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Violência como jogo: as viradas narrativas no filme Bacurau (2019)

Violence as a Game: The Narrative Turns in the Film Bacurau (2019)

BACURAU. Direção e roteiro: Dornelles, Juliano; Mendonça, Kleber. Filho. . Produção: Lesclaux, Emilie; , Saïd Ben; Merkt, Michel. . Brasil/França, 2019.
Eu vou fazer uma canção de amor, Para gravar um disco voador, Uma canção dizendo tudo a ela Que ainda estou sozinho, apaixonado Para lançar no espaço sideral. Minha paixão há de brilhar na noite No céu de uma cidade do interior Como um objeto não identificado. (Costa, 1969)

A voz doce de Gal Costa entoa a canção Não identificado, de Caetano Veloso, enquanto os letreiros de apresentação se sobrepõem à imagem do céu noturno estrelado. Logo, um satélite passa diante da câmera e nos situamos no “espaço sideral” do qual nos fala a música. A câmera viaja em direção ao planeta Terra, aproxima-se do Nordeste do Brasil e ali mergulha, justo quando ouvimos Gal cantar “[...] uma cidade do interior”. Há uma transição de cena, movida pela sobreposição de imagens, e quando Gal diz “[...] como um objeto não identificado”, a música cessa, sendo substituída por um ronco de motor. Vê-se em plongée um caminhão-pipa avançando numa estrada reta, circundado pela paisagem de caatinga, e o horizonte ao longe. Uma legenda informa que estamos no “Oeste de Pernambuco”, num futuro evasivamente definido como “daqui a alguns anos”. Assim tem início o filme Bacurau, escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, que chegou às salas de cinema do Brasil em agosto de 2019.

As expressões “disco voador”, “objeto não identificado” e “cidade do interior”, entoadas por Gal Costa nos primeiros minutos, antecipam, de modo sutil, o cenário ao mesmo tempo familiar e estranho desse filme que foi aplaudido em pé quando do seu lançamento, mas que também foi alvo de severas críticas1 1 Ver o balanço realizado por Martins e Mayor (2022). .

A sinopse comercial aposta no tom de suspense: “Após a morte de dona Carmelita em Bacurau, uma série de assassinatos inexplicáveis passam a acontecer. Para se defenderem, os moradores recorrem ao destemido Lunga.”2 2 Descrição da Globoplay, plataforma de streaming na qual o filme está disponível (cf. Bacurau, 2019b). . Isso é pouco para descrever o filme. No entanto, já indica traços significativos da narrativa, como o excesso de mortes (série de assassinatos) e a reação dos “moradores” (resistência, destemor). Uma síntese irônica é expressa ao final da narrativa pelo “vilão”, o alemão-norte-americano Michael, quando balbucia: “so much violence...”.

Pretendo, nesta resenha, pontuar certos elementos do filme capazes de promover uma reflexão crítica da violência em algumas dimensões históricas e estéticas. A condução do texto respeitará os principais pontos de virada do filme, conforme a crueldade é introduzida na narrativa, até atingir um ápice (assassinato infantil), que desencadeia a reação truculenta dos moradores de Bacurau. Em resumo, argumenta-se que, para além da clara homenagem ao cinema de John Carpenter3 3 Dentre as referências a John Carpenter, destaca-se a escola municipal “João Carpinteiro”, as remissões ao terror, à ficção científica e ao faroeste, e a música Night (2015), inserida num dos pontos de virada do filme, como será visto. , o filme Bacurau atualiza, a seu modo, ideias anticoloniais que permearam os debates políticos e estéticos das esquerdas nos anos 1960 (como Fanon, 1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.), bem como alguns elementos iconográficos tradicionais da literatura e da cinematografia brasileiras que tiveram força naquela década (o sertão, o cangaço), ressignificando-os e fundindo-os a novos referenciais culturais típicos do século XXI (o jogo multiplayer do tipo “tiro em primeira pessoa” e a deep web).

