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A Alca ou os Jogos Pan-Americanos da Competitividade Econômica

A Área de Livre Comércio das Américas (Alca) é assunto que continua rolando na diplomacia e na mídia, e que as empresas brasileiras também estão rolando e enrolando, tanto na agenda de suas preocupações, como na definição de sua ação estratégica com relação ao assunto. A expressão “planejamento estratégico” anda meio desgastada, mas, seja com esse ou outro nome, as empresas precisam colocar a Alca na sua lista de prioridades e definir como vão agir diante dela. A mídia difundiu a noção de que a Alca é um assunto para 2005, mas não é bem assim.

Até janeiro de 2005, as negociações devem terminar, e o acordo entrará em vigor a partir de 1º de janeiro de 2006, já com fluxos de comércio liberalizados, ou seja, com maior competição. Assim, o que vem nessa data pode ser comparado à competição esportiva denominada Jogos Pan-Americanos, envolvendo as três Américas. Qualquer um sabe que, diante de uma competição agendada, é preciso preparar-se para ela, sem deixar para a última hora. E essa será uma competição ainda mais séria, pois que, depois de aberta, será permanente, com as disputas ocorrendo no dia-a-dia das transações comerciais. Portanto, exige um preparo ainda mais adequado. Entretanto, não é isso o que vem acontecendo. De um modo geral, não vejo as empresas, seja individualmente seja agregadas em suas entidades de classe, preocupando-se efetivamente com a Alca, na medida daquilo que é de fato necessário, nem se preparando convenientemente para a nova e acirrada competição que virá com ela.

A propósito, a situação faz lembrar a lição básica de Stephen Covey de que muitas pessoas e organizações não são eficazes porque deixam de cuidar de coisas importantes, mas não urgentes, e ficam, no seu dia-a-dia, lidando apenas com coisas urgentes, algumas até sem importância (Covey,1995). O diabo é que em algum momento as coisas importantes, que não eram urgentes, adquirem essa característica de urgência. Se não há o preparo adequado, surgem as crises causadas pelo problema que só se percebe quando está à nossa frente, mas já então inarredável e inadiável.

O que Covey prega é simplesmente uma questão de bom-senso. O problema é que esse não é tão abundante como muitos imaginam. Freqüentemente, é equivocada a percepção de que não há urgência. Outros chegam a considerar o assunto até mesmo sem importância. No que se segue, vamos insistir que a Alca é importante, urgente e merece um tratamento prioritário, cujas linhas procuraremos delinear. E isso não vale apenas para as empresas. É também uma oportunidade ímpar para o país reexaminar a competitividade de sua economia e de rever a sua estratégia competitiva no jogo econômico globalizado.

1 A ALCA É IMPORTANTE

As negociações da Alca envolvem hoje 34 países, praticamente 100% dos que constituem as três Américas. A pequena Cuba ficou de fora, por conta da velha encrenca com os Estados Unidos. Também não inclui a Guiana Francesa, que oficialmente ainda pertence à França. Esse conjunto de 34 países tem uma população total de cerca de 800 milhões de pessoas e um PIB agregado em torno de US$11trilhões (The Economist, 21 de abril de 2001:19). É, realmente, um mercadão, com tamanho para ninguém botar defeito, superando em cerca de US$2 trilhões o da União Européia (Alaby, 2001ALABY, Michel A. A Alca e a posição do Brasil, Jornal do Economista, abril de 2001.:14).

Já vi gente afirmando que a Alca é essencialmente um esquema para os Estados Unidos ganharem o nosso mercado, mas isso não se sustenta. Se, por hipótese, ela nos trouxesse esse dano, nosso PIB cairia, o déficit comercial seria brutal e a taxa de câmbio (R$/dólar) iria para o espaço. Tudo isso provocaria um movimento na direção contrária. Mas é um cenário absurdo, e não chegaremos lá.

