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Perfil epidemiológico de crianças com Apparent Life Threatening Event (ALTE) e avaliação prospectiva da etiologia determinante do episódio

The epidemiological profile of children with Apparent Life Threatening Event (ALTE) and prospective evaluation of underlying etiological factors

Resumos

OBJETIVO: determinar a causa de ALTE (apparent life threatening events - eventos com aparente risco de vida) em crianças encaminhadas à emergência de hospital terciário e sua associação com características clínicas, recorrência e morbidade. MÉTODOS: estudo transversal com coleta prospectiva de dados através de anamnese, exame físico e aplicação de protocolo específico para identificação etiológica de ALTE. Após inclusão no estudo os pacientes foram seguidos ambulatorialmente para verificação de morte súbita inexplicada. As variáveis com significância estatística foram incluídas em modelo de regressão linear. RESULTADOS: trinta crianças foram incluídas entre setembro de 2004 e março de 2006, constituindo 4,2% das internações pediátricas no mesmo período. Houve predomínio no sexo masculino (73%) e nascidos a termo (70%). Em 80% dos pacientes o primeiro episódio foi observado até os três meses de idade, predominantemente em vigília (83%). Dos casos estudados, 50% foram considerados ALTE idiopático, 20% causados pelo refluxo gastroesofágico (RGE) e 10%, por epilepsia. O seguimento evidenciou um caso de recorrência e óbito. CONCLUSÕES: a prevalência, etiologia e frequência de casos de ALTE encontradas assemelham-se aos da literatura. As variáveis estudadas não foram preditivas quanto à recorrência do episódio, mas o tratamento específico foi determinante no seu controle.

Epidemiologia; Epilepsia; Refluxo gastroesofágico; Morte súbita do lactente


OBJECTIVE: to determine the causes of ALTE (apparent life threatening events) in children referred to the emergency unit of tertiary hospitals and their association with clinical characteristics, recurrence and morbidity. METHODS: a cross-cutting study was carried out using prospective data collection from medical records, physical examinations and the application of special protocols for identifying the cause of the ALTE. Following inclusion in the study, patients were followed up at outpatient clinics to check for any sudden unexplained deaths. The statistically significant variables were included in a linear regression model. RESULTS: thirty children were included between September 2004 and March 2006, accounting for 4.2% of pediatric admissions to hospital over this period. The majority of the children were male (73%) and term births (70%). In 80% of the patients, the first episode was observed before the age of three months, predominantly in the case of those under observation (83%). Fifty percent of the cases were considered to be idiopathic ALTE, 20% were caused by gastro-esophageal reflux (GER) AND 10% by epilepsy. The follow-up data revealed one case of recurrence and one death. CONCLUSIONS: the prevalence, causes and frequency of these cases of ALTE are similar to those reported in the literature. The variables studied were not predictive with regard to recurrence of the episode, but specific treatment was a determining factor in control of the episode.

Epidemiology; Epilepsy; Gastroesophageal reflux; Sudden infant death


ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

Perfil epidemiológico de crianças com Apparent Life Threatening Event (ALTE) e avaliação prospectiva da etiologia determinante do episódio

The epidemiological profile of children with Apparent Life Threatening Event (ALTE) and prospective evaluation of underlying etiological factors

Alessandra Marques dos Anjos; Magda Lahorgue Nunes

Serviço de Neurologia e Laboratório de Neurofisiologia Clínica. Hospital São Lucas. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Av. Ipiranga 6690, sala 220. Porto Alegre, RS, Brasil. CEP: 90.610-000. E-mail: nunes@pucrs.br

RESUMO

OBJETIVO: determinar a causa de ALTE (apparent life threatening events - eventos com aparente risco de vida) em crianças encaminhadas à emergência de hospital terciário e sua associação com características clínicas, recorrência e morbidade.

MÉTODOS: estudo transversal com coleta prospectiva de dados através de anamnese, exame físico e aplicação de protocolo específico para identificação etiológica de ALTE. Após inclusão no estudo os pacientes foram seguidos ambulatorialmente para verificação de morte súbita inexplicada. As variáveis com significância estatística foram incluídas em modelo de regressão linear.

