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O efeito dos traços dark triad na relação entre a pressão de obediência e a folga orçamentária* * Trabalho apresentado no Encontro da ANPCONT, dezembro de 2020. , ** ** Os autores agradecem à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PRPPG) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e à Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/MEC - Brasil) pelo apoio na realização desta pesquisa.

RESUMO

O objetivo deste trabalho foi avaliar o efeito dos traços de personalidade na relação entre a pressão de obediência e a criação de folga orçamentária. Concatenar os traços de personalidade dark triad e a pressão de obediência em um cenário de decisão com relação à criação de folga orçamentária permite ampliar a investigação de fatores associados à prática de folga orçamentária. A relevância deste estudo reside em compreender como traços de personalidade influenciam a tomada de decisões sob a pressão de obediência hierárquica ante a criação de folga orçamentária, permitindo mensurar e detectar possíveis vieses na tomada de decisão dos gestores devido a esses fatores, podendo, assim, prever ou amenizar decisões no ambiente organizacional. Verificou-se que a prática de criação da folga orçamentária pode ser realizada independentemente de uma ordem hierárquica e que traços de personalidade influenciam a tomada de decisões com relação à execução e planejamento dos orçamentos. O artigo contribuiu teoricamente para a área contábil, permitindo o avanço e o aprofundamento da discussão de aspectos sociais (teoria da obediência) e comportamentais (traços de personalidade) associados à tomada de decisão ante a criação de folga orçamentária. A abordagem é quantitativa, experimental (desenho fatorial 2 × 2), com 82 estudantes de ciências contábeis. Os dados foram analisados por testes de Mann-Whitney, Kruskal-Wallis e regressão logística binária. Constatou-se que indivíduos com altos traços de personalidade dark triad, independentemente de estarem sob pressão de obediência, foram mais propensos à criação de folga orçamentária, demonstrando que traços de personalidade intrínsecos de cada indivíduo têm efeito sobre a tomada de decisão. Contudo, quanto à pressão de obediência, verificou-se que não houve implicação significativa na criação de folga orçamentária. Esses resultados contribuem para as organizações, uma vez que seus gestores e equipes não praticam a folga devido a cenários de pressão por obediência, mas conforme os traços de personalidade.

Palavras-chave:
folga orçamentária; teoria da obediência de Milgram; dark triad; estrutura organizacional; assimetria informacional

ABSTRACT

The aim of this paper was to evaluate the effect of personality traits on the relationship between obedience pressure and the creation of budgetary slack. Concatenating the dark triad personality traits and obedience pressure in a decision-making scenario relating to the creation of budgetary slack enables us to widen the investigation of factors associated with the practicing of budgetary slack. The relevance of this study lies in understanding how personality traits influence decision making under hierarchical obedience pressure in relation to the creation of budgetary slack, enabling us to measure and detect possible biases in managers’ decision making due to these factors, thus being able to predict or mitigate decisions in the organizational environment. It was verified that the practice of creating budgetary slack can be carried out independently of a hierarchical order and that personality traits influence decision making with relation to the execution and planning of budgets. The article makes theoretical contributions to the accounting area, enabling the advancement and deepening of the discussion of social aspects (obedience theory) and behavioral aspects (personality traits) associated with decision making relating to the creation of budgetary slack. The approach is quantitative and experimental (2 x 2 factorial design), using 82 accounting sciences students. The data were analyzed using Mann-Whitney and Kruskal-Wallis tests and binary logistic regression. It was found that, independently of being under obedience pressure, individuals with high dark triad personality traits were more inclined toward the creation of budgetary slack, demonstrating that the intrinsic personality traits of each individual have an effect over decision making. However, regarding obedience pressure, it was verified that there was no significant effect on the creation of budgetary slack. These results offer contributions to organizations, as their managers and teams do not practice slack due to obedience pressure scenarios, but rather according to personality traits.

Keywords:
budgetary slack; Milgram’s obedience theory; dark triad; organizational structure; informational asymmetry

1. INTRODUÇÃO

O tema investigado versa sobre o orçamento empresarial e o comportamento humano e para tanto realizou-se o experimento com estudantes do curso de ciências contábeis, utilizando como base a obediência e traços de personalidade.

Um dos principais desafios enfrentados pelos gestores centra-se na perpetuidade empresarial; portanto, evitar a mortalidade requer desses profissionais, além do planejamento, controle e elaboração de orçamentos e compreensão de aspectos comportamentais e sociais de sua equipe e liderança, importantes aliados ao sucesso empresarial.

No quesito persuasão e influência de terceiros, a teoria da obediência de Milgram evidencia quão malévolo o ser humano pode ser quando está submetido à pressão advinda da ordem de um terceiro. Milgram argumenta que indivíduos se sentem menos responsáveis por ato cometido decorrente de uma ordem seguida (Milgram, 1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.).

Além da pressão de obediência, a decisão dos indivíduos de agir ou não levando em consideração suas convicções se relaciona com outras características pessoais, como os traços de personalidade desses. As escalas de traços de personalidade buscam inferir sobre a maneira como as pessoas se comportam diante de diversas situações de acordo com suas características peculiares, até mesmo de pressões de terceiros.

Paulhus e Williams (2002Paulhus, D. L., & Williams, K. (2002). The dark triad of personality: Narcissism, machiavellianism, and psychopathy. Journal of Research in Personality, 36(6), 556-563.) elaboraram o constructo dark triad que avalia traços sombrios, não patológicos, sob três aspectos: maquiavelismo, narcisismo e psicopatia. Pesquisas acerca do dark triad indicam perspectivas negativas e positivas dos traços de personalidade, a citar D’Souza (2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.), que relacionou características do dark triad a manipulações financeiras.

Nesse contexto, a folga orçamentária pode estar ligada a questões comportamentais dos indivíduos e aos traços de personalidade que, por sua vez, influem o comportamento desses. A folga orçamentária permite aos gestores realizarem adequações intencionais nos orçamentos organizacionais a fim de proteção contra as oscilações do mercado (Faria et al., 2012Faria, J. A., Silva Gomes, S. M., Sampaio, M. S., & Freires, F. G. M. (2012). A institucionalização da folga orçamentária como prática de gestão. In Anais do Congresso Brasileiro de Custos (p. 1-14).), como também para proporcionar maior facilidade no alcance de metas (Yuen, 2004Yuen, D. C. Y. (2004). Goal characteristics, communication and reward systems, and managerial propensity to create budgetary slack. Managerial Auditing Journal, 19(4), 517-532.).

Ao experimentar os aspectos comportamentais subjacentes à pressão por obediência e traços de personalidade em um contexto de prática de folga orçamentária, espera-se contribuir para a gestão organizacional, uma vez que a pressão de obediência pode acometer um comportamento disfuncional, violando padrões estabelecidos (Hasan & Andreas, 2019Hasan, M. A., & Andreas A. (2019). A study of audit judgment in the audit process: Effects of obedience pressures, task complexity, and audit expertise - The case of public accounting firms in Sumatra - Indonesia. International Journal of Scientific & Technology Research, 8(7), 32-37.), pois sujeitos expostos à pressão de obediência tendem a violar regulamentos e ainda se sentem menos culpados em comparação àqueles que mantiveram suas decisões de acordo com a política da entidade (D’Souza et al., 2019D’Souza, M. F., Lima, G. A. S. F. D., Jones, D. N., & Carré, J. R. (2019). Do I win, does the company win, or do we both win? Moderate traits of the dark triad and profit maximization. Revista Contabilidade & Finanças, 30(79), 123-138.); da mesma maneira os traços de personalidade, associá-los com a maximização de ganhos (D’Souza et al., 2019D’Souza, M. F., Lima, G. A. S. F. D., Jones, D. N., & Carré, J. R. (2019). Do I win, does the company win, or do we both win? Moderate traits of the dark triad and profit maximization. Revista Contabilidade & Finanças, 30(79), 123-138.).

