente conhecido, apontando caminhos de acolhimento da alteridade. A ética da alteridade radical proposta por Lévinas surge como uma ruptura com essa tradição, sendo, portanto, relevante ao campo da psicologia, à sua teoria e à sua práxis.

A questão ética é indispensável à psicologia (Chacon, 2015Chacon, D. R. A. (2015). Rosto e responsabilidade na filosofia da alteridade em Emmanuel Levinas. Intuitio, 8(2), 15-24.). No âmbito das teorias psicológicas que propiciam acolhimento aos sujeitos, essas devem ser compreendidas no lugar social e ético que ocupam. É possível encontrar em Lévinas implicações para a psicologia e para aquilo da psicoterapia que é afetado pela noção de que não há compreensão capaz de abarcar o Outro, que não pode ser totalizado. Como destaca Miranda (2012Miranda, C. S. N. (2012).Ética radical e psicoterapia centrada na pessoa: A abertura à alteridade radical na relação terapêutica a partir de discursos de psicoterapeutas sobre o inusitado em sua prática clínica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/6837
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), a atuação clínica-psicológica é campo ético além de códigos de ética e teorias, onde as relações humanas desvelam a alteridade absoluta, apontando para o Infinito.

Assim, não impondo a filosofia de Lévinas ou transpondo de forma direta as palavras entre os campos de conhecimento, mas antes partindo de seu trabalho em direção a reflexões éticas (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.; Mejía, 2018Mejía, J. A. (2018). Psicoterapia y familia: Una perspectiva centrada em la persona y existencial. Miscelánea Comillas. Revista de Ciencias Humanas y Sociales, 76(149), 441-462.; Miranda, 2012Miranda, C. S. N. (2012).Ética radical e psicoterapia centrada na pessoa: A abertura à alteridade radical na relação terapêutica a partir de discursos de psicoterapeutas sobre o inusitado em sua prática clínica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/6837
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; Vieira & Pinheiro, 2013Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2013). Person centered psychotherapy: An encounter with oneself or a confrontation with the other?.Estudos de Psicologia (Campinas),30(2), 231-238.), é possível repensar o lugar da alteridade radical e de relações que não totalizem o Outro na psicologia.

Ao se tratar da criança, a questão ética torna-se ainda mais complexa. Em contextos sociais mais estruturados, as crianças da atualidade têm de lidar com a pressão e os estímulos constantes para terem o desempenho esperado, a fim de estarem preparadas para a vida adulta e o ingresso no mercado de trabalho. Assim, a infância é colocada à mercê do adulto bem-sucedido que deverá surgir no futuro (Mattar, 2015Mattar, C. M. (2015). A criança e a família: Aspectos históricos e dilemas contemporâneos. In: A. M. Feijoo, & E. L. Feijoo (Eds.), Ser criança: Uma compreensão existencial da experiência infantil (pp. 13-33). Editora Ifen.). Em contextos menos favoráveis e mais marginalizados, as crianças lidam com violações sociais - como o trabalho infantil, a discriminação, a violência - e acabam sem possibilidades de vivenciar aquilo que poderia ser próprio de suas infâncias - como a educação, o cuidado familiar e o brincar. É nesse cenário que Mattar aponta o dilema ético do psicólogo e a necessidade de repensar as práticas de cuidado quando o profissional se depara com demandas de adaptação de uma criança.

Em Lévinas, a psicologia não achará técnica, sistema ou modelo de terapia; de fato, não achará soluções para as questões que levantará (Plant, 2018Plant, B. (2018). Levinas in therapy. Theory & Psychology, 28(3), 279-297.). Antes, sua filosofia pode fornecer um sentido e um direcionamento à psicoterapia, em sua maneira de lidar com a alteridade, com o Outro, essencial nessa ciência de cuidado com o sujeito (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.). Cabe a nós exigir da Psicologia um posicionamento ético, não permitindo o esquecimento do diferente, da alteridade, daquilo que falta, do desejo pelo desejo e do que a ciência e as teorias não podem totalizar em técnicas frias, distante do imprevisível que é ser humano (Freire, 2001Freire, J. C. (2001). As psicologias na modernidade tardia: O lugar vacante do outro.Psicologia USP, 12(2), 73-93.).

Diante do exposto, este artigo tem como objetivo questionar a ética no contexto psicoterápico da ludoterapia de Axline, refletindo sobre o Outro na relação terapeuta e cliente a partir do olhar do filósofo Emmanuel Lévinas em seu pensamento sobre a alteridade.

O caminho percorrido neste artigo iniciará com uma apresentação geral das teorias de Axline e de Lévinas, para então aprofundar-se nas possíveis implicações filosóficas levinasianas na Ludoterapia Centrada na Criança.

Da Abordagem Centrada na Pessoa à Ludoterapia

Para adentrar nas teorias psicoterápicas infantis atuais, é preciso inicialmente destacar que, na contemporaneidade, a criança parece ser vista como ser em que há falta, tem algo a ser completo, a caminho de um futuro adulto (Feijoo, 2015Feijoo, A. M., Protasio, M. M., & Gill, D. (2015). Considerações sobre o desenvolvimento infantil em uma perspectiva existencial. In: A. M. Feijoo, & E. L. Feijoo (Eds.), Ser criança: Uma compreensão existencial da experiência infantil (pp. 115-164). Editora Ifen. ) que é tomado como paradigma na compreensão da criança (Feijoo et al., 2015Feijoo, A. M., Protasio, M. M., & Gill, D. (2015). Considerações sobre o desenvolvimento infantil em uma perspectiva existencial. In: A. M. Feijoo, & E. L. Feijoo (Eds.), Ser criança: Uma compreensão existencial da experiência infantil (pp. 115-164). Editora Ifen. ), exposta a um bombardeamento de atividades e estímulos (Souza, 2017Souza, J. C. (2017). Corporeidade e infância: Tensões literárias carregadas de preconceitos ou de alteridade. Annales Faje, 2(1), 127-134. ) e/ou a situações de marginalidade. É preciso destacar também os diversos impactos da tecnologia na vida das crianças contemporâneas, que estão cada vez mais imersas em um mundo virtual de ensino e entretenimento, distanciando-se cada vez mais da experiência do contexto de relação com o Outro face-a-face, sem os meios virtuais.

Em uma compreensão fenomenológica, a criança possui seu próprio modo de estar no mundo (Freitas, 2015Freitas, J. L. (2015). A criança sob o olhar fenomenológico: O Despertar do mundo-da-vida. In: A. M. Feijoo, & E. L. Feijoo (Eds.), Ser criança: Uma compreensão existencial da experiência infantil (pp. 35-52). Editora Ifen.). Segundo Feijoo (2015Feijoo, A. M. (2015). Apresentação. In: A. M. Feijoo, & E. L. Feijoo (Eds.), Ser criança: Uma compreensão existencial da experiência infantil. Editora Ifen.), não é possível alcançar a peculiaridade da infância, à medida que cada ser se torna Infinito em suas possibilidades.

