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Contabilidade & Finanças, uma relação íntima

Costumo dizer que a contabilidade é a avó das finanças e, como tal, deve ser bastante respeitada e compreendida por todos que se aventuram a testar e reinventar teorias financeiras. Para esta edição, recebi a incumbência de escrever um editorial que busca evidenciar a relação umbilical entre contabilidade e finanças, tema da linha de pesquisa “Mercado financeiro e integração empresas/stakeholders” desta revista, a qual tenho o privilégio de coeditorar. Como pesquisadora hoje atuante em economia, concedi-me a liberdade poética de relacionar, também, essa área de estudo à contabilidade e finanças.

1. A avó

Para dar início à empreitada, tomarei emprestados os conhecimentos a mim repassados por meu mentor em teoria financeira no doutorado, professor Rubens Famá. De modo a representar a influência da contabilidade nas finanças, o professor destacava, em suas aulas, o pensamento de Benedetto Cotrugli e Luca Pacioli. Benedetto Cotrugli (em eslavo, Kotruljevic) teria sido o primeiro autor em contabilidade a estabelecer o método das “partidas dobradas”. Sua obra (Della mercature e del mercante perffeto) foi escrita em 1458, enumerando algumas regras gerais para contabilizar operações comerciais, ainda de que forma incompleta. A incompletude e o atraso na impressão da obra deixaram Cotrugli a reboque de Luca Pacioli, autor que escreve posteriormente sobre o mesmo tema e que ganhou destaque na história da contabilidade. Luca Bartolomeo de Pacioli era monge e matemático italiano. Em 1494, publica em Veneza a obraSumma de arithmetica, geometria proportioni et propornalità, uma coleção de conhecimentos em aritmética, geometria, proporção e proporcionalidade, com um capítulo dedicado à contabilidade - Particulario de computies et scripturis -, com a descrição do famoso método de dupla entrada (ou partidas dobradas ou método veneziano). Até os dias atuais, tal método permite que se visualizem, de forma rápida e completa, as três principais decisões financeiras de um país e de uma empresa: a de investimento, a de financiamento desse investimento e a de distribuição dos resultados oriundos das duas primeiras decisões.

Até a primeira metade do século XX, o estudo das finanças era uma área nebulosa voltada à descrição dos problemas institucionais, contábeis e legais. Os modelos matemáticos aplicados restringiam-se ao cálculo do valor do dinheiro no tempo e do valor presente da empresa. Em grande parte, contabilidade e finanças eram campos geminados, especialmente considerando a escola americana de contabilidade, mais voltada a aspectos práticos que teóricos da área. Segundo Iudícibus (1997Iudícibus, S. de. (1997). Teoria da contabilidade (5th ed.). Atlas. ), por volta de 1920 já surgiam, nos Estados Unidos da América, as grandescorporations; o país enfrentava um desenvolvimento significativo da economia real e do mercado de capitais, o que exigia investimento pesado em pesquisas na área contábil. Não por acaso, o American Institute of Certified Public Accountants (AICPA) (Instituto dos Contadores Públicos Americanos) é um órgão de pesquisa contábil inédito no mundo. A escola americana, ao contrário da italiana, preocupou-se com o usuário da informação contábil. No Brasil, houve influência tanto da escola italiana quanto da americana. A primeira era ensinada na Escola de Comércio Álvares Penteado, criada em 1902, pioneira no ensino da contabilidade e por onde passaram grandes nomes da pesquisa contábil, como Francisco D’Auria, Frederico Herrmann Júnior, Coriolano Martins. Já a segunda influenciou na formação da Lei das Sociedades por Ações (Lei n. 6.404 de 1976Law n. 6,404, of December 15th of 1976 (December 15th, 1976). Discusses Joint-Stock Companies. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm
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).

