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Assistência ao parto e inadequação da rede de atenção obstétrica em Pernambuco

Resumo

Objetivos:

saber o local onde irá ocorrer o parto é um direito da gestante no Brasil e uma estratégia de organização da rede de atenção obstétrica. Este estudo tem como objetivo avaliar a distribuição dos partos dos nascidos vivos (NV) da Gerência Regional de Saúde (GERES) I do Estado de Pernambuco em 2012.

Métodos:

a partir das Declarações de Nascidos Vivos, foram investigados deslocamentos do município de residência da mãe e de ocorrência do parto. Foram construídos mapas de fluxo para o Recife e estimado o número esperado de NV com parto de risco habitual e de alto risco para os municípios da GERES I.

Resultados:

em 2012 apenas 50% dos NV da GERES I nasceram no município de residência da mãe. Em Recife ocorreram 1,5 vezes o número de partos esperados para o ano, sendo 56% de mães não residentes. Onze municípios da GERES I têm maternidade, mas nenhum responde ao volume esperado de partos de risco habitual.

Conclusões:

esta desestruturação da rede obstétrica viola o direito da mulher de saber com antecedência e construir vínculo com o local do parto. Alguns municípios da GERES I realizam menos partos do que o esperado, levando a transferências desnecessárias e a super-lotação das maternidades do Recife.

Palavras-chave:
Assistência ao parto; Regionalização; Acesso aos serviços de saúde; Distribuição espacial da população

Abstract

Objectives:

this study aims to evaluate parturition distribution of live-born children within the First Health Regional Administration (GERES I) in the state of Pernambuco, Brazil in 2012.

Methods:

live Birth Certificates were used to evaluate displacements between pregnant women's residential municipalities and birth localities. Flux maps were constructed to represent pregnant women transferred to Recife, and the estimated number of live-borns with high-risk and regular births was calculated for each municipality.

Results:

in 2012, only 50% of the births of live babies in the GERES I took place at the original residential municipality of the mother. In Recife, the number of childbirths was 1.5 times greater than expected for this year, with 56% representing non-residents. Eleven municipalities of the GERES I have maternity hospitals, however, none of these responded to the expected number of regular risk births.

Conclusions:

this disruption of the obstetric network leads to the disrespecting of women's right to know beforehand the place of childbirth and to create bonds with it. Municipalities perform fewer childbirths than expected, resulting in unnecessary transfers and the overloading of maternity hospitals in Recife.

Key words:
Birth; Regional health planning; Health services accessibility; Residence characteristics

Introdução

Uma estratégia para melhorar a distribuição dos partos no território é a descentralização, que compõe as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). É direito garantido por lei o estabelecimento de um vínculo, durante o pré-natal, da gestante com serviço de obstetrícia no qual vai ocorrer o parto.11 Brasil. Lei nº 11.634, de 27 de dezembro de 2007. Sobre o direito da gestante ao conhecimento e vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 28 dez 2007; Seção 1.

A regionalização da assistência ao parto deve estruturar-se por meio da descentralização. No Brasil, essas iniciativas são recentes, configurando disparidades entre as coberturas de assistência pré-natal e a rede de assistência ao parto e nascimento, ainda insuficiente para a demanda. Na ausência de regionalização efetiva ocorre um fluxo desordenado de gestantes, levando à peregrinação das mulheres em busca de um local para o parto.22 Cunha SF, Júnior ADE, Rios CTF, Pestana AL, Mochel EG, Paiva SS. Peregrinação no anteparto em São Luís - Maranhão. Cogitare Enferm. 2010; 15 (3): 441-47.

Na definição da rede de atenção obstétrica cabe ao município, por meio da atenção básica, garantir assistência pré-natal e ao parto de risco habitual, assegurando o encaminhamento das gestantes de alto risco às unidades de complexidade adequada ao atendimento. Desta forma o município desempenha um papel primordial na manutenção do sistema como rede integrada. A demanda referente ao alto risco fica reservada aos serviços especializados que incorporam maior tecnologia.33 Santos MAS, Cruz JB, Silva VR. Desafios da regionalização da assistência à gestante e ao parto na V GERES, Garanhuns, Pernambuco. Journal of Management and Primary Health Care. 2011; 2 (2): 11-4.

