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Compreensão de contos após leitura dialógica com perguntas baseadas em dimensões temáticas da narrativa1 1 Apoio: CNPq.

RESUMO

Investigou-se o efeito da leitura dialógica - leitura em voz alta intercalada com perguntas e feedback baseados em dimensões temáticas (funções) da narrativa - sobre a compreensão de contos dos Irmãos Grimm. Vinte e dois contos foram lidos individualmente a três crianças, sendo duas com oito anos de idade e uma com treze, de forma simples (sem intervenções adicionais) e dialógica, em um delineamento de linha de base múltipla por participante. A compreensão foi avaliada por meio da porcentagem de eventos do enredo e funções da narrativa verbalizadas em tarefas de reconto. A correspondência entre as histórias e os recontos foi superior na condição Leitura Dialógica, especialmente para funções narrativas. Discute-se o papel das perguntas, do reforçamento diferencial e do texto nos efeitos encontrados.

Palavras-chave:
leitura compartilhada; comportamento verbal; compreensão de textos; Análise do Comportamento

ABSTRACT

We investigated the effects of dialogic reading - reading aloud interspersed with questions and feedback based on narrative thematic dimensions (functions) - on the comprehension of brother Grimm’s tales. Twenty-two tales were read individually to three children (aged 8, 8 and 13 years), in a baseline condition (Straight reading) and intervention (Dialogic reading), using multiple baseline design across participants. Comprehension was assessed through percentage of story events and narrative functions verbalized during retelling tasks. Correspondence between tales and retelling was higher under the Dialogic Reading condition, especially for narrative functions. The role of questions, differential reinforcement and text are discussed.

Keywords:
shared reading; verbal behavior; text comprehension; Behavior Analysis

Leitura compartilhada, no contexto do presente trabalho, pode ser definida como a leitura em voz alta (que pode ou não ser acompanhada de outras formas de interação, como comentários e perguntas dirigidas à(s) criança(s)) de uma obra infantojuvenil, por um adulto (denominado mediador de leitura) para uma ou mais crianças. Diversos estudos apontam para uma relação positiva entre a leitura compartilhada de histórias durante a infância e o desenvolvimento da linguagem (ver Duursma, Augustyn & Zuckerman, 2010Duursma, E., Augustyn, M & Zuckerman, B. (2010). Reading aloud to children: the evidence. Archives of Disease in Childhood, 93(7), 554-557., para uma revisão), incluindo ganhos em vocabulário (Justice, Meier & Walpole, 2005Justice, L. M.; Meier, J. & Walpole, S. (2005). Learning new words from storybooks: n efficacy study with at-risk kindergartners. Language, Speech and Hearing Services at School, 36, 17-32.) e construção oral de narrativas (Lever & Sénéchal, 2011Lever, R., & Sénéchal, M. (2011). Discussing stories: how a dialogic reading intervention improves kindergartners’ oral narrative construction. Journal of Experimental Child Psychology, 108(1), 1-24.). Há também indícios de que ler histórias para crianças favorece o gosto e a motivação para leitura (Baker, Mackler, Sonneschein & Serpell, 2001Baker, L., Mackler, K., Sonneschein, S. & Serpell, R. (2001). Parents´ interaction with their first-grade children during storybook reading and relations with subsequent home reading activity and reading achievement. Journal of School Psyhcology, 39(5), 415-438.). Ainda são, no entanto, escassos os dados sobre os efeitos da leitura compartilhada na compreensão de narrativas (exceções são Fontes e Cardoso-Martins, 2004Fontes, M. J. O. & Cardoso-Martins, C. (2004). Efeitos da leitura de histórias no desenvolvimento da linguagem de crianças de nível sócio-econômico baixo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(1), 83-94. e Flores, Pires e Souza, 2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251., descritos adiante). Na maior parte dos estudos sobre leitura compartilhada, o foco recai sobre os possíveis efeitos dessa atividade para o desenvolvimento do vocabulário receptivo e expressivo, geralmente de crianças em idade pré-escolar (e.g. Barnes, Dickinson & Grifenhagen, 2016Barnes, E. M., Dickinson, D. K. & Grifenhagen, J. F. (2016). The role of teachers´ comments during book reading in children´s vocabulary growth. The Journal of Educational Research, 1-13.; Gonzalez et al., 2014Gonzalez, J. E., Pollard-Durodola, S., Simmons, D. C., Taylor, A. B., Davis, M. J., Fogarty, M. & Simmons, L. (2014). Enhancing preschool children´s vocabulary: Effects of teacher talk before, during and after shared reading. Early Childhood Research Quarterly, 29(2), 214-226.).

Existem muitas formas de compartilhar a leitura de um livro, que variam conforme ações específicas executadas pelo mediador de leitura antes, durante e depois da leitura em voz alta (Kindle, 2011Kindle K. J. (2011). Same book, different experience: a comparison of shared reading in preschool classrooms. Journal of Language and Literacy, 7(1), 13-34.; Resse & Cox, 1999Reese, E. & Cox, A. (1999). Quality of adult book reading affects children's emergent literacy. Developmental Psychology, 35(1), 20-28.). Reese e Cox (1999Reese, E. & Cox, A. (1999). Quality of adult book reading affects children's emergent literacy. Developmental Psychology, 35(1), 20-28.), por exemplo, compararam os benefícios de três estilos de leitura compartilhada sobre o desenvolvimento de habilidades linguísticas: o estilo descritivo (no qual o mediador de leitura leva a criança a nomear e descrever figuras durante a leitura), o estilo compreensivo (o mediador foca no significado da história e exige inferências e predições durante a leitura) e o estilo orientado para o desempenho (leitura ininterrupta da história com discussões antes e após a leitura), Os ganhos obtidos pelos estilos de leitura variaram conforme as habilidades iniciais da criança; as mais novas ou com menos habilidades linguísticas se beneficiaram mais com o estilo descritivo, ao passo que crianças mais velhas ou mais habilidosas se beneficiaram mais com o estilo orientado para o desempenho.