RESULTADOS: trinta crianças foram incluídas entre setembro de 2004 e março de 2006, constituindo 4,2% das internações pediátricas no mesmo período. Houve predomínio no sexo masculino (73%) e nascidos a termo (70%). Em 80% dos pacientes o primeiro episódio foi observado até os três meses de idade, predominantemente em vigília (83%). Dos casos estudados, 50% foram considerados ALTE idiopático, 20% causados pelo refluxo gastroesofágico (RGE) e 10%, por epilepsia. O seguimento evidenciou um caso de recorrência e óbito.

CONCLUSÕES: a prevalência, etiologia e frequência de casos de ALTE encontradas assemelham-se aos da literatura. As variáveis estudadas não foram preditivas quanto à recorrência do episódio, mas o tratamento específico foi determinante no seu controle.

Palavras-chave: Epidemiologia, Epilepsia, Refluxo gastroesofágico, Morte súbita do lactente

ABSTRACT

OBJECTIVE: to determine the causes of ALTE (apparent life threatening events) in children referred to the emergency unit of tertiary hospitals and their association with clinical characteristics, recurrence and morbidity.

METHODS: a cross-cutting study was carried out using prospective data collection from medical records, physical examinations and the application of special protocols for identifying the cause of the ALTE. Following inclusion in the study, patients were followed up at outpatient clinics to check for any sudden unexplained deaths. The statistically significant variables were included in a linear regression model.

RESULTS: thirty children were included between September 2004 and March 2006, accounting for 4.2% of pediatric admissions to hospital over this period. The majority of the children were male (73%) and term births (70%). In 80% of the patients, the first episode was observed before the age of three months, predominantly in the case of those under observation (83%). Fifty percent of the cases were considered to be idiopathic ALTE, 20% were caused by gastro-esophageal reflux (GER) AND 10% by epilepsy. The follow-up data revealed one case of recurrence and one death.

CONCLUSIONS: the prevalence, causes and frequency of these cases of ALTE are similar to those reported in the literature. The variables studied were not predictive with regard to recurrence of the episode, but specific treatment was a determining factor in control of the episode.

Key words: Epidemiology, Epilepsy, Gastroesophageal reflux, Sudden infant death

Introdução

A terminologia "evento com aparente risco de vida" (Apparent life-threatening event-ALTE) foi definida no "National Institutes of Consensus Development Conference of Infantile Apnea and Home Monitoring", em 1986, como episódio que aterroriza o observador, caracterizado pela combinação dos seguintes fatores: apnéia (central ou obstrutiva), alterações na coloração da pele (cianose, palidez ou pletora), alteração no tônus muscular (hipotonia, hipertonia), sufocação ou engasgo.1 Anteriormente conhecido como "Síndrome de quase morte súbita" (Near-miss sudden infant death syndrome) a modificação da terminologia foi proposta, pois implicava em associação muito estreita com a Síndrome da Morte Súbita do Lactente (SMSL), fato este não comprovado em estudos posteriores.2

A incidência de ALTE varia entre 0,5% e 6% da população infantil.3,4 Estudos posteriores definiram a incidência entre 0,6-0,8% em crianças abaixo de um ano em emergências pediátricas inglesas, 2,27% em crianças hospitalizadas na França e 0,05% na Suécia.5-7 Estudos populacionais evidenciaram ALTE em 2,46/1000 nascidos vivos no Tirol e em 9,4/1000 na Nova Zelândia.8,9 Essa diferença deve-se a grande variação de populações estudadas e a metodologia empregada, principalmente no que se refere aos critérios de inclusão.