Após os minutos iniciais do filme, quando a câmera acompanha o caminhão-pipa na estrada e sabe-se que o cenário é o Oeste pernambucano, desenvolve-se uma narrativa com organização linear e uma disposição dos fatos relativamente simples e encadeada. Primeiro, o espectador é inserido no universo de Bacurau, depois, elabora-se um suspense que cresce até atingir o terror, quanto então são identificados os “vilões” (um grupo de gamers que se instala na região para participar de um jogo que contabiliza pontos a cada ser humano assassinado). Por fim, os moradores se transformam em justiceiros. Nesse percurso, o filme se organiza em cinco blocos narrativos.

O primeiro ocupa 35 minutos de filme e caracteriza-se, sobretudo, pela inserção do espectador no cotidiano de Bacurau, uma pequena cidade fictícia situada no sertão nordestino, nas proximidades de Serra Verde. O início do bloco é demarcado pela primeira aparição do rosto de Teresa (Bárbara Colen), em close, enquanto ela dorme no banco de passageiro do caminhão em movimento. Teresa viaja de carona com Erivaldo (Rubens Santos), motorista responsável por levar água potável até Bacurau, que está com o abastecimento bloqueado. Há um solavanco forte e Teresa acorda, perguntando o que aconteceu. Novo solavanco mostra o caminhão atropelando um caixão fúnebre. Há mais caixões na estrada, conferindo um tom mórbido e nonsense à cena. Passando por um acidente, a câmera mostra um motociclista desfalecido no asfalto, cujo corpo ensanguentado parece ter sido arrastado pela camionete que carregava os caixões, e agora está tombada na pista.

A seguir, Erivaldo pega uma estrada secundária, de terra, na qual há uma placa pintada à mão indicando Bacurau a 17 km e alertando: “Se for, vá em paz”. A partir daí, algumas ambiguidades se evidenciam. Como a narrativa se passa num tempo futuro, mesclam-se elementos arcaicos (a estrada de chão, o caminhão velho, a placa feita à mão) e artefatos tecnológicos digitais. No painel do caminhão, um monitor mostra notícias em tempo real, mostrando a imagem de uma pessoa perigosa e “procurada”, de nome Lunga, cuja captura seria recompensada. Essa remissão aos cartazes de “procurados” dos antigos faroestes, somada ao fato de que a história se passa num “Oeste” no sertão do Brasil, evoca narrativas brutais, com caçadas humanas, contrastando com o “vá em paz” da placa. Quando, enfim, chegam ao povoado, descobre-se que Teresa viajou até lá para o enterro da sua avó de 94 anos, Carmelita (Lia de Itamaracá). O velório reúne os moradores da cidade, oportunamente apresentados ao espectador. Destacam-se o professor Plínio (filho de Carmelita e pai de Teresa, interpretado por Wilson Rabelo), que discursa em homenagem à mãe, e a médica Dr. Domingas (Sônia Braga), embriagada e emocionada. A certa altura, Plínio refere-se aos “problemas da nossa região”. Assim, apesar do clima afetuoso e comunitário, o espectador é informado de que há tensões.

Ainda nesse bloco, depois do enterro, conhecemos situações cotidianas da cidade: a feira no centro da cidade, as prostitutas, o posto de saúde, as crianças no grupo escolar. O personagem Pacote (Thomás Aquino) é apresentado por volta dos 20 minutos de filme, bebendo café na casa de Plínio. Pacote é morador de Bacurau e amante de Teresa, mas a narrativa insinua que ele é “temido”, supostamente um pistoleiro, de onde advém seu apelido. A câmera nos insere na escola, numa aula de Plínio ao ar livre. Um de seus pequenos alunos pergunta a distância entre São Paulo e Bacurau. O professor abre um mapa virtual num tablet, para conferir, mas não consegue localizar sua cidade. Todos vão à sala de aula para verificar num computador, mas Bacurau não aparece no Google. Plínio resolve mostrar aos alunos um mapa de papel.

