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Intermediação política, transparência decisória e atendimentos preferenciais

SEÇÃO ESPECIAL

A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS

Intermediação política, transparência decisória e atendimentos preferenciais

Jorge Vianna Monteiro

Professor de políticas públicas da Ebape/FGV e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio – Departamento de Economia – Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea – CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

"Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da 'public choice' – uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo."

Coordenação: Jorge Vianna Monteiro

1. Introdução

A característica fundamental das escolhas na economia brasileira é a instabilidade de suas instituições, vale dizer, das regras do jogo no qual se originam as políticas públicas1 1 A política de estabilização de preços, em curso ao longo da década de 1990, é o exemplo mais notório da prática de promover seguidas e variadas alterações institucionais, de modo a habilitar resultados macroeconômicos que, por alguma razão, se julgue desejáveis. (Monteiro, 1997, 2000, 2004). Essa é, por um lado, a dimensão mais inquietante do discricionarismo com que tais políticas são formuladas e operacionalizadas; por outro, essa é a diferença mais significativa comparativamente ao padrão das democracias representativas do Primeiro Mundo. Essa instabilidade é expressiva mesmo no âmbito das regras mais abrangentes, ou seja, no jogo constitucional (Monteiro, 2004, cap. 1). Por conseqüência, os demais conjuntos de regras específicas e sujeitas a procedimentos de revisão menos exigentes (regimentos legislativos, legislação ordinária, medidas provisórias, entre outras) repercutem essa característica constitucional. A seção 2 trata essa questão na rede de interações que está subjacente às decisões judiciais, bem como a decorrente dificuldade em estabelecer o impacto líquido da transparência decisória nessa intermediação.

Já a seção 3 mostra outra propriedade dessa trajetória: o reforço crescente do poder discricionário do Executivo que, em grande parte, decorre de uma peculiar capacidade legislativa alocada ao presidente da República.

Adicionalmente, duas ocorrências sinalizam a operação de um vigoroso mecanismo indutor de políticas públicas:

o recurso às estratégias de veto e de contingenciamento aplicadas pelo Executivo ao Orçamento Geral da União (Lei nº 11.306, de 16 de maio de 2006);2 2 Lula congela R$14,2 bi do orçamento de 2006, O Estado de S. Paulo, 17 maio 2006, Nacional, p. A6. a retomada do tema da crise do setor agropecuário, em audiência pública na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado Federal, realizada em Brasília em 16 de maio de 2006.3 3 Crise mobiliza autoridades e agricultores, Jornal do Senado, 17 maio 2006, v. XII, n. 2374, p. 5.

Boa parte das decisões na área orçamentária da União tem sido alvo de diagnósticos essencialmente contábeis-gerenciais que focalizam o tamanho dos cortes (efetivo versus desejável) no gasto público ou sua compatibilidade ante a evolução da carga de impostos.4 4 Ousadia para cortar, O Estado de S. Paulo, 17 maio 2006, Notas & Informações, p. A3. Tais ocorrências têm implicações muito mais profundas de natureza institucional, especialmente em ano de eleições, que ficam inexploradas em diagnósticos puramente orçamentários. De igual modo, demandas preferenciais do setor agropecuário tanto quanto daqueles alcançados pelas regras do Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (Simples, no rastro da tramitação da MP nº 275, de 27 de dezembro de 2005) vão sendo trazidas, com maior intensidade, para frente da deliberação política. A seção 4 desenvolve uma perspectiva de análise mais apta quanto a esse tipo de ocorrência.

2. Uma inexorável intermediação

A conjuntura recente ilustra uma ocorrência singular de instabilidade institucional, tendo por principal protagonista o Judiciário.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) havia adotado5 5 Regras do jogo instáveis e mais um dilema contramajoritário, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006. uma interpretação das regras eleitorais que definem a vinculação de alianças partidárias nos estados às alianças observadas nas candidaturas presidenciais, à semelhança do regime que vigorou na eleição de 2002. Contudo, em 6 de junho de 2006, o TSE optou por uma revisão dessa regra de "verticalização", optando por um padrão bem mais rígido para essas alianças.6 6 Tal rigidez impunha que os partidos políticos que não lançassem candidato à Presidência da República não estariam livres para constituir coligações estaduais que melhor atendessem às suas próprias preferências. No entanto, dois dias depois, o TSE restabeleceu sua decisão original, anunciando a volta ao regime de 2002.