As redes regionalizadas de atenção obstétricas devem orientar o processo de descentralização e integração das ações e serviços de saúde. A regionalização deve ser o eixo estruturante da gestão, como definido pelo Pacto pela Vida, em Defesa do SUS e da Gestão.44 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes Operacionais dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Brasília, DF; 2006. Nesse modelo, cada regional de saúde deve ser autossuficiente no mínimo até a média complexidade, através de processos de negociação e pactuação entre gestores. O Programa Mãe Coruja, criado para a redução da morbimortalidade materna e infantil no Estado, previa a (re)estruturação da assistência obstétrica dentro de cada Gerência Regional de Saúde (GERES). Estas estão agrupadas em quatro macrorregiões, tendo-se como pressu-posto que deveriam responder internamente à demanda das gestantes de alto risco55 Pernambuco. Lei nº 13.959 de 15 de dezembro de 2009. Programa Mãe Coruja Pernambucana. Diário Oficial do Estado de Pernambuco 16 dez 2009; Seção 1. com a, consequente, diminuição dos deslocamentos para o parto.

Além disso, o local ideal para o parto é aquele escolhido pela mulher, que seja seguro e com o qual ela possa construir um vínculo durante a gestação. As gestantes de risco habitual devem preferencialmente dar à luz em serviços próximos a sua residência, possibilitando o acompanhamento do companheiro, familiares e amigos, evitando os riscos de longos deslocamentos.11 Brasil. Lei nº 11.634, de 27 de dezembro de 2007. Sobre o direito da gestante ao conhecimento e vinculação à maternidade onde receberá assistência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 28 dez 2007; Seção 1.

Como estratégia para diminuir deslocamentos desnecessários e organizar o fluxo de gestantes para diminuir deslocamentos desnecessários e organizar o fluxo de gestantes para os serviços disponíveis mais próximos à mulher de acordo com o nível de complexidade requerido, foi criada a Central de Regulação de Leitos. Ela integra a gestão da atenção obstétrica do estado de Pernambuco e regula gestantes de todo o seu território.66 Pernambuco. Secretaria Estadual de Saúde. Manual Operacional - Central de Regulação de Leitos. Recife, PE; 2014.

Em 2011, foi lançada pelo Ministério da Saúde a estratégia Rede Cegonha, objetivando melhorar a atenção às mulheres e seus recém-nascidos, fundamentada nos princípios da humanização da assistência. Propõe-se ampliar o acesso, o acolhimento e melhoria da qualidade do pré-natal; vincular a gestante à unidade de referência para assistência ao parto; realizar o parto e nascimento seguros através de boas práticas.77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011. Institui - no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Diário Oficial da União 27 jun 2011; Seção 1. Contudo, em Pernambuco, a rede ainda se encontra em processo de implementação.

A Rede Cegonha segue a lógica da regionalização88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 650, de 05 de outubro de 2011. Dispõe sobre os Planos de Ação regional e municipal da Rede Cegonha. Diário Oficial da União 6 out 2011; Seção 1. no Estado de Pernambuco. O Recife, capital do Estado, é sede da Macrorregional I e concentra os hospitais de alto risco obstétrico. Assim, deveria receber as gestantes de alto risco (estimado pela Organização Mundial de Saúde em 15% de todas as gestações) dos municípios das GERES I, II, III e XII, que compõem a Macrorregional. Além disso, deve realizar os partos de suas mulheres de risco habitual. O objetivo desse estudo é descrever a distribuição dos partos dos nascidos vivos da GERES I do Estado de Pernambuco em 2012 e os deslocamentos feitos pelas mulheres na ocasião do parto. A hipótese é que a superlotação dos serviços de obstetrícia do Recife decorre não apenas da transferência das gestantes de alto risco dos outros municípios da Macrorregional, mas principalmente pelo encaminhamento inadequado das maternidades de risco habitual na própria GERES I, que acaba levando as mulheres a parir na capital.