No final desse bloco, conhecemos o prefeito Tony Júnior (Thardelly Lima), que chega ao som de um jingle eleitoral, trazendo um carregamento de livros velhos, mantimentos e medicamentos vencidos para os moradores de Bacurau. Quando se aproxima, todos se escondem. Tony encontra a cidade vazia e fala com a população usando um megafone, tentando mostrar simpatia. Vozes off gritam “bandido!”, “desapareça!”. Tony vai embora com seus homens e as pessoas voltam à rua. Nesse momento, a câmera destaca Damiano (Carlos Francisco), que antes vendia produtos na feira e agora sai da cidade com um triciclo motorizado. Estranhamente, passa a ser seguido por um objeto voador.

Assim, com a inserção desse novo elemento, ocorre a passagem para o segundo bloco, trecho que vai dos 35 aos 50 minutos do filme e é marcado pela construção de um clima de suspense e sensação de perigo.

Damiano é perseguido pelo drone com formato de disco voador. Cria-se certa tensão na cena, com a insistência na presença do drone voando muito próximo ao personagem. O seu zunido é amplificado, sobrepondo-se ao ronco do motor do triciclo. Damiano olha desconfiado para o objeto alienígena, que é filmado de diferentes ângulos. Um corte para um céu anoitecendo nos leva de volta à comunidade de Bacurau, o povo reunido em frente à igreja avalia criticamente os materiais deixados pelo prefeito. Quando é noite alta, a câmera flagra alguns personagens dormindo em suas casas. Domingas tem sono agitado. Alguns flashes de um corpo ensanguentado indicam que ela está tendo um pesadelo (vê uma mulher numa maca com um pano amarrado no pulso direito, a mão destroçada e, mais adiante no filme, o espectador poderá constatar que se tratava de um sonho premonitório). Na mesma noite, uma atmosfera nonsense cria-se com um grupo de cavalos excitados invadindo a cidade. O trote e os relinchos assustam os cães e acordam os moradores, que identificam os animais como sendo de uma fazenda próxima. A cena seguinte é diurna. Dois homens se encarregam de conduzir os cavalos de volta à fazenda, ao mesmo tempo em que chega Erivaldo com o seu caminhão-pipa perfurado por balas. Um descontrole é expresso pela água vazando pelos orifícios e a população acorrendo com baldes e panelas. Um close no painel do caminhão mostra, pela segunda vez no filme, o rosto de Lunga (Silvero Pereira) num anúncio de “procurado” no monitor digital.

O conjunto desses acontecimentos amplia o suspense. Há sensação de perigo. Os dois homens que vão com os cavalos à fazenda avistam, no caminho, dois forasteiros com motocicletas e capacetes indo em direção a Bacurau. Avisam Pacote pelo celular. Em seguida, todos os moradores recebem mensagens de alerta em seus aparelhos celulares, enfatizando, assim, a rede de comunicação entre os bacurauenses, criando um contraponto entre a aparência sertaneja do povoado e sua inserção digital. Mais uma ambiguidade.

Quando as duas motos entram na rua principal de Bacurau, a tensão já se instalou com força. Os moradores estão à espera, olham desconfiados, cenhos franzidos. Ao estacionar, enquadrados em plano médio, os forasteiros tiram os capacetes e se revela um casal (interpretado por Karine Teles e Antonio Saboia) que diz ter chegado ali por acaso, pois a cidade nem consta no mapa. Entram num bar e pedem uma cerveja. Enquanto são servidos, discretamente, a desconhecida prende sob o balcão uma pequena placa eletrônica, enfatizada pela câmera em close. O violeiro da cidade (que evoca o cantador cego em Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha) surpreende o casal com um repente nordestino, compondo estrofes sobre os tiros no caminhão pipa e zombando do “povo do Sudeste”. Quando eles se preparam para partir em suas motos, a mulher comenta que perderam a conexão à internet. Teresa e Pacote conferem seus próprios aparelhos, e constatam que estão efetivamente sem sinal. Esse isolamento da região (cidade fora do mapa e sem comunicação via internet), somado ao clima de perigo já instaurado, encerra o segundo bloco.

