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Caracterização de polimorfismo em fármacos por ressonância magnética nuclear no estado sólido

Characterization of polymorphism in pharmaceuticals by solid state nuclear magnetic resonance

Resumo

This review aims to present some features about solid state NMR and its application in the field of pharmaceutical chemistry, for the characterization of polymorphism of pharmaceutical molecules.

polymorphism; 13C NMR CP/MAS; drug


polymorphism; 13C NMR CP/MAS; drug

REVISÃO

Caracterização de polimorfismo em fármacos por ressonância magnética nuclear no estado sólido

Mônica Regina Marques Palermo de Aguiara a mmarques@uerj.br

Departamento de Química Orgânica - Instituto de Química - Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Rua São Francisco Xavier, 524 - PHLC - 20550-033 - Rio de Janeiro - RJ

André Luís Gemal e Rosane Aguiar da Silva San Gilb a mmarques@uerj.br ,*

Departamento de Química Orgânica - Instituto de Química - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Centro de Tecnologia - Bloco A - Ilha do Fundão - 21949-900 - Rio de Janeiro - RJ

Recebido em 15/7/98; aceito em 9/10/98

Characterization of polymorphism in pharmaceuticals by solid state nuclear magnetic resonance. This review aims to present some features about solid state NMR and its application in the field of pharmaceutical chemistry, for the characterization of polymorphism of pharmaceutical molecules.

Keywords: polymorphism; 13C NMR CP/MAS; drug.

INTRODUÇÃO

A capacidade de uma molécula cristalizar em duas ou mais formas é definida como polimorfismo; quando moléculas de solvente estão presentes na estrutura cristalina, o fenômeno é denominado pseudopolimorfismo. Polimorfos diferentes de um mesmo composto geralmente apresentam diferenças significativas de solubilidade, processabilidade e estabilidade física e química1-3. Estas diferenças físico-químicas irão modificar o comportamento da molécula quando em um meio biológico, inclusive podendo alterar sua biodisponibilidade.

Mullins e Macek4 estudaram as propriedades farmacológicas de dois polimorfos da novobiocina, um potente antibacteriano. Os autores observaram que a forma cristalina não é ativa, ou melhor, não é absorvida, porém é mais estável do que a forma amorfa, que é facilmente absorvida e bastante ativa. Sugeriram que este comportamento deveria ser devido à diferença de solubilidade, já que a solubilidade do sólido amorfo é dez vezes maior do que a do sólido cristalino, em uma solução 0,1 mol/l de HCl a 25oC. Como a forma amorfa da novobiocina converte-se lentamente na forma cristalina, o remédio com o tempo vai se tornando cada vez menos ativo, embora os métodos químicos tradicionais, e mesmo muitos testes farmacológicos in vitro, não detectem essas alterações. Desta forma, estudos foram desenvolvidos e observou-se que a adição de metilcelulose na formulação causou um aumento da estabilidade do medicamento, prevenindo a cristalização da forma amorfa da novobiocina.

Poole e colaboradores5 estudaram os fatores físico-químicos que influenciam na absorção da ampicilina anidra e tri-hidratada. Eles observaram que a solubilidade da forma anidra em água é 20% maior do que a da forma tri-hidratada, a 37oC (10 e 8 mg/ml para as formas anidra e tri-hidratada, resp.). Estudos in vitro e in vivo (Figura 1), evidenciaram a maior absorção da fase anidra comparada com a fase tri-hidratada.


Esses resultados evidenciam a necessidade de se detectar, quantificar e controlar todas as etapas da preparação do medicamento, desde a síntese da droga até a estocagem do mesmo nas prateleiras das farmácias, inclusive no que diz respeito às formas cristalinas do princípio ativo e do produto formulado.

Dentre as técnicas de caracterização de fármacos, destaca-se a ressonância magnética nuclear, notadamente em estudos em solução, para elucidação estrutural16, determinação de quiralidade7,8, correlações estrutura-atividade9 ou estudos conformacionais de proteínas10,11.

A aplicação de técnicas para a obtenção de espectros de RMN de alta resolução de amostras em solução em amostras sob forma sólida, conduz a espectros largos e inexploráveis pelos químicos. Isso provém do fato de que, no estado sólido, ocorre a diminuição dos movimentos moleculares que, em solução, permitem na maior parte dos casos considerar como zero as interações entre os dipolos nucleares. Assim como as constantes de acoplamento escalares, da ordem de hertz, são os fatores determinantes dos desdobramentos observados nos espectros de RMN de moléculas em solução, os acoplamentos devidos às interações dipolares, da ordem de kHz, são as interações que dominam os espectros de RMN de amostras no estado sólido.

O desenvolvimento da área de RMN de alta resolução no estado sólido, através da rotação no ângulo mágico, desacoplamento de alta potência e polarização cruzada, propiciou a diminuição efetiva das interações dipolares, com conseqüente redução dos deslocamentos químicos anisotrópicos aos seus valores isotrópicos, para a obtenção de espectros de alta resolução em fase sólida. Ocasionalmente, outras seqüências de pulso são empregadas, como a técnica TOSS (Total Suppresion of Sidebands) para a supressão de bandas laterais12 e a técnica DD (Dipolar Dephasing) para assinalamento dos carbonos quaternários13.

Com o desenvolvimento da instrumentação de RMN para a análise de amostras sólidas, a aplicação desta técnica na indústria farmacêutica tomou um grande impulso, já que aproximadamente 90% dos fármacos são comercializados sob esta forma14-16.

Embora em solução tanto o hidrogênio quanto o carbono-13 sejam estudados, as fortes interações dipolares H-H presentes na molécula no estado sólido tornam difícil a obtenção de espectros de hidrogênio no estado sólido. Dessa forma, o carbono-13 passa a ser o núcleo mais estudado. Os valores dos deslocamentos químicos de carbono-13 que podem ser observados em amostras sob forma sólida, podem ser influenciados por vários fatores, tais como o empacotamento do cristal, ligação hidrogênio, efeitos iônicos, mudanças conformacionais e outros17-18.