Métodos

Trata-se de um estudo do tipo ecológico de base populacional, tendo como unidade de análise o município, realizado a partir das declarações de nascidos vivos (DNV), de mulheres residentes em Pernambuco, registrados no Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC) com nascimento de 01/01/2012 a 31/12/2012. A área de estudo foi a Macrorregional de Saúde I que inclui as Gerências Regionais de Saúde (Geres) I, II, III e XII do Estado. A população de estudo foi composta por todas as mulheres residentes na área de estudo com nascidos vivos no período descrito. Foram investigados os municípios de residência da mãe e de ocorrência do parto. Os NV de mães residentes nos municípios da GERES I foram categorizados como nascidos no município de residência ou fora dele.

A capacidade de realização de partos pelos municípios foi definida pelo número de partos efetivamente realizados, independentemente do município de residência de origem das mulheres. Também foi calculado o número de NV de alto risco e risco habitual por município, considerando os parâmetros de 15% e 85% do número total, respectivamente.88 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 650, de 05 de outubro de 2011. Dispõe sobre os Planos de Ação regional e municipal da Rede Cegonha. Diário Oficial da União 6 out 2011; Seção 1. Para esse cálculo foram considerados os NV de mães residentes daquele município, independentemente do município em que ocorreu o nascimento. Para cada município da GERES I, exceto o Recife, foi aplicado o teste de qui-quadrado, para avaliar se houve diferença significativa entre o número de RN de alto risco estimado e o número de RN nascidos ocorrido no Recife.

Para demonstrar o deslocamento das gestantes dos seus municípios de residência para o local de ocorrência dos partos, foram construídos mapas de fluxo do deslocamento com o programa ArcGIS 9.3. Os mapas de fluxo representam o movimento de pessoas no espaço, demonstrando o sentido e a grandeza do movimento estudado por meio de vetores traçados sobre o itinerário percorrido.99 Melo ECP, Knupp VMAO, Oliveira RB, Tonini T. A peregrinação das gestantes no Município do Rio de Janeiro: perfil de óbitos e nascimentos. Revista da Escola de Enfermagem da USP. 2007; 41: 804-9. No presente estudo o fluxo foi caracterizado quantitativamente por meio de espessuras proporcionais, possibilitando a identificação do volume do tráfego entre o município de residência e o local do parto. Como o percurso intermediário não era verificável com os dados do SINASC foram utilizados somente a origem e os destinos finais.

Foram feitos dois mapas, o primeiro representa os deslocamentos que ocorreram dos municípios de residência para o local de ocorrência do parto. O segundo, coteja o volume de partos ocorridos com o esperado para o Recife - sede da macrorregião I e referência para o alto risco, que representariam 15% de NV de alto risco de mães residentes nos demais municípios.

Os municípios identificados com mais de 300 NV de risco habitual de mães residentes no ano foram considerados como adequados à existência de serviços de assistência ao parto. Segundo critérios internacionais, a existência de serviços que realizam abaixo de 300 partos por ano não se justifica em termos financeiros e operacionais, a não ser em municípios de acesso muito difícil.1010 Schramm JMA, Szwarcwald CL, Esteves MAP. Assistência obstétrica e risco de internação na rede de hospitais do Estado do Rio de Janeiro. Rev Saúde Pública. 2002; 36 (5): 590-7.

Resultados

No ano estudado nasceram 46.072 NV no Recife, 20.126 (44%) de mães residentes, quando seriam esperados 31.606 NV (somados o alto risco e o risco habitual de residentes). Por outro lado, do total de 22.641 NV de mulheres residentes no Recife, 2.515 (11%) ocorreram fora do município. Do total de partos de NV ocorridos no Recife, 62% (28.558) foram na rede SUS. A Figura 1 mostra o número de partos de NV ocorridos e esperados no Recife segundo a GERES de residência da mãe em Pernambuco.

Em 2012, o Recife respondeu a 88,9% da demanda de partos de nascidos vivos de mães residentes. Dos partos de mulheres recifenses ocorridos fora da cidade 95% (2.386) foram em maternidades da rede SUS. A maioria foi encaminhada para unidades de saúde localizadas em Olinda ou Jaboatão dos Guararapes. Olinda recebeu 4,7% dos NV de mães residentes no Recife e Jaboatão 3%. Os demais municípios da GERES I receberam 3%, enquanto 0,6% nasceram fora da GERES ou do próprio estado.