Dentro da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), o conceito de infância passa por concepções expostas por Carl Rogers e por Virginia Axline. O próprio ponto de partida de Rogers para aquilo que mais tarde viria a ser conhecido como ACP foi o seu trabalho clínico com crianças; nelas, observou certo potencial de desenvolvimento positivo o que, posteriormente, o leva a construir um conceito central para seu trabalho: a tendência atualizante, tendência vital e humana que se desenvolve positivamente (Rogers, 1983Rogers, C. R. (1983). Um jeito de ser. EPU.). Para ele, uma criança tem uma clara perspectiva de seus valores e subjetividade ligada à experiência vivida, que vai se distorcendo na medida em que fica à mercê das circunstâncias de aprovação dos adultos e de uma aceitação condicional (Rogers, 1977Rogers, C. R. (1977). Em busca de uma moderna perspectiva de valores: O processo valorizador na pessoa madura. In: C. R. Rogers, & B. Stevens (Eds.), De pessoa para pessoa: O problema de ser humano (2ª ed.) (pp. 13-32). Pioneira.). Assim, na ACP, a infância é, de certa forma, uma indicação de como funciona um organismo saudável e integrado.

A Ludoterapia humanista de Axline pode ser entendida como uma extensão terapêutica da ACP, na época chamada de Terapia Não Diretiva, voltada ao atendimento infantil. A emergência da ACP, em um contexto de oposição ao determinismo psicológico hegemônico à época, buscou evidenciar a liberdade e autonomia do indivíduo, promovendo o seu papel ativo. Rogers afirmou o pressuposto de que o sujeito é quem pode melhor falar sobre si e, dessa forma, deve guiar o próprio tratamento, consequentemente rejeitando a ideia de que o terapeuta deteria um conhecimento absoluto ou superior ao do cliente.

O terapeuta rogeriano deveria se esforçar para conduzir como pessoa, não especialista, assumindo a posição de acolher e acompanhar, estabelecendo uma relação com o cliente, que se tornará cada vez mais consciente e autodeterminado (Rogers & Kinget, 1977Rogers, C. R.; Kinget, G. M. (1977). Psicoterapia e relações humanas (2ª ed.). Interlivros. ). A teoria de Rogers se desenvolveu ao longo do tempo, sendo sua terapia fundamentada por princípios, não por técnicas (Rogers & Kinget, 1977Rogers, C. R.; Kinget, G. M. (1977). Psicoterapia e relações humanas (2ª ed.). Interlivros. ).

A Ludoterapia dentro da ACP, por sua vez, vem recebendo diversas nomenclaturas e, de acordo com Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança como outro: Uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/6811/1/2012-DIS-RACBRITO.pdf.
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), tem recebido pouca atenção dos estudiosos. Neste trabalho, adota-se a nomenclatura Ludoterapia Centrada na Criança (LCC), utilizada pela autora citada. Seu marco inicial ocorreu em 1947, nos Estados Unidos, com Virgínia Mae Axline, na publicação do seu livro Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. A obra aborda a teoria, os princípios e as técnicas que fundamentam a terapia proposta pela autora.

O pressuposto base da Ludoterapia é de que o jogo é a maneira natural da criança se expressar (Axline, 1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.). A criança pode encontrar um meio de expressão de seus sentimentos e emoções através do lúdico (Barreto & Rocha, 2015Barreto, J. B. M., & Rocha, M. V. (2015). A ludoterapia no processo do luto infantil: Um estudo de caso. Pesquisa em Psicologia-Anais eletrônicos, 7-14. ). Dessa forma, a terapia é uma oportunidade para que a criança tenha suas vivências terapêuticas através do brincar (Axline, 1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.). A imaginação e brincadeira surgem, também, diante das tensões que a criança não consegue resolver concretamente (Souza, 2017Souza, J. C. (2017). Corporeidade e infância: Tensões literárias carregadas de preconceitos ou de alteridade. Annales Faje, 2(1), 127-134. ).

De acordo com Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.), a Ludoterapia se apresenta como um método que visa ajudar as crianças a colaborarem entre si na construção de seus ajustamentos pessoais. Axline entende em sua teoria da personalidade que há uma força dentro dos indivíduos que continuamente luta por sua autorrealização em direção à maturidade e independência, sendo necessário permissividade e aceitação completa, tanto por si quanto pelos outros; além disso, o crescimento seria um processo relativo e dinâmico em diferentes fases, em que as experiências mudam constantemente a perspectiva do indivíduo, integrando-se, organizando-se e reorganizando-se em seus pensamentos, sentimentos e atitudes. Nesse sentido, Axline aponta que a criança experimenta sentimentos aparentemente opostos, crescendo em experiência e compreensão, e assimilando os elementos que estão se integrando em sua configuração única chamada personalidade.

O comportamento é compreendido pela autora à luz do que parece ser seu objetivo: A completa autorrealização. Ao deparar-se com um ambiente hostil e pressões externas que a bloqueiam, a busca não cessa, mas continua de forma intensificada, o que acaba por formar uma área de atrito e resistência. Seu comportamento diante dessa situação demonstra se a pessoa está confinada em seu mundo interior, perdendo o contato com o mundo da realidade. Ademais, quando o conceito interior de si mesmo e o comportamento do indivíduo são equivalentes, pode-se falar em ajustamento. Apenas quando a pessoa toma a consciência de seu papel na direção da própria vida, aceitando a si mesma como se é e a responsabilidade que acompanha a liberdade, pode se estruturar em direção a um maior desenvolvimento.

A importância da Ludoterapia é colocada na afirmação de Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.) de que uma criança psicologicamente livre tem a possibilidade de crescer de maneira mais construtiva e criativa, em relação a uma que precisa lutar para se desenvolver enquanto pessoa. A presença e participação do ludoterapeuta compreensível promovem a sensação de segurança e aceitação; o terapeuta reflete as emoções da criança para que esta possa compreender-se melhor e confia na autonomia da criança de se tornar uma pessoa mais madura e independente.

Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.) destaca que o ludoterapeuta não assume papel de supervisor, substituto dos pais ou professor: É alguém único aos olhos da criança. É o desencadeador da reação terapêutica, sendo permissivo e aceitador, e demonstrando interesse genuíno pela criança, tratando-a com respeito, honestidade e sinceridade. Não há simulação possível dessas atitudes: o terapeuta não estará pronto enquanto não respeitar profundamente a criança. A autora ainda postula que o sucesso da Ludoterapia não dependeria da participação e/ou colaboração dos pais no processo, pois as mudanças da criança poderiam ser suficientes para alterar as relações dos adultos que a rodeiam.

Em um apanhado geral, Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.) define a estrutura da terapia como uma aceitação completa do cliente e permissividade para que ele indique o caminho, assuma a responsabilidade das decisões e supere as dificuldades em uma atmosfera de mútuo respeito. Cabe ressaltar que Axline afirma que o discorrido também se aplica à terapia de grupos, embora com suas nuances particulares. Para a autora, os grupos são experiências terapêuticas com elementos realistas de reações simultâneas. Na convivência, as crianças aprendem a reconhecer as reações das demais e a respeitar os sentimentos de cada uma.

