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Efeitos do plano de estabilização econômica do governo sobre a estratégia empresarial: quarta sessão

SEMINÁRIO

Efeitos do plano de estabilização econômica do governo sobre a estratégia empresarial. Quarta sessão

Ronald Jean DegenI; Carlos Osmar BerteroII

IEmpresário e professor no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

IIDiretor da EAESP/FGV

Composição da mesa

Presidente:

Ofélia de Lanna Sette Torres
Chefe do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV Expositor: Ronald Jean Degen
Professor na EAESP/FGV e empresário Debatedor: Carlos Osmar Bertero
Diretor da EAESP/FGV

Antes de entrar no tema de minha exposição, o Plano Cruzado e a estratégia empresarial, vou apresentar um retrospecto da evolução do planejamento estratégico no Brasil nos últimos 20 anos.

Conforme se pode ver na figura 1, mais ou menos até a década de 70, o planejamento resumia-se basicamente ao orçamento anual. Sua elaboração e seu cumprimento eram o sistema de valores das empresas, isto é, seria recompensado e considerado um bom executivo aquele que cumprisse o orçamento. Essa abordagem, sobretudo no Brasil, que é muito dinâmico, trouxe rapidamente uma série de problemas. O principal deles foi promover a miopia dentro das empresas. Trabalhava-se com um horizonte de apenas um ano, o qual ia diminuindo, conforme o ano avançava. No fim de cada ano tinha-se de preparar um novo orçamento para restaurar o horizonte.


A partir de 1970 e daí até 1973 passou-se a falar em planejamento a longo prazo. A razão de tal mudança ter-se dado neste período é óbvia. O grande plano, e acho que a última tentativa de se fazer um planejamento a longo prazo, foi o segundo Plano Nacional do Desenvolvimento (PND). O planejamento a longo prazo consiste na projeção de tendências, na definição de objetivos e na análise das lacunas, isto é, definido o objetivo, são projetadas as tendências e é analisada a lacuna existente entre a tendência e o objetivo que se quer atingir. Com base na análise são definidas as medidas que devem ser tomadas na empresa para se preencher a lacuna e chegar àquele objetivo.

Como já disse, a última vez em que este procedimento - projeção de tendências - foi adotado sistematicamente foi por ocasião do segundo PND. Não preciso me alongar muito sobre quais foram os principais problemas. A idéia básica era a de projetar o futuro; e o grande problema deste tipo de abordagem é não prever mudanças. No segundo PND tomou-se uma tendência a curto prazo e se a projetou para os 20 anos seguintes; e todos pensaram que tudo iria continuar de acordo com o que fora projetado. Infelizmente não foi o que aconteceu. Em 1973, houve a crise do petróleo e, com ela, a primeira grande mudança que mostrou que projetar tendências revelava-se uma prática ineficaz.

De 1973 até o início da atual crise, em 1981, começou-se a falar em planejamento estratégico. Estou usando essas datas baseado em minha experiência pessoal. É provável que elas não sejam exatamente as mesmas para todas as empresas, pois cada uma tem sua própria história e ainda hoje existem empresas que nem chegaram à fase do planejamento financeiro, enquanto outras já estão bastante avançadas em relação ao último estágio mencionado na figura 1 (administração estratégica). A principal novidade que surgiu com o planejamento estratégico foi a análise do ambiente, numa tenativa de prever as mudanças que nele poderiam ocorrer. Definir uma estratégia tornou-se um verdadeiro must nesse período, no qual se passou a adotar cada vez mais as fórmulas do Boston Consulting Group (aquelas com as "estrelinhas" eas 'vaquinhas") e todo esse folclore que já foi para a história. O grande desafio do planejamento estratégico era determinar o futuro da empresa, em função do fluxo de caixa. Para isto era preciso ter "vacas leiteiras" no seu porta-fólio de negócios, para alimentar as "estrelas", que seriam as "vacas" do futuro. O grande problema do planejamento estratégico, tal como foi montado e, inclusive, muito usado no Brasil - porque nós simplesmente adotávamos as fórmulas norte-americanas - foram as fórmulas simplistas. A realidade não se resumia a uma curva de experiência, não era apenas um ciclo de vida; na prática tudo era mais complicado que as fórmulas e as empresas que se ativeram a elas cegamente não obtiveram sucesso em seu planejamento. Tais fórmulas de planejamento chegaram a encorajar muitas empresas a criarem conglomerados, muitos dos quais tiveram grandes problemas, justamente por terem confiado "vaquinhas" esgotou-se com a crise, quando se tornou evidente que o planejamento estratégico não era tão simples quanto se tinha imaginado. O principal problema do planejamento estratégico, a meu ver, é a forma de se pensar, que chamamos de pensamento analítico - e que depois evoluiu para um pensamento sintético - da qual falaremos mais adiante.

