Acessibilidade / Reportar erro

Mortalidade materna evitável enquanto injustiça social

Resumo

A maternidade segura não é realidade para muitas mulheres e a mortalidade materna persiste como grave problema de saúde pública. Este artigo objetiva discutir a mortalidade materna evitável para além das questões sanitárias, com ênfase na violação dos direitos humanos e nas múltiplas repercussões sociais desse complexo fenômeno. Na perspectiva dos direitos humanos, a morte materna evitável pode ser caracterizada como violação de direitos relativos à vida, à liberdade e à segurança da pessoa, à vida familiar, à igualdade e a não discriminação, bem como ao mais alto padrão de saúde alcançável e aos benefícios do progresso científico. Quando os riscos à saúde reprodutiva enfrentados pelas gestantes não estão restritos às questões inerentes à gravidez, mas traduzem questões fortemente vinculadas à necessidade de igualdade de gênero e empoderamento de todas as mulheres e meninas, a mortalidade materna evitável deve ser entendida por todos como uma grave injustiça que exerce discriminação contra as mulheres e viola seus direitos fundamentais. A recaracterização da morte materna evitável, de desvantagem de saúde para injustiça social, deve fomentar o desenvolvimento de uma consciência crítica coletiva capaz de envolver toda a sociedade, dando visibilidade às repercussões individuais, familiares e sociais, e promover novas possibilidades interdisciplinares de enfrentamento, compartilhadas e focadas no controle social das políticas públicas.

Palavras-chave:
Mortalidade materna; Direitos humanos; Direitos da mulher

Abstract

Safe motherhood is not a reality for many women and maternal mortality persists as a severe public health problem. This paper aims to discuss avoidable maternal mortality beyond health issues emphasising on human rights violations and the multiple social repercussions on this complex phenomenon. From the human rights perspectives, avoidable maternal death can be characterized as violation of rights related to life, freedom and the person’s safety, family life, equality and non-discrimination, as well as to the highest attainable standard of health and benefits from scientific progress. When reproductive health risks are faced by pregnant women, they are not restricted to inherent issues such as pregnancy but they reflecton issues strongly linked in the need of gender equality and empowerment for all women and girls, and avoidable maternal mortality should be understood by everyone as a serious injustice tha tdiscriminates women and violates their fundamental rights. The avoidable maternal death recharacterisation, beginning from health disadvantage to social injustice, should develop a collective critical awareness involving the population, giving visibility repercussions for the individual, the family and the population, as well as promoting new interdisciplinary possibilities in coping, sharing and focusing on social control in public policies.

Key words:
Maternal mortality; Human rights; Women’s rights

Introdução

A mortalidade materna é um indicador das condições de vida e cuidados de saúde de uma população e também reflete o desenvolvimento humano de um país. Níveis baixos de instrução, condições nutricionais inadequadas, apoio social insuficiente e falta de acesso a cuidados de saúde estão fortemente associados às mortes maternas. Além disso, a mortalidade materna é, habitualmente, o principal indicador da mortalidade diferencial entre os mais ricos e os mais pobres, entre nações, grupos sociais e famílias. A aceleração da redução da mortalidade materna foi estabelecida como uma das metas globais prioritárias nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.11 Osanan GC, Padilha H, Reis MI, Tavares AB. Strategy for Zero Maternal Deaths by Hemorrhage in Brazil: A Multidisciplinary Initiative to Combat Maternal Morbimortality. Rev Bras Ginecol Obstet. 2018;40: 103-5.

A mortalidade materna evitável e relacionada à qualidade da atenção obstétrica persiste como grave problema de saúde pública. Tais mortes não se distribuem aleatoriamente entre as mulheres e revelam a iniquidade das sociedades onde ocorrem, pois se concentram nos países em desenvolvimento, afetando principalmente mulheres negras, de menor renda e menor escolaridade. No Brasil, foram observados avanços nas últimas décadas, sobretudo no que concerne ao acesso da população à atenção básica à saúde. Entretanto, quando analisamos os indicadores de mortalidade materna evitável, as estratégias utilizadas têm se mostrado pouco efetivas.22 PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos do Milênio. 2014 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioNacionalAcompanhamentoODM.pdf
http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioN...
,33 Souza JP. A mortalidade materna e os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2016-2030). Rev Bras Ginecol Obstet. 2015; 37: 549-51.

Para que o Sistema Único de Saúde (SUS) se fortaleça para reduzir a mortalidade materna evitável as pessoas que o fazem precisam desenvolver uma espécie de “consciência crítica coletiva” acerca das múltiplas repercussões sociais da morte materna. As altas razões de mortalidade materna, sabidamente evitáveis através de intervenções eficazes em saúde, devem ser apontadas como resultado de injustiças sociais que as mulheres sofrem devido a seu status social e que representam uma flagrante violação de seus direitos humanos fundamentais. Essa recaracterização, de uma desvantagem de saúde para uma injustiça social, pode possibilitar maior visibilidade ao problema e promover novas estratégias de enfrentamento junto aos gestores da saúde, profissionais de diversas áreas e, em última análise, à toda sociedade.