Em muitos sentidos moldada à modernidade liberal e narcisista (Freire, 2001Freire, J. C. (2001). As psicologias na modernidade tardia: O lugar vacante do outro.Psicologia USP, 12(2), 73-93.), a psicologia infantil é atravessada por testes, diagnósticos e avaliações que dificultam a aceitação da diferença. Para Souza (2017Souza, J. C. (2017). Corporeidade e infância: Tensões literárias carregadas de preconceitos ou de alteridade. Annales Faje, 2(1), 127-134. , p. 128), as crianças na contemporaneidade “carecem de marcas que as ajudem a reconhecer a outra pessoa, em sua diferença: marcas de alteridade”. A questão da ética e do outro frequentemente vem sendo ignorada ou trivializada na psicoterapia, embora seja de extrema importância.

A partir do exposto, há a urgência de pensar possíveis lacunas éticas sobre os aspectos presentes na teoria e prática da Ludoterapia. Para discutir tais questões, parece-nos oportuno a teoria de Emmanuel Lévinas - filósofo que trata da ética, da diferença, do Outro. A filosofia de Lévinas é uma filosofia sobre o dia a dia, sobre o sujeito com o mundo e com os Outros, que pode provocar, questionar e conclamar a LCC na lida com a alteridade.

Da filosofia de Lévinas

Emmanuel Lévinas (1906 - 1995) foi um pensador na encruzilhada de caminhos divergentes. Filósofo franco-lituano, de ascendência judia, vivenciou de forma intensa as suas interrogações filosóficas e éticas a partir da experiência do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Bindeman (2001Bindeman, S. (2001, August 24-28). Levinas: The face of otherness and the ethics of therapy [Paper presentation]. Annual Conference of the American Psychological Association, San Francisco, CA, United States.) acredita que a afirmação de Lévinas - estou aqui para o Outro, não o contrário - é uma das mais chocantes, desorientadoras e profundamente éticas na proposição da história da filosofia.

Lévinas é considerado um pensador complexo e inovador (Vieira & Pinheiro, 2015Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2015). Ethics and the person-centered approach: A dialogue with radical alterity.Theory & Psychology, 25(6), 798-813), possuindo uma filosofia hiperbólica e metafisicamente densa que, embora desafiadora, traz um novo paradigma para a filosofia em geral (Hutchens, 2009Hutchens, B. C. (2009). Compreender Lévinas. Vozes.). Para Poirié (2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: Ensaio e entrevistas. Perspectivas.), seu trabalho está situado na fronteira da ética e da metafísica, onde o homem busca pelo humano.

Lévinas constrói uma alternativa ao modelo filosófico ocidental, marcadamente ontológico, e estabelece o primado da ética. A primazia do Outro na subjetividade é o que dá à filosofia de Lévinas a denominação de ética da alteridade radical (Vieira & Pinheiro, 2013Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2013). Person centered psychotherapy: An encounter with oneself or a confrontation with the other?.Estudos de Psicologia (Campinas),30(2), 231-238.). Em Lévinas, não é sobre a questão do ser, mas sobre o ser em questão e sobre a alteridade e a relação com ela (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.).

Para Lévinas (1980Lévinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Edições 70., p. 31), “a filosofia é uma egologia” e não há interesse em se debruçar sobre a ontologia, mas sim pôr o ser e, com isso, toda a filosofia em questão. Ele proclama, semelhantemente aos profetas bíblicos de sua tradição histórica, uma censura para com a Filosofia, anunciando a alteridade esquecida em toda a sua glória e fragilidade, e a necessidade de redenção, que só poderia ser conseguida no retorno à ética em sua primazia.

Falar sobre alteridade é abrir-se para a diferença, para fins de acolhimento (Vieira & Pinheiro, 2013Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2013). Person centered psychotherapy: An encounter with oneself or a confrontation with the other?.Estudos de Psicologia (Campinas),30(2), 231-238.). Em Lévinas, “toda atividade humana é, em si mesma, uma resposta ao Outro, toda ação é dotada de responsabilidade” (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230., p. 226-227). É nesse sentido que se pode afirmar que o humanismo proposto por Lévinas é um humanismo do outro homem, um paradigma diferente (Freire, 2001Freire, J. C. (2001). As psicologias na modernidade tardia: O lugar vacante do outro.Psicologia USP, 12(2), 73-93.).

Curiosamente, Lévinas (1980Lévinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Edições 70.) afirma no prefácio de Totalidade e Infinito, seu primeiro grande livro sobre a primazia do Outro, que sua obra se apresenta como uma defesa da subjetividade - uma subjetividade fundada não pela via egoísta da totalidade, mas sim pela ideia do Infinito, que assume o primado e surge da relação do Mesmo com o Outro.

A filosofia de Lévinas é perpassada por uma concepção geral do que ele nomeia como Totalidade, Infinito e Desejo. O primeiro seria característica da filosofia e saber ocidental, centrada no eu, e que ignora ou violenta aquilo sob o qual não exerce controle. Já os últimos, o Infinito e o Desejo, seriam da ordem daquilo que sempre escapa à totalização, transcendem o saber e não podem ser definidos em conceitos fechados.

Lévinas (1985Lévinas, E. (1985). Ethics and infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Duquesne University Press.) define a totalidade como a tentativa de uma síntese universal que reduz toda experiência a um todo, no qual a consciência é absoluta. A irredutível experiência da relação, por sua vez, é de outra ordem: se encontra no face a face. É essa relação com o Outro, em sua multiplicidade, que remete à ideia do Infinito como desejo metafísico, atraído pela alteridade absoluta (Lévinas, 1980); desejo que não é falta passível de saciedade, mas cíclico - um desejo pelo próprio desejo, que é excesso (Poirié, 2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: Ensaio e entrevistas. Perspectivas.). Lévinas atribui um novo significado ao conceito cartesiano de infinito e propõe seu surgimento a partir da relação: O Infinito se produz concretamente na relação com o Rosto (Chacon, 2015Chacon, D. R. A. (2015). Rosto e responsabilidade na filosofia da alteridade em Emmanuel Levinas. Intuitio, 8(2), 15-24.; Lévinas, 1980Lévinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Edições 70.).

O movimento em direção ao Outro é um gesto que nunca encontra satisfação - é da ordem do Desejo, é um caminho infinito. Não provém de uma falta, mas justamente do excesso do Outro, que é diferente de mim e não é passível de tematização; o Outro não é um outro Eu, mas transcende a mim, rompe a totalidade e escapa aos pensamentos sobre ele - é Infinito (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.).

Poirié (2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: Ensaio e entrevistas. Perspectivas.) destaca três momentos da filosofia de Lévinas que apontam o sair em direção a outrem: a primazia da ética, a alteridade absoluta irredutível e a subjetividade responsável. Estes momentos serão utilizados como formulações para explanar, em um panorama geral, alguns pontos importantes de sua filosofia.