No início do terceiro bloco, aos 50 minutos de filme, a câmera volta aos homens com os cavalos que chegam, finalmente, à fazenda. Lá encontram muitos cadáveres ensanguentados. A partir daí, os próximos vinte minutos são marcados pela implementação do terror e pela revelação dos carnífices. Ao fugir da fazenda, os dois homens são baleados pelo casal de motociclistas que volta de Bacurau. O que antes era suspense se transforma em chacina. Quando os motoqueiros matam os homens, aparece sobre eles o drone em forma de disco voador. Vê-se, então, a cena do assassinato do ponto de vista da câmera do drone, em plongée. Na faixa sonora, uma voz feminina e eletrônica fala em inglês: “dois homens no chão. [...] Os dois idiotas seguem para a base”.

Na próxima cena, conhecemos o personagem Michael (Udo Kier), logo identificado como o líder do grupo de players estrangeiros que se instalou numa fazenda da região. Há outros homens no local, uns se exercitando, outros conversando. Ali chega o casal de motoqueiros, seguido pelo drone que é recolhido por uma mulher. Esses novos personagens usam fones de ouvido e falam em inglês. Vê-se um plano geral da fazenda quando todos entram na casa grande. O líder Michael convoca uma reunião e comemora a missão já cumprida na fazenda Tarairú, na noite anterior, dizendo que agora estão em “contagem regressiva”. Comentam que a internet de Bacurau foi cortada com um bloqueador de sinal por satélites alinhados a laser. Os estrangeiros, aos poucos, revelam que estão participando de um jogo macabro, pois compraram o direito se de apropriar dessa terra e de matar seus moradores. O jogo lembra os fóruns mais sombrios da deep web, em que se comemoram matanças reais de crianças nas escolas. No universo da ficção, tem múltiplas referências, entre as quais o filme Westworld, de 1973, que serviu de inspiração para a série homônima de 2016, na qual há um parque criado especialmente para que os visitantes possam matar livremente e saciar seus desejos mais vis. Os dois motoqueiros brasileiros que foram a Bacurau instalar o dispositivo bloqueador da internet, enfim, haviam sido contratados pelos estrangeiros, mas não eram considerados “brancos” e nem tinham o direito de matar. Para participar desse jogo no qual quem mata pontua, precisariam pagar. Bruscamente, os gamers agem juntos ao descarregar suas armas contra os dois brasileiros, agora descartáveis. São presas. O sangue espirra na parede e os corpos escorregam até o chão. Segue-se uma discussão sobre quem matou quem, para contabilizar pontos. A câmera passeia pela casa, revelando vários outros cadáveres espalhados.

Pacote, a essas alturas, está na outra fazenda, de onde fugiram os cavalos. Ciente das mortes, decide ir conversar com Lunga. O seu trajeto até o esconderijo de Lunga é embalado pela música Réquiem para Matraga (1979), de Geraldo Vandré, novamente suscitando a musicalidade dos anos 1960-70 (assim como a voz de Gal Costa nos minutos iniciais) e marcando a virada para o próximo bloco, por volta de 1 hora e 10 minutos de filme.

A metade do rosto de Lunga no espelho, em close, é a primeira imagem do quarto bloco fílmico. O reflexo mostra a mão cheia de anéis e as unhas pintadas de preto, enquanto ele passa o dedo no contorno dos próprios olhos. É a primeira vez que o personagem aparece efetivamente. Até então, vimos apenas sua fotografia como “procurado” no painel do caminhão-pipa. Lunga recebe Pacote, conversam sobre as mortes sinistras e decidem ir a Bacurau preparar a vingança. Chegam à noite no povoado. Estão sendo exibidos vídeos de câmeras de segurança que mostram Pacote executando pessoas. Ele se coloca diante do vídeo, com uma pistola na cintura - trata-se da primeira vez que aparece armado no filme -, e pede que interrompam a projeção. Dá espaço ao “procurado” Lunga, que é aplaudido e bem recebido. A violência dos resistentes vai se revelando. Mostram aos moradores os corpos dos bacurauenses que foram mortos pelos motoqueiros na fazenda dos cavalos, trazidos no carro de Pacote. Intercalado a estas cenas, vê-se um grupo de crianças no escuro com lanternas e máscaras, desafiando o próprio medo com brincadeiras de terror. Forma-se uma roda de capoeira, preparação para a luta, aos poucos sobreposta pela música Night (faixa do discoLost Themes, de Carpenter, 2015), e as pessoas parecem entrar num transe, as expressões graves confirmam que está ocorrendo uma “virada” na narrativa. Dra. Domingas bebe. Lunga e seus homens cavam um buraco na rua principal do povoado, como se fosse uma cova para os seus falecidos.