Considerando-se os aspectos teóricos envolvidos na RMN de alta resolução no estado sólido e as necessidades da indústria farmacêutica, o uso dessa técnica combinada com outras técnicas de caracterização no estado sólido, como a análise térmica, a microscopia eletrônica, a espectrometria na região do infravermelho e a cristalografia de raios-X de substâncias amorfas ou cristalinas, forma um conjunto valioso para a avaliação criteriosa de fármacos.

Por outro lado, a comparação dos espectros de RMN13C no estado sólido com os espectros obtidos em solução não tem sido sistematicamente explorada, embora a possibilidade de detectar diferenças conformacionais entre os estados sólido e em solução, com o emprego de uma mesma técnica de análise seja promissora, e possa ter importante aplicação quando se estudam princípios ativos de medicamentos19-23.

ESPECTROSCOPIA DE RESSONÂNCIA MAGNÉTICA NUCLEAR NO ESTADO SÓLIDO

Aspectos Fundamentais da RMN

Todo sinal de RMN pode ser descrito como um somatório de vários Hamiltonianos (Equação 1)24.

H = HZ + HCS+ HSC +HQ + HD (1)

onde HZéa interação de Zeeman, HCSé função do ambiente químico ao redor do núcleo frente à isotropia do sistema, HSC e HQ correspondem às interações spin-spin e quadrupolares e HDsão as interações dipolares.

Interação de Zeeman

Quando um núcleo atômico é colocado em um campo magnético estático, Bo, o núcleo tende a se alinhar com o campo externo aplicado. Essa interação é conhecida como Interação de Zeeman (HZ), descrita pelo Hamiltoniano da Equação 2,

onde g é a constante giromagnética, h a constante de Planck, o campo magnético externo e lz é o vetor spin na direção z.

A interação de Zeeman ocorre somente com núcleos que possuem número de spin, l, maior do que zero e produz 2I + 1 níveis de energia, com separação igual a freqüência de Larmor.

A freqüência de precessão, n, ou freqüência de Larmor, é função da força do campo magnético sentido pelo núcleo e da constante giromagnética do núcleo g (Equação 3).

Se um pulso de rf é aplicado ao longo do eixo x, na frequência de Larmor, isto equivale a aplicação de um campo magnético estático (B1) ao longo do eixo x' no sistema de coordenadas rotatórias. Como a magnetização líquida Mo é percebida parada neste sistema, o efeito da aplicação de um campo magnético constante ao longo de x', seria a rotação de Mo em uma direção próxima a x', no sentido horário, com frequência (n), dado pela Equação 4,

Assim, se um pulso é aplicado por t segundos, então Mo será inclinado de um ângulo q, dado pela Equação 5:

Este efeito é mostrado na Figura 2. A inclinação de Mo de um ângulo q gera um componente no eixo y' que é dada por Mo senq. Esta componente será o sinal detectado pelo equipamento.


Acoplamentos Spin-Spin e Interações Quadrupolares

A interação spin-spin (Hsc) origina-se do acoplamento entre dois spins, através da interação entre os núcleos e os elétrons da ligação. A magnitude dessa interação é da ordem de 0-102Hz, e ocorre tanto no estado sólido quanto em solução.

A interação quadrupolar (HQ) resulta do acoplamento dipolar com um núcleo que apresenta número quântico de spin maior do que 1/2, e que portanto possui um gradiente de campo elétrico. A magnitude desta interação pode alcançar valores da ordem de 109 Hz.

Interações do Deslocamento Químico

A ocorrência de sinais em diferentes freqüências para um mesmo nuclídeo é uma indicação de que o campo magnético, sentido pelo núcleo, é dependente do ambiente químico a sua volta e devido à presença dos elétrons. Este fenômeno, denominado diamagnetismo, é devido às correntes induzidas pelo campo aplicado Bo sobre os elétrons de ligação, que criam um campo magnético que se opõe a esse campo e faz com que o campo magnético B', efetivamente experimentado pelos núcleos presentes na amostra, seja inferior ao campo aplicado Bo. A constante de proporcionalidade s que correlaciona Bo e B' denomina-se constante de proteção magnética ou constante de blindagem (Equação 6), e está presente tanto em solução quanto no estado sólido.

O Hamiltoniano que descreve a interação dos elétrons de ligação com o campo magnético aplicado, denominada interação de deslocamento químico, está mostrada na Equação 7. Por ser muito sensível a mudanças no ambiente químico do núcleo é uma das informações mais valiosas de um experimento de RMN.

A constante s é dependente da orientação dos eixos moleculares em relação ao Bo. Em solução, os movimentos brownianos da amostra fornecem um valor isotrópico para a constante de proteção. No estado sólido, por outro lado, o valor do deslocamento químico também é característico do ambiente magnético de cada núcleo, porém como se trata de um sistema rígido, as várias orientações possíveis do vetor magnetização em relação ao campo externo Bo não são observadas no seu valor médio, ou seja, são observados os vários deslocamentos químicos anisotrópicos, em função da posição do núcleo em observação em relação ao campo magnético aplicado. Na Figura 3 estão ilustrados os formatos de um sinal de RMN de um grupo funcional específico orientado perpendicularmente (3-a) ou paralelamente (3-b) em relação ao campo Bo. Assim, para a maioria das amostras, a distribuição ao acaso em todas as orientações de todas as moléculas irá produzir um sinal muito largo, que contém o conjunto de todas as orientações possíveis (3-c)26.


Interações Dipolo-Dipolo

Em geral, não é possível observar em sólidos os efeitos devidos à anisotropia do deslocamento químico, descrito anteriormente, pois estes são obscurecidos pelas interações dipolo-dipolo ou acoplamentos dipolares, que alargam muito os sinais anisotrópicos. O acoplamento dipolar é o acoplamento direto de dois núcleos magnéticos através do espaço e é dependente da distância internuclear, do tensor acoplamento dipolar, das razões giromagnéticas dos núcleos e do ângulo que o tensor de acoplamento dipolar faz com o campo magnético externo. Entretanto, esta interação decresce rapidamente com a distância internuclear (r), sendo importante apenas para núcleos diretamente ligados ou núcleos espacialmente bem próximos27.