Da primazia da ética

Em Lévinas, a ética é anterior à ontologia (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.; Vieira & Pinheiro, 2015Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2015). Ethics and the person-centered approach: A dialogue with radical alterity.Theory & Psychology, 25(6), 798-813). Lévinas “afirma a radicalidade da ética na constituição do humano” (Vieira, 2017Vieira, E. M. (2017). Ética e psicologia: Uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais]. http://hdl.handle.net/1843/BUOS-AQKMGT
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, p. 50), trazendo a ideia de uma ética da ética (Hutchens, 2009Hutchens, B. C. (2009). Compreender Lévinas. Vozes.). Nessa ética da alteridade radical, o Outro, alteridade, ocupa lugar primordial na constituição da subjetividade (Freire & Moreira, 2003). Lévinas propõe uma ética da responsabilidade como base das relações humanas (Chacon, 2015Chacon, D. R. A. (2015). Rosto e responsabilidade na filosofia da alteridade em Emmanuel Levinas. Intuitio, 8(2), 15-24.).

A ética é consumada como responsabilidade, onde a distância torna-se proximidade. Aproximar-se do Outro é encontrar o constante revelar de outrem, um enigma e uma responsabilidade contínua (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.; Schmid, 2019Schmid, P. F. (2019). “All real life is encounter” On the sustainable relevance to be surprised and affected. Person-Centered & Experiential Psychotherapies, 18(3), 202-213.). Lévinas entende a ética como fonte de sentido e o eu como um ser que está sempre em relação social (Chacon, 2015Chacon, D. R. A. (2015). Rosto e responsabilidade na filosofia da alteridade em Emmanuel Levinas. Intuitio, 8(2), 15-24.).

Diante do Outro, há apenas disponibilidade. A abertura ao Outro é sensibilidade: o Eu deixa-se impactar pela alteridade, tornando-se cativo e cativado do Outro. Desse modo, Lévinas vai além dos conceitos de psiquismo e da egologia moderna, trazendo a origem da ética da alteridade na responsabilidade infinita para com o Outro. Quando Lévinas afirma a ética como filosofia primeira, provoca o pensar sobre o Outro ético e os espaços de acolhida da estranheza (Robbins, 2015Robbins, B. D. (2015). The heart of humanistic psychology: Human dignity disclosed through a hermeneutic of love. Journal of Humanistic Psychology, 56(3), 223-237.; Vieira, 2017Vieira, E. M. (2017). Ética e psicologia: Uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais]. http://hdl.handle.net/1843/BUOS-AQKMGT
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). Portanto, para Lévinas, a relação ética é:

Comportamento em que outrem, que lhe é estranho e indiferente, que não pertence nem à ordem de seus interesses nem àquela de suas afeições, no entanto, lhe diz respeito. Sua alteridade lhe concerne. [...]. Situado em uma relação ética, o outro homem permanece outro. [...] É precisamente a estranheza do outro, e se podemos dizer sua ‘estrangeiridade’, que o liga a você eticamente. É uma banalidade - mas é preciso espantar-se com ela. (Poirié, 2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: Ensaio e entrevistas. Perspectivas., p. 84-85)

Além da relação ética enquanto um momento da filosofia de Lévinas, tem-se o segundo aspecto que se trata da alteridade absoluta irredutível, ponto analisado a seguir.

Da alteridade absoluta irredutível

Na filosofia de Lévinas, há poucas conceituações do Outro. Seus escritos estarão, de forma coerente ao seu pensamento, muito mais voltados para as afetações que a presença do Outro causa e as responsabilidades para com ele. Para Lévinas (2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes.), a relação com outrem excede a compreensão, pois exige curiosidade, simpatia ou amor, maneiras de ser que divergem da contemplação impassível; outrem não produz afetação a partir de um conceito, mas pelo seu ser. Portanto, definir conceitualmente o Outro levinasiano e quem é Outrem, é um contrassenso em si. Muito simplesmente, “Outrem é o outro homem” (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes., p. 137) e aperceber-se de que “o Outro é outro [...] seria o assombro primeiro e último de Lévinas” (Poirié, 2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: Ensaio e entrevistas. Perspectivas., p. 49, grifo no original).

Para o filósofo, embora possa cometer violência contra outrem, a alteridade do Outro não pode ser aniquilada (Vieira & Pinheiro, 2015Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2015). Ethics and the person-centered approach: A dialogue with radical alterity.Theory & Psychology, 25(6), 798-813). Outrem tem em si uma alteridade que não é relativa e permanece infinitamente transcendente e estranho; seu Rosto estará sempre presente na recusa e resistência de ser apreendido, englobado e captado em seu conteúdo (Lévinas, 1980Lévinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Edições 70.).

O eu que pensa, muitas vezes, depara-se com as profundezas de seu ser e, em si, é um outro, estranho a si próprio. Mas, perante a alteridade o eu é o Mesmo (Lévinas, 1980Lévinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Edições 70.). Em outras palavras, poderíamos dizer que considerado só, o homem tem algo de estrangeiro em si, mas, diante de uma alteridade absoluta, descobre-se que até o estranho de si é da ordem do Mesmo. A isto segue-se que o Outro é absolutamente Outro, é Outrem, Estrangeiro que é livre e escapa ao domínio do eu.

A relação com outrem vai além de um deixar-ser, mas também de aceitar e considerar o seu ser (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes.). O Outro de Lévinas é de uma ordem que não cabe em uma lógica exclusivamente racional e, portanto, exige sensibilidade que se afeta com a diferença e remete a uma escuta ética (Miranda, 2012Miranda, C. S. N. (2012).Ética radical e psicoterapia centrada na pessoa: A abertura à alteridade radical na relação terapêutica a partir de discursos de psicoterapeutas sobre o inusitado em sua prática clínica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/6837
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).

Face ao Outro, o eu é liberto de si (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes.), da angústia que é só encontrar a si, não importando para onde quer que olhe ou vá (Poirié, 2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: Ensaio e entrevistas. Perspectivas.). Assim, o encontro com o Outro não é mera experiência de desigualdade em um tema de conhecimento, mas é a própria transcendência como vida, o psiquismo como responsabilidade a Outrem (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes.). A maneira de encontro com o Outro é a partir do Rosto (Lévinas, 1985Lévinas, E. (1985). Ethics and infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Duquesne University Press.). A face do Outro transcende e significa a alteridade absoluta; não se restringe às percepções cognitivas e a proposta levinasiana trata do acolhimento do Rosto e sua expressividade através da escuta (Miranda, 2012Miranda, C. S. N. (2012).Ética radical e psicoterapia centrada na pessoa: A abertura à alteridade radical na relação terapêutica a partir de discursos de psicoterapeutas sobre o inusitado em sua prática clínica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/6837
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). Por fim, elabora-se o terceiro momento da filosofia levinasiana: Subjetividade responsável.