Portanto, o estudo poderá contribuir ao concatenar os dois elementos comportamentais com a folga orçamentária aos gestores na elaboração, execução e controle orçamentário. Ao compreender que esses elementos (obediência e dark triad) podem inferir em práticas de folga orçamentária, gestores podem alinhar suas escolhas no quesito das tipologias orçamentárias, tais como: orçamento flexível, contínuo (rolling forecast), ajustado ou revisado (forecast), orçamento baseado em atividades, base zero, base histórico, colaborativo, matricial. Ademais, os gestores podem planejar suas metas orçamentárias e formas de atingi-las, gerando um sentimento maior de responsabilidade em sua equipe.

Assim, diante da oportunidade de expandir a discussão da temática - visto que a contabilidade, como ciência social, tem por um de seus objetivos, além de seus registros, fornecer informações úteis, tempestivas e fidedignas para seus usuários, sendo relevante analisar fatores que alteram as perspectivas comportamentais dos indivíduos de forma que haja alinhamento dos objetivos organizacionais com os objetivos de suas equipes, gestores e empregados estratégicos e, assim, buscar manter a integridade das informações -, pretende-se responder à seguinte questão pesquisa: qual o efeito dos traços de personalidade na relação entre a pressão de obediência e a criação de folga orçamentária? Desse modo, objetiva-se avaliar o efeito dos traços de personalidade dark triad na relação entre a pressão de obediência e a criação de folga orçamentária.

Levando em consideração que os traços do dark triad podem interferir na conduta e no desenvolvimento de suas atividades sob um ambiente hierárquico de pressão de obediência, necessita-se de aprofundamento nessas temáticas, a fim de compreender como os indivíduos se comportam em determinadas situações, considerando suas características individuais.

O presente estudo é relevante por instigar a compreensão de como os traços de personalidade influenciam a tomada de decisões sob uma pressão de obediência hierárquica ante a criação de folga orçamentária. Isso posto, permitirá detectar possíveis vieses na tomada de decisão dos gestores devido a esses fatores e prever ou amenizar decisões no ambiente organizacional. Ademais, concatenar, conjuntamente, os traços de personalidade e a pressão de obediência em um cenário de decisão sobre a criação de folga orçamentária permitirá ampliar as discussões dessa temática.

O presente estudo avança em relação aos anteriores pois visa identificar, por meio de experimento, tendências cognitivas decorrentes dos traços de personalidade de cada indivíduo, na quais, por meio dessa identificação, busca-se mensurar e detectar possíveis vieses na tomada de decisão de acordo com a característica pessoal e, assim, mitigar impactos norteadores de decisões aversivas. Busca-se, ainda, analisar como a pressão de obediência atrelada aos traços sombrios intervém na criação de folga orçamentária.

Diante disso, o presente estudo contribui para o avanço de pesquisas e práticas da área contábil. No primeiro caso, pelo aprofundamento da discussão nessas temáticas, uma vez que a literatura necessita de pesquisas que explorem esses três fatores simultaneamente, a partir do entendimento de que não é apenas um fator que exerce influência na decisão quanto à criação de folga orçamentária. Assim sendo, inova-se, incluindo nesta pesquisa os traços de personalidades dark triad. No segundo caso, por analisar os efeitos dos traços de personalidade de discentes de ciências contábeis que futuramente serão profissionais da área e irão se defrontar com situações adversas nas quais poderão ser submetidos à pressão de obediência de superiores e serem instigados a cometer folga orçamentária.

Assim, verificar se tais características pessoais podem influenciar positiva ou negativamente a tomada de suas decisões e o gerenciamento de atividades do cotidiano financeiro, bem como se sustenta o entendimento de que a pressão de obediência tem relação significativa com a criação de folga orçamentária, contribui para o entendimento de que aspectos comportamentais cada vez mais interferem nas atitudes e decisões das organizações.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Aspectos Conceituais Referentes à Folga Orçamentária

O orçamento como ferramenta de gestão é fundamental para o direcionamento financeiro das entidades, exprimindo, a partir de seus dados, perspectivas futuras. O orçamento pode ser amplamente utilizado como ferramenta de gestão organizacional (Nowak, 2004Nowak, W. A. (2004). Budgeting in an open system. Revista Contabilidade & Finanças, 15(número especial), 95-105.). Contribui para o planejamento de curto (planejamento operacional) e longo prazo (formulação da estratégia), sendo utilizado para comunicação desses planos (comunicação da meta) e para avaliação de desempenho (Hillen & Lavarda, 2020Hillen, C., & Lavarda, C. E. F. (2020). Orçamento e ciclo de vida em empresas familiares em processo de sucessão. Revista Contabilidade & Finanças, 31(83), 212-227.). Todavia, a estimativa orçamentária pode sofrer alterações tendenciosas que visam favorecer gestores na administração do orçamento, facilitando o alcance de metas estabelecidas, como é o caso da criação de folga orçamentária.

A folga orçamentária representa adequações premeditadas, realizadas por gestores, nas quais agregam obrigações e desdenham a eficácia produtiva na elaboração do orçamento (Faria et al., 2012Faria, J. A., Silva Gomes, S. M., Sampaio, M. S., & Freires, F. G. M. (2012). A institucionalização da folga orçamentária como prática de gestão. In Anais do Congresso Brasileiro de Custos (p. 1-14).). Yuen (2004Yuen, D. C. Y. (2004). Goal characteristics, communication and reward systems, and managerial propensity to create budgetary slack. Managerial Auditing Journal, 19(4), 517-532.) argumenta que a criação de folga orçamentária por gestores é realizada devido à possibilidade de proporcionar facilidade no alcance dos objetivos propostos, sendo comumente realizada na área empresarial (Faria et al., 2012Faria, J. A., Silva Gomes, S. M., Sampaio, M. S., & Freires, F. G. M. (2012). A institucionalização da folga orçamentária como prática de gestão. In Anais do Congresso Brasileiro de Custos (p. 1-14).), refletindo em benefícios remuneratórios para gestores e subordinados, dependendo das metas da instituição (Beuren et al., 2015Beuren, I. M., Beck, F., & Popik, F. (2015). Interesses compartilhados afetam a veracidade dos orçamentos? Revista Contabilidade & Finanças, 26(67), 11-26.).

Com a finalidade de cumprir metas organizacionais e estimativas orçamentárias, gestores tornam-se vulneráveis à implementação de meios que facilitem o alcance dos objetivos. Faria et al. (2012Faria, J. A., Silva Gomes, S. M., Sampaio, M. S., & Freires, F. G. M. (2012). A institucionalização da folga orçamentária como prática de gestão. In Anais do Congresso Brasileiro de Custos (p. 1-14).) destacam que, mediante à folga orçamentária, gestores elaboram estimativas adversas à realidade, adequando o orçamento de maneira ajustável aos resultados e de acordo com seus interesses pessoais.

Há diversos estudos que analisaram os aspectos da criação de folga orçamentária, dentre esses destacam-se: Davila e Wouters (2005Davila, T., & Wouters, M. (2005). Managing budget emphasis through the explicit design of conditional budgetary slack. Accounting, Organizations and Society, 30(8), 587-608.), que evidenciam perspectivas benéficas da folga orçamentária no sistema de orçamentação, facilitando a atividade gerencial; Beuren et al. (2015Beuren, I. M., Beck, F., & Popik, F. (2015). Interesses compartilhados afetam a veracidade dos orçamentos? Revista Contabilidade & Finanças, 26(67), 11-26.), que avaliam a respeito do compartilhamento dos benefícios da folga orçamentária, evidenciando a criação de maior folga por gerentes quando seus assistentes não são detentores de tal informação; e Yuen (2004Yuen, D. C. Y. (2004). Goal characteristics, communication and reward systems, and managerial propensity to create budgetary slack. Managerial Auditing Journal, 19(4), 517-532.), que examina objetivos empresariais nos quais o sistema de comunicação e recompensa afeta os objetivos e, assim, torna mais propensa a criação da folga orçamentária.

