Acessibilidade / Reportar erro

A psicologia médica. A relação médico-paciente: “o ovo da serpente”

“O homem como um defeito de construção.
Uma perversidade de natureza.
É aqui que entram as nossas experimentações,
embora ainda em escala modesta.
Nós lidamos com as estruturações básicas e as remodelamos.
Liberamos as forças produtivas e canalizamos as destrutivas.
Eliminamos as menos válidas e incrementamos as úteis.
E a única maneira de evitar a catástrofe final.
(sorri).
(Dr. Vergérus, personagem de “O ovo da serpente”, de Ingmar Bergman)

Um dos principais riscos e descaminhos que enfrentam os cursos de Psicologia Médica, ministrados aos alunos das faculdades de Medicina, é o da redução do espaço da relação médico-paciente ao encontro singular entre o “doentinho” e seu “terapeutazinho”, ao encontro de duas personalidades com problemáticas estritamente emocionais, abstraída a cena política onde ela se inscreve, valorizando apenas uma trama de afetos (o “encaixe benfazejo” de PERESTRELLOPERESTRELLO, D. - Medicina da Pessoa. Rio de Janeiro, Livr. Atheneu, 1974.).

Ocultam-se a história e os papéis próprios dos personagens em questão, falseiam-se a sua longa trajetória no decorrer dos tempos e as formas de exercício e expressão das contradições entre as classes sociais.

Restaura-se a falácia dos velhos tratados do exame do doente, em especial franceses, destacando o dom inato e mágico - “espontaneidade e naturalidade” - que certos médicos têm para lidar com os doentes (mesmo os tidos como “difíceis” ou “psicos”, embora estes passíveis de remessa ao psiquiatra); a explicação para o bom encontro seria simplesmente o de uma benesse da natureza.

Nos dias de hoje, a despeito do discurso da objetividade, da neutralidade, da igualdade, da unicidade, enfim, do caráter técnico, ainda fala-se da função apostólica, do idealismo, dos sacrifícios, do sacerdócio inerentes à profissão médica e, por conseqüência, do amor que a tudo transmite por sua singela missão. Tudo, talvez, geneticamente transferido por alguma especial destinação celestial.

Mais adiante, já agora sem provir do inexplicável, mas da herança positivista, acreditou-se que a relação médico­paciente pudesse assumir a posição de disciplina de currículo (um ensino sistematizado, uma semiologia de um órgão especial) e, por conseguinte, existiriam um método, regras, conteúdos, técnicas e leis de avaliação do aprendizado; tratava-se, agora, de uma habilidade a ser adquirida através da seleção de material instrutivo adequado. A maioria da literatura convencional sobre este assunto (os artigos, livros e teses de M. BalintBALINT, M. - El medico, el paciente y la enfermedad. Buenos Aires, Libras Basicos, 1961., E. Balint & NorellBALINT, E. & NORELL, J. S. - Six minutes for the patient. London, Tavistock Publ. Ltd., 1971., BensaidBENSAID, N. - A consulta médica. Rio de Janeiro. Livr. Interciência Ltda., 1977., BicudoBICUDO, V. L. - Relação médico-paciente In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 8., Brasília, 1970. Anais. Rio de Janeiro, 1970., ByrdBYRD, B. - Conversando com paciente. São Paulo, Livr. Manole, 1975., CapisanoCAPISANO, H. F. - Manifestações iatrogênicas: conflitos neuróticos do médico prejudicam paciente. Ars Curandi (3):33, 1969., DoinDOIN, C. - O problema da utilização do doente como material didático e as sutilezas da relação médico-paciente In: HOULI, J. & LIMA, M. B. C. - O ensino médico no Brasil. Rio de Janeiro, 1967., EkstermanEKSTERMAN, A. - Psicanálise, psicossomática e medicina da pessoa. Abertura, 2:1, 1978., GeeGEE, H. H. - Learning the physician-patient relationship. JAMA, 173:1301, 1960., GuedesGUEDES, P. L. V. - Ensino de psicologia no currículo médico In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 4., Salvador, 1966. Anais. Rio de Janeiro, 1966., LuchinaLUCHINA, I.; GALPERIN, J. & LINGER, C. - Seminarios de relación médico-paciente: una experiencia docente. Educ. méd. y Salud, 7:150, 1973., Mello FilhoMELLO Fo, J. - Concepção psicossomática: visão atual. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978., PerestrelloPERESTRELLO, D. - Medicina da Pessoa. Rio de Janeiro, Livr. Atheneu, 1974., PontesPONTES, J. F. - O ensino da psicologia no currículo médico In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 4., Salvador, 1966. Anais. Rio de Janeiro, 1966., RoccoROCCO, R. P. - O estudante de medicina e o paciente. Rio de Janeiro, Achiamé, 1979. e tantos outros) acaba por aceitar, com maior ou menor convicção, a tese de que é possível um dado condicionamento, treino ou adestramento, que faça com que o médico venha a compreender o seu paciente ou, senão tanto, a deixá-lo falar, a saber ouvi-lo com comiseração (o chamado estudo dos significados). Evidentemente, nesse sentido, a indução do que o paciente vier a falar ou uma impaciência em ouvir significam uma patologia, próxima da terapêutica psiquiátrica ou psicanalítica, para o doutor, para o doente ou, quem sabe, uma terapia de terapia.