Estudos como os de Reese e Cox (1999Reese, E. & Cox, A. (1999). Quality of adult book reading affects children's emergent literacy. Developmental Psychology, 35(1), 20-28.) sugerem que ações específicas executadas pelos mediadores de leitura influenciam diretamente nas habilidades que são beneficiadas com a leitura compartilhada. A utilização de estratégias interativas, isto é, estratégias que estimulam a criança a se engajar em conversas que vão além das informações contidas no livro, parecem ser especialmente favoráveis para a expansão do vocabulário expressivo e para a compreensão de textos (Brabham & Lynch-Brown, 2002Brabham, E. G. & Lynch-Brown, C. (2002). Effects of teacher´s reading-aloud styles on vocabulary aquisition and comprehension in the early elementary grades. Journal of Educational Psychology, 94(3), 465-473.; Vally, 2012Vally, Z. (2012). Dialogic reading and child language growth: combating developmental risk in South Africa. South African Journal of Psychology, 42(4), 617-627.).

Recentemente, Zauche, Thul, Mahoney & Stapel-Wax (2016Zauche, L. H., Thul, T. A., Mahoney, A. E. D., & Stapel-Wax, J. L. (2016). Influence of language nutrition on children’s language and cognitive development: An integrated review. Early Childhood Research Quarterly, 36, 318-333.) revisaram a literatura empírica produzida entre 1990 e 2014 sobre diferentes tipos de interações linguísticas na primeira infância e seus efeitos sobre o desenvolvimento cognitivo. Dentre as conclusões da revisão, um tipo de leitura compartilhada, a chamada leitura dialógica, destacou-se como uma das formas de interação entre crianças e pais que mais beneficiam o desenvolvimento linguístico, especialmente do vocabulário expressivo. Os princípios da leitura dialógica podem ser descritos como: (a) utilização de estratégias evocativas, por exemplo, perguntas do tipo quê, quando, como, onde e pedidos para a criança relacionar aspectos da história com a experiência dela; (b) fornecimento de feedbacks contingentes às verbalizações da criança (elogios, repetições, modelos de respostas e expansões das respostas da criança); e (c) aumento progressivo da complexidade das perguntas com o crescimento do repertório da criança (Camelo & Souza, 2009; Whitehurst et al., 1988Whitehurst, G. J., Falco, F. L., Lonigan, C. J., Fischel, J. E., DeBaryshe, B. D., Valdez-Menchaca, M. C., & Caulfield, M. (1988). Accelerating language development through picture book reading. Developmental Pyschology, 24(4), 552-559.).

No Brasil, Fontes e Cardoso-Martins (2004Fontes, M. J. O. & Cardoso-Martins, C. (2004). Efeitos da leitura de histórias no desenvolvimento da linguagem de crianças de nível sócio-econômico baixo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(1), 83-94.) investigaram os efeitos da leitura dialógica (denominaram-na interativa mas a intervenção possuía as características descritas no parágrafo anterior) com 38 crianças em idade pré-escolar, provenientes de famílias de baixa renda, sobre a compreensão da história e sobre vocabulário expressivo e habilidades de escrita. As crianças do grupo experimental participaram de 16 sessões de leitura dialógica em suas creches e as do grupo controle continuaram a rotina usual, que não envolvia essa atividade. Comparações entre pré e pós-testes revelaram ganhos significativos do grupo experimental em relação ao grupo controle para a compreensão da história e o vocabulário expressivo, mas não para habilidades de escrita. O estudo não permitiu concluir, no entanto, acerca dos efeitos específicos das intervenções dialógicas sobre a compreensão, já que não houve comparação com uma condição controle em que a leitura fosse realizada, porém de forma não dialógica.

Flores, Pires e Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.) buscaram contribuir para suprir essa lacuna realizando um experimento no qual foram verificados os efeitos da leitura dialógica sobre a compreensão de textos de três crianças do 3º ano do ensino fundamental utilizando-se um delineamento de sujeito único com reversão. O procedimento consistiu em encontros individuais em que uma mediadora de leitura que lia para cada criança um capítulo por sessão de um romance infantojuvenil de forma simples (leitura corrida sem as intervenções próprias da leitura dialógica; Condição A) ou de forma dialógica (Condição B), usando um delineamento com reversão invertido (B-A-B) para dois participantes e tradicional (A-B-A) para o terceiro participante. A compreensão de cada capítulo foi avaliada por tarefas de reconto livre (i.e., dava-se uma instrução geral à criança para recontar o capítulo que acabara de ouvir) e de reconto guiado por perguntas baseadas na estrutura da narrativa3 3 No presente artigo utilizou-se o neologismo “reconto” para designar a fase em que a criança recontava a história, em acordo com o verbete no Glossário CEALE de Termos de Alfabetização, Letramento e Escrita para Educadores (disponível em http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/). .

A compreensão exibida nas tarefas de reconto foi medida por (a) porcentagem de eventos da história citados pela criança (por exemplo, o primeiro evento em muitas versões da história Chapeuzinho Vermelho é o diálogo em que a mãe pede à filha que vá até a casa da avó levar uma cesta de alimentos) e (b) porcentagem de funções da narrativa verbalizadas. A medida de funções da narrativa foi baseada na noção de “unidade funcional do texto” proposta por Roland Barthes (1966/2009Barthes, R. (2009). Introdução à análise estrutural da narrativa. Em R. Barthes e cols. (Eds.). Análise Estrutural da Narrativa (6ª ed.). (M. B. Pinto, Trad.), pp. 19-62. São Paulo: Vozes (Obra original publicada em 1966).) e definida a partir de seu sentido ou sua relação com outras partes ou outros níveis do texto e não por aspectos formais como parágrafos ou frases, podendo uma função, inclusive, estar distribuída em diversas partes do texto, muitas vezes de forma implícita ou indireta. Um exemplo de função da narrativa, no conto citado, é a ingenuidade da personagem Chapeuzinho Vermelho. Essa função pode não estar explicitada em algum lugar específico, mas permeia de forma implícita todo o texto e explica, por exemplo, por que Chapeuzinho desobedeceu às ordens de sua mãe (“Não pare para conversar com ninguém na floresta!”) e por que se deixou enganar diversas vezes pelo lobo mau. Uma função da narrativa pode ser conceituada como uma dimensão narrativa que o leitor precisa compreender para entender a narrativa como um todo. Quando o comportamento verbal do leitor fica sob controle dessas funções, temos uma evidência empírica de sua compreensão da narrativa. No exemplo citado, caso o leitor diga que Chapeuzinho é uma personagem “astuta”, certamente dir-se-ia que ele não compreendeu bem a história, mas aceitar-se-ia como evidência da relação de controle do comportamento da criança com a função narrativa respostas verbais como “ela é muito boba” ou “ela pensou que o lobo mau era a vovozinha”. A correspondência entre a narrativa e o desempenho da criança ao recontá-la é avaliada de modo funcional e não topográfico, sendo que este último estaria mais próximo do que cotidianamente se chama de “memorizar” o texto. Assim, além dos eventos da história, é importante incluir as funções da narrativa ao avaliar a compreensão. Características dos personagens, descrições de cenário, estados emocionais dos personagens e sua relação com os eventos da narrativa, relações causais entre dois ou mais eventos da história são exemplos de funções narrativas como foram conceituadas em Flores, Pires & Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.), em que a análise das funções da narrativa serviu ao duplo propósito de preparar as perguntas para a leitura dialógica e de embasar a avaliação da compreensão da criança.