É claro que, se negociarmos mal a adesão, teremos mais desvantagens do que vantagens, e caminharíamos um pouco na direção desse cenário, mas logo provocando o tal movimento em sentido contrário. O problema, portanto, está em negociar bem essa adesão, para que as vantagens superem as desvantagens. Em síntese, outros países podem estar de olho no nosso mercado, mas nós também devemos estar de olho no deles buscando vantagens mútuas.

Onde estão essas vantagens? É raríssimo encontrar um economista que não ressalte os lucros de uma maior liberdade de comércio entre as nações. Com ela, os países ganham em eficiência e escala ao se especializarem na produção dos bens e serviços que utilizam mais intensivamente os fatores de produção de que, relativamente entre si, dispõem com maior abundância. É só teoria? Não. O mundo tem caminhado na direção de um comércio mais livre e, dentro dos blocos em que essa tese é praticada, de um modo geral os países estão satisfeitos com a maior liberdade comercial. O caso mais evidente é o da União Européia, à qual, inclusive, muitos outros países querem aderir. Mais perto de nós, temos o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, conhecido como Nafta, no qual estão juntos os Estados Unidos, o Canadá e o México. E, ainda mais perto, o Mercosul, no qual, apesar dos pesares, não se fala em voltar atrás.

Nele, o que tem atrapalhado são as políticas macroeconômicas de cada país, e não o interesse e o empenho microeconômico dos empresários e trabalhadores em levá-lo adiante.

2 A ALCA É URGENTE

Fala-se de 2005, mas percebe-se a urgência do que precisa ser feito até lá. Tome-se, por exemplo, o conjunto de providências a serem tomadas até 1º de abril de 2002, a menos de um ano de hoje (a propósito, ver Mancini, 2001:22). Dentre elas estão a definição de: métodos e modalidades das negociações tarifárias, o que inclui o ritmo da redução de tarifas e o patamar a partir do qual ocorrerá a desgravação das tarifas; regras para eliminação de subsídios às exportações agrícolas; calendário e modalidades para a implantação de regras de origem; metodologia para revisão das leis antidumping e medidas compensatórias aplicadas pelos países do continente, além de várias outras. Logo adiante, até 15 de maio, também de 2002, devem começar as negociações sobre regras de origem, liberalizações tarifárias, de investimentos, de serviços e de compras governamentais (ver Mancini, 2001MANCINI, Cláudia. Negociação de tarifas começa em 2002, Gazeta Mercantil Latino-Americana, 16 a 22 abr. 2001.:22). Ou seja, já se aproxima a definição das regras do jogo. As empresas não podem ficar de fora desse processo aguardando apenas a hora da competição inicial. Desse jeito, poderá ser também terminal.

3 É UM CAMINHO SEM VOLTA?

Teoricamente, daria para reverter o processo. Foi dito acima que as negociações devem terminar em janeiro de 2005, com o acordo entrando em vigor logo no início de 2006. Ao longo de 2005, os governos dos 34 países deverão aprovar o acordo em seus legislativos nacionais, e pode ser que algum queira ficar de fora. Num artigo recente, o embaixador Rubens Barbosa esclareceu que as negociações em curso “deverão preservar ampla margem de manobra para que em 2005, já sob novo governo, o Brasil tome a decisão sobre se deve aderir ou não a um futuro acordo” (Barbosa, 2001BARBOSA, Rubens Antônio. A Alca que interessa ao Brasil, Gazeta Mercantil, 12 maio 2001, p. 3. ). Realisticamente, entretanto, vai ser difícil deixar o barco. Essas negociações têm uma dinâmica própria, diplomática e política, em que o governo e seus negociadores vão avançando e firmando compromissos, como aconteceu com o Mercosul e com a própria idéia da Alca. Aliás, vale lembrar que as negociações com relação a esta começaram em 1994, ou seja, sete anos atrás. Nessa dinâmica, os agentes econômicos, como as empresas e suas entidades, estão sendo arrastados, querendo ou não. E o país vai se comprometendo internacionalmente. Ficaria mal para dizer, só em 2005, que prefere ficar fora desses novos jogos Pan-Americanos.