2. A mãe

Com a apresentação do método contábil de partidas dobradas, ocorreu a sistematização necessária aos estudos em economia, começando pelas contas das nações, ou contas nacionais (produção, renda, emprego etc.). Segundo Hallak (2014Hallak J., Neto. (2014). O sistema de contas nacionais: Evolução, principais conceitos e sua implantação no Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.), diversos autores contribuíram para a construção de estatísticas nacionais baseadas nas partidas dobradas, destacando-se William Petty, com o ensaio Political arithmetical (1690), que buscou realizar as primeiras estimações da riqueza nacional na Inglaterra (decisão de investimento), e François Quesnay, com a obra Tableau économique (1758), que representou as relações entre as classes sociais a partir da análise da origem e da apropriação do produto líquido (decisão de distribuição).

A economia, que apenas pode se desenvolver como campo de estudo a partir da sistematização introduzida pela contabilidade, é a mãe das finanças. Pode-se encontrar na filha a influência dos pensamentos de Adam Smith, David Ricardo e John Maynard Keynes. Adam Smith (1723-1790), economista e filósofo escocês, é considerado o pai da economia moderna e o mais importante teórico do liberalismo econômico do século XVIII. Sua principal obra, A riqueza das nações, escrita em 1776, teve importância fundamental para o desenvolvimento do capitalismo, ao pregar a não intervenção do Estado na economia, com papel limitado às funções de guardião da segurança pública, mantenedor da ordem e garantia da propriedade privada. Adam Smith defendia a liberdade contratual, pela qual patrões e empregados seriam livres para negociar os contratos de trabalho. Já David Ricardo (1772-1823) era filho de um judeu holandês que fez fortuna na Bolsa de Valores. Por influência paterna, ingressou no mercado de ações aos 14 anos e logo garantiu sua segurança financeira, passando então a se dedicar à literatura e à ciência, especialmente à matemática, física e geologia. Em 1799, com a leitura da obra de Adam Smith, passou a se interessar pela economia. Em 1817, escreveu Princípios da economia política e tributação, em que são analisadas as leis que determinam a distribuição de tudo o que poderia ser produzido pelas três classes da comunidade: os proprietários da terra, os trabalhadores e os donos do capital. A teoria mais conhecida postulada por Ricardo é a das vantagens comparativas, que constitui a base conceitual do comércio internacional ao defender que duas nações podem beneficiar-se mutuamente do comércio livre, mesmo que uma seja menos eficiente na produção de todos os tipos de bens do que seu parceiro comercial. Fechando o ciclo de grandes economistas influentes em finanças, figura John Maynard Keynes (1883-1946), economista britânico que, na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda (1936) e em How to pay for the war (1940), estabeleceu, respectivamente, as bases teóricas da macroeconomia moderna e das contas nacionais, evidenciando a importância da decisão de financiamento.

O pensamento keynesiano defendia uma política econômica de Estado intervencionista, por meio da qual os governos usariam medidas fiscais e monetárias para mitigar os efeitos adversos dos ciclos econômicos (recessões, depressões e booms). Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a grande recessão que se seguiu a ela, o pensamento intervencionista de Keynes foi adotado pelas principais potências econômicas do Ocidente, só perdendo força na década de 1970, devido aos problemas econômicos ocorridos nos Estados Unidos da América e na Inglaterra (quebra do padrão-ouro e desvalorização do dólar americano, crise do petróleo, déficits comerciais, inflação e estagnação econômica, desemprego, lutas sociais e movimentos xenófobos) e às críticas de economistas liberais, como Milton Friedman, céticos em relação à capacidade do Estado de regular ciclos econômicos com políticas fiscais. As sucessivas crises econômicas ocorridas no final da década de 1990, entretanto, trouxeram o ressurgimento do pensamento keynesiano, que esteve presente na agenda de governo do presidente estadunidense Barack Obama (2009-2017), do primeiro-ministro britânico Gordon Brown (2007-2010) e de outros líderes mundiais preocupados em evitar nova onda recessiva como a ocorrida em 1929, na esteira da crise dos subprimes, deflagrada em 2007. Neste ano de 2020, em que o mundo sofre com a pandemia de covid-19, o pensamento keynesiano aparece mais forte do que nunca na forma de políticas de quantitative easing adotadas por todos os governos do globo. Tal crise afetou o desenvolvimento da contabilidade, ao demandar novos conjuntos de informações que pudessem proporcionar apoio à governança e gestão de países e empresas, retroalimentando o ciclo de inovação entre as três áreas: finanças, economia e contabilidade.

