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A concepção restauradora da narrativa em Sartre

La conception restauratrice du récit chez Sartre

La concepción restauradora de la narrativa en Sartre

Resumo

A necessidade da transmissão se impõe a cada geração. Entretanto, o problema do narrar permanece e se renova a cada alvorecer: a fronteira entre os gêneros, os limites documentais, as escolhas narrativas, os narradores, os leitores. Tal temática poderia parecer estranha a Sartre, mas não só a situo no coração de seu pensamento, como reivindico seu potencial restaurador como instrumento atual de conhecimento. Este trabalho procura seguir os traços desse Sartre inventor de formas narrativas, mostrando que, desde La Nausée, não hesitou em colocar entre parênteses os gêneros para propor formas novas, mais coerentes com suas experiências e reflexões. Junto com os Carnets de la drôle de guerre, Les Mots e L'Idiot de la famille, o esforço empreendido em La Nausée mostra que do entrelaçamento fundamental entre vida e obra salta uma concepção restauradora da narrativa como mediadora do processo de transformação existencial.

Palavras-chave:
narrativa; Sartre; filosofia; vida; metamorfose existencial

Résumé

La nécessité de la transmission s'impose à chaque génération. Pourtant, le problème de la narration demeure en se renouvellant toujours: la frontière entre les genres, les limites d'informations, les choix narratifs, les narrateurs, les lecteurs. Ce sujet pourrait sembler étrange à Sartre, mais je le situe non seulement dans le coeur de sa pensée mais aussi je réclame son potentiel restaurateur comme instrument actuel de connaissance. Ce travail suit les pas de ce Sartre inventeur de formes narratrices, en montrant qu'il n'a pas hésité à mettre entre parenthèses les genres pour proposer des formes nouvelles, en cohérence avec ses expériences et réflexions. Avec les Carnets de la drôle de guerre, Les Mots et L'Idiot de la famille, l'effort présenté dans La Nausée montre que du lien fondamental entre vie et oeuvre est née une conception restauratrice de la narration en tant que médiatrice du procès de métamorphose existentielle.

Mots-clés:
recit; Sartre; philosophie; vie; metamorphose existentielle

Resumen

La necesidad de la transmisión se impone a cada generación. Sin embargo, el problema del narrar permanece y se renueva a cada amanecer: la frontera entre los géneros, los límites documentales, las elecciones narrativas, los narradores, los lectores. Tal temática podría parecer extraña a Sartre, pero no solamente la sitúo en el corazón de su pensamiento como reivindicó su potencial restaurador como instrumento actual de conocimiento. Este trabajo busca seguir los trazos de este Sartre inventor de formas narrativas, mostrando que desde La Nausée, no titubeó en colocar entre paréntesis los géneros para proponer formas nuevas, más coherentes con sus experiencias y reflexiones. Junto con los Carnets de la drôle de guerre, Les Mots y L'Idiot de la famille, el esfuerzo emprendido en La Nausée muestra que del entrelazamiento fundamental entre vida y obra salta una concepción restauradora de la narrativa como mediadora del proceso de transformación existencial.

Palabras clave:
narrativa; Sartre; filosofía; vida; metamorfosis existencial

Abstract

The need for transmission imposes itself in every generation. However, the issue of the narrative remains and is renewed at every dawn: the borders between genres, the documentary limits, the narrative choices, the narrators, the readers. Such theme might seem odd to Sartre, but not only do I situate it in the heart of his thinking, but also claim its restorative potential as a an instrument of current knowledge. This work seeks to follow the traces of this Sartre, inventor of narrative forms, showing that, since La Nausée, he did not hesitate to put into brackets the genres to propose new forms, more consistent with his experiences and reflections. Alongside the Carnets de la drôle de guerre, Les Mots and L'Idiot de la famille, the effort made in La Nausée shows that, from the fundamental intertwining of life and work, leaps a restorative conception of narrative as mediator of existential transformation.

Keywords:
narrative; Sartre; philosophy; life; existential metamorphosis

Introdução

O interesse em vincular textos tão diferentes e distantes no tempo me parece óbvio, mas talvez o esforço deste trabalho seja justamente mostrar o porquê. É que La Nausée, os Carnets, Les Mots e o Flaubert1 1 Os títulos, na sequência, em tradução para o português, seguidos do ano de sua publicação: A Náusea (1938); o título completo em francês é Carnets de la drôle de guerre, e foi traduzido como Diários de uma guerra estranha (1981); As Palavras (1964); no original L'Idiot de la famille, traduzido como O Idiota da Família (1971-2). representam, se pode dizer, o Sartre todo, desde os temas, as formas, os problemas, as saídas. E sobretudo porque são singulares no que tange à forma, são inovadores quanto ao modo como se apresentam: um romance que não é apenas romance, um diário íntimo que tem caráter público, uma autobiografia que tapeia a cronologia, uma biografia que é filosofia, romance e método.

Proponho, então, deslocar a reflexão acerca da forma (método), que parece se fixar inicialmente no massivo biográfico (Baudelaire, Mallarmé, Saint Genet2 2 Baudelaire (1947), Mallarmé: a lucidez e sua face obscura (1986), em tradução livre, e Saint Genet: ator e mártir (1952). e Flaubert), para esses quatro textos, nomeados por ora sem rodeios: um romance, um diário íntimo, uma autobiografia e uma biografia. Tal desvio nos coloca diante de diferentes gêneros (formas) e nos dá textos escritos em períodos diversos e cruciais da vida de Sartre. E sem cruzar a vida com a obra, tal como Sartre mesmo pretendeu, talvez não fosse possível encontrar o ponto no qual se relacionam o movimento vivo do homem-escritor e o texto-forma que dali resulta. E no caso que nos ocupa, cada um desses livros contém em si uma profunda e complexa mostra daquele que foi o esforço de Sartre enquanto escritor.

Do que se trata tal esforço reflexivo e que concepção de narrativa daí resulta é o que tentaremos mostrar.

Entre aventuras e desventuras

Sartre costumava dizer que o primeiro período da sua vida como jovem adulto havia sido uma fase de otimismo, o tempo em que era "mil Sócrates" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 355). Foram os anos da École3 3 École Normale Supérieure (ENS), onde cursou filosofia. , de 1921 a 1929, quando enfim tinha seus camarades com quem compartilhar, e quando não pensava senão em escrever: "eu queria escrever, isso não estava em questão" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 354). Acreditava que essa confiança vinha de sua infância, da ideia de que bastava trabalhar bem para alcançar a glória que lhe estava reservada: "Meu avô me educou na ilusão retrospectiva" (Sartre, 2010a______ (2010a). Carnets de la drôle de guerre. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 145-651). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 108). Em 1929, no entanto, deixava a École, um ambiente amigável e prazeroso, para viver na solidão de um professor provinciano: "bruscamente eu me tornava um Sócrates" (Sartre, 2010a______ (2010a). Carnets de la drôle de guerre. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 145-651). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 358).

