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A Hermenêutica no Campo Organizacional: duas possibilidades interpretativistas de pesquisa

Hermeneutic Questions in Organizational Studies: two interpretative possibilities for research

Hermenéutica en el Campo Organizacional: dos posibilidades interpretativas en la investigación

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo apresentar considerações teóricas sobre dois tipos de estratégia de pesquisa: fenomenologia e etnografia. Com base na perspectiva hermenêutica, são apresentadas proposições conceituais das duas vertentes, sendo que a primeira é tratada no contexto sociológico e a segunda é apresentada em bases antropológicas. Seus usos similares no contexto organizacional - como também suas diferenças - são evidenciados de acordo com as contribuições teóricas de autores pertencentes ao universo qualitativo da pesquisa organizacional. Destaca-se, pela apresentação dos pressupostos teóricos relatados, a adequação da proposta interpretativa para consecução de pesquisas que tomam a organização como objeto de estudo, em busca da identificação das formas de construção da realidade social resultante da análise de significados e experiências vividas por seus participantes, ressaltando-se a importância do envolvimento entre pesquisador e pesquisado. A discussão teórica a respeito das duas vertentes permitiu notar a adequação da prática de pesquisas fenomenológicas e etnográficas no campo de estudos organizacionais, manifestando-se como possibilidades metodológicas para identificar dinâmicas que se atrelam à experiência de vida, favorecendo a análise do ser humano na condição de fenômeno de interpretação.

Palavras-chave:
Hermenêutica; Fenomenologia; Etnografia

ABSTRACT

The present text has the objective of presenting theoretical considerations regarding two types of strategy of research: phenomenology and ethnography. Based on a hermeneutic approach, the two conceptual propositions are presented, the first being dealt with in the sociological context, and the second presented as an anthropological basis. Their similar uses in an organizational context - as well as their differences - are highligthed according to the theoretical contributions of authors belonging to the qualitative universe of organizational research. The text reveals, by the presentations of reported theoretical assumptions, the relevance of the interpretative perspective for the conduction of research that has the organization as object of study, in the pursuit of the identification of ways of constructing the social reality that is the result of the analysis of meanings and experiences lived by the participants, highlighting the importance of the bond between researcher and the research object The theoretical discussion regarding the two perspectives allows to observe the competence of the phenomenological and ethnographic research practice within the field of organizational studies, showing their methodological possibilities to identify dynamics that relate to the experience of life, favoring the analysis of the human being as a phenomenon of interpretation.

Key words:
Hermeneutic; Phenomenology; Ethnography

RESUMEN

Este ensayo presenta consideraciones teóricas sobre dos tipos de estrategias de investigación: fenomenología y etnografía. Apoyados en la perspectiva hermenéutica, se presentan proposiciones conceptuales de las dos vertientes. La primera se estudia dentro del contexto sociológico y la segunda se presenta con bases antropológicas. Sus usos similares en el contexto organizacional - como también sus diferencias - se cuestionan según la contribución, la presentación de los presupuestos teóricos relatados, la adecuación de la propuesta interpretativa para conseguir investigaciones centradas en la organización como objeto de estudio, identificando formas de construcción de la realidad social resultante del análisis de significados y experiencias vividas por sus participantes, destacando la importancia de que investigador e investigado se involucren. El debate teórico respecto a las dos vertientes permitió reflejar la adecuación de la práctica de investigaciones fenomenológicas y etnográficas en el campo de los estudios organizacionales, manifestándose como posibilidades metodológicas para identificar dinámicas vinculadas a la experiencia de vida, favoreciendo el análisis del ser humano como fenómeno a interpretar.

Palabras clave:
Hermenéutica; Fenomenología; Etnografía

1 INTRODUÇÃO

No campo dos estudos organizacionais, como também em outras áreas de conhecimento, não é nova a preocupação de se delinearem formas de investigar a realidade social constituída pelas pessoas, no pressuposto de que tal postura oferece resultados que não se limitam à expressão racional de dada realidade. Ainda que a tradicional perspectiva objetivista seja predominante, via abordagens quantitativas, as pesquisas acadêmicas também apresentam considerável volume de trabalhos com abordagens qualitativas, que não poucos autores classificam, de maneira imprópria, a nosso ver, de “perspectiva subjetivista”. Atkinson e Hammersley (1994ATKINSON, P.; HAMMERSLEY, M. Ethnography and participant observation. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Eds.) The sage handbook of qualitative research. California: Sage Publications, 1994. p. 249-261.) registram que até mesmo para utilização de estratégias qualitativas de investigação alguns pesquisadores sentem obrigação de adotar critérios quantitativos em relação a rigor e validade. O próprio debate a respeito da adequação das propostas quantitativa e qualitativa tem sido tratado por diversos autores (CHANLAT, 1996CHANLAT, J. F. O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo: Atlas, 1996.; CRESWELL, 1998CRESWELL, J. W. Qualitative inquiry and research design: choosing among five traditions. London: Sage, 1998.). Embora não se objetive, neste ensaio, discutir ambivalências ou dicotomias entre as duas propostas, cabem duas considerações prévias. Primeiro, as abordagens quantitativas não estão livres de considerações subjetivas; segundo, abordagens qualitativas não implicam abandono da objetividade em prol de suposta suficiência subjetivista. Não se pode reduzir, portanto, a abordagem qualitativa a uma simples “perspectiva subjetivista”. Nos mais diversos campos do conhecimento, constata-se a tendência a construir hierarquias entre abordagens qualitativas e quantitativas, ora considerando a subjetividade o elemento que legitima a superioridade das primeiras, ora destacando a consistência objetiva nas segundas. Uma das contribuições deste ensaio é relativizar a possibilidade de uma nítida distinção entre ambas as abordagens, além de desmitificar suposta superioridade da abordagem qualitativa por incluir aspectos subjetivos dos fenômenos analisados. Essas considerações estão embasadas no pressuposto de que, em ambas as abordagens, há interpretação de fatos e dados e, ao mesmo tempo, a subjetividade do próprio pesquisador está presente, tornando a hermenêutica, segundo a perspectiva de Ricoeur (1978RICOEUR, P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.), também compreensão de si. O processo hermenêutico não está ausente nas abordagens quantitativas, assim como ele não é exclusivo da abordagem qualitativa.