Na extensão em que regras eleitorais representam um segmento relevante das escolhas públicas, pode-se pressupor a substancial reconfiguração de estratégias de campanha que essas alterações promovem no comportamento de políticos e partidos políticos – duas classes de participantes do jogo em que se determinam as políticas públicas.

Os diagnósticos dessas ocorrências variaram entre a atribuição de um erro de cálculo do TSE – e especialmente de seu juiz presidente – a efeitos da mobilização de lideranças partidárias diretamente junto ao TSE, secundada por ameaças de recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF).7 7 TSE volta atrás e permite alianças estaduais como na eleição de 2002, O Estado de S. Paulo, 9 jun. 2005, Nacional, p. A4.

Contudo, observe o leitor que para que uma deliberação judicial, por exemplo, do STF, produza efeitos, ela requer a transigência daqueles a quem a deliberação é direcionada: demais instâncias judiciais, burocratas de vários níveis decisórios, comissões legislativas, partidos políticos, governos estaduais e municipais, e mesmo cidadãos tomados individualmente. Portanto, identifica-se nessa seqüência decisória uma complexa relação agentepatrocinador (Monteiro, 2004, cap. 1), em que todas essas instâncias atuam como agentes do impacto da deliberação do STF. Nesse ambiente institucional, a noção de um Judiciário independente fica muito qualificada, comparativamente à mera vigência da regra de vitaliciedade do mandato do juiz (McNollgast, 2006).

A própria escolha de estratégia do Judiciário pode se deslocar do campo ideológico ou doutrinário, para a pura e simples viabilidade de ter os agentes na seqüência decisória mencionada cumprindo a deliberação judicial. Se é válido o ponto de vista de que o Judiciário adapta sua doutrina à sua preferência por ver suas deliberações acolhidas pelos agentes que atuam na trajetória dessas deliberações, é igualmente interessante supor que, antecipando essa refocalização estratégica da parte do Judiciário, esses mesmos agentes possam precipitar a adoção dessa estratégia pelo Judiciário.

Talvez seja por essa perspectiva analítica que melhor se possa interpretar o que levou à revisão da decisão do TSE quanto à aplicação da regra da verticalização eleitoral às eleições de 2006.8 8 A teia de agente-patrocinador vinculada ao Judiciário, como exemplificada pelo episódio do TSE e o vai-e-vem da regra de verticalização eleitoral, aprofunda o moderno conceito de governo de intermediários (Ortiz e Issacharoff, 1999).

Em decorrência da análise aqui apresentada, perceba o leitor a complexidade com que operam as interligações dos participantes do jogo de políticas no governo representativo, relegando a um simples caso introdutório a vinculação do eleitor ao político – pressuposto dominante nas análises normativas que prescrevem maior transparência do comportamento dos políticos-legisladores, como virtude a ser buscada por reformas de diferentes abrangências que têm sido propostas à margem da crise política nacional.

Todavia, o conceito de transparência decisória deve ser utilizado com alguma cautela, sobretudo quando de seu contraponto com os custos de abertura do processo de decisão política (Garrett e Vermeule, 2006:2):