É o começo de uma crise que durará anos, essa da passagem à idade adulta: "aos 32 anos eu me sentia velho como o mundo. Como estava longe esta vida de grande homem que eu me havia prometido" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 358). E se a "moral da salvação pela arte" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 360) guiava ainda seus passos, restava começar a duvidar dessa suposta salvação e daquilo que poderia ser a arte. Aos poucos e tardiamente descobria que "a vida era única" e que se "nos voltamos para nós mesmos, constatamos que somos responsáveis pelo que vivemos e que é irremediável" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 358). Eis aí os primeiros lampejos da noção de contingência que desenvolveria amplamente na sequência.

Sartre (2010b)______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard. sabia já que "uma vida [era] mole e pastosa, injustificável e contingente" (p. 361), mas sentia que os acontecimentos de sua vida seguiam o curso de uma história que já se conhecida o final: seria um grande homem. Era assim em uma biografia, julgava: "foi esta decepção que eu manifestei à propósito da aventura em La Nausée" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 363). Essa ideia de "grande vida" ou de "biografia" que Sartre trazia de sua infância assemelhava-se à ideia de carreira, como algo que se faria por si, bastava colocar em prática, uma vez que o destino já estava traçado. E o curioso é que "tudo isso, afirmava, eu jamais coloquei realmente em questão", quer dizer, "a fachada permaneceu" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 362), pois "eu estava penetrado até as entranhas do que eu chamava de ilusão biográfica, que consiste em crer que uma vida vivida pode parecer a uma vida narrada" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 363).

O drama de La Nausée certamente não estaria mal resumido com essa pequena história, até porque Sartre gostava de dizer que "era Roquentin" que "mostrava nele, sem condescendência, a trama de [sua] vida" (Sartre, 2010a______ (2010a). Carnets de la drôle de guerre. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 145-651). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 137). Ora, La Nausée foi o primeiro romance de Sartre, publicado apenas em 1938, depois de uma gestação de quase dez anos. O livro é, na verdade, o diário de Roquentin, mantido durante sua estada em Bouville, cidade interiorana onde realiza pesquisas para a biografia que está escrevendo sobre o marquês de Rollebon. Desde 1926 Sartre trabalhava no seu factum sur la contingence4 4 Panfleto sobre a contingência, em tradução livre. Ver também a nota 7. e refletia sobre sua teoria do "homem só" (Cohen-Solal, 1985Cohen-Solal, A. (1985). Sartre 1905-1980. Paris: Gallimard.). Mas será em 1933 que encontrará o antigo colega Raymond Aron vindo de Berlim, animado com as suas recentes descobertas filosóficas: a fenomenologia de Husserl. É o célebre encontro do coquetel de abricot! (Cohen-Solal, 1985Cohen-Solal, A. (1985). Sartre 1905-1980. Paris: Gallimard.). De pronto Sartre se viu fascinado, e no ano seguinte partiu para a Alemanha para uma temporada de estudos que, mesmo na volta a Paris, durou ainda alguns anos.

Os anos 30 serão os "anos filosóficos" e também o "ano de seu factum sur la contingence". Sartre estudará Husserl, escreverá filosofia (La Transcendance de l'Ego, L'imagination, La Psyché, L'imaginaire5 5 A Transcendência do Ego (1936); A Imaginação (1936); Esboço para uma teoria das emoções (1939); O Imaginário (1940). ) e não cansará de reescrever seu romance. Esse Sartre filósofo-literato, incapaz de escolher ou de abandonar qualquer desses domínios, é o Sartre que permanecerá. O esforço de não separar literatura e filosofia e todo trabalho em torno de tal questão vão fazer dele, desde já, um inventor de formas.

La Nausée, à época de sua publicação, foi recebido de modo unânime como "um evento literário de primeira importância", sendo comparado aos romances de Kafka. Está entre os textos contemporâneos mais estudados e entre os mais lidos pelo público em geral, e seu caráter original estaria tanto no conteúdo quanto na forma, uma vez que trouxe novo fôlego para o romance francês (Contat & Rybalka, 1981Contat, M., Rybalka, M. (1981). Notice la Nausée, 1978. In J. P. Sartre, Oeuvres Romanesques (pp. 1657-1678). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard.). Sartre mesmo seguiu preferindo La Nausée aos outros textos, pois costumava dizer que ali colocou o mais profundo de si ao mesmo tempo em que revelou "uma verdade inultrapassável sobre a condição do homem" (Contat & Rybalka, 1981Contat, M., Rybalka, M. (1981). Notice la Nausée, 1978. In J. P. Sartre, Oeuvres Romanesques (pp. 1657-1678). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 1669); quer dizer, para ele, a contingência foi "uma experiência situada na fronteira do conceito e do sentimento" (Contat & Rybalka, 1981Contat, M., Rybalka, M. (1981). Notice la Nausée, 1978. In J. P. Sartre, Oeuvres Romanesques (pp. 1657-1678). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 1658), e era preciso forjar meios de expressar tal verdade. Como a tradição não parecia comportar tal novidade, seria mister inventá-la. Assim, é como se La Nausée operasse uma "passagem ao concreto", uma vez que Sartre inscreveu a ideia filosófica da contingência no contexto histórico de sua própria experiência vivida (Contat & Rybalka, 1981Contat, M., Rybalka, M. (1981). Notice la Nausée, 1978. In J. P. Sartre, Oeuvres Romanesques (pp. 1657-1678). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard.). A transformação do factum6 6 Factum (factum sobre a contingência, no caso de La Nausée) era o nome dado por Sartre e seu amigo Nizan aos trabalhos literários que iniciavam e a respeito dos quais refletiam sobre a forma que poderiam tomar (Contat & Rybalka, 1981). em romance inaugura então um "gênero novo", um "misto de romance e de mediação filosófica" ou "a colocação em enigma romanesco de um problema filosófico" (Contat & Rybalka, 1981Contat, M., Rybalka, M. (1981). Notice la Nausée, 1978. In J. P. Sartre, Oeuvres Romanesques (pp. 1657-1678). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard.).