Figura 1
Número de nascidos vivos esperados e ocorridos no Recife por GERES de residência da mãe, 2012.

Dos 59.479 nascidos vivos registrados no SINASC de mães residentes na GERES I apenas 50% (29.712) nasceram no município de residência da mãe. Considerando que o esperado para alto risco corresponde a 15%8 estimou-se 8.921 nascidos vivos de alto risco e 55.557 de risco habitual. Dentre os NV na rede do SUS o volume de nascimentos ocorridos excedeu o que seria esperado baseado em critérios de risco (Figura 2).

Figura 2
Número de nascidos vivos esperados e ocorridos no Recife por GERES de residência da mãe, 2012.

Dos vinte municípios da GERES I, nove tiveram menos de 300 NV de mães residentes: Igarassu, Glória do Goitá, Pombos, Itapissuma, Araçoiaba, Chã Grande, Ilha de Itamaracá, Chã de Alegria e Fernando de Noronha. Para todos esses municípios, exceto Igarassu, o número esperado de NV de mães residentes também era inferior a 300 NV.

O município de Igarassu teve 1.516 NV de mães residentes, dos quais 1.289 são estimados de risco habitual. Ocorreram no município apenas 31 partos no ano de 2012, dos quais 25 eram de mães residentes. Os municípios de Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Paulista, Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Vitória de Santo Antão, Ipojuca, São Lourenço da Mata, Abreu e Lima e Moreno têm maternidades de risco habitual. Porém, nenhum desses municípios atendeu aos 85% do número estimados de nascidos vivos de risco habitual de mães residentes, ainda que alguns realizem número superior ao esperado (Figura 3).

Figura 3
Número de nascidos vivos de risco habitual esperado por município de residência da mãe, número de nascidos vivos ocorridos por residência da mãe e total de nascidos vivos por municípios da GERES I. Pernambuco, 2012.

Os Mapas de Fluxo (Figura 4) mostram o deslocamento de gestantes residentes em municípios da GERES I para o Recife. O Mapa I demonstra os deslocamentos efetivamente realizados e o Mapa II evidencia os deslocamentos esperados por alto risco (15% dos NV de mães residentes de cada município). O número de NV ocorridos no Recife de mães residentes na GERES I, excluindo o Recife, foi significativamente superior ao esperado para alto risco, exceto para Pombos e Chã de Alegria (Tabela 1).

Figura 4
Mapa I: Deslocamentos das mães da GERES I para o Recife, local onde ocorreram os nascimentos vivos. Pernambuco, 2012. Mapa II: Deslocamentos esperados de Alto Risco (15% dos NV de mães residentes de cada município da GERES). Pernambuco, 2012.

Tabela 1
Número de nascidos vivos ocorridos no Recife e número de nascidos vivos de alto risco estimados por município da GERES I, com o valor de p, por município de residência da mãe. Pernambuco, 2012.

Discussão

O município de Recife em 2012 fez 46% a mais do que o esperado de partos de NV para a sede da Macrorregional I, apesar de ter realizado apenas 89% dos partos de NV de mães residentes no município. Ainda, Recife recebeu 43% do total das mulheres de risco habitual que deveriam ter sido atendidas em seus municípios de residência, além de mulheres de outras Macrorregionais de Saúde do Estado. Dentre os doze municípios com número de nascidos vivos que justificava a existência de serviço de atenção obstétrica, apenas um não dispunha. Apesar de terem serviços próprios que realizaram partos em maior número do que esperado para o risco habitual, nenhum deles respondeu à própria demanda.

Uma das limitações do presente estudo é que a análise dos deslocamentos contemplou apenas o local de residência e o local de ocorrência do parto, não permitindo identificar dificuldades no acesso às maternidades e a peregrinação das mulheres até o local do parto. Estudo realizado em 2013 para avaliar a peregrinação das mulheres pernambucanas, entrevistou 618 puérperas residentes em 123 municípios com partos em maternidades de alto risco do Recife, evidenciou que a metade das mulheres estudadas teve que buscar assistência em duas maternidades para ser efetivamente admitidas em maternidade; 11,5% procuraram três ou mais.1111 Pinheiro HDM. Do domicilio ao parto: avaliação do acesso às maternidades de alto risco da cidade do Recife - PE [dissertação]. Recife: Programa de Pós-graduação Integrado em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco; 2014. Pesquisa de abrangência nacional,1212 Viellas EF, Domingues RMSM, Dias MAB, Gama SGN, Theme Filha MM, Costa JV, Bastos MH, Leal MC. Assistência pré-natal no Brasil. Cad Saúde Pública. 2014; 30 (1): S85- S100. realizada entre 2011-2012, documentou que a peregrinação no momento da internação para o parto foi mais frequente entre as mulheres residentes na Região Nordeste do país.