Consoante com políticas internas de cada entidade, os relatórios orçamentários devem apresentar dados institucionais em que sua veracidade seja a mais real possível. Beuren et al. (2015Beuren, I. M., Beck, F., & Popik, F. (2015). Interesses compartilhados afetam a veracidade dos orçamentos? Revista Contabilidade & Finanças, 26(67), 11-26.) consideram que a folga orçamentária retrata uma reestruturação em desacordo com as metas da entidade, devendo ser tratado como fator impeditivo, pois requer o conhecimento de suas motivações.

Desse modo, é de grande relevância a avaliação de fatores que possam intensificar o uso de artifícios que visam mistificar dados orçamentários. Davis et al. (2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.) avaliam a criação de folga orçamentária perante uma pressão de obediência hierárquica, concluindo que tal condição eleva a propensão do indivíduo a tomar decisões adversas às políticas da entidade. Assim, a criação de folga orçamentária pode estar relacionada com a presença de pressões superiores.

2.2 Aspectos Teóricos em Relação à Teoria da Obediência de Milgram

O experimento de Milgram, ocorrido nos anos 1960, demonstrou resultados implausíveis quanto à obediência apresentada por indivíduos decorrente de ordem de um terceiro. No estudo de Milgram (1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.), foram realizados testes em que pessoas submetidas ao experimento aplicaram choques elétricos gradativamente em outro indivíduo, concomitantemente com erros para perguntas realizadas, concluindo que pessoas sobre pressão de ordem são propensas a agir em desacordo com seus preceitos éticos e morais.

O estudo de Milgram decorreu da inquietação por parte do autor para tentar explicar crimes hediondos em que pessoas se submetiam à obediência de seu líder, a citar os crimes decorrentes do nazismo. Tinha por finalidade avaliar até que ponto o ser humano obedeceria à autoridade, mesmo se fosse necessário sacrifício a outro indivíduo. Milgram (1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.) descreve obediência como elemento básico da vida social, não havendo obrigação apenas ao homem que vive isoladamente.

Em seu experimento, Milgram avaliou pessoas do senso comum. Informava aos seus participantes que o estudo se referia a exame de aprendizagem em que, no papel de professores, os avaliados realizavam perguntas a determinado aluno e, caso houvesse erro na resposta, deveriam aplicar choques elétricos na vítima. Os choques aplicados ao erro aumentavam gradativamente até o ponto em que o aluno não respondia mais, demonstrando que a maioria das pessoas avaliadas chegou ao nível máximo das descargas elétricas (Milgram, 1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.).

A pesquisa realizada por Milgram gerou diversas críticas relativas aos métodos utilizados, devido ao estresse gerado aos participantes do experimento. Porém, não há como negar sua importante contribuição para pesquisas nesse campo. A partir de seu construto, estudos associados à autoridade e à obediência foram desenvolvidos, a citar o artigo-base para o presente, o experimento de Davis et al. (2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.), que avaliaram a criação da folga orçamentária ante a pressão de obediência e o grau de responsabilização percebida pelo indivíduo.

A teoria da obediência baseia-se nos dados experimentais de Milgram que criaram evidências a respeito de como o ser humano pode se submeter a um comando de um superior. Justificou, ainda, que pessoas tendem a eximir-se de culpa, alegando estar cumprindo ordens, o que destacou que cumprir ordens pode estar acima dos preceitos morais adquiridos ao longo da vida (Milgram, 1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.).

Em termos práticos, a obediência desempenha um papel importante na relação entre dirigentes e seus subordinados. Ordens de superiores ocorrem diariamente em estruturas administrativas hierárquicas, sendo necessário o discernimento entre as partes, de acordo com preceitos morais e éticos, para que o objetivo institucional seja alcançado. Ademais, a pressão de obediência de superiores pode acarretar impactos distintos, dependendo das características pessoais dos subordinados, a citar os traços de personalidade intrínsecos de cada indivíduo.

2.3 Conceitualização dos Traços de Personalidade Dark Triad

Definem-se traços de personalidade aqueles relativos a características internas uniformes derivados de sentimentos, hábitos e comportamentos do indivíduo (Vandenbos, 2010Vandenbos, G. R. (2010). Dicionário de psicologia. Artmed.). Entre as abordagens teóricas sobre personalidade que analisam traços particulares de maquiavelismo, narcisismo e psicopatia, destacam-se os traços dark triad, contribuindo para estudos que envolvam a análise de características individuais e sua relação em determinadas situações, como sua influência nas tomadas de decisões.

Oriundos da psicologia, os traços de personalidade dark triad visam identificar peculiaridades sombrias de determinado indivíduo a fim de elucidar paradigmas de seu comportamento e, assim, auxiliar na identificação do grau de influência que tais traços podem ter sobre decisões e escolhas humanas.

O dark triad consiste no arcabouço teórico que busca detectar traços de personalidade maquiavelista, narcisista e psicopata por meio de investigação não patológica, mensurando seus níveis de classificação (D’Souza, 2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.; Jones & Paulhus, 2014Jones, D. N., & Paulhus, D. L. (2014). Introducing the short dark triad (SD3): A brief measure of dark personality traits. Assessment, 21(1), 28-41.). Paulhus e Williams (2002Paulhus, D. L., & Williams, K. (2002). The dark triad of personality: Narcissism, machiavellianism, and psychopathy. Journal of Research in Personality, 36(6), 556-563.) descrevem as características dos traços sombrios do dark triad, próprios de indivíduos com caráter maléfico e tendencioso e de comportamento egocêntrico.

Os traços de maquiavelismo caracterizam indivíduos manipuladores, capazes de fazer tudo para alcançar seus objetivos (Judge et al., 2009Judge, T. A., Piccolo, R. F., & Kosalka, T. (2009). The bright and dark side of leader traits: A review and theoretical extension of the leader trait paradigm. The Leadership Quarterly, 20(6), 855-875.). Indivíduos com traços narcisistas experimentam aspectos agressivos em busca de seguir o que entendem ser de seu direito (Olsen & Stekelberg, 2016Olsen, K. J., & Stekelberg, J. (2016). CEO narcissism and corporate tax sheltering. The Journal of the American Taxation Association, 38(1), 1-22.), denotam um nível elevado de amor próprio (Judge et al., 2009Judge, T. A., Piccolo, R. F., & Kosalka, T. (2009). The bright and dark side of leader traits: A review and theoretical extension of the leader trait paradigm. The Leadership Quarterly, 20(6), 855-875.).

Os autores Paulhus e Jones instituíram o método de avaliação do short dark triad (SD3) que consiste na aplicação de questionário, aferindo nove assertivas sobre cada traço de personalidade a fim de mensurar os níveis de representatividade de cada traço no indivíduo (Jones & Paulhus, 2014Jones, D. N., & Paulhus, D. L. (2014). Introducing the short dark triad (SD3): A brief measure of dark personality traits. Assessment, 21(1), 28-41.; Paulhus & Jones, 2011Paulhus, D. L., & Jones, D. N. (2011). Introducing a short measure of the dark triad. Poster session presented at the Meeting of the Society for Personality and Social Psychology, San Antonio.).

No contexto organizacional e contábil, há diversas pesquisas que objetivam o estudo dos traços sombrios de personalidade e suas relações com manipulações contábeis (D’Souza, 2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.), desempenho empresarial (Babiak et al., 2010Babiak, P., Neumann, C., & Hare, R. D. (2010). Corporate psychopathy: Talking the walk. Behavioral Sciences and the Law, 28(2), 174-193.), práticas financeiras de evasão fiscal (Olsen & Stekelberg, 2016Olsen, K. J., & Stekelberg, J. (2016). CEO narcissism and corporate tax sheltering. The Journal of the American Taxation Association, 38(1), 1-22.), tomada de decisões oportunistas (D’Souza & Lima, 2015D’Souza, M. F., & Lima, G. A. S. F. (2015). The dark side of power: The dark triad in opportunistic decision-making. Advances in Scientific and Applied Accounting, 8(2), 135-156.) e decisões audaciosas decorrentes de comportamentos impulsivos (Crysel et al., 2013Crysel, L. C., Crosier, B. S., & Webster, G. D. (2013). The dark triad and risk behavior. Personality and Individual Differences, 54(1), 35-40.). À vista disso, é possível que fatores singulares de traços de personalidade submetidos à pressão de obediência possam influenciar a decisão para criação de folga orçamentária.