O tema da aventura retratado em La Nausée reenvia à ideia nutrida por Sartre na infância de "querer viver como em um romance". Nos livros, a vida seria sempre mais interessante e o final mais feliz, e mesmo quando o herói sofresse diversas mazelas, seria sempre recompensado com uma bela donzela que espantaria as amarguras e traria a bonança. De uma infância recheada de livros, o pequeno Poulou7 7 Apelido carinhoso que Sartre tinha em casa. cultivou de bom grado sua solidão, imaginando-se o herói de tais saborosas aventuras. Os romances ofereciam ao menino solitário um "modelo de vida", um conjunto de certezas, digamos, por oposição "à infinita dispersão do vivido" (Sartre, 1981______ (1981). La Nausée. In Sartre, Jean Paul. Oeuvres Romanesques (pp. 3-210). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 1761). Assim Roquentin se dará conta, ao final de sua trajetória, de que narrar a própria vida é uma armadilha, pois não existem "histórias verdadeiras"! "Os acontecimentos seguem numa direção e nós os narramos em sentido inverso" (Sartre, 1981______ (1981). La Nausée. In Sartre, Jean Paul. Oeuvres Romanesques (pp. 3-210). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 49).

Assim, com La Nausée Sartre parece denunciar a ilusão biográfica (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 363), a velha "confusão entre vida vivida e vida narrada" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 89): desejar viver a vida como se a narrasse seria o mesmo que querer vivê-la ao modo da aventura, do romance, da história que se conhece o final (impreterivelmente feliz), ou seja, uma mistificação. Assim, vida e narrativa estariam condenadas a lidar com uma distância impossível de transpor. Haveria, então, para Roquentin "um estranhamento fundamental entre a vida e a narração" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 88):

para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, ele vive rodeado de suas histórias e das histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse. Mas é preciso escolher: viver ou narrar. (Sartre, 1981______ (1981). La Nausée. In Sartre, Jean Paul. Oeuvres Romanesques (pp. 3-210). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 48)

É que Roquentin está embebido pela gratuidade da existência recém-descoberta, e parece manter um diário na tentativa de devolver à sua vida uma certa estabilidade que viria justamente da continuidade narrativa encontrada nos romances de aventura. A perda da ordem aparente de sua existência o leva à angústia da dispersão do vivido e ao resgate de um encadeamento necessário para o que lhe acontece. Até então, "o ser das coisas e do sujeito eram uma garantia absoluta, a tal ponto que se podia até dispensar-se de pensar nisso" (Leopoldo e Silva, 2004Leopoldo e Silva, F. (2004). Existência e contingência (comentário de A Náusea). In F. Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 81-112). São Paulo, SP: UNESP., p. 86). Mas eis que se dá conta de que ambos participam da existência e que o modo de ser da consciência exige ir além da pura contemplação. Roquentin percebe que terá que viver esse confronto com a existência, que não poderá furtar-se a ele, embora resista, pois tampouco a narrativa poderia redimi-lo. Talvez a obra de arte, reflete, talvez ela pudesse justificá-lo. Assim, embora a contestação aos "homens sérios" de Bouville se apresente de modo radical, a ilusão estética de que a obra de arte pudesse assegurar uma salvação metafísica permanece no horizonte de Roquentin, questão que pergunta, também, pelo papel da literatura.

Uma estranha experiência de guerra

A experiência da guerra viria então para "dividir [sua] vida em dois" (Sartre, 1976aSartre, J.P. (1976). Autoportrait a soixante-dix ans. In Sartre, J.P. Situations, X (pp. 133-226). Paris: Gallimard., p. 180). Quando, em um belo dia de setembro de 1939, recebeu "uma folha de mobilização", percebeu que era obrigado a ir onde não queria com pessoas que não conhecia: "foi isso que fez entrar o social na minha cabeça; eu compreendi bruscamente que eu era um ser social" (Sartre, 1976aSartre, J.P. (1976). Autoportrait a soixante-dix ans. In Sartre, J.P. Situations, X (pp. 133-226). Paris: Gallimard., p. 179), de modo que foi a guerra que operou a verdadeira "passagem da juventude à idade adulta" e "revelou certos aspectos de mim mesmo e do mundo"; foi durante esse período que "eu passei do individualismo e do indivíduo puro de antes da guerra ao social, ao socialismo". Ou, em outros termos, "antes, o que me levou a um livro como La Nausée, onde a relação com a sociedade era metafísica, e depois me levou lentamente à Critique de la raison dialectique" (Sartre, 1976aSartre, J.P. (1976). Autoportrait a soixante-dix ans. In Sartre, J.P. Situations, X (pp. 133-226). Paris: Gallimard., p. 180).

Desse intenso período de mudanças, talvez o mais radical de sua vida, resultou uma novidade no campo literário sartriano: a escrita de um diário íntimo. Até então Sartre jamais havia concebido tal modalidade e sequer havia escrito uma linha nessa direção. Julgava o gênero problemático e sem sentido. No entanto, durante os nove meses em que permanecerá como soldado, de setembro de 1930 a março de 1940, Sartre escreveu. Dedicava em média doze horas por dia à escrita, o que resultou em cerca de quinze cadernos, dos quais nos restam hoje apenas seis. E curiosamente, durante esses "meses absurdos e inúteis" Sartre se vê diante de "um primeiro trabalho forçado de voltar sobre si mesmo", uma espécie de "decifração". Os tais cadernos serão o lugar onde Sartre "conta[rá] a si mesmo sua própria vida para sondá-la e compreendê-la" (Cohen-Solal, 1985Cohen-Solal, A. (1985). Sartre 1905-1980. Paris: Gallimard., pp. 260-261).

Nos seis cadernos hoje publicados (I, III, V, XI, XII, XIV) somam-se mais de 500 páginas, o que nos daria uma ideia da amplitude desse movimento de escrita. Esses cadernos, no entanto, estariam longe de um diário íntimo no sentido convencional, uma vez que Sartre os comunicava constantemente (a Simone e outros amigos), numa espécie de "viver público": diferente de uma carta, pois não se dirigia a ninguém em particular, diferente de um diário, pois não se tratava de sua intimidade; como se seu pensamento se desenrolasse diante de um público escolhido e pudesse ainda, no futuro, vir a servir a um público maior (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil.).