A rede de atenção obstétrica da Macrorregional I deveria oferecer serviços de atenção ao parto às mulheres que nela residem, adequados ao nível de complexidade do parto e à proximidade do local de residência das mulheres. O estabelecimento de redes de atenção à saúde melhora a qualidade dos serviços, os indicadores de saúde e a satisfação dos usuários, além de reduzir custos do sistema de saúde.1313 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciência & Saúde Coletiva. 2010; 15 (5): 2297-2305. A definição de redes integradas pressupõe que os serviços de atenção primária, sítio principal da atenção pré-natal, façam a coordenação do fluxo do cuidado,1414 Cecilio LCO, Andreazza R, Carapinheiro G, Araújo EC, Oliveira LA, Andrade MGG, Meneses CS, Pinto NRS, Reis DO, Santiago S, Souza ALM, Spedo AM. A Atenção Básica à Saúde e a construção das redes temáticas de saúde: qual pode ser o seu papel? Ciênc Saúde Coletiva. 2012; 17 (11): 2893 -2902. com definição efetiva de sistemas de referência e contrarreferência para assegurar a integralidade.

No modelo de organização proposto para a rede SUS do Recife os partos de risco habitual deveriam ocorrer nas maternidades da rede municipal. Ressalta-se que nesses serviços 40% dos partos realizados foram de mulheres não residentes, evidenciando que a rede municipal do Recife atende mulheres de risco habitual de outros municípios. Paradoxalmente, essa rede deixou de atender às mulheres residentes com partos de risco habitual, deslocando estas aos serviços de alta complexidade ou para fora do município. Essa inadequação no referenciamento leva à superlotação desnecessária das maternidades do Recife, principalmente aquelas de alto risco que deveriam ser exclusivas para os casos de maior complexidade.

Seria adequado transferir para o Recife apenas as mulheres de alto risco residentes nos dezenove municípios da GERES I, porém foi atendido número três vezes maior do que seria esperado para o alto risco. Tais transferências seriam aceitáveis apenas para os oito municípios com número esperado de nascimento que não justifica a existência de serviço de assistência obstétrica.1010 Schramm JMA, Szwarcwald CL, Esteves MAP. Assistência obstétrica e risco de internação na rede de hospitais do Estado do Rio de Janeiro. Rev Saúde Pública. 2002; 36 (5): 590-7.

Ressalte-se que metade das mulheres da GERES I tiveram seus filhos fora do município de residência, o que evidenciou a desestruturação da rede. Além disso, mulheres de outras Macrorregionais de Saúde tiveram partos na capital, o que não deveria ocorrer, visto que cada Macrorregional deveria absorver a totalidade dos nascimentos. Em 2013, pesquisa realizada no Recife evidenciou que oitenta por cento das puérperas entrevistadas não tiveram seus partos nas maternidades que haviam sido indicadas no pré-natal.1111 Pinheiro HDM. Do domicilio ao parto: avaliação do acesso às maternidades de alto risco da cidade do Recife - PE [dissertação]. Recife: Programa de Pós-graduação Integrado em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco; 2014.

