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Um Problema de Três Corpos Analiticamente Solúvel

An analytically solvable three-body problem

Resumos

Analisamos um problema de três corpos interagindo mutuamente via forças harmônicas no contexto do formalismo newtoniano. Uma solução analítica exata para este problema é encontrada por meio de uma abordagem didática e os caminhos para a análise do problema de N corpos são indicados.


The problem of three particles interacting through harmonic forces is discussed within the Newtonian formalism. By means of a didactic approach, an exact analytical solution is found, and ways to extend it to the N-body case are pointed out.


Um Problema de Três Corpos Analiticamente Solúvel

An analytically solvable three-body problem

Elysandra Figuerêdo* * E-mail: lys@urania.iagusp.usp.br

USP - Instituto Astronômico e Geofísico

Departamento de Astronomia

Caixa Postal 3386, 01060-970, São Paulo, SP

Antonio S. de Castro† † E-mail: castro@feg.unesp.br

UNESP - Campus de Guaratinguetá

Departamento de Física e Química

Caixa Postal 205, 12500-000, Guaratinguetá, SP

Recebido em 3 de Julho 2001. Aceito em 19 de Julho 2001.

Analisamos um problema de três corpos interagindo mutuamente via forças harmônicas no contexto do formalismo newtoniano. Uma solução analítica exata para este problema é encontrada por meio de uma abordagem didática e os caminhos para a análise do problema de N corpos são indicados.

The problem of three particles interacting through harmonic forces is discussed within the Newtonian formalism. By means of a didactic approach, an exact analytical solution is found, and ways to extend it to the N-body case are pointed out.

I Introdução

Apesar dos esforços dos físicos e matemáticos por mais de dois séculos de pesquisa, o problema geral de N corpos interagindo mutuamente e movendo-se de acordo com as leis de Newton, para N > 2, nunca foi resolvido exatamente. O problema de dois corpos sujeito a forças que dependem do vetor posição relativa pode ser reduzido a dois problemas de um corpo, um dos quais descreve o movimento do centro de massa e o outro o movimento relativo. N=3 é o menor valor de N que torna o problema de N corpos insolúvel no caso geral. Contudo, sob suposições especiais a respeito do tipo de movimento e interação, soluções analíticas para o problema de N corpos podem ser encontradas.

No caso do problema de três corpos com interações gravitacionais algumas soluções especiais são normalmente apresentadas nos livros texto de mecânica clássica. No chamado problema restrito de três corpos, dois corpos pesados movem-se em torno do centro de massa comum enquanto um terceiro corpo leve move-se no mesmo plano [1-3]. No chamado caso de Lagrange os três corpos estão durante todo o movimento sobre os vértices de um triângulo equilátero, que gira em torno de um eixo perpendicular ao plano dos corpos enquanto troca de tamanho [4-7]. Existe ainda uma outra solução especial para o problema de três corpos interagindo gravitacionalmente conhecida como caso de Euler. Neste último caso os corpos movem-se ao longo da mesma linha reta durante todo o movimento [8-10]. Uma outra solução especial é essa de N corpos de massas similares sujeitos a forças similares movendo-se sobre os vértices de um polígono regular de N lados [10]. Todos estes movimentos especiais são de grande importância pedagógica tendo em vista que eles são soluções de um problema insolúvel no caso geral. Contudo, a resolução do caso de Lagrange, como apresentada pelos autores de livros-texto, recorre a um sistema de coordenadas em rotação requerendo desta forma um cálculo extenso e elaborado, e conseqüentemente a um enfraquecimento da atratividade pedagógica.