A despeito de "uma certa censura", uma vez que Sartre vislumbrava publicá-los, a espontaneidade e a liberdade de tom surpreendem nos Carnets (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil.): "inteira gratuidade deste caderno, como do pensamento em geral. Eu escreverei amanhã sobre Paris. Mas por que? Sem razão, porque isso me diverte. E nada aqui tem razão; tudo é jogo. Sobretudo, eu não forço jamais meu pensamento" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 514). E seria justamente este tom - que carregava uma fluidez da linguagem, uma escrita livre, sem correção - que resultaria num texto incrivelmente imprevisível e coerente:

imprevisível pois nada está excluído a priori, a escrita assume tudo que se apresenta, não para registrar, mas para digerir, lhe colocar em comunicação com todo o resto. A coerência resulta do fato de que tudo se organiza em função de dois grandes eixos: a elaboração de um novo sistema filosófico, onde o conceito de néant, progressivamente elaborado, assume um papel essencial, e um autorretrato sistemático. Um vai-e-vem se estabelece entre a elaboração filosófica e a introspecção, como se o vivido de Sartre fosse seu "laboratório". (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil., p. 130)

Tal modo de conduzir o texto criaria, então, um efeito de autenticidade, como se não mais houvesse "diferença entre escrita e vida", em que a escrita seria a expressão da liberdade, uma vez que dirigida para o futuro. Não haveria releitura ou tentativa de rever o passado, mas sim um movimento, um "ato de pesquisa" que seria o importante em detrimento de seu resultado. É assim que o autorretrato e a autobiografia passam a se apresentar a Sartre como "meios", "exercícios de aplicação", e não como objetivos em si mesmos: "quanto mais os Carnets avançam, mais Sartre se lança a refletir acerca do método biográfico em si mesmo e trabalha para estruturar a imagem daquilo que ele crê ser seu projeto original" (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil., p. 133). Para Sartre, vimos, não se tratava de escrever sua intimidade, mas de "me tratar - não por interesse por mim, mas porque eu sou meu objeto imediato - sucessivamente e simultaneamente pelos diversos e mais recentes métodos de investigação ... a fim de ver o que podemos tirar concretamente destes métodos" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 191).

Aproximando as formas, se poderia comparar os Carnets e La Nausée no que tange ao uso satírico do diário íntimo: tanto para Roquentin quanto para Sartre trata-se, na verdade, da "narrativa de uma metamorfose existencial (um recolocar-se em questão, a busca de uma nova moral) alcançada num vai-e-vem entre o vivido cotidiano e a reflexão. Mas para o resto, tudo difere, se opõe (e se completa?)" nesses textos, uma vez que Roquentin seguirá no marasmo de Some of these days enquanto Sartre irá alegremente ao L'Être et le néant (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil., p. 133). E justamente porque nos Carnets "tudo é ao mesmo tempo e indissoluvelmente filosofia e autobiografia" (Simont, 2010Simont, J. (2010). Notice Carnets de la drôle de guerre. In: Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (1363-1390). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 1373), o dilema de Roquentin, próprio ao "homem só", vai perdendo sentido e dando lugar a um outro modo de pensar e praticar a narrativa.

E talvez a experiência dos Carnets suplante definitivamente qualquer "reticência a respeito da narrativa" que ainda pudesse restar. A guerra trouxe "um outro sentimento do tempo, uma outra ideia do acontecimento ou do futuro que o carrega com ele e uma outra maneira de se referir ao passado" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 89). No entanto, Sartre viveria ainda mais algum tempo "penetrado por um ideal de vida de grande homem" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 363), vida que tinha como único objetivo "produzir indefinidamente obras de arte" numa espécie de "salvação pela arte" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 360) à la Roquentin. Assim, os Carnets parecem testemunhar o enfraquecimento desse ideal, fazendo do "momento narrativo" uma espécie de "mediação" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 90). Mas tal processo terá que aguardar Les Mots para ser formalmente desmistificado. O longo processo, que começa em 1939, com a guerra, vai ainda durar, pelo menos, até 1956, quando da ruptura definitiva com os comunistas. As duas grandes crises vividas num espaço de dez anos vão exigir de Sartre mais dez anos até ganharem uma forma escrita (uma narrativa) capaz de aniquilar de vez o realismo8 8 Sartre dizia: "eu era realista na época", querendo mostrar que, para ele, até aquele momento, a realidade se limitava a ser o ele que via, nada além, numa espécie de mundo dado, imutável, sem transcendência (Sartre, 2010b, pp. 363-365). encarnado na ideia de fama póstuma, própria à vida dos grandes homens: "eu via então que a busca da salvação [pela escrita] era a procura de uma via de acesso ao absoluto" (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 365).

A novidade quanto ao modo de entender e praticar a narrativa de vida começaria, assim, com os Carnets. Aos poucos, aquilo que até então Sartre "denunciava como ilusão biográfica é olhado como um motor existencial, como se uma vida vivida devesse de fato parecer a uma vida narrada" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 90). Como se o ato mesmo de escrever, numa espécie de "vai-e-vem entre o vivido cotidiano e a reflexão" fosse um instrumento para "pensar contra si mesmo", como se um diário pudesse ser "a narrativa de uma metamorfose existencial" (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil., p. 133).

Quando Jean9 9 Sartre deu à primeira versão de Les Mots o nome de Jean sans terre (Jean sem terra). recupera sua terra

A passagem dos Carnets para Les Mots enquanto trabalho autobiográfico é especialmente interessante. Mais de vinte anos de distância resultaram em dois textos absolutamente heterogêneos: o primeiro funcionou como um "diário de pesquisa autêntico" dirigido para o futuro, e o segundo constituiu-se numa "narrativa bem trabalhada" à luz de uma verdade já adquirida (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil., p. 134); quer dizer, enquanto Les Mots é "uma narrativa autobiográfica estruturada dialeticamente, os Carnets articulam todos os gêneros no interior da forma diário" (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil., p. 135).

Nos Carnets temos o Sartre filósofo elaborando seu sistema, o romancista que esboça a vida de seus amigos-soldados, o biógrafo que, ocupado com o retrato de Guilhaume II, tece os fundamentos de seu método, o autobiógrafo que reúne suas memórias de infância, procura relações entre suas condutas atuais e acompanha as metamorfoses de seu projeto, o crítico e teórico que comenta suas leituras (Lejeune, 1986Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil.), entre outros papéis que esse Sartre múltiplo começa a encarnar para não poder mais despir-se. E em Les Mots temos o Sartre maduro travestido na pele do Sartre menino para contar, num lance, sua infância até 1916.

O projeto de uma autobiografia se inicia em meados da década de 50 para ser concluído apenas no início dos anos 60. As interrupções que resultam em diferentes versões desse texto parecem especialmente significativas. Quando, em 1963, Sartre decide retomar seu Jean sans terre (primeira versão de Les Mots) para transfigurá-lo na versão que conhecemos, já detém todo um instrumental teórico e metodológico capaz de fazer desse texto um fenômeno estético e crítico. Entre 1954 e 1963 não foram poucas as idas e vindas do filósofo. Entre aproximação e ruptura com o partido comunista, escreve Questions de méthode e a Critique de la raison dialectique, obras fundantes seja das experiências passadas, seja dos esforços futuros. A mudança radical sofrida no projeto Les Mots se faz sentir justamente a partir de tais empreitadas filosóficas e pessoais. Não acreditava mais na ação enquanto saída mágica e tampouco na escrita como salvação. Nem política, nem literatura, eis a história que o pequeno Poulou deveria narrar, sem medo, em Les Mots. Era como se precisasse mostrar por que, apesar dos bolsos vazios, continuaria a escrever.