Nesta visão pedagógica, viceja a ingenuidade de uma cumplicidade entre o estudante e o paciente; ambos seriam oprimidos e ambos teriam um formidável potencial revolucionário a partilhar. Numa ilusão psicanalítica, ambos comungariam incertezas, pavores, ansiedades, apreensões, dúvidas e, principalmente, normas a burlar. Esquecem-se de que o estudante muito em breve será médico, mora nos mesmos bairros de seus professores, janta nos mesmos restaurantes e disputa-lhes as vagas nos pátios de estacionamento dos hospitais universitários; aspira e está seguro de ser herdeiro de uma posição profissional distinguida e, como o seu professor, provém dos segmentos sociais que fornecem os estratos tecnoburocráticos que sustentam a classe dominante e o poder vigente. Em épocas de graves convulsões sociais, professores e alunos podem até simular a contradição fundamental da sociedade de classes (uma espécie de exercício de psicodrama), mas, ao fim e ao cabo, distinguem­se apenas por uns 10, 20, 30 anos de diferença de idade ou tempo de serviço.

Quanto aos pacientes, estes jamais chegarão a ser doutores, jamais compartilharão os valores vassalos dos serviçais das classes dominantes e a sua perplexidade diante da instituição hospitalar não é nada semelhante a do doutorzinho que entra pela primeira vez na enfermaria de estetoscópio reluzente ao pescoço como uma espécie de símbolo dos iniciados.

Esta vertente pedagógica, tão disseminada por nossas escolas médicas, procura escamotear o claro sentido de mando e obediência inerente à relação médico-paciente, procura desconhecer que a violência e a exclusão se encontram na raiz de todas as relações que se estabelecem em nossa sociedade. Usualmente, médico e paciente provêm de frações de classe antagônicas dentro da sociedade (excluída a residual e desprezível existência de consultórios da prática liberal típica) e vão exercitar o permanente cotejo entre aquele que decide o que é ou não conveniente (porque manda, porque sabe, porque tem o poder) e aquele que obedece, que cumpre, que se submete e se humilha. O médico exibe seu vasto vocabulário hermético, dá ordens, sem jamais explicá-las e, velada ou ostensivamente, anuncia punições (desde a alta, o exame mais doloroso, até a morte), caso o doente não colabore com a biópsia, não cumpra a dieta ou simplesmente não desligue seu radinho transistor.

Admitir que tal onipotência esteja em decadência ou que ocorram decisões colegiadas, talvez mais do que um sonho, seja a demonstração da incompreensão de que a sociedade não evolui por setores e que isto independe do bom-mocismo de agentes isolados.