4 A ATITUDE QUE CONVÉM

Portanto, a atitude que convém para as empresas brasileiras é supor que a Alca vai avançar e preparar-se para ela, deixando o comportamento, que ainda hoje predomina, mais reativo ou mesmo passivo. Ao contrário, as empresas devem buscar uma atitude pró-ativa, procurando saber melhor o que se passa nas negociações, examinando como os seus produtos e de seu setor serão negociados e afetados pela liberalização. E, ainda, pressionando legitimamente o governo na defesa de seus interesses, argumentando com análises bem fundamentadas, pois não vale ser apenas do contra. Enfim, uma atitude de participar do processo, e não de ignorá-lo ou tratá-lo como sem importância e urgência.

Entre 1996 e 1998, acompanhamos alguns entendimentos iniciais da Alca representando um setor da indústria, e percebemos que a maioria deles não dispunha de estudos que lhes permitissem conhecer a maior competição que vem pela frente, e a melhor forma de enfrentá-la. Hoje, no caso da indústria, há maior organização, liderada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que vem realizando, juntamente com as entidades regionais e setoriais a ela associadas, diversos estudos para definir as posições dos empresários nas negociações, além de acompanhar todos os eventos do processo. A agroindústria e o setor agrícola também estão mais ativos. Os trabalhadores constituem o grupo mais distante, e parece que só recentemente acordaram para a questão.

Assim, já não há dúvida de que há gente trabalhando no assunto do lado das empresas, mas o que ainda preocupa muito é a atitude de muitas delas e das entidades de classe a que estão filiadas. As empresas até designam funcionários para cuidar do assunto, comparecem às reuniões das entidades e umas poucas chegam a colocar gente diretamente nos eventos e no acompanhamento das diversas negociações. Mas ainda não vimos, no topo de suas hierarquias decisórias, o engajamento e o empenho que gostaríamos de presenciar. Quando há algum evento, como a recente reunião preparatória de ministros dos países-membros, realizada no início de abril deste ano em Buenos Aires, ou a reunião de chefes de Estado, que ocorreu no final do mesmo mês em Quebec, o assunto esquenta entre os empresários, que saem a dar entrevistas, ou mesmo a acompanhar as autoridades governamentais. Logo depois, a coisa parece esfriar, e não há a firmeza com que gostaríamos de ver o assunto tratado.

Mesmo da parte dos economistas e de outros que realizam estudos sobre o assunto, notamos deficiências. De modo geral, fica-se em um nível agregado e genérico de informações e de análises. É assunto para análises microeconômicas de profundidade. Entre outros aspectos, é necessário conhecer as condições de competitividade de cada produto entre os diversos países, inclusive questões tarifárias e não-tarifárias ao longo de sua cadeia produtiva. Embora os países maiores e de estrutura produtiva mais complexa sejam poucos, pode ser que, no conjunto dos demais, exista um produtor ou outro capaz de ser um competidor à altura. Aliás, é bom lembrar que mesmo países pequenos costumam levar medalhas em competições esportivas internacionais, e alguns chegam a ser especializados, como o Quênia e seus corredores. O mesmo ocorre na competição comercial. Assim, o trabalho de identificação dos competidores precisa ser abrangente e detalhado.

Mas para quê? Para quem não é apenas do contra - ou que, mesmo sendo, procura fundamentar sua posição e/ou busca a atitude pró-ativa que recomendamos -, esse trabalho de identificação dos competidores e de suas condições servirá, em última análise, para identificar em que produtos uma empresa poderá ganhar ou perder mercado interno e internacional. A partir daí, ela poderá repensar sua estratégia produtiva em face da Alca. Nesse processo, contudo, não pode ficar sozinha. O governo tem um grande papel a desempenhar.