Diante de tal panorama, valemo-nos de abordagem qualitativa, no intuito de identificar sua viabilidade na consecução de estudos organizacionais. Creswell (1998CRESWELL, J. W. Qualitative inquiry and research design: choosing among five traditions. London: Sage, 1998.) define a pesquisa qualitativa como um processo de análise e entendimento baseado na tradição de investigações metodológicas que exploram o problema humano e social. Ao desenvolver esse processo, o pesquisador constrói um quadro complexo e holístico, analisa palavras, reporta detalhadamente as visões de informantes (participantes), conduzindo o estudo em um campo natural,1 1 Neste trabalho, “natural” não diz respeito à oposição conceitual entre “natureza” e “cultura”, clássica nas ciências sociais. Seguindo a longa experiência da pesquisa de campo na antropologia, com “natural” se quer destacar o cuidado do pesquisador em não interferir no curso dos acontecimentos ou fatos sociais em estudo. Veja-se, a esse respeito, Malinowski (1972) propício a novas e pertinentes descobertas. Na opinião de Holanda, a pesquisa qualitativa apresenta dois elementos distintivos: a inclusão da subjetividade no ato de investigar e a visão de abrangência do fenômeno (HOLANDA, 2002HOLANDA, A. O resgate da fenomenologia de Husserl e a pesquisa em psicologia. 2002. 309 f. Tese (Doutorado em Psicologia)-Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, 2002.), cujo enfoque aborda os significados da experiência vivida. Matizando a ênfase outorgada por esse autor à “inclusão da subjetividade”, devemos sublinhar que o caráter qualitativo da abordagem não se reduz a essa inclusão. Tanto a abrangência do fenômeno quanto a inclusão da subjetividade exigem da investigação processos de interpretação, isto é, hermenêutica, no sentido proposto por Dilthey (1988DILTHEY W. Introduction to the human sciences: an attempt to lay and foundation for the study of society and history. Detroit: Wayne State University Press, 1988.).

Embora seja notória a existência de vasta gama de opções de pesquisa para a referida abordagem nos estudos organizacionais (GODOI; BANDEIRA-DE-MELLO; SILVA, 2006GODOI, C. K.; BANDEIRA-DE-MELLO, R.; SILVA, A. (Orgs.). Pesquisa qualitativa em estudos organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. São Paulo: Saraiva, 2006.), a discussão aqui presente configurar-se-á na apreciação de duas delas: fenomenologia e etnografia. Tais opções se aproximam bastante da elucidação e do conhecimento dos complexos processos de construção da subjetividade no contexto organizacional, com base nas interações e experiências apreendidas e compreendidas na dinâmica da organização.

Para tanto, este ensaio foi desenvolvido em cinco partes, além desta introdução. A primeira parte apresenta a questão hermenêutica como base filosófica para estudos qualitativos, além de discorrer sobre seus aspectos históricos. Na parte seguinte, discute-se a fenomenologia como recurso para análise de subjetividades e intersubjetividades, pautado na chamada sociologia interpretativa. A etnografia é apresentada na terceira parte do artigo, sendo que sua origem antropológica é relacionada com os aspectos culturais desenvolvidos pelas pessoas como participantes de grupos sociais. Na quarta parte, tanto fenomenologia quanto etnografia são contextualizadas nos estudos organizacionais, classificadas como estratégias qualitativas de pesquisa, adequadas à análise e à interpretação da construção da realidade social na organização. Na quinta e última parte, são apresentadas algumas considerações a respeito da importância de se adotar uma abordagem interpretativa no estudo das organizações, com destaque para os olhares fenomenológico e etnográfico como formas de se captar a realidade social construída e constituída, em toda sua dinâmica e complexidade.

2 A HERMENÊUTICA COMO BASE FILOSÓFICA

Em termos etimológicos, a palavra “hermenêutica” vem de Hermes, deus grego responsável por interpretar as mensagens para os mortais. Como campo de estudo, a hermenêutica tomou corpo a partir do século XIX, ocasião em que o conhecimento passou a ser entendido como intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em vez de, exclusivamente, objetivo, explicativo e nomotético (SANTOS, 2005SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005. v. 1.). Wilhelm Dilthey (1988DILTHEY W. Introduction to the human sciences: an attempt to lay and foundation for the study of society and history. Detroit: Wayne State University Press, 1988.) destaca-se dentre os principais precursores do estudo hermenêutico como base metodológica de análise e pesquisa nas ciências sociais ao estabelecer a distinção entre o estudo das ciências naturais (à procura da causalidade de fenômenos) e o entendimento das ciências espirituais (em busca do sentido das experiências humanas, incluindo-se a própria experiência de quem investiga). No campo da Filosofia, já no século XX, Heidegger (1993HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1993.) tratou a hermenêutica como conhecer o ser humano e compreender a maneira de ser humano. De acordo com Bleicher (1992BLEICHER, J. Hermenêutica contemporânea. Rio de Janeiro: Edições 70, 1992.), podemos entender hermenêutica como a teoria ou filosofia da interpretação das expressões da vida interior do homem, ou seja, a interpretação dos sentidos.