Recentemente o caso de Lagrange foi apresentado de modo alternativo e mais geral dentro do formalismo newtoniano, permitindo que ele possa ser facilmente abordado imediatamente depois da apresentação do problema de dois corpos [11]. Nesse trabalho soluções de triângulo equilátero foram obtidas para interações que vão além do caso gravitacional. Essén, em um trabalho recente [12] (homônimo a esse da Ref. [11]), abordou o mesmo problema usando o formalismo lagrangiano, restringindo-se ao caso gravitacional e apresentando uma extensão ao problema de N corpos. Encorajado pelos resultados obtidos em [12] e seguindo os mesmos passos da Ref. [13], foi realizada uma extensão do caso de Lagrange para um sistema de N corpos [13] buscando uma solução para a qual a força sobre cada um dos N corpos está na direção do centro de massa do sistema (a mesma imposição já usada em [11] e [12]). Isto realmente acontece para interações gravitacionais porque as forças são proporcionais às massas dos corpos, mas também pode acontecer para outras espécies de interações desde que certas condições sejam satisfeitas pelas massas dos corpos e constantes de força. Como subproduto obtivemos que os N corpos estão sobre os vértices de uma figura geométrica regular durante todo o movimento. Para o caso de interações harmônicas chegou-se à conclusão que o problema de N corpos reduz-se a N problemas de um corpo, portanto os N corpos movem-se independentemente, não necessitando estarem sobre os vértices de uma figura geométrica regular. A condição envolvendo as massas dos corpos e as constantes de força para as forças harmônicas obtida em [11] e [13] tem a mesma forma que essa já obtida em um trabalho anterior (usando o formalismo lagrangiano): condição necessária para as coordenadas de Jacobi conduzirem à separação de variáveis no problema de três corpos com interações harmônicas [14].

No presente trabalho apresentamos o problema já abordado na Ref. [14] mas desta feita usamos o formalismo newtoniano. Veremos que este problema especial de três corpos pode ser abordado com facilidade suficiente para que possa ser apresentado aos estudantes de ciências exatas ainda no primeiro semestre dos cursos de graduação. A importância deste problema específico não é apenas pedagógica tendo em vista que o problema de três corpos, interagindo mutuamente via forças harmônicas, tem sido usado no cálculo da espectroscopia de bárions no modelo de quarks [15, 16]. Começaremos revendo o problema geral de dois dois corpos e em seguida o problema de três corpos com interações harmônicas sem incluir a priori restrições sobre as massas dos corpos e constantes de força.

II O problema de dois corpos

As equações de movimento para dois corpos de massas m1 e m2, localizadas pelos vetores posição 1 e 2, respectivamente, podem ser escritas como

em que

1 (2)F é a força que o corpo 2 (1) exerce sobre o corpo 1 (2), e cada ponto sobre os vetores posição 1 e 2 denota uma derivada temporal. Observe que as forças dependem dos vetores posição dos corpos de forma que as Eqs. (1) e (2) são equações diferenciais acopladas. Introduzindo o vetor posição do centro de massa e o vetor coordenada relativa

os vetores

1 e 2 podem ser escritos como

Quando (5) e (6) são introduzidos em (1) e (2) e considerando a forma fraca da terceira lei de Newton (não se exigindo que as forças tenham a mesma direção da linha que une os dois corpos), resulta que

em que ( 1, 2) = 1(1, 2), M é a massa do sistema e

Considerando ainda que as forças dependem das posições dos corpos apenas pelo vetor posição relativa, chegamos finalmente à conclusão que

Os resultados (7) e (10) mostram que o problema de dois corpos sob interação mútua foi finalmente reduzido a dois problemas de um corpo. Um dos problemas é aquele de um corpo livre de massa igual à massa total do sistema localizado pelo vetor posição do centro de massa. O outro problema é aquele de um corpo de massa m, chamada de massa reduzida, localizado pelo vetor posição relativa. Toda a dificuldade da solução do problema de dois corpos reside agora na busca de solução deste último problema de um corpo.

III Um problema de três corpos

As equações de movimento para três corpos de massas mi (i = 1...3), localizados pelos vetores posição i (i = 1...3), respectivamente, podem ser escritas como

Supomos que as interações mútuas são interações entre pares de corpos e que as forças são diretamente proporcionais à coordenada relativa (forças harmônicas):

Kij > 0 são as constantes de força obedecendo à relação Kij = Kji, em conformidade com a terceira lei de Newton na forma fraca. Observa-se aqui que a forma forte da terceira lei de Newton, estabelecendo que as forças mútuas além de terem os mesmos módulos e sentidos opostos têm que ter a direção da linha que une os corpos, é automaticamente obedecida. Aqui também, mais explicitamente que no caso de dois corpos tratado na seção anterior, é visto que as equações de movimento são equações diferenciais acopladas. As coordenadas de Jacobi são definidas como

em que é a coordenada do centro de massa do sistema de três corpos, é a coordenada do corpo 1 relativa ao corpo 2, e é a coordenada do corpo 3 relativa ao centro de massa dos corpos 1 e 2. Em termos das coordenadas de Jacobi os vetores posição i podem ser escritos como

em que M é a massa do sistema e M12 = m1 + m2 é a massa do subsistema constituído pelos corpos 1 e 2. Quando Eqs. (14)-(16) e (20)-(22) são introduzidas em (11)-(13) resulta que:

em que

Pode-se observar destes resultados que as coordenadas de Jacobi reduziram este problema de três corpos ao movimento livre do centro de massa (23), conseqüência da ausência de forças externas e ao movimento de dois osciladores harmônicos acoplados pela constante G, que anula-se somente quando K13m2 = K23m1.