Não é normal morrer de parto. A maternidade não é uma doença e, portanto, há que se ter muito cuidado ao comparar a mortalidade materna com outros problemas de saúde. A morte materna é um evento sentinela, um importante marcador da qualidade do sistema de saúde, em especial em relação ao acesso, à adequação e à oportunidade do cuidado, intimamente relacionado à vulnerabilidade social das populações. No Brasil, a discussão sobre a mortalidade materna evitável precisa avançar para além das questões sanitárias e as estratégias de enfrentamento precisam evocar a perspectiva reconstrutora do cuidado. O cuidado com a saúde materna deve superar a conformação individualista, rumo a esferas também coletivas, institucionais e estruturais de intervenção e enriquecer a racionalidade biomédica com construtos de outras ciências e outros saberes conforme Ayres.44 Ayres JR CM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface - Comun Saúde Educ. 2004; 8 (14): 73-92.

A abordagem interdisciplinar permite demonstrar que os riscos à saúde reprodutiva enfrentados pelas mulheres não são meros infortúnios nem desvantagens inevitáveis, próprias da gravidez, mas sim injustiças que as sociedades têm o dever de solucionar por meio de seus sistemas políticos, jurídicos e de saúde. Emerge a necessidade de discussão ampliada sobre esse complexo fenômeno social, agregando multiplicidade de visões e buscando coalizão de forças para que os Estados cumpram seu dever de proteção à vida e à maternidade segura. O objetivo deste artigo é discutir a mortalidade materna evitável para além das questões sanitárias, com ênfase na perspectiva da violação dos direitos humanos e das repercussões sociais desse complexo fenômeno.

A mortalidade materna evitável sob a lente dos direitos humanos

Após a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, seus princípios foram traduzidos em tratados, dentre os quais a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979. O cumprimento da Convenção é monitorado pelo Committee on the Elimination of Discrimination against Women (CEDAW) e sua Recomendação Geral n.º 24 postula que negligenciar o acesso a serviços de saúde necessários somente às mulheres é uma forma de discriminação.55 United Nations. Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women. Committee on the Elimination of Discrimination against Women. Views of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women under article 7, paragraph 3, of the Optional Protocol to the Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women (forty-ninth session) 2011. [acesso 26 fev 2019]; Disponível em: http://www.worldcourts.com/cedaw/eng/decisions/2011.07.25_da_Silva_Pimentel_v_Brazil.pdf
http://www.worldcourts.com/cedaw/eng/dec...
Serviços obstétricos com baixo padrão de qualidade, falta de leitos ou sua distribuição inadequada constituem violações ao direito das mulheres à equidade e à assistência.66 Reis LGC, Pepe VLE, Caetano R. Maternidade segura no Brasil: o longo percurso para a efetivação de um direito. Physis Rev Saúde Coletiva. 2011; 21 (3): 1139-60. A Conferência sobre “Maternidade Segura”, realizada em Nairóbi, em 1987, foi fruto do reconhecimento internacional da morte materna como tragédia que necessitava ser mundialmente enfrentada.66 Reis LGC, Pepe VLE, Caetano R. Maternidade segura no Brasil: o longo percurso para a efetivação de um direito. Physis Rev Saúde Coletiva. 2011; 21 (3): 1139-60. Três anos depois, foi lançado o Plano de Ação Regional para a Redução da Mortalidade Materna, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e em seguida, a Conferência Internacional das Nações Unidas para a População e Desenvolvimento foi realizada no Cairo, ocasião em que foi cunhada a definição de “saúde reprodutiva” e reconhecido o direito ao acesso a serviços e cuidados de saúde adequados para garantir gravidez e parto seguros.77 Den Exter A. International Health Law & Ethics. 2 ed. Antwerpen: Maklu; 2011.

A 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Beijing, em 1995, reafirmou o direito da mulher de desfrutar do mais elevado nível de saúde e de ter controle sobre a própria vida reprodutiva e fertilidade. Recomendou-se o compartilhamento da responsabilidade reprodutiva com o homem, o que poderia significar melhoria na saúde da mulher. Apesar desses esforços, ao final da década de 1990, as razões de mortalidade materna não haviam decrescido.88 Den Exter A. Human Rights And Biomedicine. Antwerpen: Maklu; 2014.

Em 2000, países de todo o mundo pactuaram os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), assumindo como meta reduzir a mortalidade materna em três quartos. Apesar do consenso acerca da injustiça da morte materna, o relatório de avaliação dos ODM aponta que essa foi a meta de menor progresso, de forma que a morte materna segue atingindo milhares de mulheres anualmente.22 PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos do Milênio. 2014 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioNacionalAcompanhamentoODM.pdf
http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioN...
Para o Brasil, a meta dos ODM era reduzir, até 2015, a mortalidade materna para um valor igual ou inferior a 35 óbitos por 100 mil nascidos-vivos (NV), o que não foi alcançado. Embora tenha atingido o sétimo posto entre os países mais ricos do mundo em termos de Produto Interno Bruto, o Brasil ainda ocupava a 54ª posição no ranking quanto à renda per capita.99 The World Bank. World Development Indicators. 2013 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://databank.world-bank.org/data/home.aspx
http://databank.world-bank.org/data/home...
Países considerados mais pobres ou em níveis de desenvolvimento semelhantes ao Brasil possuem menores números de mortalidade materna, como por exemplo o Chile (25 mortes/100.000 NV), o Uruguai (29/100.000 NV) e a Costa Rica (40/100.000 NV).