Em 1964, então, vem a público uma narrativa estruturada, um texto sem par, provavelmente "a obra mais totalizante de Sartre" (Lejeune, 1996Lejeune, P. (1996). Le pacte autobiographique. Paris: Seuil., p. 241), muito embora "não totalizante [no sentido estrito], porque ela trata apenas dos onze ou doze primeiros anos da vida de Sartre". O texto é uma espécie de "olhar hipercrítico de um homem maduro acerca do monstruoso menino prodígio que ele foi" (Simont, 2010Simont, J. (2010). Notice Carnets de la drôle de guerre. In: Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (1363-1390). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., pp. 1373-1374), e acabaria por se configurar, de fato, na forma que Sartre buscou desenvolver e que acabou por renovar o campo da autobiografia (e da biografia!), uma vez que fundada em uma nova antropologia (Lejeune, 1996Lejeune, P. (1996). Le pacte autobiographique. Paris: Seuil., p. 243).

O Sartre de Les Mots é esse que se esforça para libertar-se e diz ter perdido todas as ilusões literárias: "que a literatura tenha um valor absoluto, que ela possa salvar um homem ou simplesmente mudar os homens" (Sartre, 1972a______ (1972). Les écrivains en personne. In Sartre, J.P. Situations, IX (pp. 9-39). Paris: Gallimard., p. 38). E diria, mais tarde:

se eu não publiquei esta autobiografia antes e na sua forma mais radical, é que eu a julgava excessiva ... aliás, em meio a isso, eu me dei conta de que a ação também tem suas dificuldades e que podemos ser conduzidos por uma neurose.

não há salvação em parte alguma. A ideia de salvação implica a ideia de um absoluto. Durante quarenta anos eu estive mobilizado por um absoluto, a neurose. O absoluto quebrou-se. Restam tarefas, incontáveis, entre as quais a literatura não é de modo algum privilegiada. (Sartre, 2010c______ (2010c). Jean-Paul Sartre s'explique sur Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 1253-1258). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 1255)

Portanto,

depois de dez anos eu sou um homem que acorda curado de uma longa, amarga e doce loucura. Afinal jamais acreditei ser o feliz proprietário de um "talento": minha única tarefa era a de me salvar - nada nas mãos, nada nos bolsos - pelo trabalho e pela fé. (Sartre, 2010a______ (2010a). Carnets de la drôle de guerre. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 145-651). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 138)

Daí resulta "uma estrutura complexa, simultaneamente cronológica, temática e dialética" (Lejeune, 1980Lejeune, P. (1980). Je est un autre: l'autobiographie, de la littérature aux médias. Paris: Seuil., p. 180). E talvez se possa dizer que, para Sartre, a "autobiografia não tem nenhum interesse se ela não for invenção de uma forma, se ela não for literatura", se ela não for um trabalho de estilo. Ora, o estilo é "uma maneira de dizer três ou quatro coisas em uma" ou de "dar a cada frase sentidos múltiplos e superpostos"; é ainda "a maneira literária de expor uma ideia ou uma realidade, o que exige necessariamente correções". É que "em literatura, que tem sempre, de certo modo, a ver com o vécu, nada do que eu digo é totalmente expresso pelo que eu digo, uma mesma realidade pode se exprimir de um número de maneiras praticamente infinito" (Sartre, 1976b______(1976). Sur L'Idiot de la famille. In Sartre, J.P. Situations, X (pp. 91-115). Paris: Gallimard., pp. 136-138). É nesse sentido, então, que "não escrevemos para dizer o que sabemos, mas para nos aproximar o máximo do que não sabemos, para explorar as contradições que nos constituem, manifestar em uma construção complexa de linguagem a verdade como falta que nos funda", pois "um belo texto autobiográfico não é aquele que me traz um saber sobre um outro, mas aquele que provoca em mim o desejo de dar uma forma a minha própria vida e que me sugere os meios" (Lejeune, 1980Lejeune, P. (1980). Je est un autre: l'autobiographie, de la littérature aux médias. Paris: Seuil., pp. 174-175).

Les Mots parece então consolidar esse gênero original que mistura filosofia e vida numa espécie de "conquista de vida" e "invenção conceitual" (Simont, 2010Simont, J. (2010). Notice Carnets de la drôle de guerre. In: Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (1363-1390). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., p. 1375), e deixa ainda mais claro que "o retorno a si" pretende sempre uma espécie de distanciamento a fim de alcançar um olhar crítico sobre si mesmo. Essa "tomada de distância" conduz o autorretrato sartriano a revelar aquilo que o retratado "não é mais", o que traz o néant para o centro, não só como uma premissa filosófica, mas como o modo mesmo de relação consigo (Simont, 2010Simont, J. (2010). Notice Carnets de la drôle de guerre. In: Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (1363-1390). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard.). É como se essa conquista do néant em toda a sua complexidade ocorrida ao longo da guerra estranha e através dos Carnets tivesse levado Sartre, primeiro, à elaboração de um sistema filosófico (que tem em L'Être et le néant a sua concretização) e, segundo, a um modo de pensar e praticar a autobiografia e, consequentemente, a biografia que o fariam escrever esses grandes monumentos: Les Mots e o Flaubert.

É claro que, como todo projeto de longo curso, esses textos também se apresentam como parte de um processo em meio ao qual temos as demais biografias escritas nos anos 40 e 50. Primeiro Baudelaire, depois Mallarmé e então Saint Genet, que parecem operar numa dupla perspectiva: contar a história desses escritores e tratar de certos temas como, por exemplo, como alguém se torna escritor, como um filho abandonado pela mãe sobrevive, como uma época condiciona a tarefa de escrever; e aplicar certas noções filosóficas desenvolvidas em obras teóricas como, por exemplo, as noções de liberdade e de projeto, uma vez que tais reflexões parecem ter encontrado "um lugar privilegiado de expressão nas biografias" (Cabestan, 2013Cabestan, P. (2013). Les biographies existentielles. In Nuit Sartre (Documento sonoro: 15m11s). École Normale Supérieure, Paris, França.). Mas o que afinal as biografias vêm responder? Em certa medida, a narrativa da vida de outro, tanto quanto a prática autobiográfica, parece calhar com o esforço de desenvolver uma espécie de "concepção reparadora da narrativa", ao qual Sartre se lança desde La Nausée e contra si mesmo (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 88). Muitos estudiosos estão de acordo com a ideia de ler a biografia como autobiografia10 10 Cabestan (2013); Chabot (2012); Clément (2013); Contat e Rybalka (1981); Flynn (2013); Macé, (2007); Pacaly, (1980). na obra de Sartre, pois esta assumiria um caráter autobiográfico na medida em que se somaria ao esforço do filósofo que desejava ver aplicadas suas noções e do homem que, por meio da história de outros, tenta remontar a cena do nascimento de um escritor ou o que leva um homem a escrever.