A partir de 1981, surgiu uma alternativa mais flexível para o planejamento estratégico, a qual chamamos de administração estratégica. A maioria das empresas que experimentaram o planejamento estratégico entrou nesta nova fase. A administração estratégica não é tão estruturada ao contrário, ela é pouco estruturada - e, por isso mesmo, é muito maleável, e de fácil adaptação às mudanças. É uma forma de planejar que prevê a mudança. Seu objetivo não é determinar o futuro, mas sim a direção que se pretende seguir, sem uma preocupação de traçar uma linha rígida que ligue o presente ao futuro. Ao contrário, busca-se acompanhar uma linha geral, adaptando-se às mudanças. Como não é possível definir tudo em uma empresa, cria-se um sistema de valores que explicite o que serão consideradas como "variáveis de sucesso" e que sirva de orientação a todos na empresa, dando-lhes alguns parâmetros para que possam reagir conjuntamente aos estímulos desordenados que estejam recebendo, como de fato estavam, a partir de 1981. Neste caso, o grau de incerteza muito grande exigia, como contrapartida, um grau de agilidade igualmente grande por parte da empresa. Para isto se tornava imperioso descentralizar-se o processo de decisões, o que foi possível, na medida em que todos conheciam a orientação estratégica da empresa; criou-se um sistema de valores para recompensar o pessoal que fizesse a coisa certa na empresa. Não se tratava mais de um orçamento, nem de uma fórmula simplista, ou de uma projeção bonita; o que se passava a exigir da empresa era um comportamento baseado na idéia de se administrar o futuro.

Obviamente, o grande problema desta abordagem é que existem na empresa muitas pessoas reagindo aos estímulos externos; é preciso saber se o estão fazendo adequadamente. Isto nos leva a considerar a evolução do processo mental que fundamenta a tomada de decisões.

Conforme se vê na figura 2, o processo mental evoluiu do pensamento intuitivo para o analítico, desembocando no pensamento sintético. A diferença básica entre eles diz respeito à maneira pela qual os problemas que surgem são encarados. Na forma intuitiva focaliza-se um aspecto ou um ângulo do problema. Na forma analítica, decompõe-se o problema em suas partes e analisa-se cada uma delas. Já o pensamento sintético não analisa o problema isoladamente; ao contrário, procura inseri-lo em um contexto mais abrangente. No processo intuitito, otimiza-se uma parte, no analítico otimiza-se cada parte, no sintético busca-se otimizar as influências - internas e externas - sobre o problema. No processo intuitivo analisa-se apenas uma parte do problema; no analítico torna-se difícil integrar as soluções dadas a cada parte do problema em um único conjunto. No pensamento sintético - que hoje nos parece o mais adequado - faz-se a adaptação ao sistema mais amplo.


Esta explicação inicial é importante para podermos avaliar o momento em que nos encontramos, o da administração estratégica em face do Plano Cruzado.

Conforme se pode ver na figura 3, o estado da arte do planejamento na administração estratégica não se estrutura da mesma maneira que o planejamento estratégico, que trabalhava com ciclos anuais. Como todos sabem qual é a orientação da empresa, vive-se um ciclo contínuo de planejamento e de controle. Na administração estratégica as operações são monitoradas através de um sistema que recolhe continuamente não só as informações internas à empresa como também as do seu ambiente. E é por isso que as empresas bem preparadas não foram pegas de surpresa pelo Plano Cruzado. Havia sinais claros de que uma medida do tipo do Plano Cruzado estava para ser tomada, embora não se tivesse certeza quanto à data em que ela ocorreria. Ele foi publicado meses antes pela imprensa. Bastava ler os jornais e as revistas técnicas.


O sistema de informações permite analisar as variações da relação entre os objetivos da estratégia que está sendo adotada pela empresa e o que está acontecendo na prática. Feita a análise das variações, pode-se tomar uma decisão: ou se corrige o rumo das operações para readequá-las à estratégia ou se revista a estratégia. No ano passado, por exemplo, revisamos por três vezes toda a estratégia na nossa empresa.