O episódio de ALTE deve ser considerado como um sintoma ou queixa principal; nunca como um diagnóstico definitivo, e o objetivo da avaliação clínica deve ser direcionado para a identificação da causa específica.3 A resolução e o prognóstico baseiam-se na definição da doença de base. Os casos que permanecem sem diagnóstico após investigação completa são definidos como idiopáticos.2,3

Em função de dificuldades para estabelecimento do diagnóstico foram criadas propostas para investigação destes pacientes.3 O consenso elaborado pelo Comitê de Morte Súbita da Associação Latino-americana de Pediatria (ALAPE) parte do propósito que a determinação da gravidade do episódio constitui a base para a identificação do diagnóstico e manejo.10

A escassez de dados sobre o tema na literatura nacional e as dificuldades de manejo e investigação destes pacientes que requerem equipe multidisciplinar e eventualmente exames de grande complexidade e especificidade justificam a realização deste estudo, que teve como objetivo determinar a prevalência e as causas de ALTE em crianças internadas em hospital terciário, provenientes da emergência, e descrever, do ponto de vista clínico, essa população, utilizando um protocolo específico de investigação.

Métodos

Foi realizado estudo transversal com coleta prospectiva de dados para determinar a etiologia de ALTE em crianças avaliadas na emergência e internadas no Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que é o hospitalescola da Faculdade de Medicina da PUCRS, situado em Porto Alegre, RS, Brasil.

Os critérios de inclusão foram crianças com idades entre 0 e 24 meses, que apresentavam quadro clínico compatível com definição de ALTE,1 incluídos sequencialmente à medida que receberam atendimento na emergência do Hospital São Lucas, entre setembro de 2004 até março de 2006. Os critérios de exclusão foram ausência do consentimento dos pais ou responsável para participar do estudo e o não preenchimento dos critérios clínicos para diagnóstico de ALTE. Os pacientes incluídos foram acompanhados até setembro de 2006 para determinação de recorrência dos episódios e morbidade.

Antes do início da coleta de dados foi realizada orientação aos médicos do setor de emergência pediátrica pela pesquisadora quanto ao reconhecimento de pacientes com ALTE baseado no protocolo da Associação Latino-Americana de Pediatria (ALAPE).10 Ao chegar paciente com quadro sugestivo, era solicitada avaliação da equipe da Neurologia. Havendo confirmação, o pesquisador (AA) era comunicado e iniciava a aplicação do protocolo nas primeiras 24 horas de internação. Foi registrado o número de internações pediátricas provenientes da emergência, no período do estudo, para calcular a prevalência de ALTE entre essas.

Na emergência, os casos eram classificados de acordo com a gravidade; em ALTE menor, quando ocorria reversão do quadro clínico espontaneamente ou através de estimulação leve; ou ALTE maior, quando o episódio revertia somente através de estimulação vigorosa ou reanimação cardiorrespiratória.10 A seguir eram realizados exames de rotina iniciais como hemograma, eletrólitos, glicemia, culturas de sangue e urina, Rx tórax, eletrocardiograma. As equipes pediátricas de diferentes especialidades (gastroenterologia, pneumologia, cardiologia), assim como a realização de exames específicos de cada área, dependiam da indicação e necessidade de cada caso. A pesquisadora (AA) acompanhava a investigação do paciente durante toda a internação, seguindo as etapas previstas no protocolo da ALAPE.10 O critério de Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) foi definido pela equipe de gastroenterologia infantil a partir da anamnese detalhada, manifestações sintomáticas e presença de refluxo gastricoesofágico em níveis patológicos à pHmetria esofágica. Em casos de ALTE de repetição era realizada durante a internação monitorização com Holter-EEG, sendo o registro interpretado sempre pelo mesmo pesquisador (MLN). Por ser um exame relativamente novo em nosso meio, na época do estudo, quando necessário o uso do Holter-EEG foi solicitado preenchimento por responsáveis do Termo de Consentimento Informado específico para realização do mesmo.

Após a alta hospitalar, as crianças foram acompanhadas no Ambulatório de Neurologia Infantil ou de Pediatria da mesma instituição para avaliação da evolução clínica (recorrências e morbidade). Foi mantido contato telefônico nos casos que optaram por acompanhamento em outra instituição.

As variáveis estudadas foram sexo, faixa etária, idade gestacional, estado nutricional ao nascimento, doença neurológica neonatal, antecedentes médicos, exame neurológico no momento da internação, história de tratamento psiquiátrico materno, história familiar de episódio de ALTE ou SMSL, tabagismo materno, gravidade do episódio, recorrência, vacinação prévia ao episódio, período de ocorrência no ciclo sono e vigília. De acordo com o resultado da investigação o episódio era classificado como sintomático (etiologia definida) ou idiopático. O seguimento foi analisado em relação aos desfechos recorrência, óbito por causa justificada ou morte súbita inexplicada.