Da subjetividade responsável

Lévinas, em mais de uma ocasião, parafraseia o autor russo Dostoiévski: “Somos todos culpados de tudo e por todos os homens antes de tudo, e eu mais do que os outros" (Lévinas, 1985Lévinas, E. (1985). Ethics and infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Duquesne University Press., p.195). Em Lévinas, a responsabilidade é tanto pelo sofrer do outro quanto por suas ações ou, em outras palavras, é responsabilidade pela sua responsabilidade. Assim, as responsabilidades são infinitas (Hutchens, 2009Hutchens, B. C. (2009). Compreender Lévinas. Vozes.). Tal responsabilidade não é uma exigência fria, mas é peso e gravidade do amor (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes.). O eu se torna incumbido de uma responsabilidade que não assumiu voluntariamente, sem esperar por reciprocidade - a responsabilidade do Outro pelo eu é algo que cabe somente a ele (Lévinas, 1985Lévinas, E. (1985). Ethics and infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Duquesne University Press.).

Para Lévinas (1985Lévinas, E. (1985). Ethics and infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Duquesne University Press.), a responsabilidade é pelo Outro e é a estrutura primária e fundamental da subjetividade. Lévinas (2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes.) coloca que é nesta responsabilidade por outrem que o ser passa a ser único. Esse surgimento do ser revira o sentido filosófico da ontologia: O em-si se supera no sair-de-si-para-o-outro. A subjetividade, em Lévinas, é uma subjetividade traumática, sempre resposta a outrem, que se constitui no encontro, nos desencontros e nos rompimentos diante do Outro, como resposta à diferença (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.). A filosofia de Lévinas (1985Lévinas, E. (1985). Ethics and infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Duquesne University Press.) é a defesa da subjetividade fundada na responsabilidade que se constitui, primordialmente, para o Outro. Poderíamos dizer, em outras palavras, que a subjetividade, o eu se constitui não somente a partir do Outro, mas como resposta a ele - o eu é apenas porque o Outro precisa que ele seja.

Tal responsabilidade é inalienável e intransferível. A vinda do Outro, em sua alteridade radical, exige uma responsabilidade indeclinável e irrecusável. E não somente isso, mas, ao convocar o indivíduo, possibilita a sua existência singular em que ninguém pode assumir o seu lugar, já que “o eu responsável é insubstituível, não intercambiável, a ele é ordenada a unicidade” (Poirié, 2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: Ensaio e entrevistas. Perspectivas., p.108). A responsabilidade pelo Outro, da qual o sujeito não pode escapar, é, portanto, o princípio da individuação absoluta (Lévinas, 1985Lévinas, E. (1985). Ethics and infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Duquesne University Press.). O ser-para-o-outro liberta o ser da gravitação egoísta, mas não o faz perder seu caráter pessoal, pois não anula a separação (Lévinas, 1980Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes.). O eu não se perde no Outro, mas, ao contrário, “no momento em que sou responsável pelo outro, eu sou único” (Poirié, 2007Poirié, F. (2007). Emmanuel Lévinas: Ensaio e entrevistas. Perspectivas., p. 108).

Lévinas também enuncia sobre a chegada de um ‘Terceiro’. Em outras palavras, somos tão responsáveis pelo Outro que chegamos a ser responsáveis inclusive pela sua responsabilidade com os seus outros. Diante da primazia do Outro, se estamos sós, o eu deve tudo a ele; contudo, há sempre um Terceiro e é a sua presença que estabelece a necessidade de moderar e limitar o privilégio do Outro, estabelecendo a justiça (Lévinas, 1985Lévinas, E. (1985). Ethics and infinity: Conversations with Phillipe Nemo. Duquesne University Press.). O Terceiro solicita igualdade (Miranda, 2012Miranda, C. S. N. (2012).Ética radical e psicoterapia centrada na pessoa: A abertura à alteridade radical na relação terapêutica a partir de discursos de psicoterapeutas sobre o inusitado em sua prática clínica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/6837
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). Nesse sentido, a responsabilidade é extrapolada além da dualidade (Araújo & Freire, 2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.).

De base desses elementos da filosofia levinasiana, questiona-se sobre as implicações que possam advir dessa visão de Outro na psicologia em suas diferentes vertentes e, mais ainda, como proposta deste artigo, como esse questionamento se delineia na LCC.

Das implicações da filosofia de Lévinas

Escreve Lévinas (2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes., p. 101) que, nos modelos de satisfação da modernidade, “o triunfo é mais verdadeiro que o fracasso, a certeza, mais perfeita que a dúvida, a resposta vai mais longe que a questão”. A isto, o filósofo profere: A transcendência só é possível pela não certeza! A filosofia levinasiana é densa e vai além do aqui abordado. De fato, a (re)visitação constante à filosofia de Lévinas parece ser necessária, pois, como afirmou Hutchens (2009Hutchens, B. C. (2009). Compreender Lévinas. Vozes., p. 12), diante de seu pensamento, “raramente ficamos seguros daquilo que nos foi dito”.

A filosofia de Lévinas, em toda a sua metafísica, finaliza sem concluir. Quais os próximos passos após se deparar com afirmações tão radicais? Lévinas, com certeza, não oferece respostas prontas. O que ele faz é trazer à luz o que estava esquecido, desfazendo construções até o fim e estabelecendo novos fundamentos.

Sua filosofia procura retomar que somos seres de relação, imersos em uma transcendência ética com a ideia de Infinito, que nos chega pelo Outro; que a simetria da justiça só é possível na assimetria da alteridade e que, apesar de tudo, estamos sós, em nossa responsabilidade única e irrecusável de ser por, pelo e para o Outro (Freire, 2001Freire, J. C. (2001). As psicologias na modernidade tardia: O lugar vacante do outro.Psicologia USP, 12(2), 73-93.).

Hutchens (2009Hutchens, B. C. (2009). Compreender Lévinas. Vozes.) apresenta uma crítica a Lévinas, considerando que o filósofo questiona diversos pressupostos éticos básicos, mas não oferece algo viável em seu lugar, podendo tornar-se irrelevante para a teoria ética contemporânea. Contudo, entendemos que “oferecer qualquer outra coisa viável” seria contraditório em si. Afinal, se tudo surge a partir do Rosto e do olhar do Outro, não há nenhum padrão universal, apenas a ética singular - que, em sua singularidade, é universal. A face prática da ética poderia se apresentar de diversas maneiras, sendo formada pela via da sensibilidade (ou mesmo de forma experiencial, em termos rogerianos) e qualificada pelo conceito de responsabilidade. Assim, Lévinas joga cada ser ao mundo para que “se faça o que bem entender”; contudo, os dá para carregar o fardo da responsabilidade, da qual não se pode fugir. Em outras palavras, paradoxalmente, a “ética da ética” é ontológica.

Conclui-se que Lévinas não busca estabelecer sistemas éticos. Ao contrário: advoga como um iconoclasta da imagem sagrada do “eu”; um profeta como em sua tradição judaica, que prega a destruição da soberba egologia moderna; um revolucionário, denunciando, como Galileu, que estávamos todos errados sobre o que está no centro de tudo, afinal.