Na sociologia clássica, a hermenêutica tem sido utilizada como base filosófica para diferentes estudos qualitativos realizados nas ciências sociais, tendo em vista que o homem e as interações humanas são frequentemente tomados como objeto de análise e investigação. Exemplo eloquente disso são as opções de pesquisa de Max Weber, que prefere o termo “compreensão” a “interpretação”.2 2 Economía y sociedad (1984). Em Weber, percebe-se a influência de Dilthey em sua preocupação pelas coisas do espírito Pesquisas de tal natureza implicam processos interpretativos do investigador, além da relevância do destaque para a compreensão de significados das várias ações do “outro”. O homem ajuda a revelar a realidade por meio da linguagem (oral ou escrita) e, pela interpretação dessa linguagem, o pesquisador amealha aspectos significativos e cruciais para a compreensão do ser e do fenômeno investigado.

Para Moustakas (1994MOUSTAKAS, C. Phenomenological research methods. Thousand Oaks. California: Sage Publications, 1994.), hermenêutica é entendida como a exploração ou modelo de pesquisa cujo foco está na consciência e na experiência. Nesse sentido, como destaca Napoli (2000NAPOLI, R. B. A hermenêutica de W. Dilthey. In: REIS, R. R.; ROCHA, R. P. Filosofia hermenêutica. Santa Maria: UFSM, 2000. p. 93-113.), Dilthey foi crucial para estabelecer o que pode ser chamado de hermenêutica da vida e do outro, ao relacionar a descrição da experiência vivida com a interpretação por meio de algo escrito ou outra forma simbólica, em um processo de compreensão descritiva. Estabelece-se então a ideia da dualidade entre as ciências naturais e as ciências do espírito: viver é interpretar a natureza. Nesse sentido, a vida do homem, em contexto mais amplo, passa a ser foco de preocupação e de análise, levando-se em conta seus desejos, vontades, sentimentos e imaginação (MINAYO, 2002MINAYO, M. C. S. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social próprio. In: MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F. (Orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002. p. 83-107.). Na obra de Husserl (1949HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica. México: Fondo de Cultura Económica, 1949.), é possível perceber a contextualização humana da ciência e da técnica. Segundo apontamento feito por Siebeneichler (1983SIEBENEICHLER, F. B. Fenomenologia e hermenêutica. In: CAPALBO, C. Fenomenologia e hermenêutica. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 1983. p. 9-34.), há uma ligação intencional entre espírito e mundo, por meio da qual se elucida a situação da consciência em relação ao homem. Embora Heidegger tenha constatado a significação humana além do chamado mundo exterior, ao destacar a ideia de interpretação fundada no homem, foi de Husserl a indicação de que a hermenêutica configura-se na interpretação a partir do próprio homem como ser, a respeito de si mesmo e do outro (CORETH, 1973CORETH, E. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo: EPU/Edusp, 1973.).

Foi Gadamer, entretanto, segundo afirma Habermas, quem elaborou, com base nos escritos de Heidegger, uma teoria filosófica parametrizada na hermenêutica, não apenas como a “arte de interpretar”, mas como forma de relacionar a verdade do ser e o método científico. Habermas (1987HABERMAS, J. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987.) relata que Gadamer desenvolveu um interesse filosófico pelo diálogo com a tradição, línguas e culturas diferentes, refletindo sobre condições históricas e filosóficas da compreensão e da interpretação do homem como ser. Na mesma perspectiva, Paul Ricouer desenvolveu a chamada hermenêutica fenomenológica, na qual o agir humano é a base da reflexão, estabelecendo a conexão entre a linguagem simbólica e a compreensão de si mesmo (MINAYO, 2002MINAYO, M. C. S. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social próprio. In: MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F. (Orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002. p. 83-107.). A hermenêutica torna-se a busca da compreensão dos sentidos de acordo com o contexto local, social e histórico de fatos, dados ou acontecimentos que sejam passíveis de significação. Cada sentido vivido possibilita a compreensão das formas significativas de vivência e a compreensão significativa de uma subjetividade comum. Na expressão de Ricoeur (1978RICOEUR, P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978.), toda hermenêutica é, de forma implícita, a compreensão de si mesmo mediante a compreensão do outro. Daí inferir-se que, ao se relacionar com outras disciplinas ou campos de conhecimento, a hermenêutica passa por um processo de especificação, suscitando formas e modelos próprios para descrição e interpretação de dada realidade.

3 A SOCIOLOGIA COMO BASE FENOMENOLÓGICA

A sociologia baseada na interpretação (hermenêutica) tem suas bases em Karl Marx e Max Weber. Habermas (1987HABERMAS, J. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987.), ao desenvolver sua hermenêutica crítica das ideologias, assume os postulados dos referidos autores para analisar as condições sociais, políticas e culturais por meio de interpretações que possam desmitificá-las. Trata-se da ideia de que todo comportamento social tem significado subjetivo, sendo que, para entendê-lo, faz-se necessária a compreensão das relações sociais existentes. Uma vez que a compreensão dos significados, conforme as bases filosóficas citadas anteriormente, ocorre no sujeito, o ser humano e suas relações são assumidos como centro de toda atenção.

