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É preciso correr riscos

O simpático convite de Fábio Frezatti, com quem convivi quando fui diretor de Avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes e ele militava na representação de sua área, levou-me a pensar sobre a formação hoje oferecida pelos cursos de pós-graduação, de modo geral, sem realçar nenhuma área em particular. Penso formular algumas questões delicadas, mas que me parecem imprescindíveis. Já faz um tempo que seguimos um modelo que teve e conserva méritos, mas que precisa ser repensado. O que direi se refere à pós-graduação e toda a pesquisa científica hoje realizada no Brasil.

O que mais me chama a atenção é que, enquanto aumenta o número de titulados nos níveis de doutor e mestre, a qualidade da maioria das teses ou dissertações deixa muito a desejar. O próprio culto ao doutorado direto, mais frequente nas instituições de ensino superior mais bem avaliadas, e em especial nos programas de exatas e biológicas, abrevia demais o período propriamente de formação de quem deveria no futuro ser um pesquisador, e cada vez menos o será. Segundo ponto, os alunos fazem um esforço, por vezes descomunal, durante os cursos, a pesquisa e a redação do trabalho final, despendendo energia e tempo demais para um resultado que acaba ficando aquém do esperado. (Recomendo a leitura da crônica de Mario Prata (2014)Prata, M. (2014, 21 de novembro). Uma tese é uma tese Blog]. Recuperado de http://marioprata.net/cronicas/uma-tese-e-uma-tese/.
http://marioprata.net/cronicas/uma-tese-...
, "Uma tese é uma tese", em que ele ridendo castigat mores – pelo riso critica um costume). Muitos suspendem a vida pessoal, se atormentam, para ao fim das contas redigirem uma dissertação ou tese que mal vale a pena ler, e que com frequência fica aquém do que o próprio mestre ou doutor, conversando, contava de sua pesquisa – e que ele não consegue colocar no papel. Lembro uma frase de Rousseau sobre os pregadores de seu tempo, que se esgoelavam, para mal conseguirem ser ouvidos: por que tanto gasto de energia para tão pouco resultado?

Não desmereço o que a pós-graduação faz. Ela forma uma quantidade significativa de profissionais atualizados com a boa literatura de suas áreas. Mas me pergunto qual a qualidade e a finalidade dessa formação. Cada vez se formam menos pesquisadores originais. A tendência de toda escola – de pensamento ou simplesmente de ensino – é engendrar o conformismo. Quando usamos o termo "massa crítica", designando os professores e de modo geral os mestres e doutores de uma área, queremos dizer que há uma quantidade tal de gente bem qualificada que se torna possível a produção de conhecimento novo. Mas o problema é que essa própria quantidade foi titulada dentro de condições que mais tendem a reproduzir o vigente do que a incentivar sua contestação. Daí que se produz, muitas vezes, novo conhecimento, mas não conhecimento novo. O mesmo vale para os sistemas de pareceres. Um parecer, especialmente o duplo-cego, em que o autor não sabe quem dará o parecer sobre seu texto, e o parecerista não sabe quem é o autor do artigo, tornou-se praxe em todas as áreas. Tem suas enormes vantagens – é ocioso discorrer sobre elas. Contudo, justamente por se esperar que aqueles que dão pareceres sobre artigos, auxílios ou bolsas sejam pesquisadores consagrados, torna-se difícil crer que aceitem tomadas de posição contrárias às teorias predominantes em sua respectiva área do conhecimento. A diferença entre um parecer rigoroso que abre espaço para hipóteses ou teorias novas, e outro aparentemente rigoroso, mas que se prende à ortodoxia do que hoje prevalece, depende exclusivamente do caráter ético – ou não – do parecerista. Depende quase que estritamente de ele aceitar a divergência, alimentar oposições, acreditar que não tenha a última palavra. Essa qualidade pouco ou nada tem a ver com sua qualificação científica. O sistema falha, assim, no que seria um de seus principais alvos, a abertura para o novo. É verdade que novas ideias surgem constantemente, mas o problema é que a aptidão do sistema para admitir, ou sequer tolerar ideias que subvertam o statu quo científico é mínima. Ele não foi programado para isso.