É do imaginário que ele quer falar

Sartre costumava dizer que maio de 1968 chegou um pouco tarde para ele. Talvez estivesse mesmo velho: tinha 63 anos e viveria até os 75. De início, nada compreendeu do que se passou na França naquele período. Foi a Sorbonne e falou com os estudantes, mas sem entender e nem se fazer entender: o tal diálogo de surdos. Pouco depois, tomadas as distâncias, percebeu o tamanho do problema: tratava-se de abolir enfim um certo tipo de intelectual que seria uma super consciência de seu tempo e que teria uma palavra super potente acerca dos acontecimentos. De agora em diante, todos queriam falar, todos sabiam coisas, não precisavam mais de porta-vozes, mas de novos valores. Mais uma vez caíam os privilégios e tal se dava no cerne da academia, no núcleo da produção do saber. A autoridade de professores e intelectuais estava definitivamente em cheque. E Sartre, que se considerava até então um intellectuel classique, colocou-se contra a parede, ou, em outros termos, lançou-se à quebra do último dos absolutos.

Os anos pesavam já, e tinha a saúde debilitada. Tinha o trabalho sobre Gustave Flaubert e nenhum outro projeto. Tinha também uma imagem controversa nas diferentes esferas da sociedade francesa e cada vez menos interessados em sua obra entre os jovens. Certo que se perguntou pelo sentido de escrever um livro sobre Flaubert naquele momento, um livro como aquele. Assim o fizeram seus novos amigos maos, que consideravam a empreitada despropositada (On a raison de se révolter, 1974). Mas já somava pelo menos catorze anos de trabalho, e pensava não poder mais abandoná-lo, ao contrário, sentia que "precisava terminá-lo" (Sartre, 1976b______(1976). Sur L'Idiot de la famille. In Sartre, J.P. Situations, X (pp. 91-115). Paris: Gallimard., p. 151); era mais do que deixar de lado algo já iniciado há tempos, era algo como propor um sentido último à tarefa de uma vida.

Seria possível perguntar, então, se o Flaubert seria, em alguma medida, uma peça do projeto autobiográfico de Sartre. Claro que falar em "projeto autobiográfico" aqui exige supor, com Lejeune (1986)Lejeune, P. (1986). Moi aussi. Paris: Seuil., que a produção sartriana nesse quesito tenha acabado por reunir uma série de textos, formando uma espécie de "ateliê". Entre os textos que formariam esse "canteiro de obras" estariam uma carta escrita em 1926 a Simone de Jolivet, os Carnets, Les Mots, o filme Sartre par lui-même e as diversas entrevistas concedidas a diferentes interlocutores a partir de 1973. Seria preciso ainda guardar as devidas ressalvas quanto ao estatuto de cada texto (carta, romance, diário, entrevista audiovisual, entrevista transcrita) e aquilo que declarou o próprio autor, que reconhecia apenas em Les Mots o genuíno trabalho autobiográfico.

Tanto o Flaubert como Les Mots buscaram "responder à mesma questão: como um homem se torna alguém que escreve, alguém que quer falar do imaginário?" (Sartre, 1972b______ (1972). Sartre par Sartre. In Sartre, J.P. Situations, IX (pp. 99-134). Paris: Gallimard., p. 133-134); e uma vez que "a escrita ... é um momento de verdade porque ela é prática" (Sartre, 1988______ (1988). L'Idiot de la famille (3v.). Paris: Gallimard., pp. 1608), tal homem é alguém que opera nos diferentes planos, seja imaginário, seja real, pois assim exige sua atividade. Das dificuldades de pensar "tal homem que escolhe falar do imaginário" e que precisaria, portanto, de "uma certa dose de ficção", Sartre findou por conceber seu estudo sobre Gustave Flaubert como um romance: "eu gostaria mesmo que as pessoas digam que é um verdadeiro romance. Eu tento, neste livro, atingir um certo nível de compreensão de Flaubert a partir de hipóteses. ... minhas hipóteses me conduzem então a inventar em parte meu personagem" (Sartre, 1972b______ (1972). Sartre par Sartre. In Sartre, J.P. Situations, IX (pp. 99-134). Paris: Gallimard., p. 123). Para ele, se tratava da "verdade de Flaubert", e tentou atingi-la com sua imaginação e com sua razão, sobretudo porque pensava que "a imaginação é fornecedora de verdades no nível das estruturas" (Sicard, 1989Sicard, M. (1989). Essais sur Sartre : Entretiens avec Sartre (1975-1979). Paris: Galilée., p. 149). É que, para Sartre, o trabalho de "restituir a vida de um homem" supunha "uma relação particular com a filosofia": apenas expor as teorias "na medida em que elas pudessem ser úteis para compreender este homem" (Sicard, 1989Sicard, M. (1989). Essais sur Sartre : Entretiens avec Sartre (1975-1979). Paris: Galilée., p. 152). Assim, seu estudo, se fosse lido como um romance, ganharia em complexidade:

eu gostaria ... que o lessem pensando que é a verdade, que é um romance verdadeiro. No conjunto deste livro, está Flaubert tal como eu o imagino, mas com métodos que me parecem rigorosos, eu penso ao mesmo tempo que é Flaubert tal qual ele é, tal qual ele foi. Neste estudo, eu precisei de imaginação a todo instante. (Sartre, 1976b______(1976). Sur L'Idiot de la famille. In Sartre, J.P. Situations, X (pp. 91-115). Paris: Gallimard., p. 94)

Trata-se, em suma, de uma recuperação da noção de imaginário, ou talvez uma espécie de "liberação do imaginário" que seria, no fim das contas, um esforço de trazer à luz "uma verdade que há no imaginário mesmo". Assim, sua imaginação desenvolveu-se na medida em que tinha textos e "reflexões bastante numerosas para dar à imaginação um valor de verdade". É que "este imaginário que tem função de verdade" (Sicard, 1989Sicard, M. (1989). Essais sur Sartre : Entretiens avec Sartre (1975-1979). Paris: Galilée., p. 148) parece estar no coração mesmo da metodologia sartriana.

