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Avaliação crítica das recomendações de energia

Critical evaluation of recommended energy intake

Avaliação crítica das recomendações de energia* * Apresentado como Painel no V Congresso Brasileiro de Epidemiologia. Curitiba, PR, Brasil. 23-27 de março de 2002.

Critical evaluation of recommended energy intake

Rosely Sichieri

Professora Adjunta, Instituto de Medicina Social,Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º andar - Blocos D e E; Pavilhão João Lyra Filho, Maracanã; 20559-900 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil; sichieri@uerj.br

Os métodos utilizados para calcular os requerimentos de energia, bem como as recomendações de energia para as populações humanas foram, recentemente, objeto de revisão publicada por Vasconcellos & Anjos1. Nesta apresentação avalio a inadequação destas recomendações com base nos dados de pesquisa de base populacional realizada no município Rio de Janeiro em 19962, no ENDEF - Estudo Nacional da Despesa Familiar, em 1974-753, e em outros estudos da literatura.

Na pesquisa realizada no Rio, avaliamos a razão entre a ingestão calórica, estimada por um questionário semi-quantitativo de freqüência de consumo, e o gasto energético, estimado pelas equações da FAO/OMS/UNU de 19854, considerando os indivíduos com atividade física moderada. Estas equações levam em conta o sexo e o peso dos indivíduos para o cálculo do metabolismo basal e este metabolismo basal é multiplicado por um fator de atividade física. Valores ao redor de 1,5 para esta razão são esperados em populações sedentárias5. Vannucchi et al.6 estimaram que, para adultos brasileiros no desempenho de atividades que envolvem esforço físico leve, moderado ou intenso, os múltiplos de metabolismo basal seriam 1,55; 1,8 e 2,0, respectivamente. Ocorre que o peso corporal, que é a base destas estimativas, representa massas livres de gordura, conseqüentemente tecidos com gasto energético, muito distintos. Por exemplo, dois indivíduos de mesmo peso e diferentes alturas têm necessariamente diferentes massas livres de gordura. A massa livre de gordura também se reduz com a idade. O relatório da FAO de 1985 já apontava para a dificuldade de se utilizar os valores referentes às recomendações para expressar a real necessidade dos indivíduos. A 10a edição da RDA7 também chamava a atenção para o fato de os fatores de atividade serem aproximações grosseiras dos requerimentos de energia e, em seu terceiro capítulo, sugeria que os requerimentos energéticos para indivíduos desnutridos ou com sobrepeso fossem ajustados, utilizando-se o peso normal para a altura. Assim sendo, é reconhecida a necessidade de uma ampla revisão dos pressupostos referentes às recomendações de energia8.

A titulo de exemplo, estimando o gasto energético para adultos do Município do Rio de Janeiro, considerando o peso adequado segundo altura e utilizando como peso adequado o IMC de 22 kg/m2, a razão entre consumo médio e gasto médio ficou próxima a 1 para os homens. Esta situação é pouco provável em uma população com prevalência alta e crescente de obesidade. Para mulheres, a razão do consumo energético com as estimativas de gasto, fixando-se um IMC de 22Kg/m2, indicou que as mulheres têm um consumo de energia que se encontra, aproximadamente, 50% acima do valor estimado. Sem considerar o peso ideal para a estimativa de gasto, o consumo entre as mulheres variou de 15 a 32% acima do gasto energético estimado. Para os homens, o excesso de consumo frente aos gastos só se expressou no cálculo com o peso corrigido, uma vez que os valores ajustados ficaram próximos a 1.

Utilizando como fonte o ENDEF, que avaliou o consumo alimentar usando uma metodologia muito precisa - a pesagem dos alimentos consumidos pela família durante 7 dias - e comparando o consumo frente às necessidades para os comensais-dia, o consumo energético médio na região metropolitana do Rio de Janeiro foi de 2.058 kcal, para uma necessidade média de 2007kcal e com uma relação consumo/gasto de 1,02.

Os dados mais recentes para o Rio de Janeiro de alta prevalência de consumo de energia abaixo das recomendações, particularmente quando não se corrige o gasto para um peso normal para a altura, podem ser explicados pela baixa estatura e sobrepeso da população. Mesmo ajustando-se para um peso adequado para a altura um percentual ainda importante e ao redor de 25% para os homens e de 20% para as mulheres, é classificado como consumo inadequado de energia. Quantos destes realmente estão em déficit energético é difícil dizer, mas como a prevalência de baixo peso nesta população foi muito baixa este percentual não deve atingir 20%.