3. A autonomia da filha

Tomando por base os métodos de contagem e sistematização desenvolvidos na contabilidade e as relações entre os diversos agentes estudados pela economia, o ponto central das teorias de finanças evoluiu muito nos últimos 70 anos, dedicando-se à análise do comportamento dos agentes econômicos na alocação de seus recursos escassos no tempo e no espaço. Tempo e incerteza são os elementos que influenciam o comportamento financeiro atual (Weston, 1966Weston, J. F. (1966). The scope and methodology of finance (1st ed.). Prentice Hall.).

Na década de 1920, o desenvolvimento do mercado pós-Primeira Guerra Mundial propiciava grandes margens de lucros, e os gestores preocupavam-se com o controle dos estoques e com o que ocorreria caso a queda acelerada de preços ocorrida em 1920/1921 se repetisse. Para responder a essas questões, a teoria financeira dedicava-se ao estudo da estrutura financeira da empresa e à sua liquidez. Também estudos sobre planejamento e controle se faziam necessários. Na década de 1930, sob influência do crash de 1929, a preocupação era com reorganizações societárias, falências e mecanismos que garantissem a recuperação financeira das empresas, sua solvência e liquidez. Na década de 1940, marcada pela Segunda Guerra Mundial, toda a produção era destinada ao esforço de guerra. A preocupação das empresas e, portanto, o direcionamento da teoria financeira, era com a obtenção de financiamentos para incrementar a produção e atender à demanda por bens de consumo no período pós-guerra. Na década de 1950, a esperada expansão econômica ocorreu, levando as empresas e os estudiosos de finanças a temerem o risco de uma possível recessão (a exemplo do que ocorreu no final da Primeira Guerra Mundial). Portanto, os estudos eram direcionados ao orçamento de caixa e aos controles internos. Essa demanda afetou a contabilidade no sentido de se adaptar, segmentar informações e ajustar a aplicação de princípios. A recessão temida não ocorreu e, na década de 1960, havia excesso de empresas concorrendo entre si. A lucratividade começou a decrescer. Para enfrentar a concorrência, houve maciços investimentos em pesquisa e desenvolvimento e criação de empresas em segmentos alternativos. A escassez de capital e o excesso de oportunidades de negócios levaram a uma maior preocupação com o custo de capital e com a avaliação de projetos. Também cresceu, por parte das empresas, a preocupação em aumentar lucros, independentemente do aumento das vendas. Houve um movimento de internacionalização das empresas localizadas em mercados maduros em busca de melhores oportunidades.

Até a década de 1960, tanto as teorias de mercados quanto as teorias de finanças corporativas eram ad hoc, e os esforços dos estudiosos eram direcionados à obtenção de respostas às questões mais urgentes levantadas pelo setor produtivo. O fim dos anos 1950, no entanto, começa a presenciar a mudança desse paradigma. Métodos analíticos e teoria econômica começaram a ser aplicados aos problemas financeiros, originando teorias positivas em detrimento das questões normativas até então apresentadas.

Os anos posteriores à década de 1950 presenciaram o surgimento dos pilares da moderna teoria de finanças. Entre esses pilares estão a teoria de mercados eficientes (que analisa o comportamento das mudanças nos preços através do tempo em mercados especulativos), a teoria de portfólios (que analisa os procedimentos de seleção ótima de ativos), as teorias de finanças corporativas (proposição de irrelevância das decisões de financiamento e distribuição de resultados sobre o valor da empresa), a teoria de precificação de ativos (que analisa os determinantes dos preços dos ativos sob condições de incerteza), a teoria de precificação de opções (que analisa os determinantes dos preços de direitos contingentes) e a teoria de agência ou de representação (que analisa os conflitos de interesses surgidos em relações contratuais, entre agentes e detentores de capital ou entre representantes e representados).