Ao discutir a realidade social, Schütz (1972SCHÜTZ, A. Fenomenología del mundo social: introducción a la sociología comprensiva. Buenos Aires: Paidós, 1972.) afirma que Weber estabeleceu como principal papel da sociologia a descrição cuidadosa e simples da vida social, ao pormenorizar a conduta humana lançando mão da interpretação e da compreensão, enfocando os objetos culturais e tratando de compreender seu significado, aplicando-lhes os esquemas interpretativos. Eis aí uma aproximação com as propostas filosóficas de Husserl, cujo resultado evidencia-se pela análise das estruturas sociais, pautada na dedução originada nas características gerais e primitivas da consciência humana. Ainda segundo o trabalho de Schütz (1972SCHÜTZ, A. Fenomenología del mundo social: introducción a la sociología comprensiva. Buenos Aires: Paidós, 1972.), a natureza exata de determinado fenômeno é obtida pela análise da função constitutiva do significado elaborado pelo sujeito, distinguindo-se de outras vivências pelo ato peculiar de prestar atenção. Assim, o homem pode investigar seu próprio mundo ao contemplá-lo do ponto de vista de uma atitude natural, posto que ele - homem - é nascido nesse mundo. Tal naturalidade aplica-se também quando ele percebe a existência de seres que lhe são semelhantes, com os quais interage, podendo compreender-se a si mesmo e aos outros (realidade social). Cabe registrar, não obstante, o destaque que Weber faz sobre a complexidade dos fatos sociais em estudo, ao extremo de posicionar-se contra toda e qualquer forma de “monocausalismo”. Para esse autor, a compreensão da realidade social por parte da ciência seria sempre parcial ou incompleta, isso porque os fatos sociais são sempre resultado de múltiplas causas.3 3 Veja-se, a esse respeito, sua obra Ciência e política: duas vocações, Brasília, UnB, 1968

À busca de compreensão de significados de experiências vividas, bem como de interpretação do outro, damos o nome de fenomenologia. Ainda que cada pessoa seja única, autores como Van Manen (1990VAN MANEN, M. Researching lived experience: human science for an action sensitive pedagogy. London: The State of New York, 1990.) e Napoli (2000NAPOLI, R. B. A hermenêutica de W. Dilthey. In: REIS, R. R.; ROCHA, R. P. Filosofia hermenêutica. Santa Maria: UFSM, 2000. p. 93-113.) destacam que, para a fenomenologia, existem certas especificidades que servem para compreensão do significado da experiência vivida: (1) em sua forma mais básica, a experiência vivida abarca a consciência da vida imediata, pré-reflexiva - uma consciência reflexiva ou autodeterminada, que é, como consciência, inconsciente de si mesma; (2) a estrutura vivida tem uma estrutura temporal e nunca pode ser compreendida em sua manifestação imediata, e sim a partir da reflexão sobre experiência; (3) a experiência vivida envolve a totalidade de vida, sendo que a apropriação do significado da experiência vivida sempre é algo do passado que nunca pode ser compreendido em sua riqueza e profundidade completas; (4) a experiência vivida tem uma certa “essência”, uma “qualidade” reconhecida em retrospecto; (5) a estrutura ou ligação estrutural pertence a uma experiência vivida particular (significado único), que é exclusiva e parte de um sistema de experiências relacionadas contextualmente (o todo significante), identificadas por um processo de reflexão de significados; (6) a experiência vivida em si tem uma estrutura lingüística. A experiência e a (in)consciência são estruturadas como uma linguagem e, conseqüentemente, o homem pode falar de toda sua experiência, todas suas interações humanas, tal como se fosse um texto.

Estabelece-se então um método por meio do qual é possível compreender dado fenômeno utilizando-se da experiência vivida: o método fenomenológico, de âmbito qualitativo, posto que se direciona para os significados da existência humana ou, conforme Merleau-Ponty (2002MERLEAU-PONTY, M. Phenomenology of perception. London: Routledge, 2002.), para as essências e significações existenciais. Por meio desse método, o pesquisador descreve um fenômeno da maneira pela qual ele se apresenta para sua consciência, fruto de sua experiência vivida no mundo, como se pudesse textualizar sua essência graças à experiência vivida (VAN MANEN, 1990VAN MANEN, M. Researching lived experience: human science for an action sensitive pedagogy. London: The State of New York, 1990.). Dessa forma, desenvolve-se a ideia de que o pesquisador age como se deixasse o fenômeno falar por si, com o objetivo de alcançar o real sentido da experiência, além de seu significado para as pessoas que a vivenciaram, estando, portanto, aptas a fornecer uma descrição compreensiva que atende aos propósitos da pesquisa. Permanece, no entanto, na tradição fenomenológica o pressuposto de que é possível chegar à essência do fenômeno sem interpretá-lo. Em poucas palavras, encontrá-lo em estado “puro”. Como veremos adiante, isso se torna possível apenas colocando o sujeito que interpreta “entre parênteses”, o que a fenomenologia chama de “redução eidética” ou “epoché” (HUSSERL, 1949HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica. México: Fondo de Cultura Económica, 1949.).

Ao realizar uma pesquisa de cunho fenomenológico, o pesquisador tem como objetivos a identificação e a interpretação de significados tanto de caráter subjetivo (sua consciência) como intersubjetivo (experiências relacionadas). Creswell (1998CRESWELL, J. W. Qualitative inquiry and research design: choosing among five traditions. London: Sage, 1998.) complementa que a fenomenologia inclui o estudo dos problemas relacionados a “invadir” o campo de percepção dos participantes, identificando como eles reconhecem a experiência, vivem e expõem o fenômeno, à procura do significado das experiências para os participantes.