A interação dipolo-dipolo para um par de núcleos não equivalentes, como o 1H e o 13C, pode ser descrita pela Equação 8.

Como o tensor acoplamento dipolar, , contém o termo (3cos2q-1), esta interação é dependente também da orientação da molécula. Em solução, devido aos movimentos brownianos rápidos, o termo (3cos2q-1) é integrado para todos os ângulos possíveis, ocasionando numa resultante nula. No sólido, as moléculas apresentam orientações preferenciais em relação ao Bo, e dessa forma a constante de acoplamento dipolar não é totalmente anulada. Esta interação é a principal causa do alargamento do sinal de RMN em um sólido, e este acoplamento pode alcançar valores da ordem de 105 Hz.

TÉCNICAS PARA OBTENÇÃO DE ESPECTROS DE RMN DE ALTA RESOLUÇÃO NO ESTADO SÓLIDO

Como as interações dipolares e de deslocamento químico são dependentes da orientação, no estado sólido a rigidez do sistema acarreta no alargamento excessivo do sinal (da ordem de kHz). A obtenção de espectros de RMN de alta resolução para sólidos exige, então, técnicas que permitam eliminar os alargamentos de maior amplitude. São elas: a) desacoplamento dipolar de alta potência; b) rotação no ângulo mágico; c) polarização cruzada.

Desacoplamento de alta potência

O uso de um desacoplador de alta potência pode eliminar o acoplamento dipolar heteronuclear entre 1H e 13C que muitas vezes domina o espectro de moléculas orgânicas no estado sólido.

No estado líquido, elimina-se o acoplamento escalar spin-spin irradiando-se na freqüência de ressonância do núcleo a ser desacoplado B2, com uma potência da ordem de 10 W. Em sólidos, como o desacoplamento é utilizado para remover as interações dipolares, da ordem de 50 kHz, é necessário uma potência bem mais elevada, cerca de 100 W, o que remove, também, as interações spin-spin. Infelizmente, mesmo com o uso do desacoplador de alta potência, não é possível eliminar totalmente o acoplamento dipolar heteronuclear.

Rotação no ângulo mágico

A utilização do desacoplamento de alta potência não é suficiente para reduzir significativamente o alargamento do sinal de RMN no estado sólido, já que existem outras interações anisotrópicas com dependência geométrica do tipo (3cos2q-1), como por exemplo as interações do deslocamento químico.

Uma vez que o termo (3cos2q-1) se anula para q = 54,74o, o alinhamento de todos os vetores internucleares neste ângulo, acarretaria no desaparecimento das anisotropias dependentes do ângulo q. Por este fato, o ângulo q = 54,74o, é denominado de ângulo mágico (Figura 4a).


Numa amostra sólida, não é possível orientar simultaneamente todos os vetores internucleares segundo o ângulo mágico. Entretanto, a rotação rápida da amostra em volta de um eixo R, inclinado de 54,74o em relação à Bo, orienta em média qualquer vetor internuclear paralelamente ao eixo de rotação, anulando o efeito médio destes vetores (Figura 4b). Esta técnica, conhecida por rotação no ângulo mágico (magic angle spinning, MAS), foi proposta inicialmente para anular ou reduzir as interações anisotrópicas ao seu valor isotrópico, desde que a freqüência da rotação nr seja comparável a largura da banda estática, que varia na faixa de 0 a 20 KHz.

A velocidade de rotação deve exceder este valor, senão bandas laterais serão observadas. Por exemplo, a Figura 5 apresenta o espectro de RMN 31P no estado sólido do óxido de trifenilfosfina com diferentes velocidades de rotação26. Quando a freqüência de rotação da amostra nr for inferior à largura espectral estática, o sinal isotrópico aparece ladeado de bandas laterais separadas de nr. Quando a freqüência de rotação é baixa, as intensidades das bandas laterais continuam a delinear o espectro estático. À medida que nr aumenta, as intensidades das bandas laterais diminuem rapidamente e afastam-se da linha central, o que permite a rápida identificação das bandas laterais e o assinalamento do sinal isotrópico.


Polarização cruzada

No caso de núcleos pouco abundantes, como o 13C, o alargamento espectral devido às interações dipolares e à anisotropia do deslocamento químico não constitui a única dificuldade para obtenção de espectros de alta resolução de amostras no estado sólido. No caso do carbono-13, além da abundância, os tempos de relaxação longitudinal T113C muito longos, são responsáveis por um grave problema de sensibilidade. A técnica de polarização cruzada fornece um aumento da magnetização dos núcleos pouco abundantes ou raros, por exemplo 13C às custas da magnetização dos núcleos abundantes, normalmente 1H.

A estratégia desenvolvida para este fim pode ser melhor entendida se for introduzido o conceito de temperatura de spin. Segundo a equação de distribuição de Boltzmann (Equação 9), a temperatura Ts de um sistema de spins depende da razão de população Nb/Na.

onde DE é a diferença entre as duas energias e TS é a temperatura de spin.

Observa-se que em altas temperaturas (TS® ¥) a diferença de população será muito pequena ou nula, e uma alta diferença de população (alta polarização), a qual origina um sinal de RMN intenso, corresponde a uma "baixa temperatura de spin". Esta diferenciação é possível com spins que são fracamente acoplados com o ambiente (a rede) e fortemente acoplados entre si, devido ao acoplamento dipolar (T1 longo e T2 curto).

Na interpretação termodinâmica, a diminuição de temperatura do sistema de spins ocorreria através de uma transferência de energia para a rede. Esse processo de relaxação é caracterizado pelo tempo de relaxação T1, indicado na Figura 6 como T1C para o tempo de relaxação do sistema de spins do 13C e T1H para o sistema de spins do 1H. O sistema de spins do 13C, de maior temperatura e consequentemente menor polarização, é representado pelo retângulo menor, enquanto o sistema de spins do 1H, de menor temperatura e maior polarização, é representado pelo retângulo maior. O resfriamento desejado para o sistema de spins do carbono ocorrerá através do contato térmico entre os dois sistemas, ocasionando uma transferência de polarização do hidrogênio para o carbono. Este processo é denominado de Polarização Cruzada (Cross Polarization - CP).