Assim, justamente quando a "massa crítica" emerge e se torna possível uma autonomia da comunidade de uma determinada ciência é que o perigo do conformismo a ronda mais de perto. Isso significa que os alunos terão todo o interesse em repetir o que já está dado, e pouco em romper com o statu quo. Teses audazes se tornam perigosas para seus autores. E com isso se disseminam teses que não têm tese. "Tese" não é apenas o nome de um produto que uma banca valida. É uma palavra que vem do grego e que se traduz pelo nosso informal "colocação". Você afirma, coloca uma determinada ideia, que é mais do que uma hipótese (o grego "hipo", no caso, quer dizer fraco) porque foi justificada, sustentada, testada por você. Mas quantas teses hoje têm ou são teses? Por exemplo, em várias áreas foi aconselhado pela direção da Capes que uma seleção de artigos do doutorando, aceitos em revistas científicas, bastasse como tese de doutorado. Mas não são esses artigos publicados em coautoria? Ou seja, o pós-graduando, autor, é mesmo o principal autor deles, ou um dentre vários autores, provavelmente subordinado a seu orientador? Um título assim obtido corresponde efetivamente a uma maioridade intelectual? Há uma ideia motriz neles, uma afirmação forte? Não estou nem pensando em maturidade intelectual. Distingo o doutorado, que conferiria cidadania ou maioridade intelectual, da maturidade, mais exigente, que pode corresponder no sistema estadual paulista à livre-docência, e no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq à bolsa de produtividade de pesquisa em seus níveis superiores. Mas mesmo nestes patamares o receio do risco é elevado.

Some-se que cada vez mais se estimula a pesquisa em grupo. Nas áreas que compartilham recursos caros, como laboratórios científicos, a investigação científica dificilmente se faria sem ser em equipe. Ora, dado que tais grupos têm uma hierarquia, fica ainda mais difícil o atrevimento intelectual. Já vi uma das maiores pesquisadoras brasileiras referir-se a um professor livre-docente, bolsista de pesquisa do CNPq, como "aluno" ou "orientando". Se com essa titulação e reconhecimento ele não tem autonomia, o que esperar dos doutores? Nas próprias áreas de Humanas, onde as condições materiais de trabalho exigem menos a pesquisa em equipe, o trabalho solo é cada vez mais mal visto. Parece expressar uma deficiência. Ora, tudo isso torna muito difícil a pesquisa inovadora. Sinal claro disso é o próprio desvio da palavra "inovação", que deveria ser a meta, o cerne, a libido de toda pesquisa – mas acabou se tornando a prima pobre da tecnologia, aquela que traduz as novidades tecnológicas no chão de fábrica. Isso, talvez, porque nosso sistema não quer inovação de verdade. Ou porque, apesar de declarações em contrário, ele se estrutura cada vez mais de modo a inibir o que sejam inovações.

Com isso, estamos numa certa encruzilhada. Cada vez mais a formação de mestres e doutores caminha no sentido de um "treinamento", para usar o termo que a Capes empregava em seus inícios e que foi alvo de críticas bemhumoradas do historiador Fernando Antonio Novais – que dizia a colegas seus: "eu acredito na formação, vocês no treinamento". Um termo também utilizado e que compartilha essa redução nas ambições é o de "capacitação". Lembro que, a pedido das comissões de ética do Poder Executivo, organizei uma série de palestras sobre ética quando fui diretor da Capes, baseando-me em doze programas que criei para a TV Futura1 1 Foi em 2008. As duas séries – “Dilemas éticos" e “Liberdades" – estão disponíveis no site www.futuratec.org, bem como em canais do YouTube. Eu estava quase certo de que seria demitido tão logo organizasse a palestradebate sobre liberdade no ambiente de trabalho... . De acordo com os conceitos da administração pública, decidiu-se que a série constituiria uma "capacitação" em ética, coisa que acho francamente impossível. Mas então, por um lado, temos o universo das capacitações e treinamentos, que é absolutamente merecedor de nosso respeito dentro de suas respectivas definições, mas que acresce informação que não contesta nossa posição de sujeito.