2.4 A Tríade: Relação entre o Dark Triad, a Obediência e a Criação de Folga Orçamentária

As conceitualizações e características dos traços de personalidade dark triad, da teoria da obediência de Milgram e da criação de folga orçamentária mencionados permitem traçar triangulações entre esses conceitos.

Primeiramente, no tocante aos traços de personalidade dark triad, a literatura mostra que características individuais egocêntricas, em que o comportamento desse indivíduo é voltado para si próprio, estabelecem uma relação de indiferença pelos outros sujeitos, remetendo à ideia de que indivíduos com essas características acentuadas terão propensão para a criação de folga orçamentária, uma vez que estudos verificaram que indivíduos com traços de maquiavelismo são mais manipuladores e fazem tudo o que for preciso para o alcance de benefícios próprios (Judge et al., 2009Judge, T. A., Piccolo, R. F., & Kosalka, T. (2009). The bright and dark side of leader traits: A review and theoretical extension of the leader trait paradigm. The Leadership Quarterly, 20(6), 855-875.), bem como são mais propensos a manipulações financeiras (D’Souza, 2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.) e a tomar decisões oportunistas (D’Souza & Lima, 2015D’Souza, M. F., & Lima, G. A. S. F. (2015). The dark side of power: The dark triad in opportunistic decision-making. Advances in Scientific and Applied Accounting, 8(2), 135-156.).

Nessa mesma linha de entendimento, Hartmann e Maas (2010Hartmann, F. G., & Maas, V. S. (2010). Why business unit controllers create budget slack: Involvement in management, social pressure, and machiavellianism.Behavioral Research in Accounting,22(2), 27-49.) investigaram se o envolvimento na tomada de decisão torna os controladores mais vulneráveis à pressão social quando relacionado à criação de folga no orçamento por meio de um experimento com 136 participantes. Esses pesquisadores avaliaram o traço de personalidade maquiavélico dos indivíduos, constatando que aqueles com altos traços têm maior probabilidade de ceder à pressão social e, consequentemente, à criação de folga orçamentária, enquanto indivíduos com baixos traços têm menor probabilidade de ceder à pressão de obediência. Desse entendimento deriva-se a primeira hipótese:

H1: indivíduos na condição de altos traços de personalidade do dark triad são mais propensos à criação de folga orçamentária.

Aliado a isso, a partir das conclusões experimentais que resultaram na teoria da obediência de Milgram, como evidenciado anteriormente, os indivíduos, quando estão submetidos à uma ordem advinda de um superior, eximem-se de suas responsabilidades e não se culpam, partindo do entendimento de que só estavam cumprindo ordens (Davis et al., 2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.; Milgram, 1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.). Dessa forma, estabelece-se a segunda hipótese:

H2: indivíduos na condição de pressão de obediência se sentem menos responsabilizados pela decisão de criação de folga orçamentária do que aqueles que não estão sob pressão de obediência.

No contexto orçamentário, a teoria da obediência remete à ideia de que quando os indivíduos estão submetidos à pressão de obediência serão mais propensos à criação de folga orçamentária, uma vez que não se sentirão responsáveis porque só estavam seguindo ordens (Davis et al., 2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.; Milgram, 1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.), revelando que o cumprimento de ordens pode estar acima de regras morais e/ou organizacionais (DeZoort & Lord, 1994DeZoort, F. T., & Lord, A. T. (1994). An investigation of obedience pressure effects on auditors' judgments. Behavioral Research in Accounting, 6(1), 1-30.; Hasan & Andreas, 2019Hasan, M. A., & Andreas A. (2019). A study of audit judgment in the audit process: Effects of obedience pressures, task complexity, and audit expertise - The case of public accounting firms in Sumatra - Indonesia. International Journal of Scientific & Technology Research, 8(7), 32-37.; Milgram, 1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.). Logo, cria-se a terceira hipótese:

H3: indivíduos na condição de pressão de obediência são mais propensos à criação de folga orçamentária.

Estudos verificaram que quando os indivíduos estão sujeitos à pressão de obediência se sentirão menos responsabilizados pela decisão tomada e terão maior propensão à criação de folga orçamentária (Davis et al., 2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.). Além da pressão de obediência, a tomada de decisão orçamentária pode ser afetada pelos traços de personalidade dos gestores.

Conforme estudos anteriores, gestores com traços dark triad estão associados com a maximização oportunista de ganhos (D’Souza et al., 2019D’Souza, M. F., Lima, G. A. S. F. D., Jones, D. N., & Carré, J. R. (2019). Do I win, does the company win, or do we both win? Moderate traits of the dark triad and profit maximization. Revista Contabilidade & Finanças, 30(79), 123-138.), manipulações contábeis (D’Souza, 2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.), melhor desempenho empresarial (Babiak et al. 2010Babiak, P., Neumann, C., & Hare, R. D. (2010). Corporate psychopathy: Talking the walk. Behavioral Sciences and the Law, 28(2), 174-193.), maior propensão de práticas financeiras de evasão fiscal (Olsen & Stekelberg, 2016Olsen, K. J., & Stekelberg, J. (2016). CEO narcissism and corporate tax sheltering. The Journal of the American Taxation Association, 38(1), 1-22.), tomada de decisões oportunistas (D’Souza & Lima, 2015D’Souza, M. F., & Lima, G. A. S. F. (2015). The dark side of power: The dark triad in opportunistic decision-making. Advances in Scientific and Applied Accounting, 8(2), 135-156.) e decisões audaciosas decorrentes de comportamentos impulsivos (Crysel et al., 2013Crysel, L. C., Crosier, B. S., & Webster, G. D. (2013). The dark triad and risk behavior. Personality and Individual Differences, 54(1), 35-40.). Por sua vez, a decisão quanto à criação de folga orçamentária proporciona aos gestores maior facilidade no alcance das metas organizacionais (Yuen, 2004Yuen, D. C. Y. (2004). Goal characteristics, communication and reward systems, and managerial propensity to create budgetary slack. Managerial Auditing Journal, 19(4), 517-532.), podendo refletir no aumento da remuneração dos gestores e subordinados (Beuren et al., 2015Beuren, I. M., Beck, F., & Popik, F. (2015). Interesses compartilhados afetam a veracidade dos orçamentos? Revista Contabilidade & Finanças, 26(67), 11-26.).

Assim, depreende-se, por meio desses estudos, que indivíduos com altos traços de personalidade dark triad são mais propensos a tomar decisões oportunistas para autobeneficiar-se; logo a tendência é de maior propensão à criação de folga orçamentária.

Diante do contexto apresentado, como a pressão de obediência pode impactar na criação de folga orçamentária, essa relação tende a ser intensificada quando indivíduos apresentam altos traços de personalidade dark triad, derivando-se a seguinte hipótese:

H4: a relação entre a pressão de obediência e a criação de folga orçamentária é moderada positivamente por indivíduos na condição de altos traços de personalidade do dark triad.

3. ASPECTOS METODOLÓGICOS

Como método, o presente estudo é classificado como experimento, quanto à abordagem, como quantitativo, e quanto aos objetivos, como exploratório (Raupp & Beuren, 2009Raupp, F. M., & Beuren, I. M. (2009). Metodologia da pesquisa aplicável às ciências sociais. In I. M. Beuren (Org.). Como elaborar trabalhos monográficos em contabilidade: teoria e prática (3a. ed., pp. 76-97). Atlas.). A seguir, discorre-se sobre a amostra, sobre o constructo e instrumentos de coleta de dados, sobre o design experimental, as etapas do experimento e os procedimentos de análise realizados.