Em um sistema de spins homonucleares a troca de energia ocorre através de um mecanismo "flip-flop". A interação spin-spin leva a uma transferência de quanta de energia (gBo), e com isso a mudança da orientação do spin de um núcleo é acompanhada pela mudança oposta do seu vizinho. Para um sistema de spins heteronucleares, C-H, a relação entre os spins segue a Equação 10:

gH BO¹ gC BO (10)

Como todos os parâmetros da Equação 10 são fixos, não há condição favorável para ocorrer a transferência de magnetização do hidrogênio para o carbono. Entretanto, no sistema de coordenadas rotatórias, é possível obter a condição desejada, por ajuste das amplitudes de B1 (Equação 11).

gH B1H = gC B1C (11)

Esta nova relação é conhecida como "condição de Hartmann-Hahn"29, e permite que a energia possa ser trocada por polarização cruzada entre ambos os reservatórios de spins.

O contato entre os dois sistemas é feito através da interação dipolar heteronuclear das componentes dos campos magnéticos locais, segundo a direção de Bo. No referencial rotatório estas componentes são flutuantes, devido à precessão da magnetização em torno de B1H e B1C, e na condição de Hartmann-Hahn, ocorre relaxação cruzada, através de "flip-flop" simultâneos dos spins 1H e 13C acoplados anti-paralelamente.

Para entender melhor o processo de polarização cruzada, dois outros processos de relaxação devem ser definidos: o tempo de relaxação spin-rede no eixo de coordenadas rotatórias (T1r) e o tempo de polarização cruzada (TCH). A relaxação spin-rede no eixo de coordenadas rotatórias, T1r, caracteriza o decaimento da magnetização no campo B1, normalmente pequeno em relação ao campo externo Bo.

Na seqüência de pulso utilizado nos experimentos de polarização cruzada, aplica-se um pulso de 90ox1H (Figura 7), o qual é imediatamente seguido de um deslocamento de fase de 90ox. Assim, o vetor magnetização M torna-se paralelo a B1 e os hidrogênios comportam-se neste novo campo como antes em Bo; eles precessam com freqüência de Larmor nH = gHB1, em torno do eixo y. Em outras palavras, eles estão "trancados" na direção -y do eixo de coordenadas rotatórias. Este estado de sistema de spin é chamado de "spin-lock".


Se agora nós ajustarmos o campo B1 na região de freqüência do 13C de acordo com a Equação 11, a componente -z de ambas as magnetizações oscilarão com a mesma freqüência e uma transferência de energia do reservatório de spin quente para o frio é possível. Para realizar isto, o tempo do "spin-lock" deve ser da ordem do tempo de relaxação spin-rede do 1H.

No caso ideal, quando T1r1H é longo, é possível em uma única experiência realizar múltiplos contatos. Eventualmente, a magnetização dos 1H diminui muito, devido às pequenas transferências para os 13C e em particular devido ao decaimento para a rede no referencial de coordenadas rotatórias, definido por T1r1H. A experiência poderá recomeçar logo que os sistemas de spins 1H retornem ao equilíbrio com a rede, ou seja após um tempo da ordem de grandeza de T11H que é, em geral, muito inferior ao T113C. O resultado final, após a transformação de Fourier do FID acumulado, é um espectro com razão sinal/ruído muito melhorada. Os casos ideais serão os sistemas com T1r1H longos e T11H curtos.

A velocidade de relaxação cruzada, T-1CH, mede a eficiência da transferência de polarização. Os tempos de polarização cruzada TCH, tipicamente 10-4 a 10-2 s, determinam o tempo de contato, que deverá ser otimizado para cada tipo de amostra.

A medida de T1r1H pode ser feita indiretamente utilizando uma série de experimentos de polarização cruzada, onde o tempo de contato é aumentado gradativamente. Como a polarização do núcleo raro, 13C, está intimamente ligada à magnetização do núcleo abundante, 1H, a relaxação deste núcleo, durante o tempo de contato, acarretará em uma diminuição da amplitude do FID do núcleo de 13C, e consequentemente, numa diminuição da intensidade do seu sinal. A queda exponencial observada entre os valores do tempo de contato e a intensidade do sinal é caracterizada pela constante de relaxação do hidrogênio no eixo de coordenadas rotatórias30, T1r1H.

O gráfico da intensidade do sinal de 13C versus o tempo de contato fornece os tempos de relaxação TCH e T1r1H que são calculados diretamente a partir da curva, mostrada na Figura 8. A partir da inclinação obtida pela tangente à curva na sua parte inicial obtém-se a constante de tempo para a polarização cruzada, TCH e a partir da extrapolação da tangente à curva na sua parte final, obtém-se o valor do tempo de relaxação spin-rede do hidrogênio no eixo rotatório31, T1r1H. Experimentalmente os valores de T1r1H e TCH são obtidos a partir da Equação 12:

I = [I¥ - (I¥ - I0) - exp(-T/TCH]exp(-T/T1 r1H)+I0 (12)


Na Figura 9 estão apresentados os espectros de RMN 13C no estado sólido da L-alanina obtidos em função do tempo de contato. Oserva-se que a magnetização de cada núcleo aumenta devido à polarização cruzada (TCH) e diminui devido à relaxação no referencial de coordenadas rotatórias (T1r1H)24.


A combinação das técnicas de desacoplamento de alta potência, rotação no ângulo mágico e polarização cruzada, para aquisição de sinais de núcleos pouco abundantes, tornou-se uma rotina na área da RMN no estado sólido. Na Figura 10 estão apresentados os espectros de RMN13C no estado sólido obtidos para o adamantano, com emprego das técnicas de pulso convencionais para espectros em solução e no estado sólido28.