Normas estabelecidas pela Central de regulação de leitos do Estado de Pernambuco admite a transferência de mulheres de risco habitual para outra unidade no mesmo nível de complexidade ou para unidades de atendimento ao alto risco, quando da "falta de equipamentos ou equipe incompleta". 6 É possível que o volume de partos de risco habitual realizado em unidade com complexidade inadequada seja resultado da precarização da rede do SUS.1515 Assunção MF, Soares RC, Serrano I. A Superlotação das Maternidades em Pernambuco no contexto atual da Política de Saúde. Serviço Social em Revista. 2014; 16(2): 05-35. As inúmeras situações que levam a restrição de admissão aos serviços de atenção ao parto causam a subutilização de leitos obstétricos de risco habitual e gastos públicos desnecessários para manutenção de serviços que não utilizam toda a sua capacidade. Por outro lado, serviços que estão funcionando normalmente ficam superlotados, com diminuição da qualidade da assistência e peregrinação de mulheres em busca de um local para dar à luz.33 Santos MAS, Cruz JB, Silva VR. Desafios da regionalização da assistência à gestante e ao parto na V GERES, Garanhuns, Pernambuco. Journal of Management and Primary Health Care. 2011; 2 (2): 11-4. A restrição de serviços de alto risco só pode ser estabelecida em situações excepcionais.66 Pernambuco. Secretaria Estadual de Saúde. Manual Operacional - Central de Regulação de Leitos. Recife, PE; 2014. Um sistema eficaz de regulação e referência, assim como protocolos clínicos de avaliação de risco, reduziria essa distorção no acesso.1616 Menezes DCS, Leite IC, Schramm JMA, Leal MC. Avaliação da peregrinação anteparto numa amostra de puérperas no Município do Rio de Janeiro, Brasil, 1999/2001. Cad Saúde Pública. 2006; 22 (3): 553-9.

Um dos caminhos para diminuir a superlotação dos serviços de atenção ao parto no Recife é garantir o funcionamento permanente das maternidades de risco habitual de toda GERES I. As transferências de gestantes de risco habitual se justificariam apenas para os municípios com menos de 300 NV de mães residentes. Seria recomendável o estabelecimento de uma maternidade de risco habitual no município de Igarassu, pois a demanda existente sobrecarrega serviços de outros municípios, em especial do Recife. Por meio do estudo do fluxo dos usuários é possível identificar problemas de acesso em áreas com poucos serviços, oportunidades de desconcentração e alternativas para regionalização,9 situações evidenciadas na área estudada.

Os achados evidenciaram que o vínculo das gestantes com serviços próximos da residência foram secundarizados. Estudo realizado no Rio de Janeiro apontou que a avaliação de satisfação das mulheres em relação ao atendimento no parto estava associada principalmente a conseguir uma vaga para internação.1717 Dias MAB, Deslandes SF. Expectativas sobre a assistência ao parto de mulheres usuárias de uma maternidade pública do Rio de Janeiro, Brasil: os desafios de uma política pública de humanização da assistência. Cad Saúde Pública. 2006; 22 (12): 2647-55. Saber o local onde vai ocorrer o parto, além de ser um direito, é uma forma de dar maior tranquilidade à gestante. A criação de vínculo entre as gestantes e um serviço de atenção ao parto durante o prénatal também aumenta a cobrança social para que os municípios se responsabilizem em assegurar a atenção ao parto de risco habitual.22 Cunha SF, Júnior ADE, Rios CTF, Pestana AL, Mochel EG, Paiva SS. Peregrinação no anteparto em São Luís - Maranhão. Cogitare Enferm. 2010; 15 (3): 441-47.

Segundo Mendes,1313 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciência & Saúde Coletiva. 2010; 15 (5): 2297-2305. as redes de atenção à saúde são organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, com uma missão única, objetivos comuns e uma ação cooperativa e interdependente. Oferecendo assim uma atenção contínua e integral, prestada em local e tempo oportuno, com custo e qualidade adequada e de forma humanizada.1313 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciência & Saúde Coletiva. 2010; 15 (5): 2297-2305. Faz-se necessária uma efetivação da rede de atenção obstétrica regionalizada na área estudada por meio do fortalecimento de pactuações entre gestores municipais, uma melhor distribuição dos serviços de atenção obstétrica e um sistema mais eficiente de referência para os municípios próximos.

Os resultados desse estudo mostraram uma desestruturação da rede obstétrica na GERES I do estado de Pernambuco. Essa desestruturação leva à superlotação das maternidades do Recife, tendo como consequência a violação do direito das mulheres de saberem com antecedência o serviço de saúde onde irá ocorrer o seu parto e construir vínculo com o mesmo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Jan 2016
  • Revisado
    08 Nov 2016
  • Aceito
    21 Dez 2016
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