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Capitalismo de estado e subdesenvolvimento

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Capitalismo de estado e subdesenvolvimento

Por Ignacy Sachs. Petrópolis, Editora Vozes Ltda, 1969, 206 páginas.

Capitalismo de Estado e Subdesenvolvimento, em sua edição original polonesa, é datado de 1962, quando então I. Sachs trabalhava como economista no Centro de Pesquisa de Economias Subdesenvolvidas, de Varsóvia. A obra em questão é uma versão ampliada de uma tese de doutoramento, apresentada pelo autor à Universidade de Delhi em 1960. Objeto de análise do autor são as experiências de capitalismo de Estado desenroladas em alguns países, especialmente no Japão e na Índia, e secundariamente no Paquistão, Brasil e México. Com tal análise, o que se pretende é avaliar em que medida a participação do Estado na economia nacional de países subdesenvolvidos tem representado para elas uma abertura para o desenvolvimento, colocando, dessa forma, em questão, aquela premissa em que se baseia, sem maior preocupação crítica, boa parte da literatura dedicada ao estudo dos problemas do subdesenvolvimento.

O estudo do mecanismo de formação de capital em economias subdesenvolvidas revela a existência de deficiências e obstáculos que somente poderão ser superados através de uma ação direta e consciente do Estado - este é o postulado básico que I. Sachs também aceita como teoricamente válido, mas depois de ter definido com cuidado os seus pontos de partida para encaminhar o estudo: de um lado, êle aceita como boa a distinção entre crescimento econômico (processo auto-induzido de expansão econômica) e desenvolvimento econômico (tipo de crescimento que necessita de uma promoção consciente e ativa), tal como ela está proposta por A. Bonné em Studies in Economic Development; de outro lado, conceitua economia subdesenvolvida como sendo aquela em que o estoque disponível de bens de capital não é suficiente para empregar a força de trabalho disponível com base em técnicas modernas de produção, endossando assim a conceituação proposta por O. Lange em Essays on Economic Planning, muito embora reconheça que ela não está totalmente isenta de dificuldades semânticas, e fique também expressamente reconhecida a impossibilidade de uma análise puramente econômica esgotar o estudo do subdesenvolvimento.

Justificada a interferência do Estado em larga escala no plano econômico, na medida em que as possibilidades maiores de acumulação - e nessa medida o próprio desenvolvimento - estão condicionadas à efetivação de reformas estruturais, o autor passa a estudar as formas dessa interferência: o planejamento e a participação direta, em determinados setores, quando então o Estado age como empresário (mas não como empresário privado). O planejamento, numa economia capitalista subdesenvolvida, é conceituado, em princípio, como um complexo de diretrizes para uma política econômica e objetivos definidos para orientação da iniciativa particular, complementado por orçamentos de investimentos públicos para um período de vários anos fiscais. Quanto à participação direta, a sua necessidade é tomada como evidente quando se trata dos setores de serviços públicos, transportes, matérias-primas e produtos semi-elaborados, mas ela deverá necessariamente estender-se ao da indústria de bens de produção, além de ser justificável naqueles pertinentes à indústria de bens de consumo e ao comércio, na medida em que nesses dois últimos casos seja possível uma lucratividade que permita o aumento da acumulação de capital dentro do setor público.

Sendo bastante amplas as possibilidades de combinação de todos esses elementos, serão também e necessariamente muito diversas as formas que o capitalismo de Estado poderá assumir concretamente. Numa tentativa de síntese, o autor resume essas alternativas na proposta de dois modelos básicos, ao mesmo tempo extremos e opostos, que podem servir como pontos de referência, pois que, sendo apenas teóricos, as experiências concretas dos países subdesenvolvidos apenas se aproximarão mais ou menos de um ou de outro. No primeiro modelo (designado convencionalmente como padrão indiano), o Estado ocupa um lugar permanente na economia, mais importante que aquele reservado à iniciativa privada, quando então a industrialização é realizada de acordo com um planejamento global e apoiada no setor público, pretendendo-se assim um crescimento auto-sustentado e a afirmação da independência econômica do país. No segundo (o padrão japonês), invertendo-se as posições, o Estado deve limitar-se a uma programação de caráter especificamente financeiro, ao desenvolvimento de setores pioneiros, e ao fornecimento das economias externas requeridas pelo setor particular, consagrando-se, além disso, e em razão direta da fraqueza do capitalismo doméstico, uma política de portas abertas aos capitais estrangeiros. Com o intuito de revestir esses dois modelos de uma forma mais realista é que o autor se dispõe a analisar, em seguida, aqueles casos concretos já mencionados.