Tais teorias têm importantes aplicações no campo das finanças corporativas e de mercado. Tome-se a teoria de mercados eficientes, atribuída a Fama (1965Fama, E. (1965). The behavior of stock prices. Journal of Business, 38(1), 34-105. ) e Samuelson (1965Samuelson, P. A. (1965). Proof that properly anticipated prices fluctuate randomly. Industrial Management Review, 6(1), 41-49. ). Estabelecer que o mercado de capitais é eficiente significa aceitar que o valor de uma empresa é simplesmente o valor presente de seus fluxos de caixa futuros, descontados o custo de capital e os investimentos efetuados. Dessa forma, gestores deverão sempre buscar maximizar o valor corrente da empresa, já que assim estarão também buscando maximizar os fluxos de caixa futuros, líquidos do custo de capital e dos investimentos incrementais. Num mercado eficiente, portanto, os preços das ações da empresa passam a ser bons estimadores dos efeitos das várias políticas adotadas pelos gestores, devidamente registradas nos demonstrativos contábeis.

No mercado financeiro, a teoria de portfólios, desenvolvida inicialmente por Arrow (1951Arrow, K. J. (1951). Alternative approaches to the theory of choice in risk-taking situations. Econometrica, 19(4), 404-437. ) e Markowitz (1952Markowitz, H. (1952). Portfolio selection. The Journal of Finance, 7(1), 77-91. ), constitui um marco. Até o trabalho pioneiro de Markowitz (1952Markowitz, H. (1952). Portfolio selection. The Journal of Finance, 7(1), 77-91. ), pouca ou nenhuma atenção era dada à seleção de ativos em condições de incerteza, que obedecia ao critério de subavaliação, com a carteira formada a partir das ações consideradas subavaliadas de acordo com critérios tradicionais, em geral múltiplos contábeis. Markowitz (1952Markowitz, H. (1952). Portfolio selection. The Journal of Finance, 7(1), 77-91. ) mostra que esse critério é ineficaz, já que despreza os benefícios da diversificação sobre o risco de cada ativo. Seu modelo de média-variância fornece uma definição formal do risco relevante, obtido pela via da diversificação, que passa a ser definido como a covariância entre as ações. Extrapolando o conceito para a área de finanças corporativas, talvez a maior contribuição dessa teoria seja mostrar que empresas devam avaliar projetos da mesma maneira que investidores avaliam ações, ou seja, considerando os efeitos da decisão de aceitar ou rejeitar novos projetos sobre os projetos já existentes e buscando diversificar sua área de atuação.

Tobin (1958Tobin, J. (1958). Liquidity preference as a behavior toward risk. Review of Economic Studies, 25(1), 65-86. ) leva a abordagem de Markowitz (1952Markowitz, H. (1952). Portfolio selection. The Journal of Finance, 7(1), 77-91. ) um passo à frente, recomendando um portfólio eficiente a ser mantido pelo investidor. Esse portfólio serve de benchmark para comparação da relação risco-retorno de qualquer projeto sob risco. O portfólio ótimo, no entanto, independe das preferências do investidor pelo risco - proposição conhecida como teorema da separação.

Coube a Treynor (1961Treynor, J. L. (1961). Toward a theory of market value of risky assets [Mimeo], subsequently published in Korajczyk, R. A. (1999). Asset pricing and portfolios performance: Models, strategy and performance metrics. Risk Books.), Sharpe (1964Sharpe, W. F. (1964). Capital assets prices: A theory of market equilibrium under conditions of risk. Journal of Finance, 19(3), 425-442. ) e Lintner (1965Lintner, J. (1965). The valuation of risk assets and the selection of risky investments in stock portfolios and capital budgets. Review of Economics and Statistics, 47(1), 13-37. ) transformar a análise de Markowitz (1952Markowitz, H. (1952). Portfolio selection. The Journal of Finance, 7(1), 77-91. ) e Tobin (1958Tobin, J. (1958). Liquidity preference as a behavior toward risk. Review of Economic Studies, 25(1), 65-86. ) em uma teoria para determinação de preços dos ativos dado o risco relevante. Dada a demanda dos investidores por ativos e assumindo uma oferta fixa desses ativos, esses autores buscaram preços de equilíbrio em um período único, sem custos de transação. Esse estudo deu origem ao capital asset pricing model (CAPM), que passou a definir o retorno justo, dado o risco relevante de qualquer ativo de risco. Tal retorno justo é insumo fundamental às decisões de orçamento de capital das empresas, já que o custo de capital dos sócios (capital próprio), com e sem presença de alavancagem, para projetos arriscados deveria ser estimado à luz do teorema da separação (benchmark) e do CAPM. Dessa forma, a teoria de precificação de ativos, associada à hipótese de eficiência de mercado, destina-se até mesmo a determinar preços (valores de projetos) equivalentes aos fluxos futuros da empresa descontados ao custo de capital. O registro das informações necessárias à tal estimação, bem como os efeitos advindos da aceitação de novos projetos, como sempre, cabe à contabilidade.