As crianças brincam no escuro. Uma veste uma máscara de demônio, outras correm. Isso aumenta a tensão, pois os espectadores já estão bem conscientes dos assassinos que rondam Bacurau. Logo um menino é morto por um deles, com um tiro, justo quando avançava para o mato tentando superar um desafio do jogo infantil. Mas o jogo dos estrangeiros se sobrepõe ao das crianças, e em seguida é cortada a luz em Bacurau.

Instaura-se um caos. A criança morta é encontrada e o choro da mãe é desesperador. Um casal foge de carro, logo capturado por um par de jogadores mortais, que descarregam a metralhadora contra o automóvel e depois trepam, em sua excitação mórbida. O drone registra tudo. Na manhã seguinte, outro casal de jogadores ronda a casa de Damiano, que está completamente nu em sua estufa de plantas, denotando vulnerabilidade. No entanto, quando os estrangeiros invadem sua casa, Damiano estoura a cabeça do homem com um bacamarte. Também armada, sua esposa atinge a mulher estrangeira, arrebentando-lhe a mão. É apenas o início da reação violenta dos “caçados”. Como um acorde rememorando Frantz Fanon (1968FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.) quando, em seus escritos na passagem dos anos 1950-60, apontava a violência como ferramenta necessária no combate ao colonialismo. Ou, conforme interpretado pelas esquerdas de então, como única forma de vencer o colonizador-opressor.

No final desse bloco narrativo, o restante do grupo de estrangeiros está indo a pé até Bacurau, para a matança final. Se deparam com um velho carro da polícia abandonado, enferrujado e com furos de bala, reforçando que ali, naquele território, em algum passado já houve resistência aos poderes oficiais.

O quinto e último bloco se inicia aos 100 minutos de filme, com closes nas bocas que recebem um pequeno comprimido: um “poderoso psicotrópico” preparado por Damiano, insinuando um ritual. A música instrumental - da trilha composta por Mateus Alves e Tomaz Alves Souza - é intensa e carregada, pontuando o clímax da narrativa. Após uns planos abertos na paisagem, vê-se o vilão Michael caminhando sozinho pela estrada, e ao longe Dra. Domingas, em pé diante de uma casa branca com uma mesa posta. Ela acena, ele se aproxima desconfiado. Michael fala em inglês, Domingas insiste em responder em português, afirmando-se. Após descobrir que uma estrangeira morreu na casa de Domingas (a jovem atingida pelo bacamarte, que já aparecera no pesadelo premonitório da médica), Michael a ameaça com uma faca. Mas não a mata. Segue até Bacurau.

Os demais estrangeiros chegam também, e encontram a cidade estranhamente vazia. Michael (que chegou antes) situa-se num ponto estratégico e, usando uma arma de elite com silenciador, passa a dar tiros nas paredes das casas, nos cães e até nos outros estrangeiros que andam pela cidade caçando pessoas. Um deles entra numa casa, na qual uma televisão ligada mostra notícias “ao vivo”, naquele futuro distópico, sobre supostas “execuções públicas no Vale do Anhangabaú”, em São Paulo. Há um significado contextual, ecoando a violência constante das polícias (no passado, no presente), o recorrente apagamento e massacre das minorias e, inclusive, como observou Ivana Bentes (2019BENTES, Ivana. Bacurau e a síntese do Brasil brutal. Cult, 29 ago. 2019.), “os linchamentos midiáticos que são as novas formas de execuções públicas”.