A diferença real entre informação e formação – o outro lado da formação acadêmica, aquela que deveria ser fundamental nos "anos de formação"2 2 Referência ao romance Wilhelm Meisters Lehrjahre, que se pode traduzir como “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", ou ainda seus anos de formação. da pessoa - para usar a expressão de Goethe (1994)Goethe, J. W. (1994). Wilhelm Meisters Lehrjahre. São Paulo: Ed. 34. – é que, nesta, se põe em xeque o sujeito. Se, por exemplo, aprendo a utilizar a planilha Excel e a apresentação PowerPoint, isso me agrega competências (ou "abilities", como alguns preferem dizer por vezes em português). Estou no plano da informação adquirida. Agora, se o mesmo curso que me capacita a utilizar esses úteis instrumentos questionar de que modo me torno um professor diferente ao usar o PowerPoint, como isso altera as relações em classe, para o melhor ou mesmo para o pior (por exemplo, tornando o saber assim transmitido inconteste, inibindo discussões e mesmo, como diz Nelson Maculan, adormecendo as pessoas, dada a penumbra conveniente às projeções), o curso estará lidando com a formação. Não há formação se você não põe em jogo a posição do sujeito. Ou a planilha: se ela acelera seus cálculos, se ela permite que você veja melhor o panorama das questões em jogo, se ela – sobretudo – facilita o confronto de diversos cenários possíveis, e se você utiliza intensivamente essa capacidade de simular as diversas opções a escolher, o que você está aprendendo não é apenas uma técnica, mas é uma mudança – a meu ver altamente positiva – na sua posição de sujeito do conhecimento e da ação.

Mas, por isso mesmo, se nosso ideal acabou sendo o excelente aluno, o aluno forever, o perpétuo adolescente brilhante, que domina todos os referenciais e constantemente reitera a posição tornada aceite mas nunca se tornará adulto, nunca contestará os valores estabelecidos, estará havendo autonomia? Estará havendo formação? Penso aqui numa expressão que li muitas vezes no debate entre economistas, uns deles de elevada estatura acadêmica e profissional, no qual alguns diziam que se um aluno seu sustentasse determinada posição – que justamente era defendida por economistas de linha oposta – ele o "reprovaria". Esse topos discursivo implica ver a divergência como erro. A divergência tem estatuto acadêmico. Na verdade, ela é um dos principais ingredientes da melhor vida acadêmica. Na própria Idade Média, tão desmerecida, e em especial na filosofia escolástica, ainda mais desmerecida porque ficou associada a uma imagem de algo paralisado, a disputatio era um momento crucial da vivência universitária.

Evidentemente, nem todos divergirão. Divergências de qualidade são poucas, e é normal que assim seja. Evidentemente, nem todo projeto contestador é bom. A maioria esmagadora não o é. Ou, como muitas vezes dissemos, não é porque Espinosa nada publicou em vida e ainda assim é um dos maiores filósofos da História, que toda pessoa que nada publicou será um grande pensador... Mas o problema é que nossos modelos, todos eles, apostam nas variações em torno do mesmo, com escassa abertura para a revolução científica ou mesmo, mais modestamente, para grandes descobertas. As narrativas de sucesso de grandes cientistas que lemos com frequência dizem respeito mais ao esforço deles, em especial para se internacionalizarem, por exemplo, mostrando como foi difícil se adaptarem ao campus norte-americano. Não são narrativas de aventura científica, são narrativas de superação. É como dizer que, apesar da pobreza, ou de ter como língua nativa o português ou o urdu, você "chegou lá". Com alguma maldade, eu diria que tais narrativas tangem a autoajuda. Mas não tocam no ponto crucial, que é uma cultura, ainda que somente para os unhappy few3 3 Infelizes, porque divergir não é fácil. Não ajuda a subir na carreira de maneira fulminante. , que indique claramente que divergir é bom.