Técnica de Defasamento dipolar

A técnica de Defasamento Dipolar (DD) em uma análise qualitativa de RMN13C CP/MAS é de grande utilidade como ferramenta para o assinalamento dos sinais correspondentes aos carbonos protonados, ou seja, que possuem ligações C-H. Nos líquidos e nos sólidos a interação heteronuclear, extremamente forte nos carbonos com ligações C-H pode ser utilizada para a seleção desses carbonos13. Entretanto, a interação de spins heteronuclear é distinta nos dois casos: no líquido, operam os acoplamentos escalares spin-spin, enquanto nos sólidos cristalinos ou amorfos os acoplamentos estáticos dipolo-dipolo são predominantes.

A seqüência de pulsos empregada neste experimento está apresentada na Figura 11. Esta seqüência consiste de um experimento CP/MAS, onde é inserido um intervalo de tempo variável entre o período de spin-lock e o início do desacoplamento e aquisição. Neste experimento, os sinais dos núcleos de carbono que não possuem hidrogênios diretamente ligados e grupos metilas móveis são seletivamente observados, devido à fraca interação dipolar 13C-1H presente. Durante este intervalo de tempo (normalmente programado entre 20 e 100 ms) os carbonos com hidrogênios ligados diretamente rapidamente saem de fase, e seus sinais desaparecem. Desta forma, um espectro simplificado é obtido, no qual apenas os carbonos quaternários são observados.


Medida dos tempos de relaxação longitudinal dos hidrogênios no estado sólido

Em sólidos, devido às interações dipolares presentes, é extremamente difícil obter espectros de RMN1H de alta resolução. Conseqüentemente, a determinação dos tempos de relaxação longitudinal dos hidrogênios (T11H) pelos métodos de observação direta torna-se inviável, porém, esses valores podem ser determinados indiretamente por RMN13C CP/MAS. Como em um experimento de polarização cruzada, as intensidades observadas para o núcleo menos abundante (13C) são função das transferência de polarização dos núcleos abundantes (1H) diretamente ligados, a freqüência de repetição de um experimento de polarização cruzada passa a ser dependente da recuperação da magnetização do 1H e não do 13C26. A Figura 12 apresenta a seqüência de pulso utilizada para medir o T11H através da medida das intensidades dos sinais dos núcleos de carbono.


CARACTERIZAÇÃO DE POLIMORFISMO POR RMN DE ALTA RESOLUÇÃO NO ESTADO SÓLIDO (RMN CP/MAS)

Análise qualitativa

O uso da RMN no estado sólido na investigação de polimorfismo é facilmente entendido baseado no seguinte modelo: se um composto apresenta dois polimorfos, a e b, suas formas cristalinas são conformacionalmente diferentes. Isto significa que um determinado carbono presente na forma a pode possuir uma geometria molecular ligeiramente diferente quando comparada com o mesmo carbono na forma b, o que pode originar ambientes locais distintos, apesar de possuírem os mesmos átomos ligados entre si. A diferença no ambiente local pode acarretar diferentes interações de deslocamento químico para o mesmo átomo de carbono, nas duas diferentes formas polimórficas. Se for possível obter um material puro (isto é, uma das formas), a análise e o assinalamento do espectro de RMN no estado sólido das duas formas, em conjunto com outras técnicas, tais como a análise térmica, microscopia ótica, espectrometria na região do infravermelho e cristalografia de raios-X de pó ou monocristal, pode levar à origem da diferença de conformação dos dois polimorfos.

Uma das principais vantagens da RMN CP/MAS é a possibilidade de utilização desta técnica no produto acabado, ou seja, no fármaco formulado, pois o deslocamento químico do polimorfo é sensível ao ambiente químico e à conformação molecular, o que permite investigar a conversão nos vários polimorfos durante o processamento.

Byrn e colaboradores32 analisaram cefazolinas hidratadas (Figura 13) por RMN13C CP/MAS e todos os sinais dos carbonos presentes na forma penta-hidratada puderam ser observados, tanto nos espectros obtidos em solução quanto no estado sólido. No espectro da forma sesqui-hidratada, os sinais correspondentes aos carbonos insaturados não foram bem resolvidos, fornecendo apenas um sinal desdobrado na região entre 180 e 200ppm, enquanto a forma amorfa apresentou apenas um sinal alargado nesta mesma região, o que possibilitou a diferenciação desses polimorfos.


Harris e colaboradores33 investigaram três pseudopolimorfos da testosterona, um hormônio masculino, por infravermelho e RMN13C CP/MAS. Os dois experimentos foram capazes de distinguir os pseudopolimorfos (formas a, b e d). O espectro de RMN da forma a apresentou vários sinais desdobrados (Figura 14), levando o autor a suspeitar da existência de duas moléculas não equivalentes em cada célula unitária.


A diferença entre os deslocamentos químicos dos carbonos que apresentaram desdobramentos nos espectros de RMN 13C no estado sólido da forma a está indicada na Figura 15.


Como pode ser observado, a maior diferença de deslocamento químico ocorreu no carbono contendo o grupo hidroxila (Dd = 2,3). Segundo o autor, esta diferença pode refletir uma diferença na força das ligações hidrogênio nas duas conformações. A mesma análise pode ser feita para o carbono do grupamento carbonila, onde a diferença nos deslocamentos químicos foi de 1,5ppm.

A análise por raios-X de mono-cristal do polimorfo a da testosterona mostrou a presença de quatro moléculas por célula unitária e confirmou a existência de duas moléculas em uma unidade assimétrica, designadas U e V (Figura 16) e ligadas entre si por ligações hidrogênio, segundo um padrão do tipo cabeça-cauda.


Rao e colaboradores34 utilizaram a RMN para analisar a conformação do cloridrato da amiodarona, que exibe propriedades antianginais e antiarrítmicas, sendo amplamente utilizada no tratamento da isquemia cardíaca. O exame da estrutura da molécula mostrou que a carbonila e a dupla ligação do anel furano poderiam estar orientadas tanto na conformação s-cis quanto na s-trans (Figura 17).


Em geral estruturas deste tipo, que apresentam uma ponte cetônica, têm sido estudadas por vários métodos e os dados obtidos sugerem que a conformação preferida tende a ser s-trans. Estudos de derivados de amiodarona por RMN em solução sugerem um equilíbrio entre os confôrmeros s-cis e s-trans. Contudo, no caso da amiodarona em particular, esses estudos não revelaram os dois grupos de sinais esperados, mesmo a temperaturas de -117oC. Este resultado pode ser tanto devido à existência de somente uma conformação em solução ou a uma rápida interconversão, para a escala de tempo da RMN.