Poderíamos, no entanto, pensar a fenomenologia como uma interpretação descritiva, por meio da qual cada pesquisador cria sua própria forma de interpretar, pois resulta da maneira em que se relaciona com seu objeto de pesquisa. Nessa perspectiva, como registra Van Manen (1990VAN MANEN, M. Researching lived experience: human science for an action sensitive pedagogy. London: The State of New York, 1990.), a realização da pesquisa é um questionamento sobre a maneira pela qual as pessoas experienciam o mundo, para conhecê-lo como seres humanos. Inegavelmente, assume-se que a fenomenologia, na condição de método de investigação enraizado em bases filosóficas, caracteriza-se como disciplina reflexiva oriunda das ciências humanas e sociais, sendo aplicada com processos descritivos e, ao mesmo tempo, interpretativos. Vale registrar, no entanto, que a prática de tal pesquisa sofre variações, durante seu processo, se a comparamos com sua origem conceitual e filosófica (MOREIRA, 2002MOREIRA, D. A. O método fenomenológico de pesquisa. São Paulo: Pioneira Thompson , 2002.). A questão da prática fenomenológica é discutida no trabalho de Rocha-Pinto, Freitas e Maisonnave (2008ROCHA-PINTO, S. R.; FREITAS, A. S.; MAISONNAVE, P. R. Métodos interpretativistas em Administração: as implicações para o (a) pesquisador (a). In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO (ANPAD), 32., 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPAD, 2008.), ao caracterizarem tanto a redução fenomenológica (suspensão do julgamento) quanto a redução eidética (procura da essência). A reflexão dos autores aponta que, pelo método fenomenológico, certas ideias preconcebidas a respeito de determinado fenômeno podem ser suspensas ou superadas por novas interpretações ou novas visões de mundo.

4 A BASE ANTROPOLÓGICA DA ETNOGRAFIA

Voltada ao estudo das culturas da humanidade como um todo, em suas diversidades históricas e geográficas, a antropologia tomou caráter científico apenas no final do século XVIII, ao tomar o homem como objeto de conhecimento e não mais a natureza (LAPLANTINE, 2000LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000.). A antropologia cultural, da qual surge a antropologia hermenêutica, tem como objeto de estudo o ser humano enquanto sujeito coletivo produtor de cultura, sendo esta última resultado da ação dos seres humanos na natureza. O avanço da antropologia nessa direção acontece apenas entre os séculos XIX e XX. A partir da segunda metade do século XX, dentre as várias vertentes antropológicas, surgiu a antropologia hermenêutica, também conhecida como interpretativa ou pós-moderna. Clifford Geertz pode ser considerado como um de seus principais representantes. Também pautada no paradigma hermenêutico, tal qual a sociologia interpretativa discutida anteriormente, essa abordagem apresenta-se como alternativa crítica às “antropologias tradicionais”, como a antropologia pré-histórica e a antropologia biológica (GODOY, 2005GODOY, A. Refletindo sobre critérios de qualidade da pesquisa qualitativa. Revista Eletrônica de Gestão Organizacional, Recife, v. 3, n. 2, p. 80-89, 2005.).

A antropologia interpretativa, conforme Geertz (2001GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios sobre a antropologia interpretativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.), apresenta a cultura como seu objeto de estudo, por meio da interpretação dos significados apresentados pelos diversos sujeitos nas práticas sociais de determinada realidade. Para o autor, a vida social é organizada por meio de símbolos, sinais, representações que demonstram as várias maneiras que os seres humanos apresentam para construção de suas vidas. Tal ponto de vista corrobora com o de Bourdieu (2001BOURDIEU, P. Science de la science et réflexivité. Paris: Raisons d’Agir Editions, 2001.), segundo o qual, nas ciências sociais, tanto o objeto como o sujeito da pesquisa são frutos de uma construção social. É um processo pelo qual a ciência pode encontrar nela mesma novos lugares epistemológicos e metodológicos. A interpretação dos discursos - com posterior registro - torna-se possível por meio da etnografia. Para utilizar uma das expressões mais conhecidas do trabalho de Geertz (1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. ), a etnografia é uma “descrição densa” da realidade social que é pesquisada, por meio da identificação da teia de significados que o homem constrói, ou seja, sua cultura, incorporada historicamente em símbolos e concepções herdadas e compartilhadas durante sua vida. Para o autor, o papel do antropólogo é interpretar o discurso social, ao traduzir os significados social e culturalmente construídos pelos sujeitos. Fazendo menção ao que foi discorrido no tópico anterior, percebe-se novamente a intersubjetividade entre pesquisador e o objeto de pesquisa. Nesse processo, as diferenças individuais, em seus diversos contextos, passam a ser opções para diferentes formas de construção da realidade.

Nessa nova forma de se “fazer” antropologia, a autonomia do investigador é colocada em discussão, pois o saber é negociado entre pesquisador e pesquisado, em um processo de confronto entre horizontes. A intersubjetividade, a individualidade e a historicidade passam a ser vivenciadas por quem pesquisa. Para Cardoso (1986CARDOSO, R. A aventura antropológica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.), esse processo tem as seguintes características: (1) os horizontes não se excluem de um modo absoluto, mas se interseccionam e muitas vezes se fundem, propiciando o exercício da intersubjetividade; (2) reconhecimento das individualidades do pesquisador e do pesquisado; (3) inclusão do pesquisador na historicidade do pesquisado.

