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Falando sobre sucessão nos programas de pós-graduação stricto sensu em contabilidade

1. INTRODUÇÃO

A questão sucessória é tema relevante e está no cerne das preocupações das empresas, principalmente naquelas caracterizadas como familiares. Nesse tipo de entidade, questões relacionadas à liquidez da existência, abordadas por Bauman (2007aBauman, Z. (2007a). Tempos líquidos. Jorge Zahar., 2007bBauman, Z. (2007b). Vida líquida. Jorge Zahar., 2008Bauman, Z. (2008). Medo líquido. Jorge Zahar.), e ao sonho do fundador (Flores & Grisci, 2012Flores Jr., J. E. & Grisci, C. L. I. (2012). Dilemas de pais e filhos no processo sucessório de empresas familiares.Revista de Administração (São Paulo),47(2), 325-337.https://doi.org/10.1590/S0080-21072012000200012
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) estão mais presentes, principalmente devido ao envolvimento afetivo/emocional/profissional dos atores no processo.

Problemas sucessórios também são prementes em empresas não familiares, sendo mais dramáticos naquelas sem sucessores prontos para assumir o comando (Charan, 2005Charan, R. (2005). Ending the CEO succession crisis. Harvard Business Review, 83(2), 72-81. https://doi.org/10.2307/1336931
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) e nas estatais, nas quais estão relacionados, ainda, a processos políticos e eleitorais (Guimarães & Silva, 2020Guimarães, S. F., & da Silva, A. L. C. (2020). Eleições e sucessão de CEOs em empresas estatais brasileiras.Revista Brasileira de Gestão de Negócios, 22(special edition), 462-481. https://doi.org/10.7819/rbgn.v22i0.4060
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). Sair-se bem no processo sucessório pode ser um dos trunfos para que a entidade possa perdurar e se perpetuar, ou seja, somente com o sucesso do processo de passagem do bastão é que se pode ter a expectativa da longa duração do negócio (Flores & Grisci, 2012Flores Jr., J. E. & Grisci, C. L. I. (2012). Dilemas de pais e filhos no processo sucessório de empresas familiares.Revista de Administração (São Paulo),47(2), 325-337.https://doi.org/10.1590/S0080-21072012000200012
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).

No âmbito das universidades e, mais especificamente, nos programas de pós-graduação, a realidade não é diferente. Discutir sucessão nos programas de pós-graduação stricto sensu em contabilidade perpassa, obrigatoriamente, pelos mesmos dilemas envolvidos na sucessão em qualquer outro ambiente organizacional.

Passados mais de 50 anos da criação do primeiro mestrado em contabilidade pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), e em um momento em que a área conta com mais de 30 outros programas entre mestrados e doutorados acadêmicos e profissionais, a sucessão, tanto no âmbito administrativo quanto acadêmico, ainda não entrou na agenda dos debates, apesar de já ser realidade em algumas instituições.

2. OS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CONTABILIDADE

As características dos programas de pós-graduação stricto sensu em contabilidade são bastante peculiares. São relativamente novos, com menos de 20 anos. Na maioria, o grupo que desenvolveu o projeto de criação do programa e se responsabilizou por torná-lo sólido ainda está presente, atuante e, de certa forma, é quem ainda o energiza.

Em cada um dos programas existentes atualmente, ainda há pelo menos um professor que tem suas origens no programa pioneiro da FEA-USP e que mantém aberto um diálogo, uma ponte entre eles, o que conserva o importante equilíbrio entre o velho e o novo.

Não passamos, ainda, por um processo completo de sucessão nos programas de pós-graduação; em alguns casos, assistimos a parcas aposentadorias e substituições, cujo afastamento, no entanto, parece meramente formal. Esses precursores continuaram presentes e atuantes, orbitando os programas e desempenhando seus papéis com a propriedade que a experiência lhes conferiu, acompanhando o desempenho dos substitutos e buscando impedir que a ruptura no status quo ocorra.

Assim, torna-se premente colocarmos em pauta a discussão sobre o processo sucessório nos programas de pós-graduação stricto sensu em contabilidade e em suas entidades representativas, tanto em termos de sucessão na ocupação de cargos administrativos como na ocupação dos espaços acadêmicos. Aspectos relacionados às escolhas de novos coordenadores de curso, chefias de departamento e diretorias de unidade estão no âmbito administrativo. No âmbito acadêmico, a sucessão está diretamente relacionada à continuidade das pesquisas, à estruturação das disciplinas, ao delineamento das orientações e à ocupação de lideranças junto às entidades representativas, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Ciências Contábeis (Anpcont) e as editorias de periódicos, dentre outras.