No estudo de Flores, Pires & Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.), para os participantes P1 e P2, expostos à ordem B-A-B, a porcentagem de eventos e funções verbalizadas foi superior na condição Leitura Dialógica em comparação à condição Leitura Simples, corroborando a literatura da área. Para o participante P3, que foi submetido à ordem A-B-A, não houve, no entanto, diferença sistemática entre as condições. Os autores discutiram que iniciar as sessões com leitura simples pode ter prejudicado a compreensão das partes iniciais do romance, comprometendo o entendimento das demais funções no restante do livro, já que os capítulos são interdependentes. Para solucionar essa questão metodológica, os autores sugeriram replicar o procedimento utilizando narrativas diferentes em cada condição.

O presente estudo investigou o efeito da leitura dialógica sobre a compreensão de contos de Grimm, de modo a contribuir com a ainda escassa literatura sobre os efeitos da leitura dialógica sobre a compreensão de narrativas. Dando continuidade à investigação de Flores, Pires e Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.), buscou-se responder à questão da interdependência dos capítulos como uma explicação para a diferença no desempenho dos participantes mediante o uso de textos independentes (contos dos irmãos Grimm) em cada sessão. Seguindo Flores, Pires e Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.), o presente estudo utilizou textos literários integrais e não adaptados, de modo a aumentar a validade ecológica, já que um aspecto importante da "ecologia" da leitura é o próprio texto, ou seja, estudar compreensão usando-se um texto adaptado e simplificado para fins experimentais tem uma validade ecológica diferente que usar textos sem essas adaptações.

Método

Participantes

Participaram três estudantes de Ensino Fundamental de uma escola pública em Brasília/DF, sendo duas meninas do 3º ano, Rita e Lola, ambas com oito anos de idade, e um menino do 5º ano, Lucas4 4 Em respeito à privacidade dos participantes, todos os nomes mencionados são fictícios. , com 13. Todos os participantes foram encaminhados por seus professores a partir da sugestão dos pesquisadores de que fossem direcionados preferencialmente a estudantes com dificuldades em compreensão de textos (detectadas pelos professores no cotidiano escolar). Foram seguidos dois critérios: que fossem alunos assíduos e que o livro utilizado fosse adequado ao nível de compreensão dos estudantes (nem muito fácil, nem muito difícil, com o objetivo de evitar efeitos de piso ou de teto). O último critério foi verificado por meio de duas sessões-piloto que serviram também aos propósitos de familiarizar as crianças com o procedimento e de facilitar o rapport com a mediadora de leitura e com o pesquisador que iria interagir com elas durante as tarefas de reconto.

Local

A coleta de dados foi realizada na escola pública em que as crianças estudavam, em uma sala que possuía aproximadamente 15m² e uma mesa com cadeiras, com ventilação natural (janelas) e artificial (ventilador) e iluminação natural (janelas) e artificial (lâmpadas no teto).

Materiais

Para as sessões de leitura compartilhada utilizou-se o livro Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos (1812-1815) de Jacob e Wilhelm Grimm (Editora Cosac Naify). O livro, dividido em dois volumes, é uma coletânea de 156 contos maravilhosos5 5 Também conhecidos como “contos de fadas” ou “contos de magia”, os contos maravilhosos se caracterizam por serem narrativas curtas em que o enredo se desenvolve a partir de uma motivação inicial e geralmente envolvem elementos mágicos ou de encantamento. Ver Propp (1928/2001) para uma proposta de classificação e análise morfológica de contos maravilhosos. decorrentes do trabalho de documentação de contos da tradição oral feita pelos Irmãos Grimm no século XIX. Para o registro das sessões utilizou-se uma câmera digital presa a um tripé.

Foram escolhidos 22 contos de tamanhos similares, medidos a partir da quantidade de eventos em cada conto. “Eventos” podem ser descritos como as ações e eventos na narrativa, que se situam no tempo e espaço narrativo e constituem seu enredo6 6 Trabasso e Sperry (1985) ressaltam que os eventos em uma narrativa são geralmente organizados em cadeias causais e mantêm uma relação lógica entre si. Se em uma história (1) a princesa beija o sapo, (2) o sapo transforma-se em príncipe e (3) os dois se casam, têm-se nesse trecho três eventos, em que o primeiro é condição necessária para o segundo, o segundo para o terceiro, e assim por diante. . Foram excluídos da seleção contos universalmente conhecidos, como: A Gata Borralheira; João e Maria; Chapeuzinho Vermelho; O Gato de Botas; Rapunzel etc. Também foi pedido aos participantes que relatassem aos pesquisadores caso alguma história já fosse conhecida por eles, e isso lhes era lembrado frequentemente. Nenhum participante relatou conhecer alguma das histórias. Evitou-se também incluir contos com enredos semelhantes, fato comum em alguns contos dos Irmãos Grimm.