Do caminho da LCC para a ética

As intervenções em psicologia devem se constituir a partir do cuidado e da responsabilidade para com o Outro. Para Araújo e Freire (2017Araújo, I. C., & Freire, J. C. (2017). Peter Schmid e a alteridade radical: Retomando o diálogo entre Rogers e Lévinas. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 23(2), 220-230.), coube à ciência psicológica o cuidado com a dimensão estranha da subjetividade, expurgada pela ciência moderna. Apesar disso, afirma Freire (2001Freire, J. C. (2001). As psicologias na modernidade tardia: O lugar vacante do outro.Psicologia USP, 12(2), 73-93.), a Psicologia como um todo, em sua pretensão ao status de ciência, se afasta do campo de Lévinas, insistindo em um Outro simétrico e sincrônico sem lidar com a inadequação e reforçando o hiperindividualismo da sociedade moderna. As psicoterapias acabam por apenas buscar definições para o que chamam de psiquismo, de modo que Lévinas (1980Lévinas, E. (1980). Totalidade e infinito. Edições 70.) afirma a surdez da psicologia à exterioridade, quando esta oferece acolhimento ao Outro somente para ‘perceber’ determinada natureza.

Nesse sentido, ao psicoterapeuta não cabe conhecer no sentido de totalizar, mas reconhecer o Outro, afirmando sua alteridade (Vieira et al., 2018Vieira, E. M., Bezerra, E. D. N., Pinheiro, F. P. H. A., & Branco, P. C. C. (2018). Versão de sentido na supervisão clínica centrada na pessoa: Alteridade, presença e relação terapêutica. Revista Psicologia e Saúde, 10(1), 63-76.). Em uma perspectiva levinasiana, uma relação é terapêutica quando reconhece a obrigação ética para com o Outro como uma tarefa fundamental (Vieira & Pinheiro, 2015Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2015). Ethics and the person-centered approach: A dialogue with radical alterity.Theory & Psychology, 25(6), 798-813). Considerar o Outro é desafio, pois envolve legitimar a alteridade da relação, onde a diferença possibilita o encontro - a presença do terapeuta é disponibilidade de relacionamento com a diferença, do Outro e do Eu, bem como de lidar com a imprevisibilidade de cada relação singular (Vieira et al., 2018Vieira, E. M., Bezerra, E. D. N., Pinheiro, F. P. H. A., & Branco, P. C. C. (2018). Versão de sentido na supervisão clínica centrada na pessoa: Alteridade, presença e relação terapêutica. Revista Psicologia e Saúde, 10(1), 63-76.).

A ética de Lévinas desafia mais que apenas o terapeuta, implicando a experiência do cliente (Sayre, 2005Sayre, G. (2005). Toward a therapy for the Other. European Journal of Psychotherapy & Counselling, 7(1-2), 37-47.). Lévinas aponta o chamado para responder ao Outro como central ao ser humano; Sayre (2005Sayre, G. (2005). Toward a therapy for the Other. European Journal of Psychotherapy & Counselling, 7(1-2), 37-47.) propõe outros caminhos na ACP: uma ‘descentralização’ do terapeuta e do cliente. O autor traz a ideia de que há uma conexão inerente entre o que é ético e o que é saudável. Esta afirmação deve ser pesada em sua abrangência e não pretendemos aprofundar nas implicações deste pressuposto, mas vale ressaltar a mudança perceptual de que a responsabilidade ética também deve ser levada em conta na experiência do cliente diante de seus Outros. Nesse sentido, uma terapia que leva em conta as implicações de Lévinas busca um processo de descentramento, tanto do terapeuta quanto do cliente.

Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança como outro: Uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/6811/1/2012-DIS-RACBRITO.pdf.
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), em sua dissertação de mestrado, afirma que a provocação de Lévinas, da alteridade no chamado do Outro, faz-se completamente relevante para a psicoterapia. A autora afirma a importância de entender a LCC a partir de Lévinas, pois sua proposta, enquanto consonante com a ACP, intenta compreender a pessoa de forma completa. Para ela, “a relação com a criança pode remeter à infinição a ao estranhamento [...]; a postura diante [dela] será sempre [...] de impossibilidade de conhecimento como totalização. Só cabe a nós, psicoterapeutas, o reconhecimento de sua alteridade [...]” (p. 87).

Nesse sentido, encontrar a criança em atendimento é lidar com uma exigência assimétrica, em uma alteridade radical absoluta. Seu modo de ser possui parâmetros completamente diferentes do mundo adulto e requer abertura ao inesperado, que percorre uma comunicação lúdica. Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança como outro: Uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/6811/1/2012-DIS-RACBRITO.pdf.
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) ressalta que o terapeuta precisa sair de seu lugar comum de comunicação adulta - sua esfera do Mesmo - para o discurso singular infantil, linguagem que é alteridade pura, em um processo traumático de reconfiguração subjetiva e desalojamento, até mesmo físico. A direção é da criança para o ludoterapeuta. Assim, “o encontro com a criança, mais que com o adulto, é um encontro com o diferente [...]. Tudo que podemos ser neste encontro é disponibilidade e vulnerabilidade [...]” (p. 112).

A criança revela suas vivências de opressões e afetos também através da corporeidade. Em Lévinas, a corporeidade adquire sentido além de sua exterioridade, mas também em sua transcendência; nesse sentido, a alteridade é mais do que pode ser captado pela percepção e se concretiza na relação com o Outro: o corpo da criança, em seus ritmos e gestos, é linguagem para o Outro. As crianças reclamam olhares novos, trazendo outros corpos, outras vidas. Diante delas, é necessário ao ludoterapeuta, por dever ético, atentar muito mais a questões como a dor, o sofrimento, a angústia e a agressão do que aspectos como letramento ou habilidades matemáticas (Souza, 2017Souza, J. C. (2017). Corporeidade e infância: Tensões literárias carregadas de preconceitos ou de alteridade. Annales Faje, 2(1), 127-134. ).

Axline demonstra profundo respeito pela criança em sua complexidade, ressaltando a impossibilidade de demarcar ou isolar aspectos de sua personalidade. Em termos levinasianos, Axline se contrapõe à totalização da criança. Isto fica claro quando a autora coloca que nenhuma teoria foi capaz de abarcar toda a dinâmica da pessoa e que:

O terapeuta não conhece a criança tão bem [...]. Ele pode ser capaz de refletir os sentimentos expressos. Pode ser capaz de, em certos casos, quase adivinhar. Mas não pode pretender conhecer todos os sentimentos da criança. (Axline, 1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros., p. 135, grifo no original)

Inicialmente, de forma geral, os responsáveis são os que trazem a criança para o atendimento, descrevendo quem é a criança, em suas percepções, e qual a demanda para terapia. Assim, é pertinente ao terapeuta entrar em contato com a dinâmica familiar, contemplando os responsáveis da criança de forma individual e também em suas relações interfamiliares/interpessoais. Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança como outro: Uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/6811/1/2012-DIS-RACBRITO.pdf.
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) destaca que, diferentemente do que pensa Axline, a criança se insere em uma realidade na qual não podemos a compreender como a única responsável por si, pois isso seria desconsiderar seu aspecto relacional enquanto pessoa - seja na vivência com os pais, seja com os pares, seja com o próprio terapeuta. Contudo, vale ressaltar que, embora o contato com os adultos que rodeiam a criança tenha a devida importância na terapia, é preciso que o terapeuta ouça a criança falar por si mesma.