Para melhorar a abrangência das comparações no estado sólido, a amiodarona foi recristalizada em vários solventes de polaridades distintas. Os sólidos obtidos foram analisados por difração de raios-X, além de outros métodos de caracterização, e foi observado serem todos idênticos entre si. Trituração cuidadosa e prolongada não alterou os resultados, ou seja, não foram detectadas estruturas amorfas ou outras estruturas polimórficas.

A comparação dos espectros em solução em diferentes solventes e no estado sólido permitiu verificar que a conformação da molécula é levemente dependente do solvente. A Figura 18 mostra o espectro de RMN13C do cloridrato da amiodarona em solução de CDCl3 (18a) e no estado sólido (18b).


As diferenças de deslocamento químico observadas entre os espectros em solução e no estado sólido, menores do que 2 ppm, podem ser atribuídas ao empacotamento molecular no meio cristalino. Para o sinal de alguns carbonos, a diferença de deslocamento químico foi um pouco maior do que 2 ppm: C-17, C-18, C-19, C-4, C-6 e C-7a, o que sugere ser a orientação do substituinte n-butila, R1, suficientemente diferente na solução, onde deve se orientar rapidamente, sem interferência com os anéis benzofurano ou iodofenil, enquanto no cristal ela está situada sobre o anel iodofenil. Pode-se considerar que as conformações do esqueleto da amiodarona no estado sólido e em solução, em CDCl3, CD2Cl2 e acetona-D6 são muito próximas. No caso do metanol como solvente, a diferença foi muito maior do que 2 ppm. Este resultado sugere a formação de ligações hidrogênio entre o solvente e o soluto, o que causa modificações na conformação.

Como na estrutura cristalográfica estabelecida por raios-X para o cloridrato de amiodarona, a conformação da carbonila é s-trans em relação à dupla ligação do anel benzofurano, e os deslocamentos químicos no estado sólido e em solução foram comparáveis, pode-se deduzir que em solução a molécula adota uma única conformação, que é a mesma determinada por difração de raios-X.

Twyman e Dobson35 estudaram o efeito da temperatura na análise por RMN13C CP/MAS para derivados de fenoxipenicilina (Figura 19). Os espectros obtidos com variação de temperatura (200 a 240K) mostraram que os dois sinais correspondentes aos carbonos orto do anel fenóxido, tornaram-se alargados, coalesceram e por fim transformaram-se em um sinal mais estreito. Segundo os autores, este resultado indicou um mecanismo de troca intramolecular, atribuído à rotação de 180o do anel aromático em torno do eixo C2, já que não foram observadas mudanças nos deslocamentos químicos dos carbonos ipso e para.


Fattah e colaboradores36 e recentemente, Wendeler e colaboradores37 ressaltaram as vantagens de se combinar a difração de raios-X com a RMN13CCP/MAS para estudar as propriedades dinâmicas do anel aromático de derivados da penicilina V. Segundo os autores, as informações obtidas nessas duas análises são complementares, já que as escalas de tempo de cada análise são diferentes: @ 10-18s para a análise de raios-X e @ 10-2 a 10-10 s para a análise por RMN.

A Figura 20 mostra os espectros de RMN13C CP/MAS da penicilina V (H-penV) e de alguns de seus sais: Li-PenV, Na-PenV, K-PenV, Rb-PenV e Cs-PenV, à temperatura ambiente37. Segundo o autor, se o espectro for de alta resolução e apresentar sinais bem definidos, é possível predizer o número de moléculas presentes em uma unidade assimétrica. Por exemplo, foi sugerido que a existência de dois sinais bem definidos correspondentes aos carbonos CH3a e CH3b indicaria que o cristal do Cs-PenV conteria uma única molécula em cada unidade assimétrica, enquanto o cristal do Li-PenV, que possui uma das metilas desdobradas, possuiria duas moléculas por unidade assimétrica. Estas propostas foram confirmadas pela análise por difração de raios-X dos cristais desses derivados à temperatura ambiente.


A partir da análise por RMN13C CP/MAS com variação da temperatura foi possível determinar os parâmetros de Arrhenius para a rotação do anel aromático dos sais de PenV, através da correlação linear do logaritmo neperiano da constante de velocidade (ln k) com o inverso da temperatura. A constante de velocidade de troca foi calculada a partir da largura a meia altura (Dn1/2) dos sinais envolvidos durante a troca (Tabela 1). Foi observado que a uma dada temperatura a velocidade de rotação foi dependente do cátion presente.

A análise por difração de raios-X mostrou que nos diferentes sais de PenV, assim como na forma ácida, o anel penicilânico possui uma mesma conformação rígida, enquanto a cadeia lateral, fenoximetila, apresentou várias conformações para uma dada unidade de penicilina. A conformação preferencial foi sempre a que permitiu que o número de moléculas de PenV seja coincidente com o número de coordenação de cada cátion. Por exemplo, em uma unidade assimétrica, o Cs+ na forma Cs-PenV coordenou-se com sete oxigênios de seis ânions PenV vizinhos, enquanto o cátion Li+ coordenou apenas com quatro oxigênios, sendo um desses oxigênios proveniente de moléculas de água contidas na rede. Além disso os autores observaram que nas estruturas onde as conformações são mais compactas, como no caso do Cs-PenV e Rb-PenV, a rotação do anel foi favorecida, enquanto nas estruturas alongadas, Li-PenV, a Ea indicou que a rotação foi mais dificultada.

Aguiar e colaboradores38,39,40 estudaram diferentes penicilinas e cefalosporinas de elevada aceitação comercial por RMN13C CP/MAS. O assinalamento de todos os carbonos dos antibióticos analisados foi obtido pela análise das curvas de variação de intensidade do sinal com o tempo de contato, da técnica DD para determinação dos carbonos quaternários e em alguns casos através dos espectros bidimensionais HETCOR (Heteronuclear Correlation) no estado sólido. Foram observadas diferenças de assinalamento de alguns carbonos, no estado sólido e em solução. Dessa forma, esses resultados evidenciaram que o assinalamento no estado sólido por comparação direta com o estado líquido, prática comum na literatura, pode gerar resultados equivocados.