Os dados foram inseridos em um banco feito para esta finalidade no programa Excel e analisados utilizando o software estatístico SPSS. Foram descritas frequências, médias, desvios padrões e medianas. Para inferência estatística foi calculado o intervalo de confiança a 95% para todas as variáveis descritas. As variáveis qualitativas foram avaliadas com o Teste Exato de Fisher.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da PUCRS.

Resultados

Baseado no critério diagnóstico, 30 crianças com idades entre 1 dia de vida e 18 meses (média=3,6 meses, dp=5,1 meses e mediana dois meses) foram incluídas, com 80% dos casos ocorrendo até os três meses de vida. Um paciente com história de asfixia perinatal apresentou ALTE no primeiro dia de vida.

A prevalência dos casos de ALTE foi 4,2% (IC95% 2,9 - 5,9%) das internações pediátricas provenientes da emergência no período. Os episódios relatados foram observados em sua totalidade pelos pais, sendo que 83% ocorreram durante o dia, em vigília.

Houve predomínio do sexo masculino (73,3%), 70% das crianças nasceram a termo e 86,7% tinham estado nutricional adequado para idade gestacional. Características clínicas da amostra e o diagnóstico etiológico após a investigação estão descritos na Tabela 1.

Na população estudada, três crianças apresentaram problemas neurológicos no período neonatal (uma meningite, uma encefalocele e um caso de encefalopatia hipóxico isquêmica). Outras comorbidades prévias à internação foram observadas em cinco crianças (displasia broncopulmonar, luxação congênita de quadril, distúrbio de deglutição, bronquiolite, infecção congênita). Previamente à internação, os três pacientes apresentavam atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, considerando a idade cronológica ou idade gestacional corrigida (nos prematuros).

Em dois pacientes foi confirmado tratamento psiquiátrico materno, sendo um caso de depressão pós-parto e um caso de transtorno esquizotípico. Um paciente tinha relato familiar de morte súbita. Foram identificadas quatro mães tabagistas. Um paciente tinha recebido imunização 48 horas antes do ALTE.

A classificação dos episódios de ALTE evidenciou 29 casos de ALTE menor (97%) e somente um de ALTE maior. Entre os casos de ALTE menor, em 25 foram identificados fatores de risco prévios à internação, em 22 pacientes os episódios eram recorrentes e em 07 casos a prematuridade era fator de risco único.

A investigação complementar realizada está descrita na Tabela 2. Todos os pacientes realizaram exames laboratoriais de rotina, tendo sido observadas alterações em dez. A alteração laboratorial mais frequente foi a anemia, que ocorreu em sete pacientes (nestes a taxa de hemoglobina variou entre 5,9 e 8,8 g/dL).

Após investigação clínica foi possível estabelecer etiologia do episódio em 15 pacientes (50%), conforme se pode observar na Tabela 1.

As variáveis qualitativas foram analisadas quanto à recorrência (prévia à internação) e relacionadas ao fator idiopático (já que houve predomínio de casos sem etiologia definida) através do teste exato de Fisher (Tabela 3). Os pacientes com epilepsia apresentavam o maior número de recorrências. Houve predomínio de episódios recorrentes em neonatos a termo (71,4% x 28,6% p=0,04).

O tempo de seguimento após a alta hospitalar variou de 7 até 24 meses, com tempo médio de acompanhamento de 17,6 meses (dp 4,8 meses, mediana 19 meses).

Todas as crianças incluídas foram seguidas até o final do estudo, exceto o caso de óbito.

Durante o seguimento somente um paciente apresentou recorrência de ALTE; realizou-se nesse paciente ampla investigação complementar sem definição da etiologia. Em sua última internação, durante o Holter-EEG, o evento indicado pela mãe como o ALTE não foi acompanhado de alterações no EEG. Nessa internação foi levantada a suspeita de Munchausen por procuração, sendo constatado que a mãe havia abandonado o tratamento psiquiátrico. Posteriormente fomos notificados do óbito desse paciente cuja causa não ficou esclarecida e os pais se recusaram a fazer necropsia.