A autora em tela também destaca a importância de tornar o espaço da terapia em espaço de aprendizagem a partir das experiências da criança, no desenvolvimento do olhar para o Outro. Assim, se há intervenção do terapeuta diante de uma heteroagressão da criança, por exemplo, a resposta dada a ela vai além do atendimento, sendo da ordem do social e remetendo ao conceito de justiça em Lévinas.

A LCC, consoante com a fase rogeriana em que se insere, entende que a relação terapêutica gravita ao redor do “eu” do cliente e, dessa forma, o terapeuta tem o papel de ressoar a experiência desse cliente, se despersonalizando, o que Rogers e Kinget (1977Rogers, C. R.; Kinget, G. M. (1977). Psicoterapia e relações humanas (2ª ed.). Interlivros. ) indicam como ser o “alter ego - um outro eu - do indivíduo” (p. 201).

Embora concordemos que a relação terapêutica será assimétrica no sentido que apenas as questões do cliente serão tratadas, acreditamos que há certo equívoco na proposta de que a consequência desse centramento do cliente seja a despersonalização do terapeuta, assumindo o lugar de alter ego do indivíduo. Pelo contrário, e aqui partimos de uma ótica levinasiana, centrar-se no cliente de forma assimétrica, na verdade, ressalta a diferença do terapeuta, afirmando sua alteridade absoluta. Ocultar tal alteridade de fato seria uma negligência ética para o cliente, pois: 1) o privaria de experimentar uma relação ética e transcendente; e 2) poderia significar para o cliente - que apreende muito da dinâmica da terapêutica para outras esferas de sua vida - que para centrar-se no outro é preciso anular-se, despersonalizar o eu. Nesse sentido, entendemos que ao afirmar sua diferença, fugindo de um papel de alter ego, o terapeuta proporciona as bases éticas da relação, onde ambos - cliente e psicoterapeuta - poderão firmar sua subjetividade e o cliente poderá aprender a acolher e lidar com a alteridade do terapeuta, dos seus Outros e a sua própria estranheza.

Isso se acentua ao considerarmos a criança enquanto cliente. A alteridade da criança em relação ao adulto não pode ser desconsiderada a ponto de o terapeuta tentar se colocar como alter ego dela; entre o infante e o adulto, há um retrato claro de alteridades absolutas que precisam ser reconhecidas. O passo que o terapeuta dá em direção à criança não é o de refletir seu eu, pois disto não seria capaz, mas se desprender de seu mundo adulto, aprendendo a escutar e responder o chamado da criança em sua própria linguagem infantil, sem que isto seja considerado uma “volta” à sua infância, mas um novo jeito de descobrir o que significa “ser criança”, ainda que adulto.

Para Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.), a sala de Ludoterapia torna-se um lugar de crescimento, onde a criança é a pessoa mais importante, está no comando da situação e de si e ninguém lhe diz o que deve fazer, critica o que faz, dá sugestões, a estimula ou se intromete em seu mundo particular. Nesse lugar, a criança sentiria que pode olhar para si, pôr à prova suas ideias, se expressar completamente - é o seu mundo e nele não tem de competir com a autoridade adulta, rivais contemporâneos ou passar por situações em que é colocada como peça nos jogos dos adultos, sendo alvo de frustrações e agressões de outros. Na sala de terapia, a criança é tratada com respeito e dignidade; poderá dizer o que quiser, brincar como quiser e seguir no ritmo que quiser - será aceita completamente em todas as suas manifestações. Essa se constitui como uma experiência única para a criança.

É preciso notar que, ao tratar da sala de Ludoterapia enquanto lugar de crescimento onde “ninguém importuna” a criança, Axline descreve a situação terapêutica de forma que a criança parece estar isolada dos outros e do mundo, e que seu crescimento se dá justamente por estar só; daí intui-se que a presença do terapeuta realmente surge como um alter ego. Ao tratar do princípio da permissividade e de possíveis sentimentos autodepreciativos da criança, Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.) afirma que o terapeuta não se coloque, pois “o que ele pensa [de positivo sobre a criança] não tem importância” (p. 106). Posteriormente, discorrendo sobre o princípio que respeita o direcionamento da criança na terapia, Axline escreve:

[O terapeuta] é o palco onde [a criança] pode pôr à prova sua personalidade. É a pessoa que segura o espelho onde ela se verá. O terapeuta guarda para si suas opiniões, seus sentimentos e sua orientação. Quando se considera que a criança está na sala de terapia para ter contato consigo mesma, percebe-se que as opiniões e desejos do terapeuta não são bem-vindos. A criança é bloqueada pela intromissão da personalidade do terapeuta, no brinquedo. Consequentemente, este deve manter-se de fora [...]. (Axline, 1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros., p. 129)

Em termos levinasianos e coerente com as fases de pensamento posteriores de Rogers (1983Rogers, C. R. (1983). Um jeito de ser. EPU., 2001Rogers, C. R. (2001). Tornar-se pessoa (5ª ed.). Martins Fontes.), seria justamente a relação com o terapeuta, enquanto pessoa singular, que promoveria o desenvolvimento saudável e não apenas não ser “importunado” por ninguém. A terapia se desenvolveria menos como um “contato consigo”, como coloca Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.), e mais como uma “confrontação com o Outro”, como dizem Vieira e Pinheiro (2013Vieira, E. M., & Pinheiro, F. P. H. A. (2013). Person centered psychotherapy: An encounter with oneself or a confrontation with the other?.Estudos de Psicologia (Campinas),30(2), 231-238.).

Contudo, igualmente destacamos que é preciso interpretar Axline de forma contextualizada, pois suas colocações também emergem de forma a contrapor um sistema social e psicológico que intentava (e ainda intenta) controlar a criança a partir dos interesses dos adultos. Nesse sentido, Axline se preocupava em defender, de forma absoluta, o respeito por sua dignidade enquanto pessoa autônoma, em um mundo que a instrumentalizava. Isto fica mais claro quando a autora escreve que não se trata da criança se preocupar tanto consigo

que o resto do mundo cesse de existir para ela. Significa que ela aspira à liberdade de realizar naturalmente esse impulso interior, sem que seja necessário fazer disso o objetivo central de sua vida; [...] [sem ter de] canalizar todas as suas energias para uma luta contra barreiras [...] que tornam sua atenção voltada para o interior de si mesma. (Axline, 1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros., p. 33)

Também concernente ao pensamento de Axline, o terapeuta não deve se envolver emocionalmente com a criança. Questionamos até que ponto isto é literal e se coloca como possibilidade; abrir-se ao encontro com o Outro é ser afetado por ele, inclusive emocionalmente, envolvendo o que Lévinas chamou de sensibilidade.