Análise dos contos, preparação das perguntas e protocolos

Os 22 contos foram previamente analisados, de maneira independente, por dois pesquisadores, resultando em listagens dos eventos e funções narrativas de cada conto. As concordâncias entre as análises dos pesquisadores foram mantidas e as discordâncias, reelaboradas. Em média, os contos foram constituídos por 8,23 funções (σ = 2,16) e 21 eventos (σ = 4,8).

A análise das funções da narrativa também embasou a elaboração das perguntas a serem realizadas durante as leituras na condição Leitura Dialógica. Tais perguntas, que eram perguntas abertas relacionadas à história, foram programadas com o intuito de evocar verbalizações das crianças acerca das funções da narrativa analisadas anteriormente. Ainda no exemplo de Chapeuzinho Vermelho, uma possível pergunta para evocar verbalizações da criança acerca da ingenuidade da personagem poderia ser, logo após a personagem encontrar o lobo disfarçado na cama da vovozinha, “Por que Chapeuzinho está fazendo todas essas perguntas?” ou “Fulano(a), qual seria sua reação se encontrasse o lobo vestido de vovozinha?”. As listas de funções e eventos também serviram para a confecção de protocolos de análise das gravações que auxiliaram na contabilização das funções e eventos verbalizados pelas crianças durante os recontos (ver “Medidas” abaixo).

Seleção e treinamento da mediadora de leitura

A pesquisa contou com a colaboração de uma mediadora de leitura selecionada dentre três candidatos, com a qual foram discutidas e treinadas, por meio de role-playing, as técnicas utilizadas na leitura dialógica, enfatizando a importância das perguntas abertas para evocar verbalizações das crianças acerca das funções da narrativa e do reforçamento diferencial contingente a essas verbalizações.

A Figura 1 resume as interações dialógicas entre mediadora e criança enfatizadas no treinamento. Durante as leituras dialógicas, a mediadora deveria interromper a leitura em pontos prpredeterminados da história e emitir a pergunta previamente programada. Caso a pergunta não fosse suficiente para evocar verbalizações da criança acerca da função narrativa, a mediadora deveria reformular a pergunta utilizando outras palavras. Caso a criança ainda não verbalizasse acerca da função, a mediadora deveria aumentar as dicas e retomar os eventos da narrativa. Se, ainda assim, a criança não verbalizasse a função, a mediadora ofereceria um modelo de resposta e prosseguia com a leitura. Se após qualquer uma das intervenções a criança verbalizasse acerca da função, a mediadora era instruída a reforçar diferencialmente a verbalização da criança, por meio de elogios, e dar continuidade ao diálogo com outras perguntas e comentários.

Figura 1
Diagrama das interações dialógicas entre mediadora e criança

Procedimentos

Antes de cada sessão, a mediadora de leitura buscava a criança em sala de aula e a levava ao local de leitura. Chegando ao local, as duas sentavam-se à mesa, a câmera presa ao tripé era ligada, a mediadora dizia o título do conto que leria naquele dia e iniciava a leitura. A mediadora sentava-se ao lado da criança com o livro aberto, de forma que a criança pudesse acompanhar a leitura, se quisesse. Os contos eram lidos de forma simples ou dialógica, dependendo da condição experimental em vigor.

Foi utilizado um delineamento de linha de base múltipla por participante, que se caracteriza pela introdução da intervenção em momentos distintos para cada participante (Iversen, 2013Iversen, I. H. (2013). Single-case research methods: an overview. Em Madden, G. J., Dube, W. V., Hackenberg, T. D., Hanley, G. P. & Lattal, K. A. (Orgs.). APA Handbook of Behavior Analysis: Methods and principles (pp. 3-32). American Psychological Association. Washington, DC: US.). Os contos foram inicialmente lidos de forma simples e, na condição seguinte, de forma dialógica, sendo a primeira condição linha de base para a segunda. Rita iniciou a condição Leitura Dialógica na Sessão 8; Lola, na Sessão 11; e Lucas, na Sessão 14. Em cada sessão era lido um conto e todos os 22 contos foram lidos na mesma ordem para todos os participantes, independente da condição experimental; por isso, alguns contos foram lidos apenas de forma simples (1 ao 8), outros foram lidos de forma simples para alguns participantes e dialógica para outros participantes (8 ao 14) e outros foram lidos apenas de forma dialógica (14 ao 22).

Na linha de base (condição Leitura Simples), a mediadora foi instruída a ler a história de forma simples, sem as intervenções dialógicas. Nessa condição, só ocorreriam diálogos durante a mediação de leitura se fossem iniciados espontaneamente pela criança (o que nunca aconteceu nessa condição). A mediadora foi instruída a manter todos os elementos de prosódia (ritmo, teatralidade, entonação, altura, vozes diferentes para cada personagem etc.) que habitualmente utiliza em suas mediações de leitura.

Na fase de intervenção (condição Leitura Dialógica), a mediadora foi instruída a ler o conto fazendo interrupções e realizando as perguntas abertas previamente programadas, conforme enfatizado em seu treinamento (ver Figura 1).

Imediatamente após o término da leitura, na linha de base e na intervenção, a mediadora se retirava do local e outro pesquisador entrava e pedia à criança que lhe contasse a história daquele dia, expressando inicialmente curiosidade em conhecê-la com frases como "Então, qual foi a história que você ouviu hoje? Você pode contá-la para mim?". Quando a criança dizia não se lembrar, o pesquisador insistia que ela contasse aquilo de que se lembrava. Quando a criança afirmava ter relatado tudo que lembrava, o pesquisador perguntava: “Você quer falar mais alguma coisa?”. Se a resposta fosse negativa, o pesquisador passava para o reconto dirigido.

No reconto dirigido, o pesquisador fazia perguntas abertas, planejadas anteriormente, sobre as funções da narrativa, sendo apenas uma pergunta para cada função. As perguntas realizadas nesta etapa eram diferentes das que já haviam sido feitas à criança durante a leitura. Não havia feedback para as respostas da criança nessa fase.