* * *

Até a unificação dos Institutos de Previdência Social, em fins de 1966, com a criação do anônimo e abrangente INPS, muitas categorias profissionais haviam construído com o sacrifício de suas contribuições seus instrumentos de assistência social própria (incluídos os hospitais). Permanecem, de pé, no Rio de Janeiro, o que foi a obra dos bancários, dos comerciários, dos marítimos, dos industriários, dos funcionários civis da União.

Se, por uma concepção, devemos compreender como imperiosa a integral universalização e institucionalização dos serviços de saúde, por outro lado, na especiosa modalidade inaugurada pelo INPS de 1966, o empregado deixou de sentir-se proprietário daquele serviço que, com sua contribuição, construíra, tornou-se um anônimo portador de um cartão de identificação ou documento equivalente que o atomiza, o desclassifica e o faz mais um desconhecido perdido entre médicos e demais profissionais de saúde também pulverizados em uma máquina burocrática colossal, emperrada e desvinculada do interesse do trabalhador.

Isto para não se falar das empresas médicas, instrumentos definitivos do achatamento da dignidade do profissional de saúde, do descaso pela doença gerada pelas condições inóspitas do trabalho e eficiente instrumento para a produção do lucro financeiro das grandes empresas.(1 1 *) “O corpo médico é a seção de minha fábrica que me dá mais lucro”, frase de HENRY FORD, genialmente utilizada como epígrafe por JAYME OLIVEIRA & SONIA FLEURY, em texto sobre “Medicina de grupo”. ) Na empresa médica (setor próprio ou contratado especializado na manutenção da “saúde ocupacional”), o candidato que, por ventura, possa apresentar um presumido risco para qualquer enfermidade sequer é admitido, o doente é mantido em serviço até que suas forças se extingam de vez e os definitivamente incapacitados são recambiados ao seguro social, ou seja, ao fundo que todos pagamos.

Hoje, há empresas médicas que, no exercício da relação médico-paciente, exigem mensalmente das trabalhadoras, o teste imunológico para a gravidez. O prêmio pela concepção é a dispensa.

Em um sistema de saúde selvagem armado pela lógica empresarial do lucro e que tem nos serviços contratados a sua tônica de atuação, a relação médico-paciente é, tão-somente, um acabado setor de dominação, do exercício diário e permanente da opressão e da sutil maneira de talvez sugerir que, no fundo, o processo de domesticação possa vir a ser suavizado pela ação do médico, ainda mais se adocicado pelo seu suposto interesse pela tal “anamnese biográfica” ou “história da pessoa”, como se estas existissem fora das relações de classe.

* * *

Particularmente nos parece uma situação extremamente contraditória a atitude assumida pelo médico de “mordomo da classe dominante” (AMANCIOAMANCIO, A. - Relação médico-paciente: uma experiência educacional (em publicação).).(2 2 *) Em certo sentido, tal conceito relembra a noção de trabalhador indireto que acreditamos não ser rigorosamente aplicável à condição analisada. ) Com o integral afastamento dos meios de produção de seus atos e da decisão sobre a globalidade do trabalho, o médico, a despeito do apoio generoso e ostensivo da classe dominante, é, por um lado, sujeito, mas, por outro, objeto da dominação social e da exploração da força de trabalho. Trata-se de um delegado, de um preposto, quase sempre inconsciente, de seu papel de também explorado pelo grupo ao qual supõe pertencer, mas, do qual, na prática, é um mero títere. Internaliza uma ideologia de dominante e a executa na plenitude no momento em que posto diante de um doente. (tão explorado quanto ele) expede ordens, delibera, pune; interna, dá alta, atesta, concede regalias, faz contratransferência, torna-se o senhor da vida e da morte. Assim, o médico iludidamente dominante, sequer ousa conceber que o paciente venha a ter qualquer nível de decisão a propósito de sua doença, de seu corpo, de sua vida, de sua existência concreta.