Tendo a experiência japonesa, por seus resultados, permitido que fosse caracterizada como um milagre econômico, ela se tornou sabidamente o grande exemplo, constantemente proposto a todos os países subdesenvolvidos da atualidade; além desses resultados, foi uma experiência que se baseou sempre num princípio fundamental de privatização, tornando com isto possível a identificação do seu sucesso com a viabilidade de superação do subdesenvolvimento através de um crescente realizado dentro de padrões tipicamente capitalistas. A avaliação histórica feita por I. Sachs pretende, entretanto, demonstrar dois aspectos de grande importância que deixam de ser considerados quando se aponta o Japão como exemplo: 1) de uma parte, a Restauração Meiji, dando início a um rápido processo de crescimento, utilizou instrumentos apenas aplicáveis ou disponíveis graças à quase completa inexistência de capitais estrangeiros, os quais não encontravam condições atrativas para investimento no país, o que equivale a dizer que a própria Restauração Meiji apenas foi viável, na medida em que excepcionalmente o Japão desconheceu as conseqüências negativas de uma política de exploração colonial; 2) de outra parte, a industrialização japonesa (alimentada por um processo de capitalização, por sua vez baseado numa reforma agrária que levou, através de impostos, a uma total expropriação do camponês e iniciada pelo Estado, mas logo em seguida submetida a uma privatização em larga escala, o que ocorreu já em fins do século XIX, quando então surgiram os grandes monopólios japoneses), acabou representando um agravamento da desigualdade na distribuição da renda, ao mesmo tempo em que comprometia previamente suas possibilidades, no que se refere ao incremento de sua produtividade, na medida em que se assentava na utilização intensiva de mão-de-obra barata. A conclusão torna-se, nesses termos, óbvia: "À luz das evidências colocadas, podem surgir dúvidas legítimas sobre a aplicabilidade do padrão japonês aos países subdesenvolvidos contemporâneos, o que se explica pelo fato de que a industrialização japonesa foi influenciada por um conjunto de circunstâncias históricas singulares, e que além disso estavam associadas a características sociais altamente indesejáveis: o aumento do poder dos grupos monopolistas e as desigualdades na distribuição da renda". Mesmo assim, lembra o autor, o padrão japonês tem sido experimentado na atualidade por diversos países, sendo especialmente significativo, em seu entender, o caso do Paquistão, que é estudado em alguns de seus aspectos mais típicos: a participação do Estado na economia, através de companhias financeiras e de empresas mistas, e o papel desempenhado pelos capitais estrangeiros.

Quanto à experiência da Índia, o seu estudo leva ao reconhecimento da necessidade de distinguir-se entre uma promessa e uma realidade, o que resulta diretamente da existência de tendências contraditórias, cujas origens se encontram no próprio movimento de libertação nacional: "O Congresso emergiu da luta de libertação como uma espécie de front populaire, uma organização nacional muito ampla, cuja unidade estava mais em objetivos nacionais e antiimperialistas do que num programa social radical, tendo sido fácil aderir a êle porque a perspectiva de implementação ainda não tinha surgido. Entretanto, as políticas posteriormente desenvolvidas no Congresso não implementaram as propostas da Comissão Nacional de Planejamento, a não ser em pontos isolados, representando em muitos aspectos um retrocesso." Essa Comissão de Planejamento foi criada em 1950, sendo que "suas tarefas foram provavelmente as mais ambiciosas e abrangentes jamais concedidas a uma autoridade planejadora num país não-socialista". Mesmo assim, e embora o Governo houvesse decidido por um planejamento global, o setor público, ainda depois dos primeiros planos qüinqüenais, acabou por ter um crescimento inferior ao previsto, concentrando-se os seus investimentos em obras de infra-estrutura, enquanto que o setor privado, tendo sido propositadamente estimulado, acabou por ter um desenvolvimento muito superior: "Como conseqüência desses desenvolvimentos, estabeleceu-se uma contradição entre os compromissos do Congresso para com o funcionamento do padrão indiano e a crescente pressão dos interesses particulares organizados. O efeito mais óbvio dessa contradição é a diminuição dos recursos para uma expansão do setor público, contrastando com a relativa abundância de recursos para o setor privado.