Hoje estamos preocupados em definir a vocação da empresa, porque é ela que dita a orientação estratégica: competitiva, de crescimento, de produtos de mercado futuro, para onde crescer, os recursos e competências necessários para atingir esse crescimento, etc. Hoje estamos acoplando tudo ao sistema de valores, porque não adianta planejar ou controlar, se a organização não sabe o que esperamos dela. Temos que dar os estímulos corretos para que todos na organização possam compreender o que queremos fazer.

Para exemplificar o que acabo de dizer, posso citar o caso de nossa empresa - uma empresa de marketing. O mais importante para nós são as nossas vendas e os nossos clientes. Nosso sistema de valores tem que sinalizar este fato para todos os nossos executivos, para que saibam o que se espera deles. Temos vários programas com tal finalidade. De acordo com um deles - que chamamos de "uma dose diária de realidade" - nossos diretores são obrigados a, diariamente, analisar a produção de um dos vendedores e telefonar para os clientes que compraram e para os que não compraram, para saber se foram bem atendidos. Desta maneira eles sentem continuamente o pulso do mercado e, ao mesmo tempo, sabem o que se espera deles.

Em resumo, a administração estratégica consiste em prever as conseqüências futuras das ações presentes, muitas vezes sacrificar o presente em favor do futuro, determinar esse futuro desejado, traçar o caminho para alcançá-lo, prever problemas e suas soluções, adaptar-se às mudanças do ambiente, desenvolver o sistema de valores, coordenar todos os recursos para a consecução dos objetivos e dedicar tempo ao futuro, conforme se pode ver o quadro 1.


Diante do que foi dito até aqui, o que representou para nós o Plano Cruzado? Era uma coisa pela qual já estávamos esperando. Não sabíamos exatamente quando ia acontecer e não conhecíamos os detalhes da fórmula. Por isso, colocamos nossa empresa de prontidão para o advento de qualquer mudança, levando em conta essa possibilidade quando tomávamos nossas decisões. Dessa maneira, passamos pelo Plano Cruzado tranqüilamente. E se algum executivo disser que foi apanhado de surpresa, é porque estava administrando mal o seu negócio. Os banqueiros que me desculpem, mas o Plano Cruzado, ou algo semelhante, era uma coisa que tinha de ocorrer Eles sabiam qual era a sua fonte de renda, assim como os supermercados. Eram sócios da inflação. Tinham que estar preparados para se adaptarem a uma situação em que ela deixasse de existir, pois havia sinais de que isso estava para acontecer. Isto faz parte da administração estratégica. Assim, para muitas empresas o Plano Cruzado, em si mesmo, não trouxe maior impacto, embora tenha exigido alguns ajustes.

Mas o que mais nos tem prejudicado é algo que remonta a 1981 e que acredito que não sc tenha alterado com o advento do Plano Cruzado. É a situação dc grande incerteza na qual temos de planejar. Para se entender a magnitude deste problema convém verificar primeiro o que acontece com o planejamento em uma situação normal.

Conforme se vê na figura 4, planejar significa antecipar problemas. Tem-se que escolher entre uma série de alternativas, a melhor delas; e analisar os problemas que ocorrerão no caminho. Projetam-se esses problemas e caminha-se para o objetivo traçado.


Acontece que, de 1981 em diante, entramos em uma situação de grande incerteza. Aguardávamos medidas do Governo, cujo caráter ainda desconhecíamos; não sabíamos se entraríamos em um processo inflacionário do tipo argentino, ou em uma recessão. A incerteza coloca-se como uma névoa ante nossos olhos e diminui nossa capacidade de ver o futuro, pois nos dá menos condições de avaliar as conseqüências, a longo prazo, de nossas decisões e de prever problemas, conforme se vê na figura 5, influindo obviamente em nosso processo de planejamento.


Qual é a melhor forma para se administrar estrategicamente em uma situação de grande incerteza? O quadro 2 resume os pontos mais importantes.