Medidas

A compreensão do conto lido para a criança foi avaliada a partir da porcentagem de eventos e funções da narrativa verbalizados pela criança durante o reconto, da mesma forma que em Flores, Pires e Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.). Analisaram-se as gravações e contabilizaram-se as correspondências entre as verbalizações das crianças e os eventos e funções da narrativa. As funções ou eventos eram registrados como verbalizados pela criança quando era possível inferir uma relação de controle temático (Skinner, 1957Skinner, B. F. (1957). Verbal Behavior. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice Hall.) entre ela e algum evento ou função da narrativa e não pela topografia específica da resposta verbal.

Análise de concordância entre juízes

Após o término da análise dos recontos, foi feito um cálculo de concordância entre os registros de eventos e funções verbalizados feitos por um pesquisador e os de uma estudante de graduação, que avaliou, independentemente e sem conhecimento da condição experimental envolvida, doze registros de recontos (dois contos, sorteados, para cada uma das duas condições, para cada uma das três crianças - 2 × 2 × 3). A estudante já tinha familiaridade com as medidas de eventos e funções da narrativa em razão de sua participação anterior em outra pesquisa do grupo.

Um acordo era considerado quando ambos coincidiam em sua avaliação de um evento ou função como tendo sido ou não verbalizado pela criança. O acordo, calculado como total de acordos/(acordos + desacordos), multiplicado por 100, foi de 94% para as funções narrativas e de 90% para os eventos.

Fidelidade da intervenção

Após a conclusão da coleta, as filmagens de oito mediações de leituras dialógicas foram aleatoriamente selecionadas e analisadas a fim de verificar se a mediadora havia sido fiel ao planejamento na fase de intervenção. Verificou-se se as perguntas planejadas pelos pesquisadores foram de fato emitidas pela mediadora durante a leitura. Nas oito mediações de leitura analisadas (três com Rita, três com Lola e duas com Lucas), 100% das perguntas planejadas foram emitidas pela mediadora. Também se constatou que nenhuma pergunta foi realizada na condição de leitura compartilhada simples.

Considerações éticas

O projeto de pesquisa foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa, tendo seguido os preceitos da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Buscou-se respeitar o princípio do assentimento informado de participantes crianças (Harcout & Conroy, 2005Harcourt, D. & Conroy, H. (2005). Informed assent: Ethics and processes when researching with young children. Early Child Development and Care,175(6), 567-577.), explicando-se a elas como seria o procedimento e o caráter livre e voluntário da participação. Antes de decidir participar da pesquisa, foi realizada uma breve sessão demonstrativa em que puderam vivenciar o procedimento e tirar dúvidas, evitando-se a dependência apenas na explicação abstrata (usou-se leitura não dialógica, como seria feito na linha de base, e um conto que não seria usado nas sessões da pesquisa). Os responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Permissão para Gravação de Imagens após leitura.

Resultados

Os dados abaixo se referem à porcentagem de eventos e funções da narrativa verbalizados pelos participantes Rita, Lola e Lucas nos recontos livres e dirigidos, durante as condições Leitura Simples (linha de base) e Leitura Dialógica (intervenção). As mediações de leitura com Rita foram interrompidas na 19ª sessão pela aproximação com o final do semestre letivo e também por julgar-se que a quantidade de sessões com a participante já era suficiente, tendo em vista o fato de ela ter totalizado doze sessões de leitura dialógica, número igual ou superior aos demais participantes. Uma falha técnica resultou na impossibilidade de registro dos dados referentes à Sessão 1 para a participante Lola.

Os dados são apresentados em séries temporais que permitem observar as porcentagens de eventos e funções verbalizadas por sessão. As séries temporais trazem linhas de tendência linear, retratando o melhor ajuste do conjunto dos dados e as tendências em cada condição experimental.

Eventos

A Figura 2 apresenta a porcentagem de eventos citados, por sessão, pelos participantes Rita, Lola e Lucas, a partir dos eventos verbalizados no reconto livre, acrescidos dos eventos adicionais verbalizados na tarefa de reconto dirigido7 7 Optou-se por apresentar os eventos verbalizados nos recontos livres e dirigidos de forma agregada, após a constatação de que as crianças dificilmente citavam eventos no reconto dirigido. No reconto dirigido eram feitas perguntas especificamente sobre as funções da narrativa e, pela própria exigência da tarefa, as crianças raramente citavam novos eventos nessa etapa. .

Figura 2
Eventos verbalizados no reconto livre e dirigido pelos participantes Rita, Lola e Lucas, por sessão, nas condições Leitura Simples e Leitura Dialógica, com linhas de tendência (linhas horizontais contínuas) para cada condição.

Na condição Leitura Simples, as porcentagens de eventos citados pela participante Rita variaram entre zero e 20%, com exceção da Sessão 3 (58%) e da Sessão 5 (74%). Ao mudar para a condição Leitura Dialógica, observa-se um aumento na média, mas com variação nos dados por sessão, que terminam em tendência de queda. Com exceção da Sessão 14, em que Rita não citou nenhum evento, a porcentagem de eventos verbalizados na condição Leitura Dialógica variou entre 22% e 74%, sendo que em sete de doze sessões (8, 9, 11, 13, 16, 17, 18) as porcentagens encontram-se acima de 40%.

As porcentagens de eventos citados por Lola na condição Leitura Simples apresentam três picos nas Sessões 3, 5 e 8, nas quais a participante citou 63%, 53% e 65% dos eventos das narrativas, respectivamente. As demais sessões variaram entre 5% e 40%. Ao mudar para a condição Leitura Dialógica, as porcentagens de eventos citados por Lola variaram entre 45% e 80% a partir da Sessão 12, sendo que na Sessão 11 a participante citou apenas 5% dos eventos. Na condição Leitura Simples, Lucas não citou nenhum evento nas Sessões 1 e 12, e as demais sessões variaram entre 7% e 47%. Na condição Leitura Dialógica, as porcentagens de eventos citados por Lucas variaram entre 10% e 48%, com tendência decrescente.

Funções da narrativa

A Figura 3 apresenta a porcentagem de funções da narrativa verbalizadas pelos participantes Rita, Lola e Lucas no reconto livre, por sessão, nas condições Leitura Simples e Leitura Dialógica.