Outro marco importante da moderna teoria de finanças também surge nessa época: as proposições de Modigliani e Miller (M&M) (1958Modigliani, F., Miller, M. (1958). The cost of capital, corporation finance and the theory of investment. American Economic Review, 48(3), 261-297. ), que estabeleceram uma teoria de irrelevância tanto para as decisões de financiamento quanto para as de distribuição de resultados sobre o valor da empresa. Esses autores demonstraram que, considerando-se que informações sobre os lucros prospectados da empresa e sua política de investimento são de livre acesso, na ausência de impostos e custos de transação, a decisão de financiamento da empresa não altera seu valor presente, já que o uso de um capital mais barato (dívida) é exatamente compensado pelo aumento do risco e do retorno exigido pelo capital próprio. Abrandadas as condições iniciais, M&M aceitam que apenas é plausível que a estrutura de financiamento altere o valor presente da empresa nas seguintes condições:

  1. i. presença de benefícios fiscais decorrentes do uso de dívida;

  2. ii. custos de falência;

  3. iii. custos de agência: como os credores delegam poder de decisão aos gerentes, é comum que exijam retornos mais elevados sobre suas aplicações em detrimento da reversão de lucros em novos investimentos não tão rentáveis por não terem domínio sobre as políticas a serem adotadas pela empresa. As exigências dos credores podem levar ao problema do subinvestimento; já a assimetria trazida pelo uso da dívida pode estimular o sobreinvestimento. Ambos os efeitos são custos de agência;

  4. iv. efeitos sinalizadores: considerando-se que os indivíduos ligados à empresa (insiders) detêm mais informação acerca desta que os investidores, a opção por uma ou outra forma de financiamento pode sinalizar ao mercado informações privilegiadas acerca do futuro da empresa. Por exemplo, a venda de grandes blocos de ações pelos insiders (e sua substituição por dívida) em geral é acompanhada de queda no valor das ações.

Em todos esses determinantes, observa-se a presença de informações contábeis com alto conteúdo informacional, capaz de afetar preços e viabilidade de projetos.

Posteriormente, M&M estenderam a análise da estrutura de capital para a análise da política de distribuição de resultados. Seguindo a mesma lógica, argumentam que é indiferente para a empresa pagar ou não dividendos, já que estes são financiados pela venda de novas ações ou emissão de dívida que não alteram o valor da empresa (Miller & Modigliani, 1961Miller, M., Modigliani, F. (1961). Dividend policy, growth, and the valuation of shares. Journal of Business, 34(4), 411-433. ).

Desde 1964, as proposições de M&M, combinadas com o modelo de precificação de ativos de risco recém elaborado (CAPM), vêm servindo de base para a definição do custo do capital próprio e do custo médio ponderado de capitais a serem usados na avaliação de projetos de investimento.

Na década seguinte, os avanços nas teorias de finanças ocorreram de forma mais surpreendente. A década de 1970 foi marcada, primordialmente, pela deterioração do dólar americano, consequência direta da balança de pagamentos deficitária e da elevação da inflação americanas. Tal desvalorização levou o governo dos Estados Unidos da América a abolir o padrão-ouro definido em Bretton Woods, já que a paridade dólar-ouro havia dado lugar à sobrevalorização do dólar ante as moedas europeias. Em função das enormes perdas verificadas nos investimentos realizados nessa época, os investidores dispensam atenção à análise de carteiras e risco. Os trabalhos de Markowitz (1952Markowitz, H. (1952). Portfolio selection. The Journal of Finance, 7(1), 77-91. ), Tobin (1958Tobin, J. (1958). Liquidity preference as a behavior toward risk. Review of Economic Studies, 25(1), 65-86. ) e Sharpe (1964Sharpe, W. F. (1964). Capital assets prices: A theory of market equilibrium under conditions of risk. Journal of Finance, 19(3), 425-442. ) foram extremamente valorizados.