Alguns questionamentos são importantes quando se discute sucesso em programas de pós-graduação: quem forma o grupo responsável por dar continuidade ao trabalho iniciado por renomados professores? Temos nos preocupado com isso? Quando ministramos disciplinas e orientamos nossos alunos, temos a noção exata de que aqueles mestrandos e doutorandos poderão ser os nossos sucessores? Temos dado atenção à construção de valores aos responsáveis por nos substituir e disseminar nossas ideias e ideais? Temos dado exemplo de boas condutas? E, principalmente, temos mostrado como dar continuidade ao processo de crescimento da área em que atuamos? Muito provavelmente a resposta para parte dessas questões seja não. Não faz parte da natureza humana lidar com o “abandono do palco”, encarar a “troca de bastão”, muito embora essa seja uma realidade cada vez mais próxima.

3. O SUCEDIDO E O SUCESSOR

O processo de sucessão baseia-se na concepção de Scheffer (1995Scheffer, A. B. B. (1995). Fatores dificultantes e facilitadores ao processo de sucessão familiar. Revista de Administração (São Paulo), 30(3), 80-90. ): um rito de transferência de poder entre a geração que dirige atualmente e a que virá a dirigir amanhã. São várias as situações e os conflitos envolvidos numa sucessão iminente, seja ela planejada ou não: questões relacionadas à complexidade envolvida no cenário e nas relações pessoais, o abrir mão do protagonismo, os novos modelos de gestão, as diferenças de gerações, as perspectivas, as expectativas, os pensamentos, as ideias e as ações completamente distintos entre os atores.

Esse processo traz à tona dilemas relacionados à finitude, à dualidade vida-morte e à busca por legitimação que podem influenciar e, até mesmo, serem determinantes para o trato e o desenvolvimento do ambiente sucessório, provocando consequências positivas e negativas.

Quando olhamos para nossa própria trajetória na pós-graduação, é fácil percebermos que alguns “postos” vêm sendo ocupados sucessivamente pelos mesmos indivíduos. Quase não existe revezamento na ocupação das funções. É fato que ainda somos poucos, mas fica claro que, diante de tanto a fazer, não investimos tempo na formação de sucessores. Ministramos disciplinas, orientamos, desenvolvemos projetos de pesquisa, mas nunca pensamos em nossa própria sucessão.

Vale destacar que a falta de pessoas interessadas em assumir o bastão e tocar o “negócio” não é o único cenário que se apresenta. Existe a situação antagônica, em que são vários os proponentes interessados em participar do processo sucessório, da escolha de um sucessor, dando origem à figura de um ou vários não sucessores. Esse fato pode vir a gerar conflitos de outra natureza: o confronto de propostas.

3.1 O Desafio do Sucessor

O sucessor pode se confrontar em busca de sua identidade, cortando as amarras com o sucedido, uma vez que está ávido por assumir sua posição e ser reconhecido pelas suas brilhantes ações. Facilmente poderia buscar a participação do sucedido como suporte, apoio à sua iniciativa e crescimento, não como modelo a ser seguido, mas como maneira de respeitar ações pretéritas e profícuas.

Para o sucessor, apresentam-se, além do desconforto pela assunção do novo posto, o conflito de poder e a busca de legitimação, principalmente quando lembramos que, em grande parte dos casos, os sucedidos foram os mestres, mentores, tutores e orientadores dos sucessores. Nesse caso, os papéis se confundem, gerando novos conflitos.

Sucedidos centralizadores e autoritários podem apresentar dificuldades em desapegar dos cargos e impedir o crescimento e o amadurecimento dos sucessores. Agindo de maneira superprotetora e cerceadora, não deixam espaço para a transmissão de valores positivos. Certamente, isso pode gerar desconfiança social, em situações nas quais os interessados e pares expressam um sentimento de rejeição pelo sucessor, mas é preciso lembrar que, para que o sucessor tenha sucesso, existem certas condições a serem atingidas, como a aceitabilidade, a credibilidade, a legitimidade e a liderança.

Desse modo, o processo de sucessão envolve não só a transferência de capital físico e humano, mas de capital social; abarca os laços sociais, as relações de confiança e os sistemas de valores dos indivíduos inseridos no contexto (De Freyman & Richomme-Huet, 2010De Freyman, J., & Richomme-Huet, K. (2010). Entreprises familiales et phénomène successoral: pour une approche intégrée des modes de transmission. Revue Française de Gestion, 36(200), 161-179. https://doi.org/10.3166/rfg.200.161-179
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; De Freyman et al., 2006De Freyman, J., Richomme-Huet, K. & Paturel, R. (2006). Condition model for transferring social capital in family business succession. In Proceedings of the 3rd International Research Entrepreneurship Exchange (161-179).).