um processo de escolhas públicas opaco pode levar a boas deliberações, enquanto, em troca, a abertura limita a margem de negociação com grupos de interesses preferenciais;9 9 Para uma discussão quanto ao papel do lobbying dos editores de jornais, como uma das forças que precipitaram nos EUA a aprovação de uma lei de liberdade de informação, em 1966, ver O'Reilly (2003:560): "Se a informação é uma commodity, o lobby dos jornais buscava obter maior acesso à provisão dessa commodity (...) [com tal propósito, investiu-se] em uma campanha por 'liberdade de informação', um rótulo de tal nobreza que não poderia ser posta em dúvida". a transparência tanto viabiliza a responsabilização do político (agente) diante de seus patrocinadores-eleitores (o que atende ao interesse geral), quanto facilita a sinalização de que esse político pode direcionar a interesses preferenciais (o que é socialmente ineficiente); o requisito de transparência em uma escolha pública pode se apresentar com diferentes significado e intensidade, segundo as etapas do processo de sua formação;10 10 Uma regulação econômica, por exemplo, pode ser sustentada em uma lógica técnica que é de acesso restrito aos burocratas e aparecerá estrategicamente camuflada em uma sinalização mais ampla, em sua forma de comunicado ao mercado a que se aplica. Tal é o caso das deliberações de política do Copom. políticos podem optar por um espaço de deliberação privado, ainda que os requisitos de abertura do processo decisório sejam substanciais;11 11 Tal é o caso, por exemplo, em que os políticos deliberadamente atendem interesses preferenciais de grupos, de modo a que seus eleitores e a sociedade em geral não tenham inteira percepção desse atendimento que pode ter por contrapartida o aporte de recursos de campanha ao próprio político ou ao partido ou coalizão partidária a que esse político se vincule. mesmo não havendo exigência legal por transparência, pode-se observar algum grau de abertura decisória que atenda ao interesse privado dos políticos.12 12 A pura e simples conexão eleitoral justifica esse tipo de sinalização, especialmente na proximidade de uma data eleitoral, contribuindo para a formação de um ciclo político-eleitoral na trajetória das políticas públicas (Monteiro, 2004, cap. 1).

3. O recorrente tema das medidas provisórias

O poder tão vigoroso e extenso do Executivo nas escolhas públicas decorre, em grande parte, do próprio processo decisório do Congresso Nacional, uma vez que é o Executivo que operacionaliza os projetos de lei aprovados no Congresso. Com isso, recursos e poder discricionário que vêm incorporados a essa tarefa inescapavelmente sustentam e mesmo ampliam o poder do presidente da República e dos burocratas do Executivo (Macey, 2006:105).

Não obstante, as regras constitucionais atribuem ao presidente da República e, por extensão, à alta gerência do Executivo, a faculdade de emitir leis que envolvem a anuência ex post do Congresso: deputados e senadores devem reagir a fatos consumados pela entrada em vigor das medidas provisórias.

A figura 1 mostra a trajetória das MPs, mês a mês, como proporção da produção de leis aprovadas no Congresso – descontadas as leis de conversão, isto é, aquelas originadas de MP – calculada por seu volume médio de janeiro de 2003 a maio de 2006, L*. O pico observado em dezembro de 2003 deve-se à emissão recorde de MPs no período sob análise: 20 MPs em um único mês.13 13 A propósito, nos anos 1990 – portanto, sob o regime anterior à EC nº 32, de 11 de setembro de 2001 – a mancha preta na figura 1 aparecia sistematicamente acima do eixo horizontal (Monteiro, 1997, 2000). Em termos estritamente quantitativos, em 2003-05, esse peculiar poder de propor é responsável por quase 2/5 da feitura de leis.


Esse fator de poder do Executivo nas escolhas públicas está associado ao argumento convencional de que os problemas de política apresentam-se em janelas de oportunidade (Kingdon, 1995, cap. 8) que muito rapidamente podem se fechar, demandando, desse modo, pronta tomada de decisão e feitura de leis. Em verdade, essa tem sido a mais freqüente linha de argumentação dos que defendem esse formato de lei.

Tal ponto de vista pode ser tornado mais refinado quando se considera (Macey, 2006:108):

a natureza crescentemente precisa da formação de preferências da alta gerência do Executivo, comparativamente ao que ocorre na legislatura, com suas divisões em linhas partidárias e mesmo nas diferenciações de correntes dentro de um mesmo partido; a janela de oportunidade de política econômica é ainda mais breve e significativa, quando um novo tema de política irrompe, tal qual em uma crise.

Essas duas linhas de argumentação destacam o Executivo como o departamento de governo que opera sob um menor número de restrições ou, ainda, sob restrições mais flexíveis, para coordenar e operar uma política pública.

Tanto o Congresso quanto o Judiciário poderiam ter, ao longo dos últimos 10 ou 15 anos, se empenhado em neutralizar essa tendência de um departamento do governo se tornar tão poderoso.

Ao longo dos anos 1990, secundando a operacionalização do Plano Real, por exemplo, Congresso e STF preferiram referendar tacitamente o substancial fluxo de medidas provisórias que deu forma a essa política de estabilização de preços (Monteiro, 1997, 2000).