É preciso analisar cada decisão em relação ao número e tipo de opções que ela coloca, ao tipo de comprometimento que ela implica. O segredo da empresa é manter a flexibilidade. Se há duas ou três alternativas, deve-se assumir aquela que deixe maior número de opções abertas, aquela que não "amarre" a decisão. Por exemplo, não sabíamos o que iria acontecer com as ORTNs. Não iríamos tomar nenhuma decisão que nos atrelasse a elas, para não termos problemas se a correção monetária deixasse de existir. Administrar estrategicamente sob grande incerteza é manter abertas as opções para se adaptar aos imprevistos; é planejar o previsível e preparar-se para o que não é. E poucas coisas são realmente previsíveis; tem-se que estar sempre preparado para o pior.

Neste sentido tenho uma experiência a relatar. Nos últimos dois anos eu implementei mais planos de contingência do que planos originais. Na verdade só implementei planos de contingência. O Plano Cruzado não alterou essa situação - claro, mudamos nosso orçamento, nossas projeções, passamos de ORTN para cruzados - pois eu ainda não tenho confiança quanto aos efeitos que terá para o futuro. Há várias razões para isto.

Em primeiro lugar o Plano procurou manter a inflação sob controle, através do congelamento. Ele também atacou brilhantemente a realimentação inflacionária ao provocar, com rapidez surpreendente, a reversão das expectativas inflacionárias. Mas deixou claro que havia no Brasil mais ilusão monetária do que se imaginava: muita gente tinha dinheiro na caderneta de poupança e pensava que estava ganhando 15% ao mês; agora prefere gastar o dinheiro e ganhar "apenas" 1% ao mês. Além disso, existe o problema do déficit público, que está esmagando nossa economia e que não sei se poderá ser resolvido em ano eleitoral. Enfim, não se tem certeza a respeito de como esse Plano vai evoluir.

Assim, deve-se continuar administrando da mesma maneira que antes, estando-se preparado para todas as hipóteses. Se o Plano der certo, melhor para nós. Mantenho uma administração estratégica, trabalhando com um pé atrás.

É claro que o Plano Cruzado, em si mesmo, deu-nos um alento, como a primeira de uma série de medidas positivas. Pessoalmente acho até que o Governo poderá tomar providências para conter o déficit público, se o pressionarmos suficientemente. Mas existe também a questão da dívida externa, cujo desenlace não sabemos qual será.

Em suma, os problemas estruturais permanecem e ainda não se sabe como evoluirá o Plano Cruzado. Assim, também permanece a situação de incerteza. A administração estratégica deve continuar trabalhando com esta linha de incerteza, mantendo as opções abertas para o sucesso ou o fracasso do Plano. A estratégia é, pois, continuar a estratégia. Sei que esta é uma colocação polêmica, mas ela advém da prática de administrar uma empresa no dia-a-dia e pela qual tenho de responder aos acionistas, sem a possibilidade de dizer, depois, que me enganei.

Acredito que o Plano Cruzado seja um plano bem mais ortodoxo do que sua aparente heterodoxia quer fazer crer. Além do congelamento de preços, praticamente todo o Pacote permanece, no meu entender, rigidamente ortodoxo. Se o olharmos como capaz de reverter os elementos desestabilizadores que o processo inflacionário havia imposto, acredito que a estratégia empresarial, entre nós, encaminha-se mais no sentido de aproximar-se daquilo que o modelo predominante nos países da Europa e dos EUA postula, ou seja, o Pacote parece-me ortodoxo em tudo. Ele só não é ortodoxo em um aspecto: ele congela preços e congela também salários e taxas de câmbio. Mas, basicamente, a política salarial e a política fiscal permanecem as mesmas e, digamos, os grandes problemas ou as grandes interrogações permanecem em suspenso.

E se imaginarmos que o Governo sempre atuou no sistema empresarial estratégico brasileiro como agente desestabilizador - eu me refiro, com essa expressão agente desestabilizador, especialmente aos últimos anos - há uma espécie de sensação de alívio neste momento, porque ele pelo menos parece prometer que por 12 meses não provocará desestabilizações mais bruscas, como as que fazia no passado.

Creio que nós todos no Brasil, executivos e administradores, sempre tivemos a impressão de que o Governo era um agente extremamente poderoso. A meu ver, isso é uma coisa duvidosa; o Governo no Brasil sempre pareceu ser um agente poderoso, porque jogava sobre a economia e sobre a sociedade um peso enorme, justamente a fim de sanar uma fraqueza imensa. A partir do fim da década passada e início desta, sua dificuldade em gerir o débito interno e externo expôs uma faceta de extrema fragilidade. Mas, acredito que o Plano Cruzado traga, especialmente para aqueles responsáveis pela estratégia empresarial, uma sensação de alívio, porque há certa turbulência ambiental que, pelo menos por 12 meses, foi afastada.