Os espectros de RMN13C CP/MAS de duas amostras comerciais da ampicilina de diferentes fabricantes e graus de hidratação (Aldrich e Beecham) mostraram que a amostra farmacêutica apresentou maior quantidade de água adsorvida do que a forma P.A., já que os sinais de todos os carbonos ficaram mais alargados, principalmente os correspondentes aos carbonos das carbonilas, da região aromática e das metilas (Figura 21 a e b). A amostra farmacêutica foi guardada em um local seco e fresco e novamente analisada após um ano. A baixa resolução das regiões dos carbonos das carbonilas e dos aromáticos, indicou uma grande adsorção de água pela ampicilina (Figura 21 c), embora não tenha sido verificada a separação dos sinais correspondentes aos carbonos C-5 e C-12, como observada na forma comercial P.A. tri-hidratada.


Uma forma anidra da ampicilina foi obtida após aquecimento da forma A (amostra farmacêutica após um ano) a 108-140º C durante duas horas (forma B). Um polimorfo hidratado (forma C) foi obtido mantendo-se a forma A em suspensão aquosa por 24 horas, à temperatura ambiente, seguida de secagem em atmosfera controlada com 55% de umidade relativa por duas semanas (Figura 21 d e e). Pelos espectros de RMN13C foi observado que a forma hidratada C (teor de água por Karl Fisher ³ 20%) apresentou os sinais dos carbonos C-5 e C-12 separados, análogo ao obtido para a forma tri-hidratada comercial P.A. (teor de água por Karl Fisher @ 13%). Entretanto como a forma C ainda apresenta maior teor de água adsorvida do que a comercial P.A., seus sinais ficaram mais alargados.

No caso do polimorfo B (Figura 21 d), foi observado que o simples aquecimento por duas horas, acarretou em uma melhoria nos sinais dos carbonos das carbonilas e do anel aromático, sendo possível diferenciar inclusive as três carbonilas e o carbono quaternário aromático, os quais não eram observados na forma A de partida (Figura 21 c).

Esses resultados mostraram que é possível diferenciar o tipo de interação, física ou química, existente entre a molécula de água e da ampicilina, não caracterizada pelos métodos clássicos de determinação do teor de água (Karl-Fischer ou por aquecimento até peso constante), o que demonstra a importância deste método de estudo, de caracterização de fármacos por RMN13C CP/MAS, já que uma amostra de ampicilina com água adsorvida fisicamente pode apresentar atividade diferente das formas anidra e/ou tri-hidratada.

Comparado com os resultados obtidos por Clayden41 o aumento da velocidade de rotação de 3,0 kHz, comumente utilizada para espectros no estado sólido, para 6,3 kHz, e o estudo da variação do tempo de contato nos experimentos de polarização cruzada, permitiu obter o tempo de contato ótimo (t) para a análise dos pseudopolimorfos da ampicilina, além de fornecer os valores de tempo de relaxação longitudinal do hidrogênio no referencial rotatório, T1r1H, parâmetros de suma importância, já que possuem relação direta com a mobilidade molecular: t @ 2 ms;T1r1H = 5,0 ms para a forma tri-hidratada e t @ 10ms; T1r1H = 90 ms para a forma anidra38.

A forma anidra, significativamente mais flexível do que a forma tri-hidratada, deve possuir atrações intermoleculares mais fracas do que a forma tri-hidratada e por conseguinte sua estrutura deve possuir maior energia de rede cristalina. Dessa forma, pode-se justificar os resultados obtidos por Poole5, já que espera-se uma maior dissociação da forma anidra em um meio biológico, e como consequência maior biodisponibilidade comparada com a forma tri-hidratada.

A RMN no estado sólido também pode ser útil para o estudo de interações entre o princípio ativo de um medicamento e os demais componentes presentes em sua formulação. Por exemplo, a comparação dos espectros de RMN13C CP/MAS de duas amostras de cefaclor mono-hidratado (Figura 22), uma amostra comercial P.A. (Figura 22a) e uma amostra farmacêutica sob forma de cápsulas, denominada Ceclor" (Figura 22b), indicou que não existe interação entre o excipiente e o antibiótico. Além disso, foi observado que o sinal em d 20-40, correspondente ao carbono C-2, vizinho ao enxofre, apareceu desdobrado na amostra comercial P.A., o que sugere a existência de pelo menos duas estruturas na mesma célula unitária38.


A comparação desses espectros com o obtido por Martinez42 para o cefaclor di-hidratado (Figura 22c), mostrou significativas diferenças. Por exemplo, a separação dos sinais correspondentes às três carbonilas observada para as formas mono-hidratada, não foi observada para a forma di-hidratada, indicando a potencialidade desta técnica também na caracterização desses pseudopolimorfos, inclusive em amostras comerciais43 sob forma de cápsulas.

ANÁLISE QUANTITATIVA

Para se adquirir um espectro de RMN quantitativo no estado sólido, ou seja, onde as intensidades dos sinais sejam proporcionais à quantidade de núcleos que os produziram é necessário otimizar alguns parâmetros de aquisição, tais como: velocidade de rotação no ângulo mágico, intervalo entre os pulsos, largura do pulso e tempo de polarização cruzada44. Embora os estudos quantitativos sejam ainda pouco explorados por esta técnica, alguns trabalhos podem ser citados, na área de análise de fármacos.

Suryanarayanan e Widemann45 utilizaram a RMN13C no estado sólido para determinar a quantidade relativa de carbamazepina anidra e di-hidratada, presente em um fármaco muito utilizado no controle da epilepsia.