De fato, a dissipação da separação de poderes deve-se em grande parte à abdicação, por longo tempo, do Congresso Nacional em interferir na trajetória das leis emitidas pelo presidente da República (especialmente em política econômica) e à conseqüente aceitação de ele próprio legislar sobre temas marginais. Não é claro se a permanente circunstância de crise na qual opera a economia nacional tem inibido Judiciário e legislatura de serem mais reativos à farta e variada emissão de MPs. Nos anos 1990, por exemplo, era altíssimo o custo político em que se incorreria rejeitando ou impugnando parcialmente muitas dessas leis que cuidavam de privatizações, operações de socorro ao mercado bancário, indexações (URV) e desindexações (introdução do real) generalizadas. Todavia, a estratégia de logrolling coordenada pelas lideranças dos partidos da coalizão que detêm o mando no Executivo – e, muito especialmente, pelo comando da Câmara dos Deputados e do Senado Federal – contribui para o sucesso dessa estratégia de minimizar o papel dos legisladores na determinação das escolhas públicas.

Com isso, a autonomia decisória das duas casas legislativas passou a assumir uma configuração ad hoc, sendo negociada tema a tema, segundo o melhor dos interesses do Executivo.

Somente em 2001 (EC nº 32, de 11 de setembro de 2001), possivelmente levada pela incerteza eleitoral (Monteiro, 2004:142), a classe política optou pela introdução de um regime mais restritivo de feitura de leis pelo Executivo. Essa é a mesma incerteza que se descortina no ano eleitoral de 2006 e que poderá levar a que os legisladores, mais uma vez, alterem mais restritivamente as regras de emissão de MPs.14 14 Sucesso econômico com fragilidade institucional, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 340, 10 abr. 2006; Regras do jogo instáveis e mais um dilema contramajoritário, Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006.

Em outra vertente, o Congresso já poderia, desde longa data, ter recorrido a seus poderes, para aumentar o seu controle sobre a lei orçamentária.

Essa seria uma significativa melhoria institucional: ter o Orçamento da União executado em bases substancialmente próximas daquelas aprovadas por uma maioria dos representantes eleitos. Da forma que opera atualmente, a aprovação do orçamento corrompe o próprio processo orçamentário público, uma vez que todos os envolvidos antecipam um elevado grau de uso de contingenciamento e de veto na lei aprovada; isso viabiliza que deputados e senadores se ocultem sob responsabilidades difusas. Tal prática também evade o processo eleitoral, pois o Congresso acaba suplantado em suas escolhas orçamentárias, pelas preferências da alta gerência econômica do Executivo. Essa pode ser uma ocorrência conveniente à gerência pública, porém é péssima da perspectiva da democracia representativa: implicitamente, trata-se da transferência de poder decisório dos que detêm mandato eletivo para agentes de decisão sem mandato eletivo. Ambas as circunstâncias (emissão de MP e escolhas orçamentárias) tipificam, em certa extensão, um dilema contramajoritário (Monteiro, 2004:41) e a reação dos legisladores, numa e noutra frente, no entanto, tem sido muito mais a de buscar transferir poder de decisão para o Congresso do que propriamente restabelecer uma forma viável de operação do sistema de separação de poderes.

4. "Pagando para jogar"

Ao longo dos últimos 40 anos, o fenômeno do "pagar para jogar" (McChesney, 2002) o jogo das escolhas públicas tem sido alvo de crescente atenção dos economistas e não deixa de ser paradoxal que, nas discussões sobre a presença (orçamentária e não-orçamentária) do governo na economia brasileira, relevantes aspectos da interação dos políticos com grupos de interesses especiais sejam deixados de lado. As ocorrências mencionadas na seção 1 podem ser observadas por esse ponto de vista, complementando substancialmente as constatações típicas de análise de contas públicas que até aqui são dominantes.

Mais do que em qualquer outra oportunidade, em época eleitoral, cortar ou não cortar gasto público assume uma dupla configuração, como mostrado na figura 2.

Por um lado, o corte de gastos compromete atendimentos preferenciais a segmentos organizados da economia que poderão entender essa sinalização como uma estratégia de ameaça de que os políticos lançam mão. Essa é a vertente (A) na figura 2.