3.1 Amostra da Pesquisa

Como método, realizou-se o experimento de forma presencial, com estudantes do curso de ciências contábeis dispostos entre dois campi de uma instituição pública de ensino superior do estado do Paraná, os quais têm cargas horárias e conteúdo de ementas similares. O instrumento foi aplicado aos discentes a partir do 3º ano da graduação, visto que já haviam cursado as disciplinas de ética geral e profissional e de planejamento e orçamento empresarial, por entender que esses tinham conhecimento empírico no tocante à folga orçamentária e ética na profissão contábil, conforme as ementas dessas disciplinas, buscando, assim, inibir possíveis erros de interpretação que invalidassem o experimento. A amostra mínima planejada para o desenvolvimento da pesquisa foi de 20 participantes para cada condição/grupo, tendo como total o mínimo de 80 participantes distribuídos entre os quatro grupos. Para pesquisas cujo foco é a relação entre variáveis com previsões a partir de teorias comportamentais, a seleção da amostra pode ocorrer por meio de amostragem não probabilística ou por conveniência e, por norma prática, 20 participantes são recomendados em cada condição (Cozby, 2003Cozby, P. C. (2003). Métodos de pesquisa em ciências do comportamento. Atlas.).

Desse modo, na primeira etapa de mensuração dos traços de personalidade do dark triad, foram obtidos 86 participantes. Entretanto, para a segunda etapa experimental, somente 84 participantes estavam presentes, bem como foram excluídos dois participantes da amostra devido ao preenchimento incompleto dos dados, sendo que a amostra final desta pesquisa comportou 82 discentes matriculados no curso de ciências contábeis.

3.2 Constructo da Pesquisa e Instrumentos de Coleta de Dados

Este experimento conta com um desenho fatorial 2 × 2, sendo as variáveis independentes os níveis dos traços de personalidade do dark triad (altos/baixos) e a pressão de obediência (grupo com pressão/grupo sem pressão), tendo como variável dependente a decisão sobre a criação de folga orçamentária.

Além da variável dependente criação de folga orçamentária, a variável “sentir-se responsabilizado”, mensurada por escala de 5 pontos, foi observada em relação ao tratamento experimental da variável independente pressão de obediência. Diante disso, a Tabela 1 representa o constructo da pesquisa e a síntese dos instrumentos para coleta de dados.

Tabela 1
Constructo da pesquisa

Conforme evidenciado na Tabela 1, para aplicação deste experimento, os traços de personalidade dark triad de cada participante foram mensurados com base no instrumento construído pelos autores Jones e Paulhus (2014Jones, D. N., & Paulhus, D. L. (2014). Introducing the short dark triad (SD3): A brief measure of dark personality traits. Assessment, 21(1), 28-41.) e Paulhus e Jones (2011Paulhus, D. L., & Jones, D. N. (2011). Introducing a short measure of the dark triad. Poster session presented at the Meeting of the Society for Personality and Social Psychology, San Antonio.) - SD3 -, sendo traduzido e validado no Brasil por D’Souza (2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.). O instrumento é composto por 27 assertivas distribuídas em escala de 1 a 5 pontos, de acordo com os graus de concordância e discordância dos participantes sobre cada assertiva e, a partir dos resultados, foi realizada a segregação em dois grupos, com níveis altos e baixos do dark triad. Para reconhecimento dos traços de personalidade de cada discente e posterior divisão dos grupos, solicitou-se a identificação do discente no questionário por meio do número de seu registro acadêmico.

Quanto aos cenários, havia dois distintos, um com pressão e outro sem pressão de obediência, sendo esses adaptados dos estudos de Davis et al. (2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.), nos quais, por meio do contexto apresentado, os participantes, no papel de novo gerente contábil, responsável em fazer recomendações do orçamento e aplicação de políticas fiscais de toda a empresa, deveriam tomar a decisão sobre manter o valor orçamentário original informado ou alterar a estimativa orçamentária com base no juízo peculiar de cada participante.

O cenário exposto diz respeito à situação hipotética de determinada fábrica que tinha por prática aumentar as estimativas orçamentárias em 10% (folga orçamentária); porém, após reunião de gestão, foi ressaltado pelo diretor geral que os gestores deveriam adotar práticas que tornassem o orçamento o mais preciso possível. No cenário com pressão de obediência, o superior imediato solicita, de forma sigilosa ao novo gerente contábil, a criação de folga orçamentária, afirmando que, caso o gerente indicasse um valor menor, poderia causar danos aos bônus dos trabalhadores, refletindo mal sobre a equipe, decisão essa que contraria a nova política imposta pelo diretor geral. No outro cenário, não havia a pressão de obediência imposta pelo superior imediato sobre o novo gerente contábil.

3.3 Design Experimental

Na presente pesquisa, adota-se o design intersujeitos (between-subjects), com formação de grupos distintos para fins de comparabilidade dos fatores que caracterizam as variáveis independentes do experimento. No design intersujeitos, os participantes do estudo são alocados aleatoriamente em grupos diferentes, com tratamentos experimentais diferenciados, ou seja, não há interferências entre os tratamentos, considerando que o sujeito de cada condição/grupo participa de um tratamento distinto (Smith, 2003Smith, M. (2003). Research methods in accounting. Sage.).

Como visto, a composição fatorial do experimento é 2 × 2, ou seja, duas variáveis independentes com dois níveis em cada variável (traços de personalidade: níveis altos e níveis baixos; pressão de obediência: com e sem). Diante disso, foram designados quatro grupos para fins de comparabilidade, sendo que para a aplicação do experimento realizou-se a alocação dos participantes de acordo com a Figura 1.

Figura 1
Composição da alocação dos participantes

Posteriormente, na tabulação dos níveis dos traços dark triad, os participantes foram convocados por meio dos números dos registros acadêmicos a formar duas filas, sendo divididos em altos e baixos traços. Para os integrantes de cada fila, solicitou-se, ainda, que, aqueles do sexo feminino ficassem à frente e aqueles do sexo masculino ao final, para que, dessa forma, houvesse distribuição aproximada de gênero em cada grupo. Assim, os participantes com altos níveis dos traços dark triad foram distribuídos de forma aleatória nos Grupos A e B e os participantes com baixos níveis dos traços dark triad foram distribuídos de forma aleatória nos Grupos C e D.

Com a finalidade de garantir a eficácia do experimento, verifica-se a indispensabilidade da análise de fatores que ameacem o resultado da pesquisa. Dessa forma, empregou-se a análise de ameaças quanto à validade interna e externa, para fins de mitigação de possíveis falhas que pudessem intervir negativamente no desfecho do ensaio. Quanto à validade interna, Smith (2003Smith, M. (2003). Research methods in accounting. Sage.) apresenta elementos a serem reconhecidos, visando reduzir ameaças ao experimento, tais como maturação, história, teste, mortalidade dos sujeitos, instrumentação, seleção, imitação de tratamentos e desmoralização ressentida. A Tabela 2 representa cada ameaça e as respectivas medidas adotadas para minimizar tais situações.

Tabela 2
Ameaças à validade interna

Do mesmo modo, quanto à validade externa, Smith (2003Smith, M. (2003). Research methods in accounting. Sage.) apresenta os fatores validade populacional, validade ecológica e a validade temporal. A Tabela 3 representa as medidas adotadas para sua mitigação.

Tabela 3
Ameaças à validade externa

3.4 Etapas do Experimento

Os instrumentos de pesquisa relatados foram aplicados pelos mesmos pesquisadores in loco, no mesmo dia e em duas etapas distintas, auferidos entre os meses de novembro e dezembro de 2019, com termo de consentimento dos discentes. Na primeira etapa, aplicou-se o instrumento a fim de mensurar as características pessoais relativas aos traços de personalidade dos discentes para que, posteriormente, pudesse ser realizada a divisão dos participantes em dois grupos: níveis altos e níveis baixos dos traços do dark triad.