Na década de 1980, a crise bancária ocasionada pela moratória dos países emergentes, consequência direta da entrada desordenada de recursos na economia e na partição desses aos países emergentes a taxas muito baixas, resultou no processo de desintermediação financeira e desregulamentação. Ao mesmo tempo, surgia, nos Estados Unidos da América, o mercado de junk bonds que, além de possibilitar financiamento de pequenas empresas, levou a uma onda de aquisições alavancadas e a toda a sorte de reestruturações corporativas. Esse período foi especialmente benéfico para aplicação das teorias financeiras até então desenvolvidas. O estudo do risco passou a ser o centro das atenções, e mercados futuros e de opções, que poderiam controlar o risco advindo das oscilações nos preços spot, ganharam destaque. Ressalta-se, aqui, a importância do trabalho de Black e Scholes (1973Black, F., Scholes, M. (1973). The pricing of options and corporate liabilities. Journal of Political Economy, 81(3), 637-659. ).

Com a maior sofisticação dos instrumentos de mercado, os modelos de avaliação de investimento também se tornaram mais robustos, considerando aspectos intertemporais e novas fontes de incerteza. A teoria de portfólio estática de Markowitz (1952Markowitz, H. (1952). Portfolio selection. The Journal of Finance, 7(1), 77-91. ) e de Sharpe (1964Sharpe, W. F. (1964). Capital assets prices: A theory of market equilibrium under conditions of risk. Journal of Finance, 19(3), 425-442. ) deu lugar à teoria de portfólios dinâmica, com modelos intertemporais e atrelados ao consumo [intertemporal capital asset pricing model (ICAPM), consumption-based capital asset pricing model (CCAPM)]. Também modelos fatoriais expandiram a antiga medida de risco único (beta) para medidas multidimensionais de risco, ilustradas no arbitrage pricing theory (APT) de Ross (1976Ross, S. A. (1976). Arbitrage theory of capital asset pricing. Journal of Economic Theory, 13(3), 341-360. ) e no modelo de fatores de Fama e French (1992Fama, E., French, K. (1992). The cross‐section of expected stock returns. Journal of Finance, 47(2), 427-465. ).

4. Contabilidade e finanças: uma relação virtuosa

Com o refinamento do mercado, a teoria de agência (ou de representação), que buscava analisar os problemas associados com a estruturação da compensação do agente (ou representante), ganhou força. Tal estruturação deveria alinhar os incentivos dados aos agentes/gerentes aos interesses dos principals/acionistas (ou representados). O desenvolvimento da estrutura contratual ótima sob a teoria de agência tem suas bases nos trabalhos de Coase (1937Coase, R. (1937). The nature of firm. Economica, 4(16), 386-405. ), para quem os problemas de agência são os elementos principais da denominada “visão contratual de empresa”, e de Berle e Means (1932Berle, A., Means, G. (1932). The modern corporation and private property. Macmillan. ), que versa sobre as fundamentos da legislação corporativa estadunidense, explorando a evolução das grandes corporações e argumentando que a separação entre o controle legal e o controle gerencial das empresas é capaz de gerar problemas capazes de serem sanados por um sistema de remuneração eficaz para alinhar interesses ou regras e instrumentos de governança corporativa.