Nesse sentido, diante dessa perda potencial de ganhos agenciados no processo político (rents), tais segmentos se disporão a pagar para participar dessa escolha pública e, assim, buscar impedir que se dê o cancelamento de um atendimento já em curso ou que se crie uma penalidade: esse é um pagamento que alimentará os fundos das campanhas dos partidos e políticos. A seqüência [(1) ® (2) ® (1)] estiliza essa visão. Tal é a racionalidade dos segmentos que poderão vir a ser afetados pelos cortes em rubricas do Orçamento da União.

Tal qual no caso anterior, em que o grupo de interesses paga para não ser penalizado, agora o pagamento é para viabilizar um benefício. As vigorosas e variadas manifestações observadas na mencionada audiência pública da CRA do Senado bem como as tentativas de alongar e aprofundar os benefícios do Simples se incluem nessa segunda seqüência.

O ceticismo em relação à imposição de barreiras a tais pagamentos ou doações de dinheiro privado aos políticos parte do pressuposto de que esses limites não são tão efetivos assim, relativamente ao comportamento dos políticos. Afinal:

o que os políticos têm a oferecer continuará inalterado, com ou sem a barreira.

Por certo, sempre haverá a possibilidade de se impor tarifas de comércio protecionistas, distribuir incentivos fiscais, conceder subsídios e regular virtualmente todo e qualquer aspecto do comportamento dos agentes de decisão nos mercados de bens e serviços. Tais benefícios simplesmente não "brotam" de Brasília: em sua origem estão interesses privados e, inescapavelmente, de políticos de todas as denominações partidárias.15 15 Governo deve ceder mais à bancada ruralista, Folha de S. Paulo, 19 maio 2006, Dinheiro, p. B10.

Ademais, a imposição de limites às doações de campanha cria um ambiente institucional tal que o mercado político buscará outras formas (indiretas ou pelo uso de recursos não-financeiros) de operar em seu ponto de equilíbrio.

Contudo, a diferenciação do relacionamento entre políticos e grupos de interesses, como apresentada na figura 2, tem relevante conseqüência para o procedimento da imposição de barreiras ao uso de dinheiro político no jogo das escolhas públicas (McChesney, 2002:360-361):

na busca direta de favores, (B), esse tipo de restrição é essencialmente promotor do bem-estar geral ou coletivo, uma vez que tais recursos poderiam ser utilizados por seus detentores com maior produtividade na expansão da atividade de produção, por exemplo; já na tentativa de evitar o ônus com que o governo e os políticos em geral ameaçam os grupos de interesses, (A), trata-se muitas vezes de evitar uma expropriação de riqueza, caso a contribuição de campanha não seja feita. Nessa circunstância, a tentativa de bloquear as doações de campanha pode implicar redução do bem-estar coletivo.

Quando aqueles que podem prover serviços que agregam valor são legalmente, isto é, por decisão política, impedidos de fazê-lo e obter ganhos, tanto provedores quanto os potenciais destinatários dessa provisão acabam experimentando simultaneamente redução em seus níveis de bem-estar (McChesney, 2002:361-362). Mesmo porque se todos percebem que o processo político sempre terá o que coibir, seja sob a forma orçamentária, seja por via regulatória, a restrição direta às doações de campanha levará a que formas alternativas, menos eficientes, de pagamento aos políticos sejam escolhidas. Tal é a hidráulica eleitoral (Issacharoff e Karlan, 1999)!

5. Conclusão

Em decorrência da análise aqui apresentada, percebe-se que a economia nacional exibe forte deterioração da relação do Congresso com o Executivo, a tal ponto que a situação corrente pode ser mais produtivamente apreciada pelo ângulo da relação do Executivo com ele próprio, ou seja, da divisão interna de poderes executivos ramificados na burocracia federal (Katyal, 2006).

Nessa reconfiguração da separação de poderes, é central o papel desempenhado pela alta gerência econômica que, de fato, detém parcela substancial da iniciativa de legislar.