Essa vertente adota premissas fundamentadas na hermenêutica, pois busca o significado simbólico, em toda sua complexidade, por meio do esforço interpretativo. Autores como Schwartzman (1993SCHWARTZMAN, H. B. Ethnography in organizations. Newbury Park, California: Sage Publications, 1993.) e Atkinson e Hammersley (1994ATKINSON, P.; HAMMERSLEY, M. Ethnography and participant observation. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Eds.) The sage handbook of qualitative research. California: Sage Publications, 1994. p. 249-261.) demonstram o papel central da etnografia nas ideias de certos antropólogos que entendiam a antropologia como um tipo especial de ciência, cujos métodos envolviam a coleta de dados e informações diretamente da fonte, pelo antropólogo, e a descrição das características culturais e sociais de sociedades “primitivas” - diferente da tentativa de tentar supor a história ou descrever tais sociedades por um processo de evolução. Para esses antropólogos, os fenômenos culturais e sociais diferenciavam-se dos fenômenos físicos, e assim deviam ser compreendidos de acordo com sua natureza distinta. Não há, portanto, a redução a um mero significado, mas uma vasta relativização de contextos cujo significado, conforme Schwartzman (1993SCHWARTZMAN, H. B. Ethnography in organizations. Newbury Park, California: Sage Publications, 1993.), é uma “tecelagem etnográfica”.

Detecta-se uma semelhança entre a fenomenologia e a etnografia. A primeira propõe caminhos para a busca da experiência própria, que seria mais autêntica. A segunda leva o pesquisador à procura direta dos fatos e dados: é o que a pesquisa de campo, a observação participativa e a coleta de dados tentam fazer. O motivo é, neste segundo caso, reduzir ao máximo as mediações e colocar o pesquisador intérprete diretamente com os fatos estudados. No caso da fenomenologia, permanece a tentativa de atingir a experiência própria sem, no entanto, interpretá-la.

Após o percurso de mais de um século de estudos apoiados em trabalhos etnográficos, atualmente a etnografia está presente em diversas áreas, em diferentes campos científicos, fato que talvez explique sua aderência como forma hermenêutica para investigação. É inegável, porém, que a interação entre pesquisador e pesquisado permite maior possibilidade de identificação e estudo de dado fenômeno, com proximidade e envolvimento (TEDLOCK, 2000TEDLOCK, B. Ethnography and ethnography representation. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Eds.). The sage handbook of qualitative research. 2nd ed. California: Sage Publications, 2000. p. 455-486.). Trata-se da vocação interpretativa necessária durante um mergulho em formas “não emocionalizadas” que surgem quando se olham as dimensões simbólicas da ação social, fixando o que é dito e demonstrado em formas pesquisáveis (GEERTZ, 1989GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. ). Assim, é possível inferir que a compreensão intersubjetiva demande a imersão em significados que são compartilhados.

5 FENOMENOLOGIA E ETNOGRAFIA NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

Os estudos organizacionais passam por um momento de múltiplas abordagens que favorece a análise de diferentes fenômenos de acordo com várias perspectivas. Nesse contexto, cabe o registro de Morgan e Smircich (1980MORGAN, G.; SMIRCICH, L. The case for qualitative research. The Academy of Management Review, Briarcliff Manor, v.5, n. 4, p. 491-500, 1980.), ao afirmarem que qualquer paradigma ou visão de mundo pode fazer menção a diferentes escolas de pensamento, que, por sua vez, têm modos diferentes de aproximação de dada realidade compartilhada ou até mesmo de uma visão de mundo. Tanto no caso da fenomenologia quanto no caso da etnografia, constata-se o chamado método interpretativista, firmado no campo da subjetividade e da interpretação do campo simbólico, recurso adotado por pesquisadores que assumem uma abordagem qualitativa em seus trabalhos. E a própria realidade social é qualitativa.

Ao discorrer sobre as possibilidades da pesquisa qualitativa, Godoy (1995GODOY, A. A pesquisa qualitativa e sua utilização em administração de empresas. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 35, n. 4, p. 65-71, 1995.) destaca que os pesquisadores qualitativos tentam compreender os fenômenos que são estudados a partir da perspectiva dos participantes. Nesse panorama, como afirma Demo (2001DEMO, P. Pesquisa e construção de conhecimento. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2001.), o pesquisador é o principal instrumento de investigação, tendo a necessidade de contato direto e prolongado com o campo, para poder captar os significados dos comportamentos observados.

No campo organizacional, adotar pesquisas de natureza interpretativa significa, cada vez mais, possibilitar a análise de fenômenos do cotidiano das organizações a partir da perspectiva de quem os vivencia. Bonjour (2000BONJOUR, L. The elements of coherentism. In: BERNECKER, S.; DRETSKE, F. I. (Eds.) Knowledge: readings in contemporary epistemology. Oxford: Oxford University Press, 2000. p. 128-148.) ressalta que, nas últimas décadas, as organizações têm se tornado cada vez mais complexas, estabelecendo novos e diferentes níveis administrativos, além de modernos significados, por meio da sofisticação tecnológica e da enorme diversidade cultural, resultando no que o autor chama de novo desenho organizacional. Torna-se difícil supor, de acordo com tal posição, que estudos organizacionais tomem por base apenas aspectos racionais e lineares, cujo controle é determinado de maneira prévia.