Na segunda etapa, após a tabulação dos dados e a divisão dos grupos, conforme descrito no tópico 3.3, foram aplicados dois instrumentos experimentais - um com pressão de obediência e outro sem pressão de obediência - entre os grupos de níveis altos e níveis baixos dos traços dark triad. Ressalta-se que a alocação dos participantes dos grupos com e sem pressão de obediência foi realizada de forma aleatória.

Cada instrumento encontrava-se dividido em duas partes: da primeira seção constava o cenário relativo ao julgamento e à tomada de decisão sobre a criação de folga orçamentária; na segunda seção, situava-se o questionário pós-experimento em que foi verificada a percepção dos participantes aos tratamentos experimentais submetidos para captação dos dados demográficos. Diante disso, estabeleceram-se sete etapas para realização deste experimento (Tabela 4).

Tabela 4
Etapas do experimento

3.5 Procedimentos de Análise dos Dados

Inicialmente, realizou-se o pré-teste experimental com seis mestrandos do Programa Stricto Sensu em Controladoria de uma instituição de ensino superior do estado do Paraná, a fim de validação e identificação de possíveis erros que viessem a ocorrer durante a aplicação do experimento. Após o pré-teste, foram iniciados os preparativos em relação à operacionalização do experimento.

Para definição da separação dos indivíduos em dois grupos, altos e baixos traços do dark triad, aplicou-se a primeira etapa do experimento com 11 alunos matriculados no 3º ano do Curso de Ciências Contábeis de uma instituição de ensino superior do estado do Paraná. Assim, estipulou-se, como parâmetro, a mediana (Md) apurada entre as médias gerais dos escores de personalidade por aluno obtidos por meio da escala de dark triad utilizada nos estudos de D’Souza (2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.) para que, assim, as demais turmas fossem separadas tomando por base o mesmo critério e a amostra se tornasse mais homogênea para fins de comparabilidade.

Desse modo, os valores das médias computadas por aluno foram divididos em dois quartis, sendo obtida a mediana igual a 2,56; assim, consideraram-se os valores obtidos altos traços (Md > 2,56) e igual ou abaixo desse valor (Md ≤ 2,56) consideraram-se baixos traços. Esses valores estão de acordo com os encontrados no estudo de D’Souza (2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.), que dividiu os níveis em três quartis, cujos intervalos foram níveis baixo [1,3[, moderado [3] e alto ]3,5], com amostra de 263 gestores.

Para análise dos dados, utilizou-se estatística descritiva por meio de frequência e porcentagens para caracterização dos participantes do experimento e para análise dos dados referentes às variáveis traços de personalidade dark triad e pressão de obediência em relação às decisões tomadas quanto à criação ou não de folga orçamentária, bem como para verificação das hipóteses de pesquisa utilizaram-se testes não paramétricos devido à variável dependente (folga orçamentária) não ser métrica.

Assim, optou-se pela utilização do teste de Mann-Whitney para analisar, por meio dos postos médios (mean rank) de duas amostras independentes, se é possível rejeitar a hipótese nula e aceitar a hipótese alternativa de que as médias dos dois grupos são diferentes (Bruni, 2012Bruni, A. L. (2012). SPSS: guia prático para pesquisadores. Atlas.). Para verificação das primeira, segunda e terceira hipóteses da pesquisa, bem como para análise complementar, consideraram-se as variáveis gênero e experiência profissional em relação à criação de folga orçamentária. Utilizou-se, também, o teste de Kruskal-Wallis por postos para analisar mais de dois grupos de amostras independentes, para verificar se aceita a hipótese nula de que não existem diferenças estatisticamente significativas entre as médias dos grupos analisados ou se aceita a hipótese alternativa de que existem diferenças (Marôco, 2014Marôco, J. (2014). Análise estatística com o SPSS statistics (6th ed.). ReportNumber.) para verificação da variável complementar idade dos participantes.

Por fim, para verificação da H4, aplicou-se a técnica estatística de regressão logística binária utilizada para “descrever o comportamento entre uma variável dependente binária e variáveis independentes métricas ou não métricas” (Russel, 2009Russell, B. (2009). Regressão logística e regressão logística multinomial. In L. P. Fávero et al. (Org.). Análise de dados: modelagem multivariada para tomada de decisões (pp. 439-465). Elsevier., p. 440), bem como para investigar o efeito das variáveis pelas quais os objetos ou sujeitos estão expostos sobre a probabilidade de ocorrência de determinado evento de interesse (Russel, 2009Russell, B. (2009). Regressão logística e regressão logística multinomial. In L. P. Fávero et al. (Org.). Análise de dados: modelagem multivariada para tomada de decisões (pp. 439-465). Elsevier.).

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.1 Caracterização dos Dados e da Amostra

Do total de 82 participantes do experimento, 48 (58,5%) pertencem ao sexo feminino e 34 (41,5%) ao masculino. Com relação aos níveis de dark triad, têm-se que 42 (51,2%) participantes apresentam altos traços e 40 (48,8%) apresentam baixos traços, o que representa uma amostra homogênea entre os grupos com altos e baixos traços, divididos de acordo com a mediana apurada (Md = 2,56). Esses grupos, por sua vez, foram divididos aleatoriamente e submetidos à condição de pressão de obediência e sem pressão para a tomada de decisão em relação à criação de folga orçamentária, conforme a Tabela 5.

Tabela 5
Criação de folga orçamentária

Conforme a Tabela 5, os 42 participantes pertencentes ao grupo com altos traços, composto por 22 (52,4%) do sexo masculino e 20 (47,6%) do sexo feminino, foram divididos em dois grupos contendo 21 participantes em cada condição, submetidos à pressão de obediência e sem pressão. Os 40 participantes com baixos traços também foram divididos em dois grupos contendo 20 em cada condição (com pressão de obediência e sem pressão de obediência), sendo que, desse montante, 12 (30%) são do sexo masculino e 28 (70%) do sexo feminino. Assim, do total de 34 homens participantes da pesquisa, tem-se que 22 (64,7%) apresentaram altos traços e 12 (35,3%) baixos traços. Em contrapartida, do total de 48 mulheres participantes, 20 (41,7%) apresentaram altos traços contra 28 (58,3%) com baixos traços. Desses dados, pode-se verificar que no grupo analisado há tendência maior de homens com altos traços do dark triad em relação às mulheres.

Verifica-se que, dos 82 participantes dessa pesquisa, 33 (40,2%) alterariam o orçamento contra 49 (59,8%) que não alterariam. Esses resultados são preocupantes se analisada a questão de decisões aversivas aos objetivos organizacionais dos futuros profissionais da área contábil, uma vez que, independentemente de estarem submetidos à pressão de obediência, número considerável de participantes alteraria os orçamentos, sendo que, desses, 19 (57,6%) concordam que a decisão que tomaram foi a melhor para a empresa, 9 (27,3%) não souberam opinar e 5 (15,1%) discordam que sua decisão foi a melhor.

Na análise por nível dark triad, verifica-se que, do total de 42 participantes com altos traços do dark triad, 23 (54,8%) pertencentes a esse nível optaram por alterar o orçamento, criando, assim, a folga orçamentária contra 19 (45,2%) que manteriam o valor do orçamento; em contrapartida, os participantes com baixos traços, do total de 40, apenas 10 (25%) optaram por alterar o valor do orçamento, criando a folga orçamentária, e 30 (75%) por manter o valor mais realista possível do orçamento.

Quanto à análise por nível de pressão de obediência, observa-se que, dos 41 participantes submetidos a um cenário de pressão de obediência, 16 (39%) optaram por alterar o orçamento, criando, assim, a folga orçamentária, e 25 (61%) optaram por manter o valor do orçamento, não criando a folga. Os resultados encontrados para o grupo submetido ao cenário sem pressão de obediência foram muito semelhantes, uma vez que, dos 41 alunos pertencentes a esse grupo, 17 (41,5%) alterariam o orçamento contra 24 (58,5%) que manteriam o valor.