Talvez isto aconteça porque não tenham a menor importância a saúde ou a doença. O que vale é a produtividade, a capacidade de gerar bens e riquezas. Para a parcela que detém o poder, a saúde do trabalhador vale enquanto significa criação de forças produtivas reduzíveis à acumulação de mais riqueza. A saúde, intuitivamente algo bom e prazeiroso, se torna mercadoria posta à venda e a ideologia da psicologia médica um melhoramento introduzido para incremento da eficácia da oficina de lanternagem e reparos que reintegrará a força de trabalho provisoriamente afastada.

Para não supor meramente simplório ou ingênuo o pensamento de que eficácia do ato médico depende da capacitação técnica e do bom relacionamento com o doente, tomemos tal visão como um ideal generoso. Em verdade, o conhecimento técnico e a relação médico­paciente continuarão a ser valorizados enquanto forem os meios para a salva­guarda da produção material, porque só serão protegidos enquanto não denunciarem seu próprio sentido conformista e domesticador.

Notas

  • PERESTRELLO, D. - Medicina da Pessoa. Rio de Janeiro, Livr. Atheneu, 1974.
  • BALINT, M. - El medico, el paciente y la enfermedad. Buenos Aires, Libras Basicos, 1961.
  • BALINT, E. & NORELL, J. S. - Six minutes for the patient. London, Tavistock Publ. Ltd., 1971.
  • BENSAID, N. - A consulta médica. Rio de Janeiro. Livr. Interciência Ltda., 1977.
  • BICUDO, V. L. - Relação médico-paciente In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 8., Brasília, 1970. Anais. Rio de Janeiro, 1970.
  • BYRD, B. - Conversando com paciente. São Paulo, Livr. Manole, 1975.
  • CAPISANO, H. F. - Manifestações iatrogênicas: conflitos neuróticos do médico prejudicam paciente. Ars Curandi (3):33, 1969.
  • DOIN, C. - O problema da utilização do doente como material didático e as sutilezas da relação médico-paciente In: HOULI, J. & LIMA, M. B. C. - O ensino médico no Brasil. Rio de Janeiro, 1967.
  • EKSTERMAN, A. - Psicanálise, psicossomática e medicina da pessoa. Abertura, 2:1, 1978.
  • GEE, H. H. - Learning the physician-patient relationship. JAMA, 173:1301, 1960.
  • GUEDES, P. L. V. - Ensino de psicologia no currículo médico In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 4., Salvador, 1966. Anais. Rio de Janeiro, 1966.
  • LUCHINA, I.; GALPERIN, J. & LINGER, C. - Seminarios de relación médico-paciente: una experiencia docente. Educ. méd. y Salud, 7:150, 1973.
  • MELLO Fo, J. - Concepção psicossomática: visão atual. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978.
  • MELLO Fo, J.; QUEIROZ, A. de O. & FIGLIOULO, R. - Problemas da relação médico­ paciente no ambulatório e na enfermaria. Abertura, 2:16, 1978.
  • PONTES, J. F. - O ensino da psicologia no currículo médico In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 4., Salvador, 1966. Anais. Rio de Janeiro, 1966.
  • ROCCO, R. P. - O estudante de medicina e o paciente. Rio de Janeiro, Achiamé, 1979.
  • OLIVEIRA, J. A. A. & TEIXEIRA, S. M. F. - Medicina de grupo: a medicina e a fábrica In: Saúde e medicina no Brasil: contribuição para um debate. Rio de Janeiro, Graal, 1978.
  • AMANCIO, A. & QUADRA, A. A. F. - Educação médica, relação médico-paciente, política de saúde: o pólo dominado. Saúde em Debate, 2:18, 1977.
  • AMANCIO, A. - Relação médico-paciente: uma experiência educacional (em publicação).
  • 1
    *) “O corpo médico é a seção de minha fábrica que me dá mais lucro”, frase de HENRY FORD, genialmente utilizada como epígrafe por JAYME OLIVEIRA & SONIA FLEURY, em texto sobre “Medicina de grupo”.
  • 2
    *) Em certo sentido, tal conceito relembra a noção de trabalhador indireto que acreditamos não ser rigorosamente aplicável à condição analisada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1980
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com