Concordo com o Prof. Ronald Jean Degen quanto ao fato de que as grandes questões permanecem irrespondidas ou, se se quiser, as grandes ameaças continuam presentes no horizonte. De qualquer maneira, o congelamento de preços, o congelamento de salários e de aluguéis e uma redução substantiva nas taxas de juros fizeram com que alguns hábitos administrativos brasileiros se alterassem. E um hábito administrativo brasileiro importante que se alterou foi aquilo que o Prof. Ronald Degen chamou, muito propriamente, de sócios da sociedade no processo inflacionário. Ele afirmou que essa sociedade era basicamente constituída de banqueiros e de donos de supermercados. Não há como duvidar dele; mas eu estenderia essa sociedade a mais pessoas, e incluiria nela qualquer coisa em torno de 130 milhões de brasileiros. Afinal de contas, a FIBGE nos diz que 70% da população brasileira têm de um dia a 30 anos de idade. Ora, a inflação brasileira é crônica há exatamente 40 anos, o que significa que a maior parte da população brasileira, especialmente toda aquela que é economicamente ativa, nasceu, cresceu e socializou-se em meio ao processo inflacionário. É tão difícil responder, no fundo, a um brasileiro, como é possível viver sem a inflação, como é difícil responder a um europeu como é possível viver em uma economia com 300% de inflação.

Na verdade, nós notamos que os hábitos no Brasil não se alteraram. Simplesmente, estamos guardando o fôlego, com a esperança de que em março os preços sejam revistos: em março esse salário vai ser revisto; em março eu vou poder finalmente entrar com aquela ação revisional na justiça e ver se eu aumento a minha receita de aluguel, e assim por diante, ou seja, arraigou-se uma expectativa inflacionária de modo profundo no Brasil, que tem quatro décadas e na qual todos nós fomos criados, que sempre nos leva a nos associarmos à inflação. Aumentam-se preços, aumentam-se salários e a empresa brasileira sempre apelou para um expediente fácil, quando havia problemas. O mais fácil, eu acredito, ainda era pensar em remarcações ou repassamento.

Qual a conseqüência do Plano Cruzado sobre este tipo de atitudes? A conseqüência, de imediato, não afeta a estratégia. Na verdade, eu acho que a conseqüência imediata disso se coloca àquele nível chamado operacional. As empresas descobrem que,-como não podem mais aumentar os preços, é necessário olhar mais cautelosamente para as operações. Se há um setor empresarial brasileiro que demonstra isso de maneira bastante gritante é o setor bancário. Li em um jornal que já fecharam cerca de 500 agências bancárias; é exatamente o que eu chamo de uma importância operacional; agências que foram abertas para aproveitar uma carta-patente, ou simplesmente para absorver um negócio; uma agência aberta apenas para ocupar um espaço numa determinada região com relação ao futuro, através de operações claramente deficitárias. Algo semelhante se passou com as grandes cadeias de supermercados que, sabidamente, abriam e mantinham muitas lojas claramente deficitárias. Mas, na grande ciranda, esses déficits acabavam sendo absorvidos no processo. Então, parece-me importante frisar que o primeiro impacto sobre a vida empresarial não me consta - concordo inteiramente com o Prof. Degen - ter sido dado no nível estratégico, mas sim no nível operacional. É necessário rever a operação. Porém, rever a operação é uma forma de começar a repensar a maneira de administrar. Se lançássemos um olhar às várias áreas da empresa e se considerássemos que a estratégia poderia ser colocada como uma área funcional da empresa, eu diria que a estratégia tende a recuperar espaço e importância no contexto empresarial.

Sabidamente, a estratégia empresarial teve um berço de estabilidade monetária e crescimento econômico. Não há dúvida nenhuma de que a história do planejamento e da estratégia empresarial é essa. Ela nasce, basicamente, a partir de programas financeiros. A área de estratégia empresarial é uma área que tem forte impacto mercadológico. Acredito que, com grande franqueza e sinceridade, um especialista em estratégia empresarial e um especialista em estratégia de marketing vão ter muito que conversar para saber em que eles discordam, em termos de delimitação da área de uma disciplina científica; e não há dúvida nenhuma de que essa disciplina construiu-se em boa medida com base numa economia estável monetariamente e em crescimento. Isso faz bem à estratégia. Pelo menos momentaneamente, a economia brasileira tem as duas coisas: ela retomou o crescimento antes do Plano Cruzado e tem uma estabilidade monetária - é precária, concordamos, porque é uma estabilidade monetária baseada em decreto-lei; mas, de qualquer maneira, aí está.