Figura 3
Funções verbalizadas no reconto livre pelos participantes Rita, Lola e Lucas, por sessão, nas condições Leitura Simples e Leitura Dialógica, com linhas de tendência (linhas horizontais contínuas) para cada condição.

Na condição Leitura Simples, o desempenho de Rita variou entre zero e 17%, com exceção da Sessão 5, em que verbalizou 57% das funções. Em quatro das sete sessões da condição Leitura Simples (1, 2, 4 e 7), nenhuma função narrativa foi citada por Rita. Na condição Leitura Dialógica, o desempenho foi sempre acima de zero, sendo que em sete sessões (8, 9, 11, 15, 16, 17 e 19) o número de funções verbalizadas ultrapassou 30%. As porcentagens tenderam a ser mais elevadas na condição Leitura Dialógica e percebe-se uma tendência crescente, principalmente nas últimas quatro sessões.

Lola verbalizou 50% das funções narrativas no reconto livre da primeira sessão da condição Leitura Simples, mas nas sessões seguintes não verbalizou mais de 30% das funções dos contos. (Nas Sessões 4 e 10 não verbalizou nenhuma das funções.) Além disso, o desempenho nas últimas quatro sessões apresenta uma tendência decrescente. Já na condição Leitura Dialógica, o número de funções verbalizadas variou entre 11% e 63%, sendo que em oito das 11 sessões (12, 14, 15, 16, 19, 20, 21, 22) o desempenho foi superior a 40% e mostrou uma tendência crescente ao longo das sessões.

Nas três primeiras sessões da condição Leitura Simples, Lucas não verbalizou nenhuma das funções narrativas em seus recontos livres dos contos lidos. Nas sessões seguintes (Sessões 3 a 14), o número de funções narrativas verbalizadas variou entre 9% e 22%, com exceção da Sessão 5 (57%) e da Sessão 8 (43%). Ao iniciar a condição Leitura Dialógica, houve brusco aumento na porcentagem de funções verbalizadas que se mantiveram entre 33% e 57% ao longo das seis sessões seguintes, com exceção da Sessão 18 (13%), mas, a partir da Sessão 20, houve uma queda brusca para zero ou cerca de zero nas funções verbalizadas.

A Figura 4 apresenta a porcentagem de funções verbalizadas, por sessão, pelos participantes Rita, Lola e Lucas, a partir das funções verbalizadas no reconto livre, acrescidas das funções adicionais verbalizadas na tarefa de reconto dirigido. Como, na condição de reconto dirigido, a partir das perguntas formuladas, a criança frequentemente verbalizava funções que não haviam sido verbalizadas no reconto livre, a Figura 4 permite visualizar o percentual total de funções narrativas verbalizadas, incluindo as que ela já havia verbalizado no reconto livre mais as funções adicionais que tiverem sido evocadas com as perguntas do reconto dirigido.

Figura 4
Funções verbalizadas no reconto livre e dirigido pelos participantes Rita, Lola e Lucas, por sessão, nas condições Leitura Simples e Leitura Dialógica, com linhas de tendência (linhas horizontais contínuas) para cada condição.

Na condição Leitura Simples, a participante Rita não verbalizou qualquer função em quatro sessões (1, 2, 4 e 7) e verbalizou apenas 9% das funções na Sessão 6. Os dados apresentam dois picos nas Sessões 3 e 5, em que Rita verbalizou 67% e 57% das funções, respectivamente. Ao iniciar a condição Leitura Dialógica houve um brusco aumento na porcentagem de funções verbalizadas. Na primeira sessão de leitura dialógica Rita verbalizou 83% das funções e as demais sessões tenderam a se manter entre 50% e 100%.

Na condição Leitura Simples, o desempenho de Lola variou entre 17% e 50%, com exceção da Sessão 3 (67%) e da Sessão 8 (100%). Ao mudar a condição experimental para essa participante, observa-se um aumento brusco a partir da segunda sessão de leitura dialógica, em que as porcentagens variaram entre 64% e 100%, estabilizando-se em 100% nas quatro últimas sessões.

Nas três primeiras sessões da condição Leitura Simples, Lucas não verbalizou nenhuma das funções narrativas em seus recontos livres e dirigidos. Nas sessões seguintes, o número de funções narrativas verbalizadas variou entre 7% e 44%, com exceção da Sessão 5 (71%) e da Sessão 8 (100%). Já na primeira sessão da condição Leitura Dialógica, Lucas verbalizou 71% das funções e o restante das sessões variaram entre 30% e 100%, sendo que em seis sessões (14, 16, 17, 18, 19 e 22) a porcentagem de funções verbalizadas ultrapassou 50%.

Discussão

De maneira geral, a condição Leitura Dialógica favoreceu a compreensão dos contos lidos na medida em que produziu porcentagens mais elevadas de eventos e funções verbalizadas pelos participantes nas tarefas de reconto livre e dirigido. O efeito, todavia, foi mais expressivo para as verbalizações acerca das funções da narrativa do que para verbalizações sobre eventos, em consonância com o estudo de Flores, Pires e Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.).

Os dados também apontam que o reconto dirigido contribuiu significativamente para a porcentagem de funções verbalizadas, se comparados somente com o reconto livre (Figuras 3 e 4). A literatura aponta que o reconto dirigido é geralmente uma melhor medida para a compreensão do que o reconto livre, já que fazer perguntas específicas sobre a história podem revelar aspectos que a criança compreendeu e que não aparecem espontaneamente no reconto livre (Goldman, Varma, Sharp & the Cognition and Technology Group at Vanderbilt, 1999Goldman, S. R., Varma, K. O., Sharp, D. & the Cognition and Technology Group at Vanderbilt (1999). Children’s understanding of complex stories: Issues of representation and assessment. In S.R. Goldman, A.C. Graesser & P Van den Broek (Eds.), Narrative comprehension, causality, and coherence: Essays in honor of Tom Trabasso (pp. 135-158). Mahwah, NJ: Erlbaum.). O melhor desempenho dos participantes no reconto dirigido corrobora outras pesquisas que utilizaram recontos livres e dirigidos para avaliar o desempenho de crianças após a leitura de textos (e.g. Gazella & Stockman, 2003Gazella, J. & Stockman, I. J. (2003). Children’s story retelling under different modality and task conditions: implications for standardizing language sampling procedures. American Journal of Speech-Language Pathology, 12, 61-72.; Mira & Schwanenflugel, 2013Mira, W. A. & Schwanenflugel, P. J. (2013). The impact of reading expressiveness on the listening comprehension of storybooks by prekindergarten children. Language, Speech and Hearing Services at School, 44, 183-194.) e os dados sugerem que as perguntas realizadas no reconto dirigido constituíram ocasiões mais eficientes para verbalizações relacionadas às funções da narrativa do que a instrução geral para recontar a história empregada no reconto livre.