3.2 O Dilema do Sucedido

Para Bauman (2008Bauman, Z. (2008). Medo líquido. Jorge Zahar.), um grande dilema vivido pela humanidade é a chamada modernidade líquida, que se configura como o medo de ser excluído, ser descartável, tornar-se imprestável e, consequentemente, de aceitar a própria finitude. Nesse sentido, a transição do poder pode fazer surgir sentimentos ambíguos. Por um lado, o sucessor pode ser visto pelo sucedido como uma ameaça. Mesmo com a percepção clara de que a sucessão é o único caminho, os sucedidos podem viver algo próximo a um luto metafórico (Bauman, 2008Bauman, Z. (2008). Medo líquido. Jorge Zahar.; Sonnenfeld, 1988Sonnenfeld, J. (1988). The hero’s farewell: what happens when CEOs retire. Oxford University Press.). A literatura indica que abrir mão do protagonismo é mais difícil do que se imagina (Lansberg, 1999Lansberg, I. (1999). Succeeding generations: realizing the dream of families in business. Harvard Business School Press.; Poza, 2004Poza, E. J. (2004). Family business. Thomson South-Western.; Sonnenfeld, 1988Sonnenfeld, J. (1988). The hero’s farewell: what happens when CEOs retire. Oxford University Press.; Tondo 2008Tondo, C. (Org.). (2008). Desenvolvendo a empresa familiar e a família empresária. Sulina.). Poucos estão preparados para abrir mão disso.

O lado bom é que o sucedido pode se apropriar do sentimento de dever cumprido e ver no sucessor o responsável por dar continuidade ao processo, colocando sua experiência e maturidade, tanto acadêmica como administrativa, à disposição do crescimento e do aprimoramento do programa. Iniciar algo é sempre muito complicado, mudar algo é sempre muito complicado e aceitar as mudanças é sempre muito complicado.

Saber deixar o palco principal sem abrir mão do seu papel e de sua trajetória é fundamental. Os precursores, figuras respeitadas por toda a comunidade, têm sua história entrelaçada com a história dos programas de pós-graduação, fazendo parte da imaginação poética.

Dar volta na ambivalência que toma conta de sucedidos e sucessores na execução do trabalho conjunto tem o objetivo de perpetuar os interesses dos programas de pós-graduação. Ceder o protagonismo, mas não deixar de acompanhar e atuar concomitantemente ao sucessor, é uma dádiva e uma necessidade. A plena consciência e a capacidade de apreciar suas próprias realizações funcionam como incentivos para a transferência do poder.

4. POR FIM…

Apesar de toda a ambiguidade de sentimentos envolvidos ante o processo sucessório, é preciso ter a noção clara de que o programa ultrapassa um ciclo de vida. É necessário achar espaço para assumir novas visões de futuro sem, contudo, colocar em risco sua subsistência.

O ideal seria pensar a sucessão não apenas como um evento, mas acima de tudo como um processo; estabelecer um plano, um padrão para sua realização. Se até agora não pensamos em formar pessoas para ocupar nossos lugares, ou nos preocupamos apenas com a formação de pesquisadores e de profissionais, precisamos, urgentemente, prepararmo-nos para ceder nosso protagonismo, encarar nossa finitude e nos preocupar com a manutenção dos programas.

Mais cedo ou mais tarde, todos passaremos por um processo de sucessão - que traz consigo grande complexidade e muito desgaste -, tornando imperativo minimizar o impacto negativo que isso possa causar nos programas e na sua gestão. Para isso, precisamos assumir posturas como aceitação da finitude, separação entre o emocional e o racional e valorização da senioridade (não como atributo que supera a competência), assimilando que o processo sucessório é um grande desafio, inevitável e, normalmente, negligenciado, mas não necessariamente traumático. Existe a possibilidade de continuidade da participação do sucedido, como um agente de suporte, mas mantendo-se suficientemente afastado para deixar florescer o cabedal de projetos do sucessor. Principalmente, é preciso ter claro que a ascensão profissional do sucessor não implica, necessariamente, a decadência do sucedido.

Esse processo perpassa pela superação da confusão entre gestão e propriedade e pela identificação dos potenciais sucessores nos pós-graduandos, trabalhando em prol disso. É preciso especialmente entender que os objetivos pessoais acadêmicos podem ser plenamente atingidos, assegurando o sucesso do programa em longo prazo, e que o processo de sucessão traz consequências boas e ruins até mesmo para a cultura organizacional e para a reputação do programa. Afinal, conflitos fazem parte de todas as relações, contribuindo para seu desenvolvimento.

REFERENCES

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  • Bauman, Z. (2007b). Vida líquida Jorge Zahar.
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  • De Freyman, J., & Richomme-Huet, K. (2010). Entreprises familiales et phénomène successoral: pour une approche intégrée des modes de transmission. Revue Française de Gestion, 36(200), 161-179. https://doi.org/10.3166/rfg.200.161-179
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  • Guimarães, S. F., & da Silva, A. L. C. (2020). Eleições e sucessão de CEOs em empresas estatais brasileiras.Revista Brasileira de Gestão de Negócios, 22(special edition), 462-481. https://doi.org/10.7819/rbgn.v22i0.4060
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  • Tondo, C. (Org.). (2008). Desenvolvendo a empresa familiar e a família empresária Sulina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021
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