Mesmo a Faixa de Gaza, envolvida em situação de guerra permanente e com uma renda per capita quase cinco vezes menor que a do Brasil, possui uma Razão de Mortalidade Materna (RMM) de 64/100.000 NV, muito próxima à do Brasil.99 The World Bank. World Development Indicators. 2013 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://databank.world-bank.org/data/home.aspx
http://databank.world-bank.org/data/home...
,1010 WHO (World Health Organization). Trends in maternal mortality: 1990 to 2010 The World Bank WHO Library Cataloguing-in-Publication Data. WHO Libr Cat; 2012. [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.who.int/about/licensing/
http://www.who.int/about/licensing/...

Os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) representam a iniciativa global que sucede os ODM e convocam o mundo para a eliminação da mortalidade materna evitável até 2030, com a meta de reduzir a RMM global para menos de 70/100.000 NV. Considerando que atualmente a RMM global situa-se em torno de 210/100.000 NV, um esforço de todos os países no sentido de reduzir pelo menos dois terços da RMM será necessário, o que para o Brasil significa reduzir a RMM para aproximadamente 20/100.000 NV. Para isso, é necessário considerar as mudanças que têm ocorrido no perfil da população obstétrica e da mortalidade materna, incluindo a redução da fecundidade, o envelhecimento, a excessiva medicalização e o aumento das doenças crônico degenerativas.33 Souza JP. A mortalidade materna e os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2016-2030). Rev Bras Ginecol Obstet. 2015; 37: 549-51. Contrastando com todo o aparato de legislações e acordos internacionais, poucos casos legais chegaram às cortes exigindo que os governos tomem as medidas necessárias para identificar as causas da mortalidade materna e que adotem medidas preventivas para evitar a repetição de tais danos, tamanha a violação de direitos que encerra uma morte materna evitável.1111 Cook RJ. Human Rights and Maternal Health: Exploring the Effectiveness of the Alyne Decision. J Law Med Ethics. 2013; 41 (1): 103-23.

O desafio de aplicar a lente dos direitos humanos no enfrentamento da mortalidade materna evitável pode ser compreendido tomando-se por referência a transição histórica do pensamento que considerava a escravidão como parte da ordem natural da sociedade humana, para a caracterização da escravidão como gravíssima violação de um direito humano fundamental. Se a escravidão engendrou estruturas sentimentais e padrões de moralidade pública incompatíveis com as exigências normativas de uma sociedade decente, garantir a maternidade segura, assim como superar o racismo, é uma transformação necessária que certamente ameaça o status quo e questiona os sistemas de valores sociais.

Não faz sentido que os Estados se oponham à maternidade segura e jamais presenciaremos a oficialização desse tipo de posicionamento estatal, entretanto, a questão que precisa ser combatida é que, muito frequentemente, os próprios gestores públicos consideram as circunstâncias que condicionam a mortalidade materna evitável como parte da ordem natural, incluindo a subordinação, a falta de poder das mulheres e sua exclusão das principais instituições políticas, religiosas e econômicas que tomam decisões em suas sociedades.

Decorridos 70 anos da promulgação dos Direitos Humanos e quase 20 anos após a aceitação universal das metas do milênio, persiste a necessidade de caracterizar os direitos humanos que restam violados quando da mortalidade materna evitável:

Direitos relativos à vida, à liberdade e à segurança da pessoa

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos,1212 Brasil. Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos. 1992 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
em seu Artigo 6° estabelece que “o direito à vida é inerente à pessoa humana”. A proteção do direito à vida não deve ser restritivamente entendida sob a ótica de que os governos devem evitar as execuções arbitrárias e a pena de morte, mas sim a concepção ampliada de que cabe ao Estado a adoção de medidas positivas e protetivas capazes de garantir este direito, incluindo aquelas capazes de prevenir a mortalidade materna evitável. O Estado deve assegurar que os trabalhadores de saúde recebam formação adequada, reforçar seus programas de planejamento familiar e educação sexual, e garantir que mulheres não sejam obrigadas a submeter-se a abortos inseguros. Em particular, deve ser dada atenção aos efeitos da legislação restritiva ao aborto sobre a saúde das mulheres.55 United Nations. Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women. Committee on the Elimination of Discrimination against Women. Views of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women under article 7, paragraph 3, of the Optional Protocol to the Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women (forty-ninth session) 2011. [acesso 26 fev 2019]; Disponível em: http://www.worldcourts.com/cedaw/eng/decisions/2011.07.25_da_Silva_Pimentel_v_Brazil.pdf
http://www.worldcourts.com/cedaw/eng/dec...

Os direitos à liberdade e à segurança da pessoa foram aplicados por pelo menos uma dúzia de cortes constitucionais nacionais nos casos de aborto, para garantir a liberdade da mulher de decidir se, quando e com que frequência gerar filhos.1313 ONU (Organização das Nações Unidas). Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento-Plataforma de Cairo; 1994. [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf
http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relator...
,1414 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Vela´squez Rodri´guez Vs. Honduras. Sentencia de 29 de julio de 1988. [acesso 26 fev 2019]. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_es p.pdf
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/art...
É necessário compreender que tais direitos são igualmente violados sempre que fatores de ordem médica, social e/ou relativos ao sistema de saúde colocam a vida de uma mulher em risco na gravidez, no parto ou no puerpério. Assim, os governos figuram como violadores de direitos quando falham em oferecer as condições que permitem às mulheres ter uma gravidez voluntária e um parto seguro.