Nos casos de epilepsia, o tratamento com carbamazepina levou ao controle das crises. Em todos os casos de DRGE confirmados pela pHmetria não ocorreram novos episódios após início de terapia medicamentosa com ranitidina e domperidona.

Discussão

O presente estudo descreve as características clínicas, a investigação etiológica e o seguimento de pacientes com ALTE. Diferente de outros publicados, a coleta de dados e o acompanhamento dos pacientes foram realizados de forma prospectiva a partir da chegada na emergência. Também foi utilizado protocolo específico desenvolvido para investigação de ALTE.10 Em estudo prévio realizado na mesma instituição, a coleta de dados foi retrospectiva, através da revisão de prontuários e não havia na literatura da época protocolo definido para a investigação destes pacientes.11

A maioria dos estudos clássicos sobre ALTE foi baseada em coleta retrospectiva de dados e em apenas alguns estudos prévios ao nosso houve coleta prospectiva.5,8 Comparando o presente estudo com um prévio realizado pelo nosso grupo, observamos que a coleta prospectiva dos casos através de protocolo específico aumenta a confiabilidade do diagnóstico, assim como reduz o tempo de investigação e a definição da etiologia.11

A prevalência de 4,2% de casos de ALTE na população estudada encontra-se dentro da média,3,4 porém, é superior à prevalência observada em emergências inglesas (0,6-0,8%) e em estudos de base populacional.5,6,8 O fato de, em nosso estudo, os profissionais da emergência terem sido motivados e treinados no reconhecimento destes pacientes pode ter sido responsável por essa diferença.

A faixa etária de maior ocorrência foi em lactentes até três meses de idade (80% dos casos); diferente do observado na literatura, essa faixa é superponível ao período de risco para SMSL.8 A ocorrência precoce de ALTE, nos primeiros dias de vida, já havia sido relatada por outros autores.12

A delimitação da faixa etária em estudos de ALTE é variável, mas sabe-se que estes episódios são mais frequentes nos doze primeiros meses de vida. Optamos por ampliar a faixa de inclusão para até 24 meses em função de observação prévia de ocorrência de casos mais tardios.11

Nesse estudo ocorreu predomínio do sexo masculino, entretanto, esse achado não é unânime, havendo em alguns estudos predomínio no sexo feminino.6,8 A maior incidência em crianças a termo já havia sido descrita em dois estudos prévios.5,11 Em contrapartida, estudos populacionais evidenciam predomínio discreto dos episódios em crianças prematuras.8

A história familiar de casos de síndrome da morte súbita do lactente (SMSL) foi identificada em somente um paciente. Foi semelhante a encontrada em estudo inglês6 e muito inferior a encontrada por Davies (15,4%).5 Estima-se que em torno de 10% dos pacientes com SMSL apresentam episódio prévio que poderia ser compatível com ALTE. A idade de ocorrência e os fatores de risco para SMSL geralmente diferem do ALTE. A posição supina para dormir e o tabagismo materno ocorrem com frequências inferiores no ALTE e, inclusive, existe a sugestão de que a modificação da orientação de dormir da posição prona para supina tenha aumentado a incidência de ALTE.8,13,14 A associação entre ALTE e SMSL tem sido investigada por diversos autores, entretanto, uma relação causa-efeito não pode ser estabelecida, já que a maioria dos pacientes com ALTE não apresenta recorrência dos episódios.2,3,8,13-17 Nesse estudo não foi possível estabelecer relações com a ocorrência de novos episódios de ALTE ou predisposição para SMSL em pacientes da mesma família, pois somente um caso tinha história prévia. Como a maioria dos eventos ocorreu em vigília, também não foi possível correlacionar os achados com posição ao dormir. Observou-se, entretanto, que a presença de tabagismo materno foi inferior a observada em estudos que avaliavam fatores de risco para morte súbita.5,15,16

Não observamos nenhum caso de SMSL nos pacientes com ALTE idiopático, apesar de a literatura sugerir esse risco. Explicações para esse achado podem ser relacionados ao fato de a maioria de nossos pacientes terem apresentando episódios de ALTE menor, que não apresentam maior chance de SMSL do que a população geral (1-2%).18 Outro aspecto de proteção poderia estar relacionado à ocorrência predominante de episódios em vigília e com testemunha.