É possível que as diferenças nos desempenhos nos recontos livres e dirigidos possam ser atribuídas à programação da intervenção e às diferenças nas exigências entre os recontos. A leitura dialógica, da forma na qual foi operacionalizada neste estudo, modelava no comportamento das crianças verbalizações específicas sobre funções da narrativa. A mediadora fazia perguntas específicas sobre as funções da narrativa e reforçava respostas verbais das crianças sob controle dessas funções diferencialmente. No reconto livre, não bastava ser capaz de verbalizar acerca das funções narrativas para reconstruir a história coerentemente; eram exigidos outros repertórios que não foram especificamente modelados, como o comportamento de “narrar a história” (iniciar com “Era uma vez”, descrever o setting, uso de conectores etc.). Já no reconto dirigido, exigiam-se apenas verbalizações específicas sobre as funções da narrativa. Por ser uma tarefa menos exigente e mais próxima do que havia sido treinado na intervenção, é possível que o reconto dirigido tenha favorecido o desempenho dos participantes. Inclusive, é possível que a queda no desempenho de Lucas no reconto livre (Figura 3) nas últimas sessões de leitura dialógica possa ser atribuída a uma possível discriminação do participante acerca das diferenças entre os recontos, tendo ele aprendido a esperar pelo término do reconto livre para que o pesquisador iniciasse as perguntas dirigidas, o que facilitaria seu reconto. Nesse sentido, a queda no desempenho de Lucas nas últimas sessões de reconto livre não indicam necessariamente uma queda na compreensão, já que o participante continua atingindo porcentagens altas nessas mesmas sessões durante o reconto dirigido (Figura 4). Cabe ressaltar, ainda, que embora tenha favorecido o desempenho dos participantes, as porcentagens no reconto dirigido também tenderam a ser superiores na condição Leitura Dialógica do que na condição Leitura Simples.

As diferenças entre as condições experimentais para a medida de funções da narrativa, principalmente ao incluir as funções verbalizadas no reconto dirigido, replicam os efeitos encontrados para os participantes P1 e P2 da pesquisa de Flores, Pires e Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.). Os autores levantaram a hipótese de que a ausência de efeito para o participante P3 deveu-se principalmente à ordem das condições experimentais à qual foi submetido: A-B-A (leitura simples - leitura dialógica - leitura simples). Na interpretação dos autores, iniciar o romance com leitura simples pode ter prejudicado a compreensão do início da história para esse participante, influenciando na compreensão do restante do livro. Ao utilizar contos literários independentes entre si no lugar de um romance, o presente estudo sugere a interdependência dos capítulos como um dos fatores que possivelmente afetou o desempenho do participante P3 no estudo anterior.

Uma análise no desempenho dos participantes da presente pesquisa parece apontar que algumas sessões tenderam a favorecer o atingimento de funções independente da condição experimental. Na Sessão 8, por exemplo, todos os participantes apresentaram altas porcentagens de eventos e funções verbalizadas, mesmo Lola e Lucas, aos quais o conto foi lido de forma simples. Inclusive, a Sessão 8 foi a única sessão na condição Leitura Simples em que Lola e Lucas verbalizaram 100% das funções narrativas. As Sessões 3 e 5 também tenderam a apresentar uma maior porcentagem de eventos e funções verbalizadas pelos participantes.

Mesmo com todos os cuidados tomados na escolha dos contos (escolhendo-se contos escritos pelos mesmos autores, de tamanhos semelhantes, do mesmo gênero, excluindo-se contos “universalmente conhecidos” e pedindo para as crianças relatarem caso já conhecessem algum dos contos), alguns contos (e.g. Sessões 3, 5 e 8) aparentaram ser mais “fáceis” de serem compreendidos, o que pode ter influenciado nos resultados da presente pesquisa. Pearson (2009Pearson, P. D. (2009). The roots of reading comprehension instruction. Em Israel, S. E. & Duffy, G. G. (Eds.). Handbook of Research on Reading Comprehension (pp. 3-31). London: Routledge.) analisa que a compreensão leitora se dá na interseção entre três variáveis: o contexto em que a história é lida, o leitor e o texto. Se um leitor já é familiar a algum texto, isto é, se ele já leu ou ouviu a história no passado, ele tende a compreendê-la melhor (i.e., variável leitor ou de história de aprendizagem envolvendo textos semelhantes). Outros textos podem ser mais fáceis de serem compreendidos em razão das características do próprio texto, por terem um vocabulário ou estrutura mais simples, por exemplo (i.e.: variável texto). Utilizar textos infantojuvenis não adaptados, o que contribui para a validade ecológica do estudo, pode ter dificultado o controle sobre variáveis do texto e de experiência prévia dos participantes.

Possíveis diferenças entre os textos ou conhecimento prévio dos participantes, embora possam ter influenciado no desempenho em algumas sessões, não invalidam a afirmação de que a Leitura Dialógica favoreceu a compreensão dos textos pelos participantes do presente estudo, já que o delineamento empregado permite observar uma diferença sistemática entre as condições em momentos distintos para cada participante (ver Figura 4). Poder-se-ia argumentar, por exemplo, que os contos a partir de determinada sessão eram mais “fáceis” e que os resultados se devem a essa diferença entre textos, não entre condições experimentais. Se esse fosse o caso, contudo, seria observado um aumento estável no desempenho dos participantes a partir de determinada sessão, o que não aconteceu no presente estudo, já que aumentos estáveis tiveram a tendência a acompanhar o início da condição Leitura Dialógica, o que se deu em sessões distintas.