Um caminhão carregando caixões chega à cidade, como se fechasse o ciclo iniciado pelo filme. Os seus transportadores logo são mortos por Michael, que se deleita a cada tiro. Quase no final do filme, o Museu Histórico de Bacurau destaca-se. Sua fachada é enquadrada pela câmera. Um dos “caçadores” entra por sua porta aberta, observa os objetos expostos, as notícias de jornal e as fotografias que remetem ao sertão nordestino e ao universo do cangaço. Notam-se as pitadas da literatura de Euclides da Cunha e de Guimarães Rosa, bem como do cinema de Glauber Rocha. Vê-se uma parede vazia, contendo apenas etiquetas indicando nomes de armas históricas que foram retiradas dali: Mauser, Winchester 44, Colt 38. Lá fora, outros estrangeiros metralham as paredes da escola “João Carpinteiro” (cujo nome remete ao mestre-cineasta John Carpenter). Os moradores de Bacurau estão escondidos nessa escola, equipados com as armas do museu, e reagem, matando os agressores que os atacavam. No museu, Lunga captura e trucida um dos estrangeiros. Como uma fera irracional, sai dali coberto de sangue e carregando a cabeça da vítima. Closes em fotografias antigas mostram sertanejos e cabeças decepadas. O passado violento do cangaço é reativado por essas imagens, reavivando a sua violência histórica e heroica, fora da lei.

Após as capturas, as pessoas aos poucos saem de seus esconderijos, voltando ao centro da cidade. Em off, uma voz declama os nomes dos mortos, como ocorreu na obra 111 - uma Vigília em memória dos mortos do Carandiru (2017), de Nuno Ramos, dedicada às vítimas do massacre do Carandiru, em 1992, na qual os nomes dos prisioneiros mortos foram recitados ao longo de 24 horas, diante de uma câmera, com transmissão ao vivo nas redes sociais. Como se vê, o filme faz diversas remissões a outras produções cinematográficas, literárias e visuais, inserindo-as sutilmente na sua narrativa que é, em primeira instância, linear e compreensível pelo público amplo. Traz Lampião e Corisco, travestidos de Mad Max futurista na figura de Lunga. Traz remissões a traumas efetivos do passado brasileiro, como as chacinas em penitenciárias e em locais públicos das grandes cidades brasileiras, ou como o assassinato da vereadora Marielle Franco, cujo nome é mencionado na lista de mortos. Para além da narrativa linear, há uma montagem de referências ficcionais e históricas, que vão desde Carpenter, o horror, a ficção científica, o faroeste, a cultura brasileira dos anos sessenta, a literatura sobre cangaço, os massacres em presídios e até mesmo as matanças em escolas (a exemplo de Suzano, em 2019, e Blumenau, em 2023) com armas de fogo e machadinhas que, de forma horrenda, suspeita-se terem sido transformadas em jogos ou, no mínimo, comemoradas em fóruns da deep web, tais quais o Dogolochan (Pinto Neto, 2019PINTO NETO, Moysés. Suzano: a educação na mira dos massacres lumpenradicais. Dialogia, São Paulo, n. 33, pp. 178-191, set./dez. 2019., p. 7).

No epílogo de Bacurau, confirma-se o envolvimento do prefeito Tony no massacre, e os estrangeiros estão todos mortos, com exceção de Michael, capturado vivo. Aprisionam-no numa cela subterrânea, no buraco cavado por Lunga durante a cena da capoeira. Ficará ali até morrer. “Será que exageramos?”, pergunta Pacote, atordoado com a violência ritual. Teresa responde que não. Enquanto o coletivo de moradores joga terra sobre a sepultura de Michael, entra novamente a música Réquiem para Matraga (Geraldo Vandré), que encerra o filme.