Acho que é possível, hoje, voltar com um pouco mais de calma a se pensar em planos estratégicos e, talvez - para retomar um pouco da linguagem do Prof. Ronald Jean Degen - pensar mais em planos e menos em subplanos ou alternativas.

A atual situação da economia brasileira com o Plano Cruzado levou sabidamente a um repentino aumento do consumo. Sabemos que isso é transitório; essa euforia consumista já é declinante. Mas parece-me que uma coisa é muito clara: a economia brasileira, que já se tinha reativado antes do Plano Cruzado e continuou praticamente em crescimento depois dele, de longe esgotou a sua capacidade ociosa. Hoje nós temos gargalos ou filas de consumidores nos mais variados setores e então me parece que a necessidade de novos investimentos é muito clara. O arrefecimento da ciranda financeira, que está, pelo menos por hora, afastado, faz com que as empresas tenham que conceder mais atenção àquilo que constitui a sua operação principal ou as suas operações principais. Nós sabemos que empresas de ramos comerciais, de ramos industriais, tinham grandes montantes de recursos voltados ao setor financeiro. Sabíamos que o lucro financeiro em muitas dessas empresas superava o próprio lucro operacional. Acredito que é o momento de se voltar agora aos aspectos operacionais.

O que muda na área estratégica com o Plano Cruzado? Concordo com o Prof. Degen, não muda muito. A área de estratégia basicamente não muda; e ela não muda porque os modelos de estratégia empresarial que nós temos são todos eles europeus norte-americanos - claramente mais americanos do que europeus - à medida que os próprios europeus acabaram utilizando e adaptando ao longo desses anos os modelos vindos dos EUA. Eu acho que à medida que esses planos estratégicos, ou esses modelos estratégicos, foram construídos para economias sofisticadas, complexas, dotadas de certa estabilidade, e economias que operam em baixa taxa inflacionária, nós poderíamos até dizer o seguinte: o Plano Cruzado estabelece um clima de business as Usual, que nós nunca tivemos aqui ou, se tivemos, em raros momentos.

Por outro lado, eu acredito - partilho inteiramente dos temores e das ansiedades do Prof. Degen - que as grandes questões da economia brasileira não estão solucionadas com o Plano Cruzado. Todos nós nos perguntamos o que será do Plano Cruzado. Ele pode terminar no dia 28 de fevereiro de 1987, ou poderão ter que ser montadas pontes transitórias, que vão provocar uma grande intervenção do Governo em todo o processo. Mas, de qualquer maneira, parece-me que a questão do déficit público é séria, e ela se torna mais transparente com o Plano Cruzado. Era muito difícil aferir, até contabilmente, a relação entre receita e despesa dentro da administração pública, com uma inflação de 15, 16, 18% ao mês, com LTNs e ORTNs circulando. Algumas percepções nos permitem ver o seguinte: as despesas continuam aparentemente aumentando no setor público, mesmo com a eliminação da correção monetária. E aqui, no nosso estado de São Paulo, onde, como em todos os demais estados e até mesmo por proximidade eleitoral, a legislação coloca todas as admissões praticamente em suspenso, continuamos tendo um aumento efetivo nas despesas de custeio da máquina pública. Evidentemente, este papel potencialmente tumultuador do Estado ou do Governo sobre a economia continua latente.

Acredito que o Plano Cruzado, embora não tenha trazido alterações substanciais na estratégia, permita que a área de estratégia empresarial volte-se para aquilo que talvez constitua a sua tarefa mais nobre, que é pensar e refletir sobre oportunidades de investimentos novos ou não (novos no sentido de em novos produtos), ou em novas equações, produtos, mercados.

Promoção: Núcleo de Pesquisas e Publicações da Escola de Administração de Empresas de São Paulo Fundação Getúlio Vargas

Realizado em maio e junho de 1986 na EAESP/FGV

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Set 1986
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