O caso Flaubert é, então, singular enquanto obra biográfica, pois vai aglutinar o pico do trabalho teórico com o trabalho sobre si mesmo. E se considerarmos que a narrativa assume o estatuto de mediação, salta a necessidade do romance. Assim, o "Flaubert pode ser lido como a retomada dessa crença na convergência da vida vivida e da vida narrada" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 91), e se considerarmos "os elementos de uma vida como ... uma questão de sentido, de interpretação recorrente, de totalização permanente" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p.80.), então resta

o problema da "integração" dos fatos, a relação entre a encarnação necessária dos acontecimentos e uma generalidade que trabalha para digeri-los, enquanto ela se encontra, a cada instante, potencialmente ultrapassada pelo que Sartre chama "a opacidade" do indivíduo e a "verdade" destes acontecimentos. (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 81)

A questão metodológica engendrada pelo Flaubert é bem aquela do "conflito entre o sentido e a sucessão" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 87). Ora, se uma vida "não pode se impedir de viver imaginariamente" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 91) e a "totalização é a norma do imaginário" (Sartre, 1988______ (1988). L'Idiot de la famille (3v.). Paris: Gallimard., p. 971), estamos diante do "romanesco, ao mesmo tempo na sua falsidade e na sua força de significação" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 91). É que "o romanesco tão desejado no Flaubert, será a narratividade reconciliada com ... a significação" (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 91). Em suma,

a escritura do Flaubert qualificada de romance verdadeiro dialetiza talvez, ... esta polaridade entre vida/narração, encarnação/integração que La Nausée tratou como trágica; é porque o massivo biográfico constitui também o exemplo mais feliz de um Sartre escritor, prosador "em estilo" e sem vigilância, afiliado sem constrangimento à literatura de romances naquilo que ela tem de mais projetivo. (Macé, 2007Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91., p. 91)

O problema do narrar

Repensar o problema do narrar, de um modo geral, a partir do esforço de Sartre ao longo de sua vida e obra exige, ainda, que façamos um recuo. Para apreendermos e articularmos os diferentes textos aqui apresentados na sua relação com o problema do narrar é preciso não só que relancemos a questão "como narrar uma existência que é néant?", mas também que explicitemos seus desdobramentos.

Ora, se a existência é néant, o para-si é esse ser que enfrenta sempre uma falta de ser constitutiva, é esse ser que está sempre à distância de si, como já tendo sido (passado) e como não sendo ainda (futuro). Assim, ele se projeta na tentativa de "cobrir" a distância que o separa de si mesmo a fim de realizar seu si. Tarefa destinada ao fracasso, uma vez que o si do para-si está sempre por fazer, é perpétuo inacabamento. Tal cenário nos conduz a recolocarmos o problema da temporalidade.

Numa perspectiva sintética, o tempo deve ser apreendido como temporalidade, ou seja, as diferentes dimensões temporais devidamente articuladas no modo pluridimensional. Em outros termos, "só tem passado um ser em cujo ser o seu ser passado está em questão, também só tem futuro um ser que só pode revelar-se a si mesmo como projeto, como aquilo que ainda não é" (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 116). E uma vez que o passado é facticidade ultrapassada, o futuro é a falta e o presente é o processo de escape a si, o para-si será permanentemente essa fuga em direção ao que ele ainda não é. E

esse futuro que não tenho certeza de ser já confere sentido ao meu presente, porque, na medida em que sou sempre adiante de mim mesmo, é o meu ser futuro que dá densidade ao presente em si mesmo fugaz e efêmero. (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 117)

Tem-se então um paradoxo:

o sentido do que eu sou é a minha liberdade porque meu ser consiste em transcender-me para ser; [...] pois entre o que sou e o que eu serei está o nada constitutivo de minha consciência a partir do qual escolherei o que vier a ser. (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 117)

Da diáspora própria à contradição entre dispersão e coesão, tem-se que a temporalidade é ao mesmo tempo "força dissolvente" e "ato unificador". Caberia então perguntar: "é possível submeter essa multiplicidade evanescente a um procedimento totalizador? Em outras palavras, é possível contar uma história?" (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 121).

A rigor, "toda narração de si está presa a essa insuficiência", que é aquela do homem não poder jamais coincidir consigo mesmo, ou seja, dizer que "o para-si se temporaliza" é dizer também que "sua totalidade é inapreensível". Mas como então se poderia falar em totalização de uma história, de uma vida? Eis ao que Sartre se dedicou incansavelmente ao propor uma intensa e duradoura reflexão sobre as formas narrativas e sua consequente invenção de novas modalidades de escrita. É que, para ele, "o tema da prosa romanesca é essa totalidade inapreensível", uma vez que o romance faria "dessa impossibilidade a própria constituição de sua possibilidade" (Leopoldo & Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 121-122). Sartre parte da ideia de que a concepção de homem embutida nas narrativas tradicionais precisava ser revista antes mesmo de se pensar acerca dos modos de narrar. Seria preciso renunciar "à narrativa numa só dimensão temporal" para enfrentar "a temporalização pluridimensional, aquela em que a totalização é impossível, mas pela qual se consegue uma revelação indireta que é mais totalizadora que o realismo unidimensional" (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 122).

Assim, ao levar em conta a pluridimensionalidade temporal, a narrativa deve articular os diversos níveis de temporalidade que são vividos de forma inseparável. Essa diversidade e essa inseparabilidade indicam justamente

a impossibilidade da totalização, a partir da qual, entretanto, o romance nasce como procedimento totalizador. Pois a temporalização significa um processo de totalização que nunca se completa, pela razão de que nenhuma das dimensões temporais da existência pode receber o estatuto de ser. (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 123)

Pode-se dizer, então, que o objetivo do romance é realizar romanescamente essa totalidade não completada, assim como a existência se realiza como totalidade irrealizada. Ou ainda, "tanto é impossível contar uma história quanto é a partir dessa impossibilidade que a narrativa romanesca se constrói" (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 124).

Uma vez renunciada a linha contínua que encadearia os acontecimentos, a narrativa se desenhará

por oscilações e desvios ao passar pelos níveis temporais de significação; perde-se na evanescência do passado, sendo impossível estabelecer o limite exato entre a claridade e as trevas; projeta-se na indefinição do futuro, que não é prolongamento de ser, mas desejo e expectativa engendrados pela falta que me constitui no presente. (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 124)

Desse modo, uma reflexão metodológica profunda quanto ao modo de contar uma história implicaria, necessariamente, em uma nova antropologia ou em certa maneira de conceber a realidade humana.