Uma forma de avaliar este déficit de energia é estratificá-lo em relação a classes de renda, considerando que somente as rendas mais baixas teriam um real déficit de energia. Quando a população com consumo abaixo dos valores de recomendação foi avaliada em relação à renda, observou-se que a prevalência de inadequação do consumo foi de 31,8% para a classe de renda per capita de até 100 reais, e ao redor de 20% para as outras classes de renda para o sexo masculino. Estes percentuais para o sexo feminino foram de 27,6 para a classe de menor renda, ficando ao redor de 13% para as demais rendas.

Analisando-se as razões consumo/estimativas de gasto segundo o sobrepeso (IMC acima de 25 kg/m2), a diferença entre a razão calculada com a estimativa de gasto baseada no peso e aquela ajustada pela altura, como era de se esperar, foi maior entre os obesos do que entre os não-obesos, enquanto no cálculo das recomendações sem ajuste para a altura os homens com sobrepeso consomem menos que o recomendado. Quando se compara o déficit energético entre os que têm sobrepeso e os com peso normal, nota-se que aqueles com sobrepeso para os dois sexos apresentam 30% mais déficit energético do que aqueles com peso normal. Há que se considerar a subestimação de consumo por parte dos obesos9.

Uma superestimação de déficit energético na população estudada é bastante provável, e um outro fator que possivelmente leva a uma superestimação do déficit energético é o percentual da população em dieta especial para emagrecimento. Referiram estar fazendo algum tipo de dieta para emagrecimento 10% dos homens e 20% das mulheres. Além disso, considerou-se como fator atividade física moderada, sendo que a maior parte da população desenvolve atividades leves e muito leves10.

Adicionalmente, há que se considerar a variabilidade no requerimento energético, particularmente em populações que podem ter sofrido restrições em períodos anteriores da vida. Assim, foi observada alta variabilidade nas modificações do taxa de metabolismo basal em gestantes11. Comparando-se gestantes de Gâmbia a gestantes da Inglaterra, as primeiras reduzem seu metabolismo nas 30 semanas de gestação, enquanto as inglesas o aumentam para o dobro neste período. Tem sido também observado que a desnutrição na infância é um possível fator de risco para a obesidade em mulheres adultas12, mesmo ajustando-se para o consumo calórico total. Estes achados indicam que as variações importantes nos requerimentos de energia das populações dependem não só de variações geográficas e demográficas, mas também de uma possível programação anterior e, ambientalmente modulada, das necessidades de energia.

  • 1. Vasconcellos MT, dos Anjos LA. Energy adequacy ratio (intake/requirements) as an indicator of families nutritional assessment: a critical analysis of methods applied to food consumption surveys. Cad Saúde Pública 2001; 17(3): 581-93.
  • 2. Sichieri R. Epidemiologia da obesidade Rio de Janeiro: EDUERJ; 1998.
  • 3
    ENDEF-Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - FIBGE, 1985. Estudo Nacional da Despesa Familiar - ENDEF. Tabela de composição de alimentos. FIBGE, Rio de Janeiro.
  • 4. FAO/OMS/UNU - Organização Mundial de la Salud. Informe tecnico no 724. Necessidades de energia y de proteinas Genebra;1985.
  • 5. Briefel RR, McDowell MA, Alaimo K et al. Total energy intake of US population: the Third National Health and Nutrition Examination Survey, 1988-1991. Am J Clin Nutr 1995; 62(5Suppl): 1072S-80S.
  • 6. Vannucchi H. Menezes EW, Campana AO, Lajolo FM. Aplicações das recomendações nutricionais adaptadas à população brasileira Ribeirão Preto: Ed Legis Suma Ltda.; 1990.
  • 7. NRC- National Research Council. Recommended dietary allowances 10th ed Washington, D.C.; 1989.
  • 8. Food and Nutrition Board. Revisiting Dietary Allowances and requirements. Nutr Rev 1996; 54(8): 246-7.
  • 9. Prentice AM, Black AE, Coward WA et al. High levels of energy expenditure in obese women. Br Med J 1986; 292: 983-7.
  • 10. Gomes VB, Siqueira KS, Sichieri R. Physical activity in a probabilistic sample in the city of Rio de Janeiro. Cad Saúde Publica 2001; 17(4): 969-76.
  • 11. Prentice AM, Goldberg GR. Energy adaptations in human pregnancy: limits and long-term consequences. Am J Clin Nutr 2000;7 1(5 Suppl): 1226S-32S
  • 12. Sichieri R, Siqueira KS, Moura AS. Obesity and abdominal fatness associated with undernutrition early in life in a survey in Rio de Janeiro. Int J Obes Relat Metab Disord 2000; 24(5): 614-8.
  • *
    Apresentado como Painel no V Congresso Brasileiro de Epidemiologia. Curitiba, PR, Brasil. 23-27 de março de 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2005
    • Data do Fascículo
      Nov 2002
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