Direitos relativos à vida familiar

Embora o direito de casar e de formar família esteja bem protegido, permanece a carência da proteção legal para a expectativa da mulher de sobreviver à gravidez. Até a resolução do caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira versus Brasil, nenhum governo fora julgado responsável por casos de mortalidade materna evitável perante os tribunais ou agências nacionais ou internacionais.1111 Cook RJ. Human Rights and Maternal Health: Exploring the Effectiveness of the Alyne Decision. J Law Med Ethics. 2013; 41 (1): 103-23.

O respeito à dignidade humana das mulheres deve incluir a capacidade de sobreviver à gravidez e ao parto. A biologia caracteriza a formação da vida humana com as mulheres gerando, nutrindo, protegendo e promovendo o desenvolvimento de seus filhos antes do nascimento e são elas que os trazem à vida. Sobreviver à gestação e ao parto é pressuposto fundamental para que as mulheres tenham garantidos os direitos humanos relativos à vida familiar.

Direitos relativos ao mais alto padrão de saúde alcançável e aos benefícios do progresso científico

As necessidades relacionadas à saúde materna precisam ser entendidas conforme a concepção das necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção.1515 Cecílio LCO. As necessidade de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção. In: Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde [Internet]. ABRASCO. Rio de Janeiro; 2001 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.uff.br/pgs2/textos/Integralidade_e_Equidade_na_Atencao_a_saide_-_Prof_Dr_Luiz_Cecilio.pdf
http://www.uff.br/pgs2/textos/Integralid...
A identificação da hipertensão arterial, hemorragias e infecções como principais causas de mortalidade materna evitável e a disponibilidade das estratégias terapêuticas para seu controle não tem sido eficazes para a resolução do problema. A questão que está posta é que ter acesso ao mais alto padrão de saúde alcançável e aos benefícios do progresso científico representa uma necessidade não suprida para a concretização da maternidade segura.

Estudos apontam que o tempo na obtenção de cuidados adequados é considerado o fator mais importante relacionado às mortes maternas. As demoras entre o início de uma complicação e seu tratamento adequado ou resultado podem ocorrer em três fases: fase I - demora na decisão de procurar cuidados pelo indivíduo e/ou família; fase II - demora no acesso à unidade de cuidados adequados de saúde; e fase III - demora em receber os cuidados adequados na instituição de referência.1616 Thaddeus S, Maine D. Too far to walk: maternal mortality in context. Soc Sci Med. 1994; 38 (8): 1091-110. Este conceito das “três demoras” unifica fatores diversos, incluindo a autonomia das mulheres, a distância geográfica e o acesso à assistência, evocando diversas áreas do conhecimento, como antropologia, ciências sociais e geografia e fornece um referencial teórico claro para o estudo da mortalidade materna evitável.1717 Kalter HD, Salgado R, Babille M, Koffi AK, Black RE. Social autopsy for maternal and child deaths: a comprehensive literature review to examine the concept and the development of the method. Popul Health Metr. 2011; 9: 45. No entanto, todas as demoras são interrelacionadas, visto que a maioria das mortes maternas não pode ser atribuída a uma demora única, sendo mais comumente uma combinação de fatores.

Na dimensão de destacar a sequência causal, social e comportamental, relacionada à família, comunidade e sistema de saúde em um referencial teórico único, o próprio método científico atualmente utilizado para estudar a mortalidade materna passa a se coadunar com a ideia de que, qualquer que seja a demora, ela também viola em suas vítimas os direitos relativos ao mais alto padrão de saúde alcançável e aos benefícios do progresso científico, incluídas a informação e a educação em saúde.

Direitos relativos à igualdade e a não discriminação

A maior ameaça à saúde reprodutiva das mulheres é sua incapacidade de exercer seus direitos à igualdade. Com frequência, a discriminação sexual é agravada pela discriminação com base na situação conjugal, raça, idade e classe, o que costuma tornar mais vulneráveis ao risco de mortalidade materna as mulheres jovens, com baixo nível socioeconômico e pertencentes a grupos raciais minorizados. Em suas comunidades, as mulheres não desfrutam do mesmo status e importância de que gozam os homens.1818 Cook R. A dimensão dos direitos humanos na mortalidade Materna. In: Consulta Técnica sobre Questões da Maternidade Segura: Dez Anos de Lições e Progressos. Colombo; 1997. p. 18-23.

A igualdade requer que tratemos os mesmos interesses sem discriminação como, por exemplo, no acesso das pessoas de ambos os sexos à educação, mas também que tratemos os diferentes interesses adequadamente, de maneira a respeitar essas diferenças, como por exemplo, os interesses específicos das mulheres quanto à segurança na gravidez e parto. Os direitos à igualdade são violados quando desconsideram a diferença biológica fundamental entre homens e mulheres, devido à qual, ano após ano, centenas de milhares de mulheres morrem desnecessariamente.

Homens e mulheres são parceiros iguais e codependentes da raça humana e a diferença biológica entre eles não deveria ser invocada como justificativa para tratar as mulheres como uma espécie diferente e inferior. Ainda assim, a diferença biológica é crítica no que concerne à maternidade e à mortalidade materna.1111 Cook RJ. Human Rights and Maternal Health: Exploring the Effectiveness of the Alyne Decision. J Law Med Ethics. 2013; 41 (1): 103-23.