No contexto fenomenológico, as organizações exprimem fatos sociais, espelhando uma configuração que viabiliza a compreensão de nossas sociedades que, por sua vez, formam uma sociedade de organizações (ETZIONI, 1976ETZIONI, A. Organizações modernas. São Paulo: Pioneira, 1976.). Retomando que a fenomenologia apresenta a dimensão da experiência vivida, uma das representações da condição humana, merece registro a indicação de Chanlat (2000CHANLAT, J. F. Ciências sociais e management: reconciliando o econômico e o social. São Paulo: Atlas, 2000.), ao afirmar que essa dimensão está associada ao conhecimento adquirido e à maneira como a pessoa vê a organização, sendo que, em sua ausência, o discurso da gestão acaba por evidenciar elementos prescritivos e formais. Assim, cada interação passa a ser digna de registro, como também cada experiência vivida, possibilitando a formação de grande quantidade de dados para posterior análise na consecução do trabalho de pesquisa. Bruner (1997BRUNER, J. Actos de significado: para uma psicologia cultural. Lisboa: Edições 70, 1997.) defende a realização de estudos sobre as formas culturais da criação de significados e o lugar central que estas ocupam na ação humana. A compreensão e a interpretação de fenômenos tomando por base seus participantes (significantes) e seu contexto originam a produção de conhecimento e contribui para a legitimação de métodos de pesquisa que enfatizem o contato direto com o objeto estudado, podendo oferecer uma descrição fidedigna (ou próxima desse status) da realidade social construída pelos participantes da organização.

A etnografia permite estudar e analisar as atividades cotidianas de uma comunidade ou organização, buscando descobrir a forma pela qual se tornam visíveis, racionais e reportáveis e, de certo modo, legítimas. Com relação a esse aspecto, Haguette (2005HAGUETTE, T. M. F. Metodologias qualitativas na sociologia. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.) afirma que a etnografia procura identificar a maneira pela qual as pessoas chegam à construção de sua realidade social, na qual as regras sociais são vistas como convenções. Mascarenhas (2002MASCARENHAS, A. O. Etnografia e cultura organizacional: uma contribuição da antropologia à administração de empresas. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 42, n. 2, p. 88-94, 2002.), ao discorrer sobre a etnografia como meio para identificação da cultura organizacional, afirma que o trabalho etnográfico tem as seguintes características: (1) o pesquisador é o instrumento principal da coleta e análise dos dados; (2) há constante interação entre pesquisador e objeto pesquisado; (3) a ênfase é no processo e não nos resultados finais; (4) o pesquisador deve tentar apreender e retratar a visão pessoal dos participantes; (5) é necessário um trabalho de campo caracterizado por um contato direto e prolongado do pesquisador com as pessoas, situações e eventos. Holloway e Todres (2003HOLLOWAY, I.; TODRES, L. The status of method: flexibility, consistency and coherence. Qualitative Research, London, v. 3, n. 3, p. 345-58, 2003.) apontam que a etnografia possibilita identificar, em um contexto cultural, as relações sociais existentes entre os membros de determinada organização. Diante dessa mesma perspectiva, Linstead (1997LINSTEAD, S. The social anthropology of management. British Journal of Management, Oxford, v. 8, p. 85-98, 1997.) aponta três áreas de interesse das ciências administrativas que podem ser tratadas por meio das ideias e métodos oriundos da etnografia: (1) entendimento de processos culturais no trabalho nas organizações (estendendo o conceito de simbólico e examinando modelos de representação); (2) uma abordagem crítica às práticas gerenciais (utilizando a etnografia como prática desconstrutiva e, ao mesmo tempo, reconstrutiva; examinando possibilidades para novas formas de organização baseadas em uma maior variedade no processo gerencial; e vinculando considerações afetivas, cognitivas, epistemológicas, éticas e ideológicas na mesma estrutura); (3) a natureza da mudança organizacional e sua gestão (usando ideias antropológicas para moldar os processos de mudanças). A prática etnográfica permite, de certa maneira, delinear o contexto organizacional em forma de diagnóstico, ao permitir a análise da complexidade de seus diferentes detalhes em funcionamento e aplicação.

Na história da antropologia cultural, o trabalho etnográfico surgiu como método para superar a distância entre pesquisador e grupo pesquisado. A etnografia, resultado de imersão intensa e extensa, possibilitou aproximação e identificação entre pesquisador e pesquisados. Essa distância parece desaparecer, de fato, no campo dos estudos organizacionais. O eventual “perigo” de o pesquisador passar a falar “desde dentro”, perdendo isenção, não parece se configurar em fator que descredencie a pertinência da pesquisa. Vale ressaltar, porém, a indicação feita por Moreira (2004MOREIRA, D. A. Pesquisa em administração: origens, usos e variantes do método fenomenológico. Revista de Administração e Inovação, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 5-19, 2004.), no sentido de que o pesquisador deve se abrir para o fenômeno investigado, desvencilhando-se de pressuposições anteriores e ideias preconcebidas, como se “descomprometesse” com relação a experiências e conhecimentos anteriores. É o processo ao qual Husserl chamou de epoché, tal qual uma suspensão de julgamento em relação ao objeto de pesquisa (IDHE, 1986IDHE, D. Experimental phenomenology: an introduction. Albany: State University of New York, 1986.).