4.2 Análise do Resultado do Experimento

Esta subseção apresenta e discute os resultados do experimento por meio da confrontação das hipóteses de pesquisa, da análise complementar do experimento e sobre a percepção dos participantes sobre os tratamentos experimentais aos quais foram submetidos. Inicia-se com os resultados do teste de Mann-Whitney para confrontação da H1, conforme a Tabela 6.

Tabela 6
Resultados da relação traços dark triad e criação de folga orçamentária

Conforme evidenciado na Tabela 6, com relação à primeira hipótese proposta neste estudo, os indivíduos na condição de altos traços de personalidade do dark triad mediante cenário em que precisam tomar a decisão quanto à criação ou não de folga orçamentária, independentemente de estarem submetidos à pressão ou não de obediência, tem-se que o valor do posto médio para os grupos com altos e baixos traços do dark triad foram respectivamente 47,45 e 35,25, sendo que o teste de hipóteses apresentou estatística teste Z igual a -2,730, com nível de significância a 0,006. Esses resultados permitem inferir que não é possível supor que as médias dos dois grupos sejam iguais; logo, o grupo de altos traços apresentou média maior, significativamente diferente da média do grupo de baixos traços.

Com base nesses achados, não se rejeita a H1 de que os indivíduos na condição de altos traços de personalidade do dark triad são mais propensos à criação da folga orçamentária. Esse resultado corrobora os estudos anteriores que mencionam que, em condição de altos traços de personalidade do dark triad, as pessoas tendem a manipular resultados (D’Souza, 2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.) e são mais propensas a tomar decisões oportunistas em prol de benefícios próprios (D’Souza & Lima, 2015D’Souza, M. F., & Lima, G. A. S. F. (2015). The dark side of power: The dark triad in opportunistic decision-making. Advances in Scientific and Applied Accounting, 8(2), 135-156.; Judge et al., 2009Judge, T. A., Piccolo, R. F., & Kosalka, T. (2009). The bright and dark side of leader traits: A review and theoretical extension of the leader trait paradigm. The Leadership Quarterly, 20(6), 855-875.).

Para confrontação da H2, veja a Tabela 7.

Tabela 7
Resultados da relação sentir-se responsabilizado e pressão de obediência

Conforme a Tabela 7, o teste de médias apontou que não há diferenças estatisticamente significativas entre pressão de obediência e sentimento de responsabilidade dos participantes (p = 0,648 e Z = -0,457). Diante disso, rejeita-se a H2 de que indivíduos na condição de pressão de obediência se sentem menos responsabilizados pela decisão de criação de folga orçamentária do que aqueles que não estão sob pressão de obediência. Esses achados divergem da teoria de Milgram (1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.) e dos achados de Davis et al. (2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.), que defendem que os indivíduos se sentem menos responsabilizados mediante ordem de um terceiro.

Para verificação da H3, veja a Tabela 8 com os resultados do teste de Mann-Whitney.

Tabela 8
Resultados da relação pressão de obediência e criação de folga orçamentária

Conforme a Tabela 8, os resultados do teste de hipóteses apresentaram estatística teste Z igual a -0,224, com nível de significância a 0,823; assim, não é possível supor que as médias dos dois grupos sejam diferentes. Diante desses resultados, rejeita-se H3 de que indivíduos na condição de pressão de obediência são mais propensos à criação de folga orçamentária, em discordância com DeZoort e Lord (1994DeZoort, F. T., & Lord, A. T. (1994). An investigation of obedience pressure effects on auditors' judgments. Behavioral Research in Accounting, 6(1), 1-30.), Hasan e Andreas (2019Hasan, M. A., & Andreas A. (2019). A study of audit judgment in the audit process: Effects of obedience pressures, task complexity, and audit expertise - The case of public accounting firms in Sumatra - Indonesia. International Journal of Scientific & Technology Research, 8(7), 32-37.) e Milgram (1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.), que inferem que o cumprimento de ordens suscita atitudes alheias às regras morais e/ou organizacionais. Contudo, conforme constatado por Faria et al. (2012Faria, J. A., Silva Gomes, S. M., Sampaio, M. S., & Freires, F. G. M. (2012). A institucionalização da folga orçamentária como prática de gestão. In Anais do Congresso Brasileiro de Custos (p. 1-14).), há indícios de que a criação de folga orçamentária é uma prática institucionalizada, o que pode justificar a ausência de significância da hipótese.

Sequencialmente, a H4 consiste em analisar se a relação entre a pressão de obediência e a criação de folga orçamentária é moderada positivamente por indivíduos na condição de altos traços de personalidade do dark triad e os resultados da regressão logística binária são demonstrados na Tabela 9.

Tabela 9
Resultados do modelo de regressão logística binária para análise da hipótese 4 (H 4 )

Na análise da regressão logística binária, verifica-se que apenas a variável traços de personalidade apresentou significância estatística (p = 0,041), não apresentando significância na variável pressão de obediência (p = 1,000) com relação à criação de folga orçamentária. Dessa forma, não foi possível constatar o efeito moderador dos traços de personalidade (p = 0,841) na relação entre a pressão de obediência e a criação de folga orçamentária, rejeitando-se, assim, a H4. Verifica-se que, embora estudos anteriores tenham constatado que a pressão de obediência influencia o comportamento dos gestores no tocante a se sentirem menos responsabilizados por suas decisões, por alegarem estar cumprindo ordem de terceiros (Davis et al., 2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.), bem como altos traços são intrinsecamente relacionados a decisões oportunistas (D’Souza et al., 2019D’Souza, M. F., Lima, G. A. S. F. D., Jones, D. N., & Carré, J. R. (2019). Do I win, does the company win, or do we both win? Moderate traits of the dark triad and profit maximization. Revista Contabilidade & Finanças, 30(79), 123-138.) e manipulações contábeis (D’Souza, 2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.), com base nos resultados, não foi possível constatar que a decisão quanto à criação de folga orçamentária foi influenciada, simultaneamente, por esses dois elementos.

De forma complementar, ao analisar a relação de gênero e propensão à criação de folga orçamentária, tem-se que, dos 34 participantes homens, 17 (50%) optaram por alterar o orçamento contra 17 (50%) que decidiram por manter. Já em relação às mulheres, do montante de 48 participantes, apenas 16 (33,3%) alteraram o orçamento contra 32 (66,7%) que mantiveram. Entretanto, devido aos resultados do teste de Mann-Whitney (Z = -1,507; p = 0,132), verifica-se que não há diferença estatística entre as médias dos dois grupos, logo, não há propensão maior de um gênero em detrimento do outro para a criação de folga orçamentária.

Outras constatações do presente estudo com relação à criação ou não da folga orçamentária foram de que não houve diferenças entre as médias dos grupos com experiência profissional e sem experiência profissional na área de contabilidade pelos resultados do teste de Mann-Whitney (Z = -0,044; p = 0,965), bem como não houve diferenças significativas entre as idades dos participantes pelos resultados do teste de Kruskal-Wallis (qui-quadrado = 2,309; p = 0,511).

Destarte, observa-se que a H1 não foi rejeitada, apresentando significância na relação traços dark triad com a decisão de criação de folga orçamentária, sendo que as demais hipóteses deste estudo foram rejeitadas (H2, H3 e H4), não havendo significância estatística, respectivamente, nas variáveis “pressão de obediência”, “sentir-se responsabilizado” e na relação entre traços com pressão de obediência quanto à criação de folga orçamentária. Aliado a isso, as variáveis “gênero”, “idade” e “experiência profissional” também não foram significantes.

Após a operacionalização do experimento, foi aplicado o questionário pós-experimento com intuito de verificar a percepção dos participantes sobre os fatores que foram submetidos. Foi constatado que a maioria dos participantes tinha conhecimento parcial ou total sobre o assunto abordado de orçamento e criação de folga orçamentária. Os resultados mostraram, também, que os participantes submetidos à pressão de obediência se sentiram mais pressionados do que os participantes que não foram submetidos. Diante desses resultados, verificou-se a percepção dos participantes quanto aos tratamentos experimentais nos quais foram submetidos, revelando a consistência dos fatores observados.