A lição, enfim, é que violência se responde com mais violência. Eco das leituras de Frantz Fanon nos anos 1960 e dos riscos da glorificação da violência, dos quais falava Hannah Arendt em 1969? Teríamos avançado algum limite? Vale lembrar que, apesar da sensação fictícia de vingança efetivada, nenhum limite é ultrapassado nesse filme de ficção. Certamente, a violência representada pornograficamente atrai espectadores, mas em termos de linguagem o filme não é exatamente “violento”. Esteticamente, não incomoda nem agride. Surpreende, entusiasma e atualiza elementos importantes da cultura brasileira, ressignificando-os, nessa interessante montagem estética e histórica. Aliás, essa lógica de game tipo Counter-Strike teve impacto positivo sobre o público de esquerda em 2019, uma vez que as viradas narrativas produzem uma sensação (ilusória) de vingança contra os valores sociais e políticos representados pela então recente eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. Como disse Kleber Mendonça Filho em entrevista, “Bacurautambém é um filme sobre a repetição da história” (Mendes, 2019MENDES, Vinícius. Entrevista com Kleber Mendonça Filho: Não há como dialogar com Bolsonaro. Le Monde Diplomatique/Brasil, ed. 146. 2 set. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://diplomatique.org.br/nao-ha-como-dialogar-com-bolsonaro/ >. Acesso em: 26 de abr. 2023.
https://diplomatique.org.br/nao-ha-como-...
).

As formas da violência se transformaram, pois, conforme avançaram os blocos. Em parte, a violência expressou-se como opressão contra os bacurauenses das periferias de Serra Verde (cortes de água, internet e energia elétrica), que foram “vendidos” pelo prefeito. Gradualmente, tomou a forma da brutalidade física (desde o acidente na estrada aos vários assassinatos). Do quarto bloco em diante, finalmente, simulou resistência, quando a vingança truculenta foi a ferramenta escolhida para restituir o poder à comunidade local.

REFERÊNCIAS

  • ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
  • BACURAU. Direção e roteiro: Juliano Dornelles; Kleber Mendonça Filho. Produção: Emilie Lesclaux, Saïd Ben Saïd e Michel Merkt. Brasil/França, 2019a.
  • BACURAU. 2019b. Disponível em: Disponível em: https://globoplay.globo.com/bacurau/t/R6ymtCdFmc/ Acesso em: 20 abr. 2023.
    » https://globoplay.globo.com/bacurau/t/R6ymtCdFmc/
  • BENTES, Ivana. Bacurau e a síntese do Brasil brutal. Cult, 29 ago. 2019.
  • COSTA, Gal. Não identificado [composta por Caetano Veloso]. In: Gal Costa. CBD-Philips: 1969. LP.
  • FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
  • MARTINS, Carla Macedo; MAYOR, Ana Lucia de Almeida Soutto. “Bacurau”: No futuro, só resistência? Novos estudos CEBRAP, ed. 124, v. 41, n. 3, pp. 489-505, 2022.
  • MENDES, Vinícius. Entrevista com Kleber Mendonça Filho: Não há como dialogar com Bolsonaro. Le Monde Diplomatique/Brasil, ed. 146. 2 set. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://diplomatique.org.br/nao-ha-como-dialogar-com-bolsonaro/ >. Acesso em: 26 de abr. 2023.
    » https://diplomatique.org.br/nao-ha-como-dialogar-com-bolsonaro/
  • PINTO NETO, Moysés. Suzano: a educação na mira dos massacres lumpenradicais. Dialogia, São Paulo, n. 33, pp. 178-191, set./dez. 2019.
  • 1
    Ver o balanço realizado por Martins e Mayor (2022MARTINS, Carla Macedo; MAYOR, Ana Lucia de Almeida Soutto. “Bacurau”: No futuro, só resistência? Novos estudos CEBRAP, ed. 124, v. 41, n. 3, pp. 489-505, 2022.).
  • 2
    Descrição da Globoplay, plataforma de streaming na qual o filme está disponível (cf. Bacurau, 2019bBACURAU. 2019b. Disponível em: Disponível em: https://globoplay.globo.com/bacurau/t/R6ymtCdFmc/ . Acesso em: 20 abr. 2023.
    https://globoplay.globo.com/bacurau/t/R6...
    ).
  • 3
    Dentre as referências a John Carpenter, destaca-se a escola municipal “João Carpinteiro”, as remissões ao terror, à ficção científica e ao faroeste, e a música Night (2015), inserida num dos pontos de virada do filme, como será visto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2023
  • Aceito
    19 Nov 2023
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