A aviltante injustiça social que as sociedades contemporâneas têm a obrigação de corrigir é que elas discriminam as mulheres em aspectos nos quais as diferenças entre os sexos jamais deveriam importar, como o acesso à educação, à cultura, oportunidades políticas e econômicas, para, simplesmente, ignorar a diferença onde essa precisaria ser muito mais reconhecida e valorizada, justamente na necessidade de atenção especial à saúde materna e à prevenção da mortalidade materna evitável.

Parece-nos evidente que a democracia brasileira, ainda jovem e deficitária na concretização universal da cidadania, carece de uma “cidadania cultural”. Carece de políticas culturais que sejam capazes de promover a libertação da vergonha e da humilhação da grande maioria das mulheres pobres e expropriadas de direitos sociais. Precisamos de educação em sentido amplo, não meramente formal, focada na alfabetização e na formação profissional, mas que leve em consideração a qualidade do ensino e dos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação de massa, estimulando o debate público, permitindo o empoderamento dos sujeitos, sendo instrumento catalisador da cidadania, sobretudo das mulheres pobres.

A experiência de uma melhoria na vida, por mínima que seja, grava-se profundamente na alma das pessoas, resgata sua dignidade e abre seu mundo para o surgimento de exigências libertárias maiores. Um direito se expande e dá origem a novas reivindicações por outros direitos e assim indefinidamente, um verdadeiro círculo virtuoso dos direitos.

Por uma “consciência crítica coletiva”

Os esforços para a redução da mortalidade materna evitável devem compreender ações em todos os níveis, com a participação ativa da sociedade, dos governos, dos prestadores de serviço e, obviamente, das instituições que formam os profissionais que devem cuidar da saúde das mulheres. Tais ações devem abranger a organização da assistência em rede, com acesso universal, precoce e sem barreiras ao pré-natal de qualidade e garantia de atendimento em maternidade de referência previamente definida e conhecida pela mulher. A peregrinação das brasileiras em busca de uma vaga para parir revela que a estruturação e a organização adequadas dos serviços assistenciais assumem relevância estratégica, incluindo o envolvimento e a capacitação dos seus profissionais, o reconhecimento precoce dos problemas e a atuação oportuna e efetiva diante de complicações ameaçadoras à vida dessas mulheres. Para que as sociedades abracem a redução da mortalidade materna evitável como causa prioritária é necessário que o problema ganhe maior visibilidade e que seja amplamente discutido entre os mais diferentes atores sociais, com ênfase às dimensões sociais da morte materna, à perspectiva de gênero intrinsicamente relacionada à violação dos direitos humanos e ao imperativo moral que o enfrentamento do problema deve representar para a dignidade humana e para a construção coletiva da cidadania.

Os profissionais de saúde, que têm no SUS o ordenador de sua formação, precisam discutir a mortalidade materna evitável para além do que está escrito nos prontuários médicos. As repercussões sociais da morte materna produzem tragédias individuais, familiares e coletivas que magnificam e perpetuam o ciclo vicioso da violação de direitos e garantias fundamentais. A educação das profissões da saúde deve garantir a discussão dos determinantes e das consequências sociais da mortalidade materna durante a formação profissional, incorporando as perspectivas interprofissionais de abordagem do tema, incluindo as ciências sociais. É necessário ampliar os horizontes de percepção desses profissionais sobre a gravidade contida na mortalidade materna evitável e sobre a importância do seu papel enquanto agentes da transformação social necessária para garantia da maternidade segura como elemento constituinte da justiça social.

Ações de educação popular em saúde precisam discutir a mortalidade materna evitável com os usuários dos sistema de saúde e também buscar atingir o entendimento dos cidadãos sobre a magnitude do problema social que ela representa e da sua importância como indicador da qualidade de saúde de determinada população. Da mesma forma, a educação em saúde deve fomentar o desenvolvimento das potencialidades pessoais e ampliação da autonomia, afim de oferecer condições adequadas para que as pessoas façam escolhas de forma competente, inclusive sobre sua saúde sexual e reprodutiva. Homens e mulheres precisam ter consciência do que está contido na parte submersa desse iceberg, tão frio quanto à indiferença da sociedade que o ignora.

Urge lutar contra o inconsciente coletivo que aceita a morte materna como o destino heroico da mulher que dá a vida pelo seu filho, um risco irredutível inerente a toda e qualquer gravidez ou, até mesmo, se resigna diante da vontade de um Deus masculino sabedor de todas as coisas. Não há divindade, minimamente justa que seja, capaz de exigir da mulher tamanho sacrifício. A morte materna por causas evitáveis precisa ser entendida por todos, cidadãos e cidadãs, como algo absolutamente inaceitável.

É necessário fomentar o desenvolvimento de uma espécie de “consciência crítica coletiva” que rejeita, repudia, se indigna e se revolta contra a morte de uma mulher consequente à má qualidade da atenção obstétrica prestada. Provocar essa indignação é central para a transformação das atitudes sociais frente à violação dos direitos humanos das mulheres que morrem de parto.

Para se alcançar a “consciência crítica coletiva” sobre o real custo da morte materna torna-se necessária a divulgação dos efeitos imediatos e tardios dessa morte no funcionamento dos lares, na vida do recém-nascido, dos filhos sobreviventes, dos membros mais próximos da família e, até mesmo, da comunidade de que a mulher fazia parte. Ainda que muitos relutem em admitir ou mesmo insistam em ignorar, a análise ampliada dos impactos sociais da mortalidade materna nos permite sublinhar a centralidade do papel desempenhado pela mãe de família em nossa sociedade.