A carbamazepina é praticamente insolúvel em água, sendo rapidamente convertida na forma di-hidratada. É comercializada como comprimido e em suspensão aquosa, onde existe na forma di-hidratada. Quando voluntários adultos receberam 847 mmol da carbamazepina, tanto da forma anidra como da forma di-hidratada, a análise do soro sangüíneo mostrou que a forma di-hidratada (Forma II) foi mais facilmente absorvida do que a forma anidra (Forma I). A melhor explicação para este fato foi que após a administração dos comprimidos, a forma anidra rapidamente converteu-se na forma di-hidratada, formando um cristal de tamanho maior do que o cristal da carbamazepina di-hidratada administrada como suspensão.

Os autores observaram que um intervalo entre os pulsos de 10 s era suficiente para obtenção do espectro de RMN13C CP/MAS da carbamazepina di-hidratada, enquanto nenhum sinal foi observado para a forma anidra nessas condições. Este resultado permitiu utilizar a RMN no estado sólido como método de análise quantitativa.

A intensidade da magnetização dos carbonos da carbamazepina di-hidratada foi medida como uma função do tempo de contato, para definir o tempo ótimo para se determinar a quantidade relativa da forma di-hidratada em uma mistura contendo as duas formas, assim como a variação da intensidade do sinal da glicina, utilizada como padrão interno, com o tempo de contato (Figura 23). Esta informação permitiu determinar a razão da área de um dos compostos em qualquer tempo de contato.


Os espectros obtidos de uma mistura de glicina, utilizada como padrão interno, e dos dois pseudopolimorfos da carbamazepina estão apresentados na Figura 24. Os sinais em torno de 120ppm (3) foram atribuídos aos carbonos da carbamazepina, enquanto os sinais em 40ppm (1) e 178ppm (2) correspondem aos carbonos da glicina .


Esses resultados permitiram correlacionar quantitativamente a magnetização observada com o número de carbonos presentes. Assim, em um tempo de contato ótimo, as intensidades dos sinais da carbamazepina di-hidratada (Forma II) puderam ser correlacionadas com as intensidades dos sinais dos carbonos a e da carbonila na glicina. A razão entre as áreas dos sinais da carbamazepina e da glicina foi correlacionada com a razão de massa pela Equação 13:

onde N é o número de carbonos na molécula, M é o peso molecular, W é a massa de amostra e E o fatoe de correção para o efeito de polarização cruzada. Esta metodologia permitiu a determinação rápida da quantidade relativa dos pseudopolimorfos do mesitilato da delavirdina (DLV-M), um fármaco que vem sendo estudado para o tratamento da AIDS (Figura 25).


Embora a DLV-M possua várias formas cristalinas, VIII e XI representando as formas anidras e XII a forma hidratada, apenas a forma XI é estável e por isso preferida para a formulação. Assim, os pseudopolimorfos da DLV-M necessitam ser detectados, quantificados e controlados durante a produção do fármaco. Segundo o autor, a técnica de RMN13C no estado sólido mostrou ser uma técnica rápida e eficiente para se determinar a quantidade dos dois polimorfos em mistura recém preparada da DLV-M, sem a adição de um padrão interno.

Os espectros de RMN13C CP/MAS da DLV-M nas formas VIII, XI e XII estão apresentados na Figura 26. Os sinais observados no espectro da forma XII foram mais alargados do que as outras formas estudadas. Os sinais na região entre 15 e 25ppm correspondem aos carbonos do grupo isopropila e suas intensidades foram utilizadas no trabalho de Gao para quantificar as diferentes formas presentes.


Para que as intensidades dos sinais realmente correspondam à quantidade dos polimorfos presentes, parâmetros como tempo de relaxação do hidrogênio (T11H e T1r1H) e o tempo polarização cruzada (TCH), devem ser considerados.

As medidas dos tempos de relaxação do hidrogênio no referencial do laboratório e no referencial rotatório são importantes para se conhecer qual o mecanismo de relaxação preferencial da molécula em questão. Quando a relaxação é controlada pela difusão dos spins, o decaimento para cada tempo de relaxação é governado por uma única exponencial e idêntico para todos os hidrogênios da molécula. Esta situação é chamada de sistema homogêneo e existe normalmente para amostras orgânicas cristalinas.

Como os tempos de relaxação, T11H e T1r1H para todos os hidrogênios de cada polimorfo são similares, é possível correlacionar as intensidades dos sinais com a quantidade relativa dos polimorfos (Equação 14):

onde I(t) são as intensidades de cada sinal e Mo são os valores da magnetização do 13C no equilíbrio térmico e representam a quantidade absoluta de cada carbono em cada forma.

Como pode ser observado nos espectros obtidos, a forma VIII apresenta um sinal correspondente a uma metila em 17,3ppm, enquanto na forma XI a mesma metila aparece em 20,2ppm; ambas as formas apresentam um sinal de uma segunda metila em 23,9ppm.

A composição de uma mistura binária dos polimorfos VIII e XI pode ser diretamente determinada pela Equação 14. Como os valores de T1r1H e TCH são similares, os termos que envolvem as frações dos tempos de relaxação podem ser considerados como unitários. Este fato representa a situação mais simples, onde a razão em mol entre as formas VIII e XI na mistura (MoVIII/MoXI ) representa a razão entre suas intensidades, IVIII / IXI.

Com estes exemplos, ressalta-se o potencial da técnica de RMN13C CP/MAS para determinar quantitativamente os polimorfos e pseudopolimorfos existentes em fármacos. A principal vantagem desta técnica é a possibilidade de identificação do próprio polimorfo ou pseudopolimorfo ou então daqueles que estão contaminando uma amostra, com limite de detecção de 2 a 3%.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ressonância magnética nuclear no estado sólido está se mostrando uma técnica promissora para análise tanto qualitativa quanto quantitativa de polimorfos e pseudopolimorfos. A aplicação desta técnica em fármacos, no princípio ativo e em formulações permite detectar modificações importantes do ponto de vista da atividade biológica e que não podiam, necessariamente, serem detectadas pelos métodos farmacopeicos tradicionais.

b Departamento de Ciências Naturais, CCBS, Unio-Rio

rsangil@iq.ufrj.br

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Fev 2000
    • Data do Fascículo
      Jul 1999

    Histórico

    • Recebido
      15 Jul 1998
    • Aceito
      09 Out 1998
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