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A teoria da radiação de Planck e a teoria do calor específico

Die Planckshe theorie der strahlung und die theorie der spezifischen wärme

ARTIGOS DE EINSTEIN E ENSAIOS SOBRE SUA OBRA

A teoria da radiação de Planck e a teoria do calor específico* * Fonte para a traducão: The Collected Papers of Albert Einstein, v. 2, The Swiss Years: Writings, 1900-1909 (Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1989), Tradução para o inglês: Anna Beck. Traducão para o português: Marta Feijó Barroso, Instituto de Física, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Revisão da traducão a partir do original em alemão: Hans-Thomaz Elze, Instituto de Física, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Copyright by the Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.

Die Planckshe theorie der strahlung und die theorie der spezifischen wärme

A. Einstein

Em dois artigos anteriores [1], eu havia demonstrado que a interpretação da lei da distribuição de energia da radiação de corpo negro em termos da teoria de Boltzmann para a segunda lei leva a uma nova concepção dos fenômenos da emissão e absorção da luz, que, embora ainda longe de ter o caráter de uma teoria completa, é notável na medida em que facilita a compreensão de uma série de regularidades. Este trabalho mostrará que a teoria da radia cão - em particular a teoria de Planck - leva a uma modifica cão da teoria cinético-molecular do calor por meio da qual algumas dificuldades que obstruem a implementação de tal teoria podem ser eliminadas. O trabalho também fornecerá uma relação entre os comportamentos térmico e óptico dos sólidos.

Inicialmente, vamos apresentar uma derivação da energia média do ressonador de Planck que claramente demonstra sua rela cão com a mecânica molecular.

Para isto, utilizamos alguns resultados da teoria molecular geral do calor [2]. Consideremos que o estado de um sistema no sentido da teoria molecular esteja completamente determinado pelas (muitas) variáveis P1, P2, ...Pn. Consideremos que o processo molecular ocorra segundo as equações

e suponhamos que a relação

seja válida para todos os valores dos Pn's.

Além disso, consideremos que um sistema parcial dos Pn's seja determinado pelas variáveis p1 ...pn (que pertencem aos Pn's), e suponhamos que a energia de todo o sistema possa, em boa aproximação, ser pensada como composta de duas partes, uma das quais (E) dependa apenas dos p1 ...pn, enquanto que a outra é independente de p1 ...pm. Consideremos também que E seja infinitesimalmente pequena comparada à energia total do sistema.

A probabilidade dW que em um instante escolhido aleatoriamente os pn's estejam numa região infinitesimalmente pequena (dp1,dp2 ...dpm) é dada, então, pela equação [3]

Nesta expressão, C é uma função da temperatura absoluta (T), N é o número de moléculas em um equivalente-grama, R é a constante da equação dos gases para uma molécula-grama.

Se se faz

em que a integral deve ser estendida a todas as combinações dos Pn's para as quais correspondam valores de energia entre E e E + dE, obtém-se

Se se escolhe para as variáveis Pn as coordenadas do centro de massa e componentes da velocidade de massas pontuais (átomos, elétrons) e supõe-se que as acelerações dependam apenas das coordenadas, e não das velocidades, chega-se então à teoria cinético-molecular do calor. A relação (1) é nela satisfeita, e portanto a Eq. (2) também é válida.

Em particular, se se imagina que foi escolhida como o sistema dos pn's uma partícula de massa elementar que pode realizar oscilações senoidais sobre uma linha reta, e denota-se sua distância da posição de equilíbrio e velocidade instantâneas por x e x, respectivamente, obtém-se

e, como deve-se tomar ò dx dx = const. dE , então w = const.1 1 Porque tem-se que fazer E = ax 2 + bx 2. :

O valor médio da energia da partícula é portanto

É evidente que a fórmula (4) também pode ser aplicada a um íon oscilando sobre uma linha reta. Se isso for feito, e se se levar em conta que, segundo um estudo de Planck [4], a relação

deve ser válida entre sua energia média e a densidade rn da radiação de corpo negro na freqüência considerada, então, eliminando de (4) e (5) chega-se à fórmula de Rayleigh

que, como é bem conhecido, representa apenas uma lei limite para grandes valores de T/n.