Os dois outros padrões de crescimento são analisados de maneira mais sumária: o brasileiro, que caracterizaria uma situação de competição entre o padrão japonês e o padrão indiano; resultante do conflito entre forças antiimperialistas e setores da alta burguesia (a luta desenrolada em torno da política sobre o petróleo e tomada como exemplo desse conflito); e, finalmente, o mexicano, que seria marcado por um retorno ao padrão japonês, depois da revolução de inícios do século ter consagrado o modelo oposto. Para o leitor brasileiro terá particular interesse o comentário que é feito sobre a política de defesa do café posta em prática nos anos 30: "Celso Furtado tentou justificar em certa medida essa política, num brilhante paradoxo que mostra que ela redundou na construção de pirâmides keynesianas, ou melhor dizendo, de uma política anticíclica não intencional, ainda mais porque estimulou a atividade econômica através de uma inflação reprimida. O argumento é discutível, pois parte de uma aceitação indiscriminada do conceito de multiplicador de renda, sem uma clara distinção entre a produção material e a mera redistribuição da renda, sem falar das objeções sociais e econômicas visuais contra as políticas inflacionistas como tais". Concluindo seu estudo, I. Sachs admite que o mecanismo de acumulação de capital numa economia subdesenvolvida poderá ser dinamizado através de interferências do Estado, seja na hipótese de elas se fazerem de forma a consolidar a participação econômica do setor público, ou ainda quando elas objetivem o fortalecimento do setor privado. No entanto, os próprios exemplos históricos analisados evidenciam a tendência de o capitalismo de Estado assumir, cada vez mais, formas e comportamentos específicos do chamado padrão japonês, o que será uma conseqüência necessária das pressões exercidas pelos setores identificados com os interesses econômicos privados, nacionais e estrangeiros. De resto, é o próprio autor quem observa que "em condições específicas, em que a estratificação social não progrediu ainda e o Estado não é um instrumento de dominação pela burguesia e pelos senhores feudais, e na medida em que se tornou uma expressão de ampla luta nacional pela independência, o capitalismo de Estado pode acelerar o crescimento e o ao mesmo tempo sustar o fortalecimento da burguesia e o aparecimento de um novo tipo de contradições. .. (Porém) a oportunidade histórica não deve levar a entender o capitalismo de Estado como igualmente progressista para todos os países subdesenvolvidos. Na realidade, existem formas não progressistas e até reacionárias de capitalismo de Estado em países subdesenvolvidos".

Para o leitor brasileiro, em particular, poderá parecer que terão faltado condições ao autor para uma apreensão mais exata de traços particulares do subdesenvolvimento, tal como êle se apresenta no Brasil. Mesmo que seja assim, de outra parte registrese em crédito ao autor a crítica que se faz, tanto às construções elaboradas por Schumpeter, como àquelas outras que reduzem o subdesenvolvimento a um "círculo vicioso da pobreza". A problemática do subdesenvolvimento, para I. Sachs, deve ser necessariamente abordada sob um ângulo histórico: "historicamente falando, o problema do subdesenvolvimento econômico está intimamente ligado à emergência do sistema colonial, num estágio típico do desenvolvimento do capitalismo, e com a manutenção de uma ordem social anacrônica nos países coloniais... Em resumo, podemos dizer que as origens do subdesenvolvimento encontram-se acima de tudo no processo histórico de formação do sistema capitalista mundial". Nestes termos, o autor afirma sua fidelidade a uma linha tradicional de pensamento, que remonta a Rosa Luxemburgo (o processo de acumulação de capital, nas economias centrais, ligado ao capital constante, ao capital variável, à mais-valia, e as formas de produção pré-capitalistas), e aponta para a limitação fundamental das teorizações mais correntes, que se restringem à busca das causas do subdesenvolvimento nas insuficiências internas das próprias economias subdesenvolvidas.

JOSÉ SÉRGIO ROCHA DE CASTRO GONÇALVES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1970
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