No contexto das divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, das relações sociais de dominação e exploração que estão instituídas entre os gêneros, a mulher/mãe é, verdadeiramente, o centro da casa, da reprodução, das relações sociais da família, a gestora do orçamento doméstico, a responsável pela socialização das crianças, as guardiãs da moralidade, da educação e da saúde.1919 Bourdieu P. A dominação Masculina. Tradução Maria Helena Kuhner. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002. Assim, como as sociedades atuais ainda enxergam a divisão de papéis entre os gêneros sob a ótica da “ordem das coisas”; para falar do que é normal, natural, ao ponto de ser, até mesmo, inevitável, naquilo que Bourdieu nominou como inserção em um sistema de oposições homólogas; quando a mãe da família morre, todas as funções relacionadas ao seu papel, invariavelmente, morrem um tanto também. Não são raras as histórias nas quais são necessárias muitas outras pessoas, independentemente de seu gênero, para dar conta da multiplicidade de atividades antes desempenhadas pela singular mãe que se foi.

Não se trata aqui da apresentação de um reforço às necessidades subjetivas e objetivas da divisão das coisas e atividades, sexuais e todas as outras, segundo a oposição entre masculino e feminino, tampouco da negação das oposições pertinentes e complementares entre as duas “essências”, mas sim de reconhecer que, no cenário vigente, a morte materna traz consigo repercussões sociais importantes que merecem visibilidade e consciência por parte de toda a sociedade.

A literatura internacional traz dados que explicitam as repercussões sociais da morte materna de modo muito sensível. Um estudo longitudinal, realizado na Etiópia, entre 1987 e 2011, analisou as consequências da mortalidade materna na sobrevivência das crianças. Os resultados observados ao longo desses 25 anos revelam a forte associação que se estabelece entre a morte da mãe e a morte das crianças sobreviventes. Como o estudo acompanhou esses indivíduos a longo prazo, as consequências tardias também se mostraram muito preocupantes. Observou-se uma significativa propensão a não escolarização e à pobreza, com maiores riscos para a repetição da história da mortalidade materna e neonatal em suas vidas.2020 Moucheraud C, Worku A, Molla M, Finlay JE, Leaning J, Yamin A. Consequences of maternal mortality on infant and child survival: a 25-year longitudinal analysis in Butajira Ethiopia (1987-2011). Reprod Health. 2015; 12 (Suppl. 1): S1-S4.

Outro estudo revelou que as crianças órfãs têm uma redução significativa no que se refere aos cuidados com a saúde, com menores taxas de imunização e de acesso a cuidados médicos quando adoecem. Verificou-se ainda que os pais raramente assumem os papéis culturalmente atribuídos ao gênero feminino, como a responsabilidade de cuidado com as crianças, o cuidado com a casa, cozinhar e gerar renda extra. É comum que os filhos mais velhos da família, notadamente as meninas, tenham que deixar a escola para assumir papéis maternos.2121 Molla M, Mitiku I, Worku A, Yamin A. Impacts of maternal mortality on living children and families: A qualitative study from Butajira, Ethiopia. Reprod Health. 2015;12 (Suppl. 1): S6.

No Malawi, na África Oriental, Bazile et al.2222 Bazile J, Rigodon J, Berman L, Boulanger VM, Maistrellis E, Kausiwa P, Yamin AE. Intergenerational impacts of maternal mortality: Qualitative findings from rural Malawi. Reprod Health. 2015; 12 (Suppl. 1): S1. descobriram que a perda da mãe agravou profundamente a sobrevivência e a vulnerabilidade das crianças às doenças e à desnutrição, encurtou o tempo de escola e aumentou a evasão escolar, trouxe a inserção no mercado de trabalho, o casamento e a paternidade muito precoces. Quando os órfãos são adotados por parentes, em sua maioria também muito pobres, a adição de uma outra criança nas condições de vida de subsistência pode criar tensões, questões de saúde e de educação entre os filhos naturais e os adotivos. Se o pai assume uma nova esposa, os filhos da mulher morta são frequentemente tratados como cidadãos de segunda classe, sendo privados de comida, conforto, cuidados de saúde e educação, o que agora passa a ser prioridade para a prole da nova mulher.2222 Bazile J, Rigodon J, Berman L, Boulanger VM, Maistrellis E, Kausiwa P, Yamin AE. Intergenerational impacts of maternal mortality: Qualitative findings from rural Malawi. Reprod Health. 2015; 12 (Suppl. 1): S1.

Há publicações importantes deixando clara a relação entre morbidade/mortalidade materna e saúde neonatal, mostrando como as complicações da gravidez e do parto afetam a sobrevivência dos recém-nascidos, aumentando o risco de morte fetal e morte neonatal.33 Souza JP. A mortalidade materna e os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2016-2030). Rev Bras Ginecol Obstet. 2015; 37: 549-51.,2323 Pande R, Ogwang S, Karuga R, Rajan R, Kes A, Odhiambo FO, Laserson K, Schaffer K. Continuing with "...a heavy heart" - consequences of maternal death in rural Kenya. Reprod Health. 2015; 12 (Suppl. 1): S2.