Estudos epidemiológicos evidenciam como causas mais frequentes de ALTE o refluxo gastroesofágico, seguido de infecções respiratórias e convulsões.4-6,11,19,20 No presente estudo, por ordem de ocorrência, 50% dos casos foram idiopáticos, seguido de 20% de refluxo gastroesofágico, 10% de epilepsia.

Para o diagnóstico de ALTE como manifestação de epilepsia foi essencial a monitorização contínua de EEG para a obtenção do registro ictal. Em comparação a estudo prévio, a obtenção de registro ictal reduz de forma significativa o tempo de investigação e a necessidade de outros diagnósticos de exclusão.11,21

A anemia ferropriva tem sido relacionada a episódios de ALTE recorrente.22 Nesse estudo foram identificados sete pacientes com anemia, dos quais quatro tinham ALTE idiopático. Diante dessa nova perspectiva, talvez esses pacientes possam passar a ser identificados como ALTE sintomático.

O seguimento de pacientes com ALTE foi realizado na maioria das coortes em período variável entre 6 e 18 meses.5,11,16,19,20 Um estudo com casuística pequena (14 casos) realizou seguimento a longo prazo, observando alterações neurológicas mínimas em quatro casos e déficit motor importante em um paciente.23 O estudo chileno, publicado em 2008, realizou 36 meses de acompanhamento com 109 pacientes, onde apenas 6% dos casos foram de causa neurológica, ocorrendo predomínio de causas respiratórias em 46% dos casos.24

A recorrência de ALTE descrita na literatura varia entre 0-24% e a mortalidade 8%, não parecendo ser possível prever o prognóstico de crianças com ALTE idiopático quanto à recorrência.3 Nesse estudo a identificação e tratamento dos casos de refluxo gastroesofágico e epilepsia evitou as recorrências. A mortalidade e a taxa de recorrência foi inferior a relatada na literatura (o único paciente que apresentou recorrência após alta, faleceu posteriormente). Em casos de ALTE grave, recorrente, observados sempre pela mesma pessoa, levando a várias internações em diversos hospitais, deve-se suspeitar de Muchausen por procuração ou maus-tratos/abuso/negligência.3,25,26

Limitações desse estudo podem ser relacionadas ao número reduzido de pacientes, inviabilizando a construção de modelo de regressão linear. A realização em hospital de referência poderia causar um viés na prevalência, entretanto, os estudos citados na literatura foram na maioria dos casos realizados em uma única instituição. Além disto, como a investigação desses pacientes necessita de equipe multidisciplinar e inclui exames de alta complexidade, não seria possível reproduzilo em outro tipo de instituição. Para minorar possíveis perdas na seleção de pacientes, feitas inicialmente pelo plantão da emergência, foi realizado um treinamento prévio dos profissionais no reconhecimento desse tipo de pacientes, além disto, a confirmação da inclusão era sempre realizada pela mesma pesquisadora (AA).

Concluindo, observamos que a prevalência de ALTE encontrada na população estudada assemelha-se a da literatura. A frequência de casos idiopáticos, bem como as causas mais prevalentes de ALTE, correspondem aos descritos em estudos prévios. A morbidade (recorrência após alta) e a mortalidade foram baixas. O perfil clínico evidenciou predomínio dos episódios em vigília e até o terceiro mês de vida. As variáveis estudadas não foram preditivas quanto à recorrência do episódio de ALTE, mas o tratamento específico foi determinante no seu controle.

Recebido em 16 de janeiro de 2009

Versão final apresentada em 6 de julho de 2009

Aprovado em 13 de julho de 2009

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Set 2009
  • Data do Fascículo
    Set 2009

Histórico

  • Aceito
    13 Jul 2009
  • Recebido
    16 Jan 2009
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