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Violência Obstétrica e Educação Médica: respondendo 'Who is Afraid of Obsthetric Violence?"

Prezado editor,

Em Katz et al.,11 Katz L, Amorim MM, Giordano JC, Bastos MH, Brilhante AVM. Who is afraid of obstetric violence?. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2020; 20 (2): 623-6. os autores descrevem a importância das definições sobre violência obstétrica (VO). Como relatado no artigo, entende-se por VO "toda ação ou omissão direcionada à mulher durante o prénatal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia".22 Sesc FPA. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado [Internet]. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado. 2010 [cited 2019 Jan 9]. p. 301. Available from: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf
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Assim, pode-se entender a VO como uma forma de violência de gênero, onde as práticas de saúde e o saber médico se sobrepõem à autonomia da mulher sobre os saberes acerca de si mesma.33 Palma CC, Donelli TMS. Violência obstétrica em mulheres brasileiras. Psico. 2017; 48 (3): 216-30. Os autores ainda refletem sobre o reconhecimento e apropriação do termo pela sociedade e profissionais, para que a erradicação da VO seja possível. Conceitualizar o termo permite reconhecer os atos que nos circundam, e identificá-los permite combatê-los.

Apesar de serem atos relatados e observados nos contextos de saúde,44 Simone Grilo Diniz, Heloisa de Oliveira Salgado, Halana Faria de Aguiar Andrezzo, Paula Galdino Cardin de Carvalho, Priscila Cavalcanti Albuquerque Carvalho, Cláudia de Azevedo Aguiar, Denise Yoshie Niy. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in Brazil: Origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. J Hum Growth Dev. 2015; 25 (3): 377-82. esse assunto ainda é pouco debatido no âmbito acadêmico e formativo. Assim, é impossível enfrentar a VO sem reformular a educação de profissionais da saúde. Entre as mudanças necessárias, destaca-se a efetivação do olhar humanizado desde o início da graduação até atividades práticas dos profissionais. Este assunto precisa ser debatido nas universidades e escolas de saúde como parte dos componentes curriculares dos cursos. Além disso, é preciso reforçar competências relacionadas às soft-skills (habilidades cognitivas, interpessoais e intrapessoais) e a valores e virtudes pessoais e profissionais, como comunicação positiva, altruísmo e inteligência emocional, uma vez que a relação médico-paciente extrapola a competência técnica e a habilidade no trabalho, pois necessita de uma comunicação ética baseada na empatia e no respeito à autonomia.55 Costa FD, Azevedo RCS. Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um olhar qualitativo. Rev Bras Educ Med. 2010; 34 (2): 261-9.

A prática violenta inicia-se quando se estabelece uma relação médico-paciente precária, situada entre um sujeito que tem poder decisório legitimado pelo saber e outro que é minimizado pelo desconhecimento e ignorância.66 Sens MM, De Faria Stamm AMN. Physicians' perception of obstetric or institutional violence in the subtle dimension of the human and physician-patient relationship. Interface Commun Heal Educ. 2019; 23: 1-16. Assim, as mulheres são colocadas em um lugar passivo no processo de parturição e os profissionais mantêm o seu status de autoridade, estabelecendo uma relação verticalizada e desper-sonalizada,33 Palma CC, Donelli TMS. Violência obstétrica em mulheres brasileiras. Psico. 2017; 48 (3): 216-30. apesar de "boas práticas de atenção ao parto e nascimento" serem recomendadas pelo Ministério da Saúde. Ainda, pacientes menos questionadoras e mais informadas no geral tendem a ser bem aceitas pelos profissionais e geralmente apresentam uma boa relação com a equipe, gerando pouca demanda assistencial. Entretanto, quando surgem questionamentos, recusas e contestação da autoridade médica ou das rotinas da instituição, a mulher é considerada inconveniente e o profissional apresenta dificuldade em sustentar o respeito à autonomia.66 Sens MM, De Faria Stamm AMN. Physicians' perception of obstetric or institutional violence in the subtle dimension of the human and physician-patient relationship. Interface Commun Heal Educ. 2019; 23: 1-16. Nesse sentido, é preciso trabalhar a relação médico-paciente - e todas as áreas interrelacionadas a esse contexto - desde a base do processo formativo profissional.

A maioria dos currículos médicos baseia-se nos princípios diretivos da Medicina Baseada em Evidências, sem dar equipotência para os quatro grandes pilares desse movimento que devem guiar as práticas e decisões clínicas: conhecimento científico, experiência clínica, recursos disponíveis e preferências dos pacientes.77 Barros de Souza A, Da Silva LC, Das Neves Alves R, Jacinto Alarcão AC. Fatores associados à ocorrência de violência obstétrica institucional: uma revisão integrativa da literatura. Rev Ciênc Méd. 2017; 25 (3): 115-28. Por conseguinte, nas escolas de saúde parece existir soberania do "saber científico" e da "experiência clínica" sobre às mulheres, seus desejos, corpos e crenças. Para que haja mudança, se faz necessário humanizar a relação profissional de saúde-usuário e os serviços de saúde, exigindo profundas transformações da formação e da valorização de novos saberes; aquisição de uma postura mais dialógica da equipe com os usuários; rediscussão do modelo excessivamente biológico da medicina; e adoção de maior responsabilidade política e ideológica dos gestores.77 Barros de Souza A, Da Silva LC, Das Neves Alves R, Jacinto Alarcão AC. Fatores associados à ocorrência de violência obstétrica institucional: uma revisão integrativa da literatura. Rev Ciênc Méd. 2017; 25 (3): 115-28. Para vencer o medo é preciso transformar a educação profissional e as relações estabelecidas nos contextos de saúde. É importante desfazer o cenário de normatização da VO na assistência à saúde da mulher para que isso não se torne prática comum e situações despercebidas ou ignoradas pelos futuros profissionais.

References

  • 1
    Katz L, Amorim MM, Giordano JC, Bastos MH, Brilhante AVM. Who is afraid of obstetric violence?. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2020; 20 (2): 623-6.
  • 2
    Sesc FPA. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado [Internet]. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado. 2010 [cited 2019 Jan 9]. p. 301. Available from: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf
    » https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf
  • 3
    Palma CC, Donelli TMS. Violência obstétrica em mulheres brasileiras. Psico. 2017; 48 (3): 216-30.
  • 4
    Simone Grilo Diniz, Heloisa de Oliveira Salgado, Halana Faria de Aguiar Andrezzo, Paula Galdino Cardin de Carvalho, Priscila Cavalcanti Albuquerque Carvalho, Cláudia de Azevedo Aguiar, Denise Yoshie Niy. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in Brazil: Origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. J Hum Growth Dev. 2015; 25 (3): 377-82.
  • 5
    Costa FD, Azevedo RCS. Empatia, relação médico-paciente e formação em medicina: um olhar qualitativo. Rev Bras Educ Med. 2010; 34 (2): 261-9.
  • 6
    Sens MM, De Faria Stamm AMN. Physicians' perception of obstetric or institutional violence in the subtle dimension of the human and physician-patient relationship. Interface Commun Heal Educ. 2019; 23: 1-16.
  • 7
    Barros de Souza A, Da Silva LC, Das Neves Alves R, Jacinto Alarcão AC. Fatores associados à ocorrência de violência obstétrica institucional: uma revisão integrativa da literatura. Rev Ciênc Méd. 2017; 25 (3): 115-28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2020
  • Revisado
    06 Jan 2021
  • Aceito
    01 Fev 2021
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