5 NO GOVERNO, A PASSIVIDADE É OUTRA

Se o governo vem avançando na esfera diplomática das negociações, inclusive com sucessos, como no recente episódio em que os Estados Unidos tentaram antecipar a vigência da Alca para 2003, não temos visto uma preocupação maior em apoiar as empresas no seu processo de reestruturação de suas linhas de produção. Em particular, há duas áreas em que esse papel é fundamental, ou seja, na questão tributária e nos financiamentos para reestruturação produtiva, conforme mostraremos a seguir.

Para a economia brasileira, essa discussão da Alca e o efetivo engajamento na maior liberdade comercial que ela ensejará representam uma oportunidade ímpar para repensar e ampliar a competitividade das empresas brasileiras. Assim, as detalhadas avaliações microeconômicas deveriam servir não para definir as posições negociadoras brasileiras, mantida a atual situação de competitividade, mas para estimular um movimento das empresas no sentido de ampliar as linhas de produção em que são mais competitivas e de recuar nas que não são, com o que a economia como um todo ganharia maior competitividade.

Ora, a estrutura tributária é um elemento importante dessa competitividade em qualquer caso, cabendo, assim, reexaminar os gravames tributários, como os impostos em cascata e não restituíveis nas exportações. E, onde for necessário reestruturar as linhas de produção, cabe ao governo coordenar a articulação dos mecanismos de financiamento necessários, seja por meio do BNDES, seja, melhor ainda, com essa via acoplada ao propósito de expandir a captação acionária junto ao mercado de capitais.

O livre comércio traz inegáveis ganhos, mas para chegar a eles há também perdas, envolvidas na reestruturação produtiva, que eliminam da competição os produtos e produtores que não têm condições de enfrentá-la. Sem o governo atuar na articulação e coordenação desse processo de restruturação, este acaba sendo estancado pelos que não vêem nele quaisquer vantagens ou, mesmo vendo, não têm condições de, por si mesmos, promoverem os ajustes necessários para alcançá-las. Essa é outra maneira de perceber por que a ação do governo é fundamental no processo de levar a economia a uma maior exposição ao livre comércio com outras nações.

Em síntese, devemos encarar a Alca como uma grande oportunidade para um profundo diagnóstico das forças microeconômicas que determinam a competitividade da economia brasileira. Ao diagnóstico devem se seguir as ações empresariais e governamentais necessárias para que o Brasil possa sair-se bem não apenas nessa versão econômica dos Jogos Pan-Americanos, mas também na competição ainda mais ampla, de alcance global que, por sua vez, guarda correspondência com os Jogos Olímpicos.

Em qualquer caso, as empresas, tendo na retaguarda os trabalhadores e os empresários, serão as competidoras. Na definição das regras, entra o governo como que no papel dos cartolas. Nas ocasiões em que tivemos sucesso esportivo, como na histórica primeira vitória na Copa do Mundo de 1958, isso ocorreu porque os jogadores eram de primeira grandeza, e os “cartolas” e seus técnicos cumpriram o seu papel ao montar bem o time, além de cuidar do que dizia respeito ao sucesso da equipe. Na Alca não será diferente, pois o sucesso do Brasil dependerá da eficácia do esforço conjunto. Às empresas, como aos jogadores líderes da equipe, cabe o duplo papel de fazer com que os que vestirão a nossa camisa se empenhem adequadamente, e de cobrar dos “cartolas” que coordenem e ajudem efetivamente no esforço de levar o time à vitória.

  • O autor agradece as observações e sugestões de Maria Teresa Bustamante e Patrícia Marrone.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALABY, Michel A. A Alca e a posição do Brasil, Jornal do Economista, abril de 2001.
  • BARBOSA, Rubens Antônio. A Alca que interessa ao Brasil, Gazeta Mercantil, 12 maio 2001, p. 3.
  • COVEY, Stephen R. First things frst - como definir prioridades num mundo sem tempo. São Paulo: Campus, 1995.
  • MANCINI, Cláudia. Negociação de tarifas começa em 2002, Gazeta Mercantil Latino-Americana, 16 a 22 abr. 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2001
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