A metodologia empregada não permite verificar se os efeitos da leitura dialógica são reversíveis ou generalizáveis a novos textos lidos de forma não dialógica ou individualmente. Um programa de pesquisa interessante seria o de estudar a transferência do desempenho durante leituras dialógicas para leituras compartilhadas simples ou individuais. Na presente pesquisa, as perguntas abertas feitas pela mediadora exerceram função de prompt (Skinner, 1957Skinner, B. F. (1957). Verbal Behavior. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice Hall.), um estímulo suplementar que visa fortalecer uma relação de controle fraca ou inexistente. Uma vez que um prompt cumpre seu objetivo de evocar uma resposta-alvo em determinado contexto, a literatura recomenda que ele seja sistematicamente removido, o que resultaria em uma transferência do controle exercido pelo prompt para outros estímulos contextuais relevantes, um processo também conhecido como fading out (Touchette & Howard, 1984Touchette, P. E. & Howard, J. S. (1984). Errorless learning: reinforcement contingencies and stimulus control transfer in delayed prompting. Journal of Applied Behavior Analysis, 17(2), 175-188.). Com a participante Lola, por exemplo, cujo desempenho se estabilizou em 100% de funções verbalizadas nas últimas quatro sessões, seria possível remover os prompts gradativamente nas sessões seguintes e verificar se o desempenho da participante seria mantido.

Em suma, os dados corroboram que a leitura dialógica pode favorecer a compreensão das narrativas, como em Fontes-Cardoso e Martins (2004Fontes, M. J. O. & Cardoso-Martins, C. (2004). Efeitos da leitura de histórias no desenvolvimento da linguagem de crianças de nível sócio-econômico baixo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(1), 83-94.) e Flores, Pires e Souza (2014Flores, E. P., Pires, L. F. & Souza, C. B. A. (2014). Dialogic reading of a novel for children: effects on text comprehension. Paidéia, 24(58), 243-251.), contribuindo assim com a ainda escassa literatura que relaciona a leitura dialógica com ganhos em compreensão de narrativas. A maioria das pesquisas sobre leitura compartilhada interativa (e.g.: Fontes & Cardoso-Martins, 2004Fontes, M. J. O. & Cardoso-Martins, C. (2004). Efeitos da leitura de histórias no desenvolvimento da linguagem de crianças de nível sócio-econômico baixo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(1), 83-94.; Lever & Sénéchal, 2011Lever, R., & Sénéchal, M. (2011). Discussing stories: how a dialogic reading intervention improves kindergartners’ oral narrative construction. Journal of Experimental Child Psychology, 108(1), 1-24.; Whitehurst et al., 1988Whitehurst, G. J., Falco, F. L., Lonigan, C. J., Fischel, J. E., DeBaryshe, B. D., Valdez-Menchaca, M. C., & Caulfield, M. (1988). Accelerating language development through picture book reading. Developmental Pyschology, 24(4), 552-559.; Zevenbergen, Whitehurst & Zevenbergen, 2003Zevenbergen, A. A., Whitehurst, G. J., & Zevenbergen, J. A. (2003). Effects of shared-reading intervention on the inclusion of evaluative devices in narratives of children from low-income families. Journal of Applied Developmental Psychology, 24(1), 1-15.) teve como participantes crianças com idades entre 2 e 6 anos, usou livros ilustrados com pouco ou nenhum texto e não mediu efeitos sobre a compreensão da história, focando-se em outros aspectos (e.g., ganhos de vocabulário expressivo medido por testes padronizados). A presente pesquisa, ao encontrar efeitos positivos da leitura dialógica sobre a compreensão de textos em crianças com idades entre 8 e 13, sugere que a leitura dialógica pode promover não só ganhos em vocabulário mas também a compreensão da história, quando as intervenções feitas durante a leitura compartilhada (prompts, reforçamento diferencial e expansões das respostas da criança) são planejadas para facilitar o controle do comportamento verbal da criança por dimensões temáticas importantes da narrativa. Estudos futuros poderão verificar as contribuições específicas de cada um desses componentes e observar os efeitos sobre a compreensão de outros gêneros textuais.

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  • 1
    Apoio: CNPq.
  • Os autores agradecem a Raquel Freire Coelho pelo excelente trabalho desenvolvido nas mediações de leitura e às crianças, pela participação.
  • 3
    No presente artigo utilizou-se o neologismo “reconto” para designar a fase em que a criança recontava a história, em acordo com o verbete no Glossário CEALE de Termos de Alfabetização, Letramento e Escrita para Educadores (disponível em http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/).
  • 4
    Em respeito à privacidade dos participantes, todos os nomes mencionados são fictícios.
  • 5
    Também conhecidos como “contos de fadas” ou “contos de magia”, os contos maravilhosos se caracterizam por serem narrativas curtas em que o enredo se desenvolve a partir de uma motivação inicial e geralmente envolvem elementos mágicos ou de encantamento. Ver Propp (1928/2001Propp, V. I. (2001). Morfologia do conto maravilhoso (Obra original publicada em 1928). Brasília: Copymarket) para uma proposta de classificação e análise morfológica de contos maravilhosos.
  • 6
    Trabasso e Sperry (1985Trabasso, T. & Sperry, L. L. (1985). Causal relatedness and importance of story events. Journal of Memory and Language, 24, 595-611.) ressaltam que os eventos em uma narrativa são geralmente organizados em cadeias causais e mantêm uma relação lógica entre si. Se em uma história (1) a princesa beija o sapo, (2) o sapo transforma-se em príncipe e (3) os dois se casam, têm-se nesse trecho três eventos, em que o primeiro é condição necessária para o segundo, o segundo para o terceiro, e assim por diante.
  • 7
    Optou-se por apresentar os eventos verbalizados nos recontos livres e dirigidos de forma agregada, após a constatação de que as crianças dificilmente citavam eventos no reconto dirigido. No reconto dirigido eram feitas perguntas especificamente sobre as funções da narrativa e, pela própria exigência da tarefa, as crianças raramente citavam novos eventos nessa etapa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2016
  • Aceito
    13 Dez 2016
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