Para desacoplar as equações de movimento no caso geral de massas e constantes de força devemos recorrer a um outro conjunto de coordenadas. Vamos considerar uma transformação de coordenadas que é uma mistura de uma transformação de escala e uma rotação [14], [17], definida por

onde ME é um parâmetro com dimensão de massa e f é um parâmetro de rotação. A princípio os parâmetros ME e f são arbitrários. Inserindo (31) e (32) em (24) e (25) encontramos novas equações diferenciais acopladas para as novas coordenadas:

em que

A eliminação do acoplamento entre as equações diferenciais (33) e (34) pode ser obtida se pudermos tomar proveito da arbitrariedade do valor do parâmetro f impondo que g = 0. Isto realmente acontece quando

Com f dado por (38) finalmente obtemos as seguintes equações diferenciais desacopladas

em que W1 = W+, W2 = W- e

As equações diferenciais (39) e (40) descrevem o movimento de dois osciladores harmônicos desacoplados, cujas soluções

1(t) e 2(t) são bem conhecidas. Usando as transformações (31)-(32), e em seguida (20)-(22), obteremos as soluções analíticas para i(t). Desnecessário mencionar a solução (t) da equação diferencial (23).

IV Conclusão

Neste artigo abordamos o problema de três corpos interagindo mutuamente via forças harmônicas. O problema poderia ter sido abordado com muito maior simplicidade se considerássemos desde o início corpos com massas e constantes de forças similares no sistema de referência do centro de massa ( = ). Encontraríamos então que as coordenadas de Jacobi teriam tido o êxito procurado. Optamos por não impor tal severa restrição a priori, e mostramos que as coordenadas de Jacobi não desacoplam o problema no caso geral mas somente quando K13m2 = K23m1, um resultado que contrasta com esse encontrado na literatura [15, 16], em que considera-se que o desacoplamento ocorre para massas genéricas e constantes de força similares. A assimetria apresentada por essa condição sine qua non para o desacoplamento surge em decorrência da assimetria na definição das coordenadas de Jacobi e . Em geral, as coordenadas de Jacobi conduzem o problema de três corpos interagindo mutuamente via forças harmônicas ao problema do movimento livre do centro de massa mais dois osciladores harmônicos acoplados, ainda que as constantes de força sejam idênticas. Também mostramos que existe um outro sistema de coordenadas que conduz à separabilidade no caso geral. Restringimos nossa atenção ao caso de três corpos mas pode-se verificar que extensões para o caso de N corpos são também passíveis de soluções analíticas. Para o problema de quatro corpos, em particular, precisaríamos redefinir o vetor posição do centro de massa e acrescentar uma nova coordenada de Jacobi, essa nova coordenada descrevendo a posição do corpo 4 relativa ao centro de massa dos corpos 1, 2 e 3. Quando as massas e as constantes de força são similares, as coordenadas de Jacobi per se conduzem à separabilidade deste problema de quatro corpos. Em caso contrário, deveremos recorrer a um sistema de coordenadas adicional, misturando transformação de escala e rotação no espaço tridimensional, quando então deveremos lidar com três parâmetros de rotação relacionados com os ângulos de Euler. Estas tarefas são deixadas para os leitores.

Agradecimentos

Os autores são gratos à FAPESP pelo apoio financeiro.

[4] Veja Ref. 1, Prob. 8.31, pág. 20.

[5] Veja Ref. 2, Sec. 12.8, pág. 490-497.

[6] Veja Ref. 3, Sec. 6.5, pág. 402.

[8] Este caso é deixado como exercício na Ref. 2, Sec. 12.8, pág. 494.

[9] Veja Ref. 3, Sec. 6.5, pág. 402-404.

[10] A existência desta solução é mencionada na Ref. 7, Cap. V, § 32, pág. 180.

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  • *
    E-mail:
  • †
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Ago 2002
    • Data do Fascículo
      Set 2001

    Histórico

    • Aceito
      19 Jul 2001
    • Recebido
      03 Jul 2001
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