Para obter a teoria de Planck para a radiação de corpo negro, pode-se proceder como a seguir [5]. Mantém-se a Eq. (5), isto é, supõe-se que a teoria da eletricidade de Maxwell fornece a relação correta entre densidade de radiação e

. Por outro lado, abandona-se a Eq. (4), isto é, supõe-se que a aplicação da teoria cinético-molecular é o que causa um conflito com a experiência. No entanto, mantemos as fórmulas (2) e (3) da teoria molecular geral do calor. Em vez de fazer

w = const.

de acordo com a teoria cinético-molecular, fazemos w = 0 para todos os valores de E que não sejam extremamente próximos de 0, Î, 2Î, 3Î, etc. Apenas entre 0 e 0 + a, Î e Î + a, 2Î e 2Î + a, etc. (onde a é infinitesimalmente pequeno comparado a Î) w pode ser diferente de zero, de forma tal que

Como pode ser visto da Eq. (3), esta estipulação envolve a hipótese que a energia da estrutura elementar em considera cão assuma apenas valores que são infinitesimalmente próximos de 0, Î, 2Î etc.

Usando o estipulado acima para w, obtém-se, com auxílio de (3):

Se também se fizer = (R/N)bn (segundo a hipótese quântica), obtém-se

bem como, com ajuda de (5), a fórmula da radiação de Planck

A Eq. (7) mostra a dependência da energia média do ressonador de Planck com a temperatura.

Do que está acima, emerge claramente em que sentido a teoria cinético-molecular do calor deve ser modificada para ser levada a uma concordância com a lei de distribuição da radiação de corpo negro. Pois embora tenha-se pensado antes que o movimento das moléculas obedeça às mesmas leis que são válidas para o movimento dos corpos em nosso mundo de percepção sensorial (em essência, estamos apenas incluindo o postulado de reversibilidade completa), somos forçados agora a supor, para íons capazes de oscilar em freqüências particulares que podem mediar uma troca de energia entre matéria e radiação, que a quantidade de estados que eles podem assumir é menor do que para corpos dentro da nossa experiência. Pois tivemos que fazer a hipótese de que o mecanismo de transferência de energia é tal que a energia das estruturas elementares só pode assumir os valores 0, (R/N)bn, 2(R/N)bn, etc.2 2 É óbvio que esta suposicão também deve ser estendida para corpos capazes de oscilar consistindo de qualquer número de estruturas elementares.

Eu creio agora que não devemos nos contentar com este resultado. Pois surge a questão: se as estruturas elementares que devem ser supostas na teoria de troca de energia entre radiação e matéria não podem ser percebidas em termos da teoria cinético-molecular corrente, então não estamos também obrigados a modificar a teoria para as outras estruturas periodicamente oscilantes consideradas na teoria molecular do calor? Na minha opinião não há dúvida quanto à resposta. Se a teoria da radiação de Planck vai ao cerne da matéria, então as contradições entre a teoria cinético-molecular corrente e a experiência devem também ser esperadas em outras áreas da teoria do calor, o que pode ser resolvido ao longo das linhas indicadas. Na minha opinião, isto é de fato o que ocorre, como eu agora tentarei mostrar.

A concepção mais simples que se pode fazer sobre o movimento térmico em sólidos é que os átomos individuais realizam oscilações senoidais em torno de posições de equilíbrio. Com esta hipótese, aplicando a teoria cinético-molecular (Eq. (4)) e levando em conta que três graus de liberdade de movimento devem ser atribuídos a cada átomo, obtém-se para o calor específico de um equivalente grama da substância

c = 3Rn,

ou - expresso em calorias-grama -

c = 5,94n,

onde n denota o número de átomos na molécula. É bem conhecido que esta relação se aplica como uma aproxima cão notavelmente próxima a muitos elementos e a muitos compostos no estado de agregação sólida (lei de Dulong-Petit, regra de F. Neumann e Kopp).

No entanto, se estes fatos são examinados um pouco mais de perto, encontram-se duas dificuldades que parecem colocar limites estreitos na aplicabilidade da teoria molecular.

1. Há elementos (carbono, boro e silício) que no estado sólido e a temperaturas habituais têm calores atômicos específicos muito menores do que 5,94. Além disso, o calor específico por molécula-grama é menor que n . 5,94 em todos os compostos sólidos contendo oxigênio, hidrogênio ou ao menos um dos elementos mencionados.

2. O senhor Drude demonstrou [6] que os fenômenos ópticos (dispersão) levam à conclusão que muitas massas elementares que se movem independentemente umas das outras devem ser atribuídas a cada átomo de um composto, pois ele com sucesso relacionou as freqüências próprias infravermelhas a oscilações de átomos (íons atômicos) e as freqüências próprias do ultravioleta às oscilações dos elétrons. Isto coloca uma segunda dificuldade significativa para a teoria cinético-molecular do calor, porque o calor específico deveria exceder significativamente o valor 5,94 n, já que o número de massas pontuais em movimento por molécula é maior do que este último número de átomos.