A criança cuja mãe morreu no parto está exposta a maiores riscos de problemas nutricionais devido à falta do aleitamento materno, ao consumo de água contaminada ou alimentos artificiais inadequados, maior risco de mortalidade e maiores chances de infecção e déficit de crescimento e desenvolvimento.2424 Kusiako T, Ronsmans C, Van der Paal L. Perinatal mortality attributable to complications of childbirth in Matlab, Bangladesh. Bull World Health Organ. 2000; 78 (5): 621-7.,2525 Vogel J, Souza J, Mori R, Morisaki N, Lumbiganon P, Laopaiboon M, Ortiz-Panozo E, Hernandez B, Perez-Cuevas R, Roy M, Mittal S, Cecatti JG, Tunçalp O, AM Gülmezoglu AM, on behalf of the WHO Multicountry Survey on Maternal and Newborn Health Research Network. Maternal complications and perinatal mortality: findings of the World Health Organization Multicountry Survey on Maternal and Newborn Health. BJOG An Int J Obstet Gynaecol. 2014; 121: 76-88. As crianças mais velhas, especialmente as meninas, frequentemente padecem com o abandono escolar, a pobreza, a exposição às diversas formas de violência, incluindo a sexual, o casamento e a maternidade precoces, dessa forma perpetuando o nefasto ciclo de violação de direitos do qual resulta a mortalidade materna evitável.

O tema da mortalidade materna evitável deve mobilizar mentes e corações, provocar iniciativas de humanização e manifestações de indignação contra o cenário de discriminação e violência institucional no Brasil; deve resultar em ações individuais e de grupos de defesa de direitos humanos, feministas, e de saúde sexual e reprodutiva, ou seja, de cada uma das pessoas e instituições que concebem os direitos humanos não como um discurso retórico, e meramente normativo, mas com conteúdo político, potencial libertário e emancipatório, capaz de promover transformação social e mudar determinada realidade e prática, dentro de marcos éticos, filosóficos e jurídicos, e de uma visão de mundo que viabilize a concretização dos projetos de vida de todas as mulheres, garantindo-lhes o direito a uma vida livre de mortalidade materna evitável.2626 Galli B. Mortalidade materna e direitos humanos: as mulheres e o direito de viver livres de morte materna evitável. Rio de Janeiro: Advocaci; 2005.

Considerações que não se pretendem acabadas

A negligência com a qualidade dos serviços de atenção à saúde materna, uma vez de uso exclusivo da população feminina, traz em si a expressa discriminação contra as mulheres, capaz de ser reconhecida como violação dos princípios da igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana, e também como impedimento da participação da mulher na vida da sociedade em condições iguais às do homem.

A mortalidade materna evitável pode sim ser vista como resultado da violação dos direitos humanos e essa abordagem permite explicitar para a sociedade que não se trata de fenômeno natural, que se distribui ao acaso. Permite também afirmar que o Estado tem obrigação de respeitar, proteger e prover esses direitos.

A integralidade na atenção à saúde materna é um princípio com múltiplos sentidos, que aponta para um universo de valores pelos quais a luta intransigente é necessária, pois estão intimamente implicados na construção de uma sociedade mais justa, humana e solidária. A morte das mulheres em função da gravidez, do parto e do puerpério em muito transcende os fatos biológicos e é, em sua grande parte, determinada pelas suas condições de vida e suas formas de participação social. As mulheres expostas ao alto risco de morrer por causas evitáveis são sujeitos, possuem uma história de vida, são detentoras de saberes e, acima de tudo, são titulares de direitos. Escutar, dar voz e vez, dialogar e procurar entender as necessidades dessas mulheres, de modo muito mais abrangente, é condição sine qua non para prover integralidade e equidade na atenção à saúde reprodutiva.

Sensibilizar a opinião pública sobre os diferentes prismas através dos quais a horrenda imagem da morte materna pode ser vista representa valioso recurso para que a “consciência crítica coletiva” sobre a magnitude desse problema seja capaz de transformar a retórica em ações efetivas de enfrentamento da realidade que está posta.

As visões das ciências humanas e sociais aplicadas sobre o tema constituem interfaces dialógicas com grande potencial para a (trans)formação da consciência social dos trabalhadores de saúde para a efetividade do cuidado com a saúde materna. Sob esta ótica, a mortalidade materna evitável, habitualmente caracterizada como desvantagem de saúde necessita ser compreendida como injustiça social que exerce discriminação contra as mulheres e viola seus direitos humanos. Tal transformação deve envolver todos os segmentos da sociedade, dando visibilidade às repercussões individuais, familiares e coletivas e promovendo novas abordagens de enfrentamento, interdisciplinares, compartilhadas e focadas no controle social das políticas públicas.