Pode haver medidas concretas nesta direção. Em 2009, eu e Louis Maheu, da Universidade de Montreal, participamos de um encontro internacional sobre doutorados, em Kassel, na Alemanha. Desde então, revimos várias vezes um artigo que deve sair em breve numa publicação coordenada por Maresi Nerad e Elizabeth Rudd e que, dentro do tema mais amplo de "Intellectual Risk Taking in Doctoral Education", discute a questão dos "Challenges & Opportunities Embedded in University Institutional Arrangements and the Policy Arena Beyond Universities". Ou seja, procuramos ver como criar um ambiente tanto no quadro das instituições de ensino mais qualificadas quanto no plano das agências de governo que fortaleça a tendência a correr riscos entre os estudantes de doutorado. Não foi nem é consenso que doutorandos já devam correr riscos. Há quem pense que isso deve ficar para depois, com o doutorado funcionando como um momento de formação que credencia a pessoa, uma vez dominados os instrumentos, a – somente depois – afiá-los e utilizá-los com mais qualidade. Há quem considere difícil correr riscos sem o apoio do orientador, o que por sua vez implica uma redução dos riscos, já que este último tem um aval institucional mais forte do que seu aluno. Seja como for, o que pretendemos foi pelo menos mandar um sinal de que é possível ir além da redundância e de que propostas novas são bem-vindas.

Também, em várias ocasiões, tenho sugerido que haja nichos institucionais favorecendo pesquisas against the mainstream. Uma pequena fração das verbas licitadas nos mais variados editais das agências e das universidades poderia destinar-se a projetos, de orçamento relativamente baixo, que sejam de alto risco. Na verdade, o ideal é esperar que cerca de 80% dos projetos assim financiados não deem certo. Usei o itálico para não deixar dúvidas. Saberemos que um projeto é audaz, em parte, pela sua pequena chance de ter êxito. Como, obviamente, o dinheiro público deve ser tratado com especial carinho, as rubricas para projetos audazes de alto risco devem envolver recursos pequenos, tanto no montante global quanto para cada beneficiário. Este, por sua vez, deve ter provado sua força intelectual na arena de praxe, isto é, deve ter doutorado e mais alguma experiência significativa de realização. Estas são as âncoras sabiamente conservadoras da elegibilidade para a obtenção de recursos. Mas, isto posto, devemos investir em pessoas que, com esta qualificação, se proponham a testar hipóteses não ortodoxas. Os 80% que derem errado provavelmente darão certo em termos de formação de recursos humanos – o próprio pesquisador, que sairá mais maduro depois de um razoável fracasso, e seus eventuais colaboradores.

O que conta aqui é o espírito de correr mais riscos, de evitar a separação acentuada demais entre sujeito e objeto que temos visto na pesquisa científica, inclusive nas Humanas, onde em princípio a proximidade entre sujeito e objeto é maior (dificilmente você trabalha um tema que não mexa com sua psique – exceto, talvez, nas áreas de Humanas mais marcadas pela matematização). Precisa haver, no mundo acadêmico, espaço para isso. É verdade que a vida não é fácil para os gênios nem para os dissidentes. Se eles acabam encontrando seu caminho, foi em parte porque souberam enfrentar os obstáculos. E esta é uma razão para não se facilitar demais a divergência. Quem sai da trilha batida talvez não precise ser paternalizado. Pelo menos nós que discutimos a alta pesquisa devemos saber que o roteiro atual privilegia um certo conformismo, e que numa era em que cada vez mais a pesquisa depende do financiamento – até mesmo nas Humanas, que por longo tempo fizeram seu melhor trabalho sem o aval das agências de fomento – é preciso perceber os problemas em que vai dar a reprodução deste fenômeno. A continuarmos por essa via, corremos o risco da falta de risco, isto é, pode ser que decline a criação de conhecimento novo. É o que devemos evitar. Temos pesquisadores e alunos muito bons, que não podem ser inibidos em sua capacidade de percorrer novas trilhas.

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    Foi em 2008. As duas séries – “Dilemas éticos" e “Liberdades" – estão disponíveis no site www.futuratec.org, bem como em canais do YouTube. Eu estava quase certo de que seria demitido tão logo organizasse a palestradebate sobre liberdade no ambiente de trabalho...
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    Referência ao romance Wilhelm Meisters Lehrjahre, que se pode traduzir como “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", ou ainda seus anos de formação.
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    Infelizes, porque divergir não é fácil. Não ajuda a subir na carreira de maneira fulminante.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sept-Dec 2014
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