Com base no que está acima, dever-se-ia notar o seguinte: se concebemos os condutores de calor em sólidos como estruturas oscilando periodicamente cuja freqüência é independente de sua energia de oscilação, então segundo a teoria da radia cão de Planck não deveríamos esperar que o valor do calor específico fosse sempre 5,94 n. Em vez disso, teríamos que fazer (7)

A energia de N de tais estruturas elementares, medida em calorias-grama, tem portanto o valor

de forma que cada uma de tais estruturas elementares oscilantes contribui para o calor específico com o valor

por equivalente-grama. Assim, a soma sobre todos os tipos de estruturas elementares oscilantes que ocorrem na substância sólida em questão fornece a seguinte expressão para o calor específico por equivalente-grama3 3 Esta consideracão pode ser facilmente estendida para corpos anisotrópicos. :

A figura acima4 4 Cf. curva tracejada. mostra o valor da expressão (8) como uma função de x = (T/bn). Se (T/bn) > 0,9, a contribuição da estrutura para o calor específico molecular não difere significativamente do valor 5,94, que também segue da até agora aceita teoria cinético-molecular; quanto menor n, menor a temperatura na qual isto já ocorrerá. Ao contrário, se (T/bn) < 0,1, a estrutura elementar em questão não contribui significativamente para o calor específico. No intervalo, a expressão (8) inicialmente cresce rapidamente e depois mais lentamente.

Do que foi dito, segue-se antes de tudo que os elétrons capazes de oscilar, que foram postulados para explicar as freqüências próprias ultravioletas, não podem contribuir significativamente para o calor específico em temperaturas normais (T = 300), porque a desigualdade (T/bn) < 0,1 torna-se a desigualdade l < 4,8m em T = 300. Por outro lado, se a estrutura elementar satisfaz à condição l > 48m, então segundo o que foi dito acima, sua contribuição para o calor específico deve ser próxima a 5,94 para temperaturas habituais.

Como em geral para as freqüências próprias no infravermelho l > 4,8m, de acordo com nossas concepções estas oscilações próprias devem contribuir para o calor específico, e quanto maior o l, maior esta contribuição. Segundo as investigações de Drude, estas freqüências próprias devem ser atribuídas aos próprios átomos ponderáveis (íons atômicos). A conclusão mais óbvia parece ser portanto considerar exclusivamente os íons atômicos poisitivos como os portadores de calor em sólidos (isolantes).

Se as freqüências de oscilação próprias infravermelhas n de um sólido são conhecidas, então segundo o que foi dito anteriormente seu calor específico bem como sua dependência em temperatura seria completamente determinada pela Eq. (8a). Desvios pronunciados da relação c = 5,94n seriam esperados a temperaturas normais se a substância em questão mostrasse uma freqüência própria infravermelha óptica para a qual l < 48m; para temperaturas suficientemente baixas, os calores específicos de todos os corpos sólidos deveriam diminuir significativamente com o decréscimo da temperatura. Além disso, a lei de Dulong-Petit, bem como a lei mais geral c = 5,94n, deve valer para todos os corpos em temperaturas suficientemente altas, a menos que novos graus de liberdade de movimento (elétron-íons) tornem-se evidentes.

As dificuldades mencionadas acima são resolvidas pela nova interpretação, e eu acredito que esta última mostrará sua validade em princípio. Evidentemente, uma concordância exata com os fatos está fora de questão. Durante o aquecimento, sólidos sofrem mudanças no arranjo molecular (por exemplo, mudanças em volume) que estão associadas com mudanças em conteúdo de energia; todos os sólidos que conduzem eletricidade contêm massas elementares em movimento livre que contribuem para o calor específico; as oscilações de calor aleatórias têm possivelmente uma freqüência de alguma forma diferente das oscilações próprias das estruturas elementares durante processos ópticos. Finalmente, a hipótese de que as estruturas elementares pertinentes têm uma freqüência de oscilação independente da energia (temperatura) é sem dúvida inadmissível.