Na década de 1990, iniciou-se o processo de globalização da economia e houve aumento dos riscos off-balance sheet. Novamente a inter-relação entre finanças e contabilidade impulsiona os estudos desenvolvidos. Ocorre, então, um movimento, por parte das empresas, de avaliação de oportunidades de negócio ao redor do mundo e preocupação com a criação de valor para o acionista. As aquisições alavancadas diminuíram em relação à década anterior, mas a preocupação com o controle de riscos permaneceu e outros derivativos foram criados de forma a minimizar o risco das operações de financiamento. Estava definitivamente instaurada a engenharia financeira. Finanças criava o que a contabilidade tinha a responsabilidade de registrar da forma mais evidente para os diversos usuários. As inovações financeiras ocorridas nesse período não eram, no entanto, motivadas pelos mesmos fatores verificados nas décadas de 1970 e 1980: a grande volatilidade do mercado e a alta acelerada nas taxas de juros deram lugar a um mercado com restrições ao crédito e spreads bastante altos, apesar da constância das taxas. De forma a conseguir fontes de financiamento a um custo desejável, as empresas mais arriscadas precisavam recorrer a instrumentos financeiros.

Nessa década, uma das críticas mais contundentes, não apenas ao CAPM mas, principalmente, à teoria de mercados eficientes, é formulada por Haugen (1995Haugen, R. (1995). The new finance: The case against efficient markets. Contemporary. ). Esse autor defende a ideia de que o mercado de capitais é altamente ineficiente e sujeito ao efeito de sobre-reação, sendo os ativos de maior (menor) risco aqueles que geram os menores (maiores) retornos. A crítica de Haugen (1995Haugen, R. (1995). The new finance: The case against efficient markets. Contemporary. ) é de tal forma contrária às teorias até então apresentadas que o autor sugeriu que as ideias anteriores fossem compiladas sob a denominação “finanças modernas”, enquanto suas teorias formariam as “novas finanças”.

5. Críticas e controvérsias alavancam os estudos em finanças

A proposição central de Haugen (1995Haugen, R. (1995). The new finance: The case against efficient markets. Contemporary. ) é que os investidores são tão irracionais que, baseando-se na performance passada da empresa, precificam as growth stocks (ações de empresas com baixo índice valor contábil/valor de mercado, das quais espera-se crescimento acima da média) em nível tão elevado que qualquer surpresa negativa provoca queda súbita no preço (efeito sobre-reação). Em contrapartida, as value stocks (ações de empresas com alto índice valor contábil/valor de mercado, das quais espera-se crescimento a taxas menos elevadas) são precificadas em nível tão baixo que qualquer surpresa positiva eleva seu nível de preços e, portanto, seus retornos. Por trás de tal proposição está a negação da hipótese de eficiência de mercado: os investidores recebem informações, mas, não sabendo avaliá-las de forma completa, formam preços não condizentes com o futuro “real” da empresa.

A crítica de Haugen (1995Haugen, R. (1995). The new finance: The case against efficient markets. Contemporary. ) é contrária também à relação risco-retorno. O autor afirma que as value stocks, geradoras potenciais de maiores retornos, são também as ações de menor risco, hipótese que invalida completamente o CAPM. Sua proposição é baseada no fato de os investidores esperarem tanto das growth stocks que qualquer surpresa faz com que seus retornos oscilem em demasia, aumentando seu risco. Já as value stocks são ações tão negligenciadas que seus retornos tendem a ser mais estáveis.

Na esteira das irracionalidades apontadas por Haugen (1995Haugen, R. (1995). The new finance: The case against efficient markets. Contemporary. ), novas teorias surgiram com o objetivo de flexibilizar a premissa de racionalidade ilimitada do decisor. O campo de finanças comportamentais, iniciado a partir das pesquisas de Tversky e Kaheman ainda em 1973Tversky, A., Kahneman, D. (1973). Judgment under uncertainty: Heuristics and biases. Science, 185(4157), 1124-1131. , sobre julgamento sob incerteza, ocupa, atualmente, espaço relevante nas novas pesquisas. Ao contrário do que a abordagem normativa poderia sugerir, as pessoas frequentemente tomam decisões não ótimas do ponto de vista de um modelo racional e, nesse caso, torna-se importante compreender as razões pelas quais isso ocorre. Os trabalhos pioneiros nessa linha foram desenvolvidos no fim da década de 1950 por Simon (March & Simon, 1958March, J., Simon, H. (1958). Organizations. Wiley. ; Simon, 1957Simon, H. (1957). Models of man. John Wiley and Sons. ), que propôs que, embora os indivíduos buscassem soluções racionais, sua capacidade de julgamento era limitada por sua própria racionalidade (bounded rationality).