Axline (1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros.) ainda ressalta que a responsabilidade do sujeito para com os outros está diretamente ligada à quantidade de liberdade que lhe é confiada; em certo sentido, a liberdade precederia a responsabilidade. A autora, contudo, não pretende anunciar um conceito filosófico de liberdade/responsabilidade com esta colocação. É possível entender que, para ela, a criança precisa estar livre de manipulações externas para que possa se relacionar com os outros e, então, assumir responsabilidade para com eles. A bem da verdade, partindo da filosofia levinasiana, a posição poderia ser diferente: A responsabilidade que a criança assume para com cada pessoa com que se relaciona possibilita cada vez mais sua individuação e, portanto, sua liberdade.

Mesmo em meio à complexidade filosófica de Lévinas e ao afastamento natural que dificultam a vinculação de ideias entre a ACP e a LCC, Brito (2012Brito, R. A. C. (2012). A criança como outro: Uma leitura ética da ludoterapia centrada na criança [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará]. https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/6811/1/2012-DIS-RACBRITO.pdf.
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) compreende que a filosofia levinasiana possibilita uma ampliação importante na abordagem. Por fim, a autora ressalta que a postura terapêutica acaba por estar ligada a um pressuposto teórico que guia a prática; porém, não há aplicabilidade prática da filosofia de Lévinas, pois, como já abordado, estabelecimentos prévios seriam contraditórios em sua ética. A experiência terapêutica indica que há certos tipos de colocações e/ou intervenções que se apresentam como necessárias para uma melhora da criança - intervenções amparadas por uma estrutura teórico-metodológica. Destarte, a LCC irá, de certo, modo, tematizar e propor algo emergente de um diálogo com Lévinas. A autora conclui que, ao fim, a LCC não escapará de um retorno ao Mesmo.

Aqui, fazemos algumas considerações sobre a colocação de Brito: propor algo enquanto diretriz metodológica será um movimento natural da LCC, condizente com a psicologia, ainda que pautada por bases filosóficas; embora concordemos que não há escape de um retorno ao Mesmo, não consideramos tal ideia contraditória com a proposta ética levinasiana. Afinal, um conhecimento que não reconhece sua volta ao Mesmo afirmaria estar sempre diante da alteridade, o que nos parece uma afirmação leviana. A alteridade trata de configurações e reconfigurações, movimentos de caminhos diferentes e traumas; a volta ao Mesmo na LCC, enquanto estiver aberta à ética, não será morada, mas apenas passagem, mais um novo caminho de encontro com a alteridade absoluta. De fato, cada criança encontrada em atendimento se encarregará de desfazer e desalojar o Mesmo, no qual o terapeuta possa estar residindo. Como escreve Lévinas (2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes.), a vida é entusiasmo, é desembriagar constante, “uma vigília na vigília de um despertar novo: a ética” (p. 115).

Ademais, não se trata de condenar sistematizações psicoterapêuticas, pois não há linearidade nas teorias aqui abordadas, que possuem momentos de abertura e de fechamento para a diferença (Vieira, 2017Vieira, E. M. (2017). Ética e psicologia: Uma investigação sobre os ethoi da terapia centrada na pessoa [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais]. http://hdl.handle.net/1843/BUOS-AQKMGT
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). A LCC se constitui como uma abordagem clínica infantil em meio a outras e com certeza encontra críticas, lacunas e falhas. Porém, se o encontro com o Outro chama a responsabilidade para que a hospitalidade ética e se, como diria Axline, a LCC “parece ser um meio de oferecer hospitalidade emocional para as crianças [...], então parece muito justo que seja tentado” (Axline, 1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros., p. 39).

Considerações Finais

Nas palavras de Axline:

Uma criança geralmente perdoa depressa e esquece as experiências negativas [...] [possui] um grande amor pela vida que a excita e a encanta nos seus mais simples prazeres. Normalmente, uma criança gosta de crescer e lutar por isso constantemente - algumas vezes, mesmo ultrapassando-se em sua avidez. É ao mesmo tempo humilde e orgulhosa, corajosa e temerosa, dominadora e submissa, curiosa e satisfeita, ávida e indiferente. Ama e odeia, luta e faz a paz, fica encantadoramente feliz e desesperadamente triste. (Axline, 1972Axline, V. M. (1972). Ludoterapia: A dinâmica interior da criança. Interlivros., p. 25)

Axline descreve este processo como o crescimento dinâmico da criança; poderíamos descrever também como um processo de encontro com a alteridade - em si e nos Outros.

A Ludoterapia Centrada na Criança passou por evoluções desde Axline até os dias atuais, que vêm influenciando a abordagem. Assim, apontamos que o escopo deste trabalho, em seu formato, não pretendeu abranger as releituras terapêuticas mais recentes. Acreditamos que esta foi uma limitação e que estudos futuros podem ser mais abrangentes, integrando e expandindo o conhecimento. Contudo, também destacamos que, para o desenvolvimento de abordagens e práticas mais atuais, é preciso estar sempre revisitando a tradição para apreender o que dela pode ser renovado.

Em seu livro Tornar-se Pessoa, Rogers (2001Rogers, C. R. (2001). Tornar-se pessoa (5ª ed.). Martins Fontes., p. 37) questiona: “Como posso proporcionar uma relação [...] [em que a] pessoa possa utilizar para seu próprio crescimento pessoal?”. No fim, esta é uma pergunta que poderia guiar a Abordagem Centrada na Pessoa e a Ludoterapia Centrada na Criança. Por ser, em essência, uma pergunta que trata sobre cuidar do Outro e sobre certa responsabilidade para com ele, consideramos de extrema importância as implicações da ética de Lévinas e sua visão sobre cuidar do Outro na ACP e na LCC.

Embora existam desencontros entre a LCC e a ética de Lévinas, há caminhos de aproximação na abertura e acolhimento oferecidos, que se distanciam de tentativas de estabelecer rótulos ou categorizações. Nesse sentido, há, na Ludoterapia de Axline, terreno para questionar a partir de Lévinas.

À aproximação de alguém em sofrimento, a responsabilidade do ser é radical - estar exposto à dor de outra pessoa já é ser chamado a cuidar desse sofrimento (Hutchens, 2009Hutchens, B. C. (2009). Compreender Lévinas. Vozes.). Assim o é na psicoterapia. Enquanto terapeutas, somos responsáveis pelas dores de nossos clientes; esta, na verdade, pode ser a condição ontológica de ser psicólogo.

Com a criança, esta responsabilidade e afetação têm desdobramentos singulares. Lévinas (2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (5ª ed.). Vozes., p. 254) aponta que o discurso do Outro é falado “às crianças ou à infância de cada um dentre nós”. O encontro com a criança, especialmente a criança que chega à terapia, que sofre, transcende o tempo cronológico; relacionar-se com ela é transcender etapas da vida. A infância não pode ser apreendida como momentos inacabados em direção a uma completude futura. A infância é de outra ordem - é alteridade por essência.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2019
  • Aceito
    05 Maio 2021
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