Fenomenologia e etnografia permitem, portanto, aprofundar a complexidade de fenômenos, processos e fatos peculiares e específicos de grupos relativamente delimitados em extensão e capazes de serem abrangidos de maneira intensa. Ambas podem viabilizar a compreensão dos fenômenos, e não simplesmente oferecer sua explicação causal, ou seja, cada estudo demonstra uma versão possível do fenômeno investigado. O trabalho desenvolvido por Cáceres (1998CÁCERES, L. J. G. (Coord.) Técnicas de investigación en sociedad, cultura y comunicación. México: Prentice Hall, 1998.) salienta a semelhança entre fenomenologia e etnografia, postulando que as duas vertentes apresentam uma confluência hermenêutica. No caso das organizações, compreender a forma pela qual fornecem sentido à existência de seus participantes pode ajudar na compreensão da própria natureza humana. O quadro 1 apresenta as principais características das abordagens fenomenológica e etnográfica de acordo com alguns tópicos de pesquisa: objetivo, pergunta de pesquisa, coleta de dados, análise dos dados, base epistemológica e lugar do pesquisador.

QUADRO 1:
Características das abordagens fenomenológica e etnográfica

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A hermenêutica, como paradigma filosófico, tem fundamentado pesquisas qualitativas em estudos organizacionais. Por meio de sua trajetória, é possível vislumbrar a possibilidade de interpretação dos significados atribuídos pelos sujeitos à condição social de estar no mundo (organização) e, por meio de suas expressões e relatos, chegar a compreender suas ações. É salutar que assumamos a necessidade de saber que visões filosóficas de mundo embasam cada pesquisa, bem como as formas de compromisso reveladas em seu cotidiano, sob pena de o trabalho ser desenvolvido de forma equivocada e até mesmo ingênua.

Com destaque para as vertentes tratadas neste artigo, a fenomenologia e a etnografia caracterizam-se como estratégias interpretativas de investigação, para as quais a consciência do envolvimento do pesquisador é fator crucial para o êxito do trabalho proposto. Situações cotidianas passam a ser foco de pesquisa, sendo que o contexto cultural dos pesquisados chega a absorver também as perspectivas culturais do pesquisador, em uma espécie de reflexividade realizada pela ida e volta dos dois universos em questão, semelhante a uma negociação. Busca-se compreender a condição existencial dos sujeitos na condição de participantes do contexto organizacional, a partir dos valores que eles mesmos creditam à realidade na qual estão envolvidos.

A base filosófica, portanto, serve como sustentação para que pesquisas qualitativas definam seus enfoques e suas direções para investigação sem, no entanto, perda de coerência e consistência. Nas trilhas encontradas pelo caminho, redefinições são consideradas em razão da experiência, posto que muitos dos trechos envolvem a interação humana, ou seja, o diálogo com o outro, em uma “subjetividade implícita”.

Compreender as relações sociais existentes nas organizações, com toda sua dinâmica e complexidade, partindo de pressupostos interpretativos fornecidos tanto pela fenomenologia quanto pela etnografia, implica, entretanto, ir além de apresentar perfis e características de comportamentos. Não é o caso de apenas mapear formas simbólicas, mas, de maneira mais ampla, concentrar atenção na constituição da vida social dos integrantes da organização, a partir de seus diferentes (e observáveis) modos de pensamento e suas experiências construídas. Afinal, a organização é espaço de manifestações sociais, e estas, inegavelmente, são fontes de investigação e análise. Cabe a indicação, nessa perspectiva, de que o processo de investigação trabalhe com os dados de forma a permitir a compreensão do fenômeno organizacional além da tradição positivista.

No tocante à escolha do método, certamente dependerá da preferência do pesquisador, ao avaliar tanto as possibilidades de pesquisa quanto o caminho que deverá percorrer, não desconsiderando a questão do rigor científico a ser aplicado no método e na linguagem. Tal postura é fundamental para se evitar conjecturas arbitrárias e apontamentos de senso comum. Com esse desafio, a busca por uma definição mais firme a respeito da abrangência do campo simbólico, da interpretação e dos significados configura-se como um dos maiores desafios da pesquisa qualitativa em estudos organizacionais, dada a necessidade de se atribuir um campo de investigação claro e uma sistematização de observações. Outro desafio que se apresenta é a tarefa hermenêutica de reconstruir certos significados no contexto das pesquisas em organizações, como a compreensão dos discursos organizacionais e a interação entre os participantes. Pesquisas de natureza interpretativa, no campo organizacional, predominantemente requerem certa postura de flexibilidade, viabilizando a redefinição de caminhos a partir da experiência vivida, ainda que ela - a experiência - seja ímpar, posto que, nesse caso, é vivenciada com o outro, via interação humana. São caminhos de investigação que, empregados com rigor e crítica, podem viabilizar a construção de teorias no diálogo com a realidade dos atores pesquisados.

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  • WEBER, M. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.

NOTAS

  • 1
    Neste trabalho, “natural” não diz respeito à oposição conceitual entre “natureza” e “cultura”, clássica nas ciências sociais. Seguindo a longa experiência da pesquisa de campo na antropologia, com “natural” se quer destacar o cuidado do pesquisador em não interferir no curso dos acontecimentos ou fatos sociais em estudo. Veja-se, a esse respeito, Malinowski (1972MALINOWSKI, B. Uma teoria científica da cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.)
  • 2
    Economía y sociedad (1984WEBER, M. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.). Em Weber, percebe-se a influência de Dilthey em sua preocupação pelas coisas do espírito
  • 3
    Veja-se, a esse respeito, sua obra Ciência e política: duas vocações, Brasília, UnB, 1968
  • 5
    Processo de Avaliação: Double Blind Review

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2012

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2011
  • Aceito
    28 Set 2012
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