Além dessas restrições no processamento de informações, usualmente os tomadores de decisões não têm aquelas consideradas importantes por limitação de tempo e custo, o que, por sua vez, limita a quantidade e a qualidade das informações. Portanto, não apenas a própria capacidade mental do decisor restringe o volume de dados, critérios, cenários e alternativas que podem ser devidamente levadas em consideração no cálculo da decisão ótima, como tais informações de fato são restritas, cabendo à contabilidade refinar seus registros para aliviar tal restrição.

6. Assim caminha a pesquisa teórico-empírica

Além de toda a evolução teórica ocorrida no campo das finanças, outra revolução voltada aos experimentos necessários aos testes dessas teorias também ocorreu. Os trabalhos com meras estatísticas descritivas (média, variância, assimetria, coeficiente de variação) deram lugar a outros com design mais sofisticado, envolvendo regressões univariadas, multivariadas, em séries de tempo e, mais recentemente, em painel (tempo e unidades observacionais considerados conjuntamente). Atualmente, a exigência está bastante concentrada no controle da endogeneidade dos regressores, um dos maiores males de que padecem os trabalhos empíricos em finanças. Por essa razão, mecanismos de controle de tratamentos mais sofisticados, com a estimação de contrafactuais e cálculo de diferença em diferenças, além do uso de regressões multinível e descontínua e de algoritmos de busca não lineares, têm surgido com frequência.

Essa viagem pelo campo das finanças e suas áreas genitoras, a contabilidade e a economia, desde o século XV, serve para evidenciar a evolução da área e o caráter abrangente da Revista Contabilidade & Finanças (RC&F) ao receber e divulgar trabalhos sobre todos os temas que interessam a seus pesquisadores. Nesta edição, como exemplo, há trabalhos sobre anomalias em mercados ditos eficientes (efeito janeiro), escolha da estrutura de capital, considerando a influência do cenário macroeconômico e o perfil inovador das empresas tomadoras, além de outras formas de financiamento por capital próprio (crowdfunding), fatores capazes de afetar a precificação correta de ativos (como presença de outliers), escolha de ativos para investimento (fundos de previdência), influência do fluxo de capital estrangeiro na liquidez de mercado, discussão sobre política de distribuição de resultados e crescimento de dividendos e determinantes de falência por algoritmos de florestas causais. Como se vê, uma única edição da RC&F fornece elementos para discussão de séculos de teorias. Não é por outra razão que a revista é considerada fonte obrigatória de consulta por pesquisadores que desejam conhecer o estado da arte nessa área tão complexa e fascinante das finanças corporativas e de mercado. Aproveitem a viagem pelo conhecimento e boa leitura para nós!

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  • Errata
    No Editorial “Contabilidade & Finanças, uma relação íntima”, com número de DOI: 10.1590/1808-057x202090340, publicado no periódico Revista Contabilidade & Finanças, 31(84): 385-391, na página 385:
    Onde se lia:
    1Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Economia, Programa de Pós-Graduação em Economia, Juiz de Fora, RJ, Brasil
    Endereço para correspondência:
    Fernanda Finotti Cordeiro
    Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Economia, Programa de Pós-Graduação em Economia
    Campus Universitário – CEP 36036-330
    Martelos – Juiz de Fora – RJ – Brasil
    Leia-se:
    1Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Economia, Programa de Pós-Graduação em Economia, Juiz de Fora, MG, Brasil
    Endereço para correspondência:
    Fernanda Finotti Cordeiro
    Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Economia, Programa de Pós-Graduação em Economia
    Campus Universitário – CEP 36036-330
    Martelos – Juiz de Fora – MG – Brasil
  • Errata
    No Editorial “Contabilidade & Finanças, uma relação íntima”, publicado no periódico Revista Contabilidade & Finanças, 31(84): 385-391, na página 385:
    Onde se lia:
    DOI: 10.1590/1808-057x202090340
    Leia-se:
    DOI: 10.1590/1808-057x202090350

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020
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