Mesmo assim, é interessante comparar nossas conclusões com a observação. Já que estamos interessados apenas em aproximações grosseiras, supomos, de acordo com a regra de F. Neumann-Kopp, que cada elemento contribua igualmente para o calor específico molar de todos seus componentes sólidos mesmo se seu calor específico seja anormalmente pequeno. Os dados numéricos apresentados na tabela a seguir são tomados do livro-texto de química de Roskoe. Observamos que todos os elementos com calor atômico anormalmente baixo têm pesos atômicos baixos; segundo nossa interpretação, isto deve ser esperado, já que, ceteris paribus, pesos atômicos baixos correspondem a altas freqüências de oscilação. A última coluna da tabela lista os valores de l em microns que são obtidos a partir destes números, se supusermos que eles são válidos a T = 300, com o auxílio da curva mostrando a relação entre x e c.

Além disso, consideramos alguns dados sobre oscilações próprias infravermelhas (reflexão metálica, raios residuais) de alguns sólidos transparentes das tabelas de Landolt e Börnstein; os l observados são listados na tabela abaixo como "lobs."; os números sob "lcalc." são tomados da tabela acima se eles se referirem a átomos com calor específico anormalmente baixo; para os outros, supõe-se que l > 48m.

Na tabela, NaCl e KCl contêm apenas átomos com calor específico normal; de fato, os comprimentos de onda de suas oscila cões próprias infravermelhas são maiores que 48m. As outras substâncias contêm apenas átomos com calores específicos anormalmente baixos (exceto Ca); de fato, as freqüências destas substâncias variam entre 4,8m e 48m. Em geral, os valores de l obtidos teoricamente a partir dos calores específicos são consideravelmente maiores do que os observados. É possível que estes desvios possam ser explicados por uma forte variação da freqüência da estrutura elementar com sua energia. Seja como for, a concordância entre l observado e calculado é notável tanto em relação à seqüência quanto em relação à ordem de grandeza.

Finalmente, vamos também aplicar a teoria ao diamante. Sua freqüência própria infravermelha não é conhecida, mas pode ser calculada com base na teoria descrita se o calor específico molecular c for conhecido para alguma temperatura T; o x correspondente a c pode ser tomado diretamente da curva, e l é então calculado da relação (TL/bl) = x.

Estou usando os resultados experimentais de H.F. Weber, que tomei das tabelas de Landolt e Börnstein (cf. a tabela a seguir). Para T = 331,3 temos c = 1,838; de acordo com a teoria descrita, disto segue que l = 11,0m. Com base neste valor, os da terceira coluna da tabela são calculados segundo a fórmula x = (TL/bl), (b = 4,86·10–11).

Os pontos, cujas abscissas são estes valores de x e cujas ordenadas são os valores de c obtidos experimentalmente a partir das observações de Weber e listados na tabela, devem estar sobre a curva x,c mostrada anteriormente. Nós traçamos estes pontos — indicados por círculos — na figura acima; de fato, eles quase ficam sobre a curva. Portanto temos que supor que os portadores elementares de calor no diamante são estruturas quase monocromáticas.

Então, segundo a teoria, deve-se esperar que o diamante mostre um máximo de absorção para l = 11m.

Berna, novembro de 1906. Recebido em 9 de novembro de 1906.

Referências

[1] A. Einstein, Ann. d. Phys. 17, 132 (1905) e 20, 199 (1905).

[2] A. Einstein, Ann. d. Phys. 17, 132 (1905) e 20, 199 (1905)

[3] A. Einstein, Ann. d. Phys. 11, 170ff (1903).

[4] M. Planck, Ann. d. Phys. 1, 99 (1900).

[5] Cf. M. Planck, Vorlesungen über die Theorie der Wärmestrahlung [Palestras Sobre a Teoria Térmica da Radiação] (J.A. Barth, Leipzig, 1906), §§149, 150, 154, 160, 166.

[6] P. Drude, Ann. d. Phys. 14, 677 (1904).

Publicado em Annalen der Physik 22, 180-190 (1907)

  • *
    Fonte para a traducão:
    The Collected Papers of Albert Einstein, v. 2,
    The Swiss Years: Writings, 1900-1909 (Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1989), Tradução para o inglês: Anna Beck. Traducão para o português: Marta Feijó Barroso, Instituto de Física, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Revisão da traducão a partir do original em alemão: Hans-Thomaz Elze, Instituto de Física, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Copyright by the Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.
  • 1
    Porque tem-se que fazer
    E = ax
    2 +
    bx
    2.
  • 2
    É óbvio que esta suposicão também deve ser estendida para corpos capazes de oscilar consistindo de qualquer número de estruturas elementares.
  • 3
    Esta consideracão pode ser facilmente estendida para corpos anisotrópicos.
  • 4
    Cf. curva tracejada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Mar 2005
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