A partir de então, os diferentes esforços empreendidos por Sartre desde La Nausée até o Flaubert se fazem compreender num movimento único. Ao mesmo tempo que praticou diferentes gêneros, colocou-os em questão no momento mesmo em que os escrevia, como se a própria escrita engendrasse sua questão, seu modo de ser, sua forma, sem que se pudesse separar aquele que escreve daquilo que escreve. Longe de pretender dar conta da totalidade de uma vida, como sugeriram certos críticos do Flaubert, Sartre se propôs, via romance verdadeiro, a dar testemunho da concepção sintética da existência; expressou por aí não só a função da literatura como o drama próprio ao para-si. É a esse paradoxo que a sua narrativa pretende ser fiel: restituir "o misto de absoluto (liberdade) e de relativo (situação) pelo qual a realidade (humana) se apresenta" (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 124).

Mas há mais: "o passado foi vivido no ritmo das possibilidades oferecidas e assumidas, mas o futuro do presente abre uma possibilidade que interrompe esse ritmo" (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 128). Eis a ruptura que abre o campo de possíveis, uma vez que indica toda uma esfera não empreendida do que foi vivido. É nossa chance de reapreender o passado, "embora irremediavelmente vivido" (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 128). E isso que não apreendemos

é a liberdade vivida como limite, esse limite que, atingido em toda a sua significação, interrompe, rompe a continuidade das histórias pessoais, e nos mobiliza em função de uma possibilidade que não soubemos ou quisemos considerar. É esse limite que traz o monopólio do futuro que se agiganta e projeta sua sombra sobre o presente e principalmente sobre o passado. (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 128)

É esse o meio pelo qual o homem pode retomar seu passado, sacudir sua cristalização e reabrir seu significado. Assim,

ter-de exercer a liberdade e apreender-se nesse processo é então a única objetividade possível. A ordem humana desordena qualquer pretensão "científica" de abordá-la, porque nenhum ato pelo qual a existência se articula possui a suficiência necessária para se constituir como verdade, no sentido de um acordo estável do ser consigo mesmo. (Leopoldo e Silva, 2004______ (2004). Temporalidade e romance. In Leopoldo e Silva, F. Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutórios (pp. 113-134). São Paulo, SP: UNESP., p. 130)

Do Flaubert como momento último de tais reflexões, Sartre lançou-se, desde La Nausée, mas em especial nos Carnets e em Les Mots, a desenvolver e a exercitar um certo modo de narrar compatível com o aparato filosófico que elaborava. E a chave talvez estivesse mesmo na imbricação entre vida e filosofia, uma vez que suas autobiografias se apresentam como o lugar de aplicação do método ou dessa nova maneira de contar uma história. As primeiras biografias e essa última sobre Gustave Flaubert, as autobiografias e uns tantos ensaios filosóficos cruciais foram todos instrumentos para o trabalho biográfico-romanesco do L'Idiot.

A questão "como contar uma história?" é então respondida pelo Sartre escritor. É via romance que ele faz enfim a ponte entre vida vivida e vida narrada, aquela que ligaria a verdade de uma à outra. E o problema da narratividade no Flaubert será o mesmo de Les Mots (Sartre, 1976b______(1976). Sur L'Idiot de la famille. In Sartre, J.P. Situations, X (pp. 91-115). Paris: Gallimard., p. 104), inventar uma nova forma (Lejeune, 1996Lejeune, P. (1996). Le pacte autobiographique. Paris: Seuil., p. 200) capaz de conciliar filosofia e literatura, capaz de conciliar a experiência própria à existência como néant e o esforço de pensá-la. Pois vida e narrativa não são, não podem ser contemporâneos, mas dizer a vida é tão essencial quanto vivê-la.

Referências

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  • Simont, J. (2010). Notice Carnets de la drôle de guerre. In: Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (1363-1390). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard.
  • 1
    Os títulos, na sequência, em tradução para o português, seguidos do ano de sua publicação: A Náusea (1938); o título completo em francês é Carnets de la drôle de guerre, e foi traduzido como Diários de uma guerra estranha (1981); As Palavras (1964); no original L'Idiot de la famille, traduzido como O Idiota da Família (1971-2).
  • 2
    Baudelaire (1947), Mallarmé: a lucidez e sua face obscura (1986), em tradução livre, e Saint Genet: ator e mártir (1952).
  • 3
    École Normale Supérieure (ENS), onde cursou filosofia.
  • 4
    Panfleto sobre a contingência, em tradução livre. Ver também a nota 7.
  • 5
    A Transcendência do Ego (1936); A Imaginação (1936); Esboço para uma teoria das emoções (1939); O Imaginário (1940).
  • 6
    Factum (factum sobre a contingência, no caso de La Nausée) era o nome dado por Sartre e seu amigo Nizan aos trabalhos literários que iniciavam e a respeito dos quais refletiam sobre a forma que poderiam tomar (Contat & Rybalka, 1981Contat, M., Rybalka, M. (1981). Notice la Nausée, 1978. In J. P. Sartre, Oeuvres Romanesques (pp. 1657-1678). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard.).
  • 7
    Apelido carinhoso que Sartre tinha em casa.
  • 8
    Sartre dizia: "eu era realista na época", querendo mostrar que, para ele, até aquele momento, a realidade se limitava a ser o ele que via, nada além, numa espécie de mundo dado, imutável, sem transcendência (Sartre, 2010b______ (2010b). Les Mots. In Sartre, J.P. Les Mots et autres écrits autobiographiques (pp. 3-139) Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard., pp. 363-365).
  • 9
    Sartre deu à primeira versão de Les Mots o nome de Jean sans terre (Jean sem terra).
  • 10
    Cabestan (2013)Cabestan, P. (2013). Les biographies existentielles. In Nuit Sartre (Documento sonoro: 15m11s). École Normale Supérieure, Paris, França.; Chabot (2012)Chabot, A. (2012). Sartre et le Père. Paris: Champion.; Clément (2013)Clément, B. (2013). Les biographies existentielles. In Nuit Sartre (Documento sonoro: 29m04s). École Normale Supérieure, Paris, França.; Contat e Rybalka (1981)Contat, M., Rybalka, M. (1981). Notice la Nausée, 1978. In J. P. Sartre, Oeuvres Romanesques (pp. 1657-1678). Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard.; Flynn (2013)Flynn, T. (2013). Les biographies existentielles. In Nuit Sartre (Documento sonoro: 18m27s). École Normale Supérieure, Paris, França.; Macé, (2007)Macé, M. (2007). Penser par cas: pratiques de l'exemple et narration dans L'Idiot de la famille. Recherches & Travaux, " L'Idiot de la famille de Jean-Paul Sartre ", 71, 79-91.; Pacaly, (1980)Pacaly, J. (1980) Sartre au miroir. Paris: Librairie Klincksieck..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2015
  • Aceito
    16 Jun 2015
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