De outra parte, perceba o leitor, especialmente no enquadramento da decisão do TSE, tratada na seção 2, e na via de mão dupla que a figura 2 estabelece entre políticos e grupos de interesses preferenciais, o quanto é valioso ter o foco analítico apropriado, de modo a melhor entender as implicações das freqüentes mudanças de regras das escolhas públicas, atributo tão peculiar à economia brasileira.

Referências bibliográficas

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KATYAL, N. Internal separation of powers: checking today's most dangerous branch from within. In: THE YALE LAW JOURNAL SYMPOSIUM ON THE MOST DANGEROUS BRANCH. Proceedings... Mar. 2006.

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ORTIZ, D.; ISSACHAROFF, S. Governing through intermediaries. 1999. (University of Virginia School of Law Legal Studies Working Paper Series, n. 99-6).

  • 1
    A política de estabilização de preços, em curso ao longo da década de 1990, é o exemplo mais notório da prática de promover seguidas e variadas alterações institucionais, de modo a habilitar resultados macroeconômicos que, por alguma razão, se julgue desejáveis.
  • 2
    Lula congela R$14,2 bi do orçamento de 2006,
    O Estado de S. Paulo, 17 maio 2006, Nacional, p. A6.
  • 3
    Crise mobiliza autoridades e agricultores,
    Jornal do Senado, 17 maio 2006, v. XII, n. 2374, p. 5.
  • 4
    Ousadia para cortar,
    O Estado de S. Paulo, 17 maio 2006, Notas & Informações, p. A3.
  • 5
    Regras do jogo instáveis e mais um dilema contramajoritário,
    Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006.
  • 6
    Tal rigidez impunha que os partidos políticos que não lançassem candidato à Presidência da República não estariam livres para constituir coligações estaduais que melhor atendessem às suas próprias preferências.
  • 7
    TSE volta atrás e permite alianças estaduais como na eleição de 2002,
    O Estado de S. Paulo, 9 jun. 2005, Nacional, p. A4.
  • 8
    A teia de agente-patrocinador vinculada ao Judiciário, como exemplificada pelo episódio do TSE e o vai-e-vem da regra de verticalização eleitoral, aprofunda o moderno conceito de governo de intermediários (Ortiz e Issacharoff, 1999).
  • 9
    Para uma discussão quanto ao papel do
    lobbying dos editores de jornais, como uma das forças que precipitaram nos EUA a aprovação de uma lei de liberdade de informação, em 1966, ver O'Reilly (2003:560): "Se a informação é uma
    commodity, o
    lobby dos jornais buscava obter maior acesso à provisão dessa
    commodity (...) [com tal propósito, investiu-se] em uma campanha por 'liberdade de informação', um rótulo de tal nobreza que não poderia ser posta em dúvida".
  • 10
    Uma regulação econômica, por exemplo, pode ser sustentada em uma lógica técnica que é de acesso restrito aos burocratas e aparecerá estrategicamente camuflada em uma sinalização mais ampla, em sua forma de comunicado ao mercado a que se aplica. Tal é o caso das deliberações de política do Copom.
  • 11
    Tal é o caso, por exemplo, em que os políticos deliberadamente atendem interesses preferenciais de grupos, de modo a que seus eleitores e a sociedade em geral não tenham inteira percepção desse atendimento que pode ter por contrapartida o aporte de recursos de campanha ao próprio político ou ao partido ou coalizão partidária a que esse político se vincule.
  • 12
    A pura e simples conexão eleitoral justifica esse tipo de sinalização, especialmente na proximidade de uma data eleitoral, contribuindo para a formação de um ciclo político-eleitoral na trajetória das políticas públicas (Monteiro, 2004, cap. 1).
  • 13
    A propósito, nos anos 1990 – portanto, sob o regime anterior à EC nº 32, de 11 de setembro de 2001 – a
    mancha preta na
    figura 1 aparecia sistematicamente
    acima do eixo horizontal (Monteiro, 1997, 2000).
  • 14
    Sucesso econômico com fragilidade institucional,
    Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 340, 10 abr. 2006; Regras do jogo instáveis e mais um dilema contramajoritário,
    Estratégia Macroeconômica, v. 14, n. 338, 13 mar. 2006.
  • 15
    Governo deve ceder mais à bancada ruralista,
    Folha de S. Paulo, 19 maio 2006, Dinheiro, p. B10.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      Ago 2006
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