References

  • 1
    Osanan GC, Padilha H, Reis MI, Tavares AB. Strategy for Zero Maternal Deaths by Hemorrhage in Brazil: A Multidisciplinary Initiative to Combat Maternal Morbimortality. Rev Bras Ginecol Obstet. 2018;40: 103-5.
  • 2
    PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos do Milênio. 2014 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioNacionalAcompanhamentoODM.pdf
    » http://www.pnud.org.br/Docs/5_RelatorioNacionalAcompanhamentoODM.pdf
  • 3
    Souza JP. A mortalidade materna e os novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2016-2030). Rev Bras Ginecol Obstet. 2015; 37: 549-51.
  • 4
    Ayres JR CM. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface - Comun Saúde Educ. 2004; 8 (14): 73-92.
  • 5
    United Nations. Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women. Committee on the Elimination of Discrimination against Women. Views of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women under article 7, paragraph 3, of the Optional Protocol to the Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women (forty-ninth session) 2011. [acesso 26 fev 2019]; Disponível em: http://www.worldcourts.com/cedaw/eng/decisions/2011.07.25_da_Silva_Pimentel_v_Brazil.pdf
    » http://www.worldcourts.com/cedaw/eng/decisions/2011.07.25_da_Silva_Pimentel_v_Brazil.pdf
  • 6
    Reis LGC, Pepe VLE, Caetano R. Maternidade segura no Brasil: o longo percurso para a efetivação de um direito. Physis Rev Saúde Coletiva. 2011; 21 (3): 1139-60.
  • 7
    Den Exter A. International Health Law & Ethics. 2 ed. Antwerpen: Maklu; 2011.
  • 8
    Den Exter A. Human Rights And Biomedicine. Antwerpen: Maklu; 2014.
  • 9
    The World Bank. World Development Indicators. 2013 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://databank.world-bank.org/data/home.aspx
    » http://databank.world-bank.org/data/home.aspx
  • 10
    WHO (World Health Organization). Trends in maternal mortality: 1990 to 2010 The World Bank WHO Library Cataloguing-in-Publication Data. WHO Libr Cat; 2012. [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.who.int/about/licensing/
    » http://www.who.int/about/licensing/
  • 11
    Cook RJ. Human Rights and Maternal Health: Exploring the Effectiveness of the Alyne Decision. J Law Med Ethics. 2013; 41 (1): 103-23.
  • 12
    Brasil. Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos. 1992 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm
  • 13
    ONU (Organização das Nações Unidas). Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento-Plataforma de Cairo; 1994. [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf
    » http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf
  • 14
    Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Vela´squez Rodri´guez Vs. Honduras. Sentencia de 29 de julio de 1988. [acesso 26 fev 2019]. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_es p.pdf
    » http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_es p.pdf
  • 15
    Cecílio LCO. As necessidade de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na atenção. In: Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde [Internet]. ABRASCO. Rio de Janeiro; 2001 [acesso 3 dez 2017]. Disponível em: http://www.uff.br/pgs2/textos/Integralidade_e_Equidade_na_Atencao_a_saide_-_Prof_Dr_Luiz_Cecilio.pdf
    » http://www.uff.br/pgs2/textos/Integralidade_e_Equidade_na_Atencao_a_saide_-_Prof_Dr_Luiz_Cecilio.pdf
  • 16
    Thaddeus S, Maine D. Too far to walk: maternal mortality in context. Soc Sci Med. 1994; 38 (8): 1091-110.
  • 17
    Kalter HD, Salgado R, Babille M, Koffi AK, Black RE. Social autopsy for maternal and child deaths: a comprehensive literature review to examine the concept and the development of the method. Popul Health Metr. 2011; 9: 45.
  • 18
    Cook R. A dimensão dos direitos humanos na mortalidade Materna. In: Consulta Técnica sobre Questões da Maternidade Segura: Dez Anos de Lições e Progressos. Colombo; 1997. p. 18-23.
  • 19
    Bourdieu P. A dominação Masculina. Tradução Maria Helena Kuhner. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002.
  • 20
    Moucheraud C, Worku A, Molla M, Finlay JE, Leaning J, Yamin A. Consequences of maternal mortality on infant and child survival: a 25-year longitudinal analysis in Butajira Ethiopia (1987-2011). Reprod Health. 2015; 12 (Suppl. 1): S1-S4.
  • 21
    Molla M, Mitiku I, Worku A, Yamin A. Impacts of maternal mortality on living children and families: A qualitative study from Butajira, Ethiopia. Reprod Health. 2015;12 (Suppl. 1): S6.
  • 22
    Bazile J, Rigodon J, Berman L, Boulanger VM, Maistrellis E, Kausiwa P, Yamin AE. Intergenerational impacts of maternal mortality: Qualitative findings from rural Malawi. Reprod Health. 2015; 12 (Suppl. 1): S1.
  • 23
    Pande R, Ogwang S, Karuga R, Rajan R, Kes A, Odhiambo FO, Laserson K, Schaffer K. Continuing with "...a heavy heart" - consequences of maternal death in rural Kenya. Reprod Health. 2015; 12 (Suppl. 1): S2.
  • 24
    Kusiako T, Ronsmans C, Van der Paal L. Perinatal mortality attributable to complications of childbirth in Matlab, Bangladesh. Bull World Health Organ. 2000; 78 (5): 621-7.
  • 25
    Vogel J, Souza J, Mori R, Morisaki N, Lumbiganon P, Laopaiboon M, Ortiz-Panozo E, Hernandez B, Perez-Cuevas R, Roy M, Mittal S, Cecatti JG, Tunçalp O, AM Gülmezoglu AM, on behalf of the WHO Multicountry Survey on Maternal and Newborn Health Research Network. Maternal complications and perinatal mortality: findings of the World Health Organization Multicountry Survey on Maternal and Newborn Health. BJOG An Int J Obstet Gynaecol. 2014; 121: 76-88.
  • 26
    Galli B. Mortalidade materna e direitos humanos: as mulheres e o direito de viver livres de morte materna evitável. Rio de Janeiro: Advocaci; 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2019
  • Aceito
    30 Mar 2020
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br