5. CONCLUSÃO

O presente estudo objetivou avaliar o efeito dos traços de personalidade dark triad particulares dos indivíduos na relação entre a pressão de obediência imposta por superiores e a tomada de decisão desses sobre a criação ou não de folga orçamentária. Para alcançar esse objetivo, analisaram-se essas variáveis separadamente e em conjunto a partir de um experimento com estudantes do curso de ciências contábeis.

Com base no arcabouço teórico, levantaram-se quatro hipóteses de pesquisa relacionadas às variáveis supracitadas. Os resultados alcançados permitiram inferir que houve efeito na relação entre os traços de personalidade dark triad e a decisão de criação de folga orçamentária (H1), sendo constatado que indivíduos com altos traços sombrios são mais propensos a alterar os orçamentos, criando folga orçamentária.

Entretanto, não foi possível constatar que os indivíduos na condição de pressão de obediência se sentiriam menos responsabilizados pelas suas decisões referentes à criação de folga orçamentária (H2), bem como que os indivíduos submetidos à pressão de obediência teriam maior propensão à criação da folga orçamentária (H3). Verificou-se, também, que não houve efeito dos traços de personalidade dark triad na relação entre a pressão de obediência e a criação de folga orçamentária (H4).

Outros achados da pesquisa foram de que não houve significância estatística entre as variáveis gênero, experiência profissional e idade dos participantes quanto à criação de folga orçamentária. Constatou-se que 33 (40,2%) participantes do experimento alteraram o orçamento criando folga orçamentária, independentemente de estarem submetidos à condição de pressão de obediência, o que demonstrou ser um resultado preocupante se analisada a questão de possíveis vieses na tomada de decisão dos futuros profissionais.

Assim, conclui-se que a pressão de obediência imposta não teve influência significativa na manipulação de dados orçamentários, como no caso em questão, da criação de folga orçamentária, em desacordo aos achados de Davis et al. (2006Davis, S., DeZoort, F. T., & Kopp, L. S. (2006). The effect of obedience pressure and perceived responsibility on management accountants' creation of budgetary slack. Behavioral Research in Accounting, 18(1), 19-35.) e Milgram (1963Milgram, S. (1963). Behavioral study of obedience. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 67(4), 371.) sobre a teoria da obediência. Desse modo, o presente estudo avançou em relação aos estudos anteriores, pois verificou-se que essa prática pode ser realizada independentemente de uma ordem hierárquica, como visto por Faria et al. (2012Faria, J. A., Silva Gomes, S. M., Sampaio, M. S., & Freires, F. G. M. (2012). A institucionalização da folga orçamentária como prática de gestão. In Anais do Congresso Brasileiro de Custos (p. 1-14).), que a criação de folga orçamentária tem se tornado uma condição rotineira das organizações.

Todavia, constatou-se que indivíduos com altos traços de dark triad têm propensão à criação de folga orçamentária, e isso contribuiu de forma prática para a análise de fatores comportamentais que possam implicar no aumento da assimetria informacional, visto que, com a criação de folga, os orçamentos podem não demonstrar a realidade da organização.

Esses achados são relevantes e têm implicações práticas, uma vez que se verificou que os traços de personalidade influenciam a tomada de decisões com relação à elaboração, execução e planejamento dos orçamentos, estendendo-se aos achados anteriores sobre os traços dark triad, que verificaram manobras para alcance de benefícios próprios (Judge et al., 2009Judge, T. A., Piccolo, R. F., & Kosalka, T. (2009). The bright and dark side of leader traits: A review and theoretical extension of the leader trait paradigm. The Leadership Quarterly, 20(6), 855-875.), propensão a manipulações financeiras (D'Souza, 2016D’Souza, M. F. (2016).Manobras financeiras e o dark triad: o despertar do lado sombrio na gestão ;[ Doctoral Thesis]. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo.) e decisões oportunistas (D'Souza & Lima, 2015). Dessa forma, os resultados permitem mensurar e detectar possíveis vieses na tomada de decisão dos gestores com intuito de prevenir ou amenizar decisões aversivas aos objetivos organizacionais.

Os resultados apresentam implicações relevantes às organizações que utilizam o orçamento como ferramenta de gestão e como mecanismo de acompanhamento e gerenciamento de metas de seus líderes e equipes. De um lado, este estudo oferece evidências empíricas experimentais, reforçando que os traços de personalidade (dark triad) podem inferir em práticas de criação de folga orçamentária. Assim, as organizações podem alinhar suas escolhas no quesito das tipologias orçamentárias com os traços de personalidade de seus líderes e equipes.

Por outro lado, sob o enfoque da pressão de obediência, não foi possível reforçar, por meio dos métodos utilizados nessa pesquisa e os resultados alcançados, que a prática de criação de folga orçamentária é acentuada devido à pressão por obediência, na qual uma possível explicação para tal fato é que há indícios de que a criação de folga orçamentária é uma prática institucionalizada (Faria et al., 2012Faria, J. A., Silva Gomes, S. M., Sampaio, M. S., & Freires, F. G. M. (2012). A institucionalização da folga orçamentária como prática de gestão. In Anais do Congresso Brasileiro de Custos (p. 1-14).).

Ademais, esses resultados contribuem para as organizações, uma vez que seus gestores e suas equipes não praticam a folga devido a cenários de pressão por obediência, mas conforme os traços de personalidade.

Logo, organizações interessadas no uso do orçamento como ferramenta de gestão podem se beneficiar em conhecer os traços de personalidade de seus líderes e equipes para inibir que seus gestores pratiquem adequações intencionais nos orçamentos organizacionais.

À vista disso, este estudo contribuiu teoricamente para a área contábil, uma vez que permitiu o avanço e o aprofundamento da discussão de aspectos sociais e comportamentais oriundos da psicologia associados à tomada de decisão dos indivíduos ante a criação de folga orçamentária, sendo verificados, de forma conjunta, os aspectos individuais, como traços sombrios e sociais, como pressão de obediência, na realização de tal prática.

Como limitações da pesquisa, tem-se a amostra selecionada; por se tratar de estudantes, a experiência na área orçamentária pode ser comprometida. Para mitigação desse impacto, o experimento foi realizado com acadêmicos a partir do 3º ano que haviam cursado a disciplina de planejamento e orçamento empresarial. Outra limitação diz respeito à reprodução do ambiente hipotético no qual foi aplicado o experimento. Os participantes responderam a uma tarefa de natureza artificial e, dessa forma, não ocorreu a observação dos participantes em suas atividades naturais de decisões sobre orçamento.

Sugere-se, como encaminhamentos futuros, uma análise, levando-se em consideração, nos tratamentos experimentais, algumas variáveis de controle, como o gênero e a experiência, bem como a análise individual dos traços dark triad. Na pesquisa, as informações demográficas foram captadas e analisadas, mas não tratadas como grupos experimentais. Sugere-se, também, que novos estudos realizem o experimento com profissionais para uma análise comparativa e investiguem quanto à intenção da criação de folga orçamentária por parte dos gestores, se para fins de otimizar o desempenho empresarial ou se para ajustes de metas (gerenciamento de resultados orçamentários). Tem-se, ainda, a sugestão de ampliação do constructo da pesquisa para o dark tetrad.

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  • *
    Trabalho apresentado no Encontro da ANPCONT, dezembro de 2020.
  • **
    Os autores agradecem à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PRPPG) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e à Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/MEC - Brasil) pelo apoio na realização desta pesquisa.

Editado por

Editor-Chefe:

Fábio Frezatti

Editor Associado:

Cláudio de Araújo Wanderley

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2021
  • Revisado
    19 Maio 2021
  • Aceito
    19 Nov 2021
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