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Estado e Boa Sociedade: elementos da concepção política do comunitarismo liberal

The State and the Good Society: elements of the liberal communitarianism’s political conception

Resumo

Em meio à crise das ideologias e concepções tradicionais sobre o Estado, o comunitarismo liberal desenvolve uma abordagem política original. Sua proposta central é que uma boa sociedade requer um equilíbrio entre Estado, comunidade e mercado, rejeitando tanto o Estado mínimo quanto o estado-centrismo. No trabalho do sociólogo Amitai Etzioni, encontra-se a formulação política mais sistemática do pensamento comunitário. O presente texto busca responder a questão: que elementos são centrais na teoria comunitarista liberal na abordagem do papel do Estado e suas relações com a comunidade e o mercado nas sociedades contemporâneas? Segundo se expõe, os aspectos que distinguem a formulação comunitarista são: (i) a análise empírica do Estado tem como referência ético-política o conceito de boa sociedade; (ii) a democracia requer um Estado responsivo, sensível à voz das comunidades; (iii) ao contrário da política de neutralidade, o Estado está comprometido com um conjunto limitado de valores nucleares; (iv) o Estado cumpre funções fundamentais, mas, seja forte ou fraco, suas funções são sempre limitadas; (v) a satisfação das necessidades coletivas e do bem comum requer um equilíbrio entre Estado, comunidade e mercado; (vi) garantir a paz nas relações internacionais demanda a perspectiva da segurança básica, tendo a comunidade política global como horizonte. A teoria comunitarista, que se apresenta politicamente como uma terceira via, traz contribuições relevantes para compreender os dilemas atuais do Estado e examinar as perspectivas futuras. A técnica de pesquisa é bibliográfica.

Palavras-chave:
Comunitarismo liberal; Boa sociedade; Comunidade; Estado; Mercado

Abstract

Amidst the crisis of ideologies and traditional conceptions about the state, liberal communitarianism develops an original political approach. Its central proposition is that a good society requires a balance between State, community, and market, rejecting both the minimal state and state-centrism. The present text seeks to answer the question: what elements are central to liberal communitarian theory in approaching the role of the State and its relations with the community and the market in contemporary societies? According to the exposition, the aspects that distinguish the communitarian formulation are: (i) the empirical analysis of the State has as its ethical-political reference the concept of the good society; (ii) democracy requires a responsive State, sensitive to the voice of communities; (iii) conversely to the politics of neutrality, the State is committed to a limited set of core values; (iv) the State fulfills fundamental functions, but, either strong or weak, its functions are always limited; (v) the fulfillment of collective needs and the common good requires a balance between State, community and market; (vi) to ensure peace in international relations requires the perspective of basic security, with the global political community as a horizon. The communitarian theory, which presents itself politically as a third way, brings relevant contributions to understanding current State dilemmas and examining future perspectives. The research technique is bibliographic.

Keywords:
Liberal communitarianism; Good society; Community; State; Market

1. Introdução

Desde os anos 1980, o comunitarismo contemporâneo1 1 Comunidade é o conceito-chave em torno do qual foi edificado o comunitarismo. Enquanto comunidade é um termo antigo, presente em todos os grandes sistemas de pensamento e religiões universais (NISBET, 1982), o comunitarismo tem um caminho mais curto. Henry Tam (2019) atribui seu uso pioneiro a Robert Owen na década de 1840 e sua concepção de comunidade construída através da educação e organização cooperativa. De acordo com Amitai Etzioni (1998, p. ix), o termo foi usado pela primeira vez em 1841 por John Barmby, fundador da Associação Comunitária Universal, que considerava comunitarista o "membro de uma comunidade formada para colocar em prática teorias comunistas ou socialistas". O significado contemporâneo ("de pertencer a ou ser característica de uma comunidade") apareceu no Webster's Dictionary, em 1909. tornou-se conhecido internacionalmente no âmbito da filosofia por apresentar uma crítica severa às premissas individualistas assumidas por grande parte do pensamento liberal, incluindo suas versões contemporâneas mais relevantes, como a de John Rawls. Pensadores como Michael Sandel, Michael Walzer, Alasdair MacIntyre e Charles Taylor adquiriram notoriedade por contrariar a corrente liberal inclinada ao individualismo, reafirmando a clássica tese social aristotélica e reiterando a importância dos vínculos comunitários para a compreensão do indivíduo, sem, no entanto, abraçar suposições coletivistas, comuns em teorias socialistas clássicas. Os filósofos comunitários atualizaram a noção de que os sapiens são seres histórica e socialmente condicionados e que as narrativas sobre os indivíduos devem expressar os vínculos inextricáveis com suas comunidades, algo não contemplado na corrente dominante do liberalismo anglo-saxão.

Para entender o contexto e o significado da emergência do comunitarismo na academia anglo-saxã na década de 1980 vale lembrar que com John Rawls o liberalismo havia alcançado na década de 1970 um novo patamar, proporcionando fundamentos mais robustos à teoria moral e política do que aquelas proporcionadas pela visão dominante, o utilitarismo. A tradição liberal utilitarista, baseada em autores como John Stuart Mill e Jeremy Bentham, tinha como premissa central o princípio da máxima utilidade, segundo o qual o melhor resultado é aquele que maximiza a felicidade agregada dos membros de uma sociedade tomada como um todo. Apesar de sua aparência democrática, este princípio é falho do ponto de vista moral e político ao condicionar os direitos individuais ao cálculo dos interesses sociais. Outro aspecto contestado no utilitarismo é a sua visão monista do bem: o bem equivale ao prazer e a busca racional do prazer é o que caracteriza os humanos. Este reducionismo contraria a visão pluralista das concepções sobre o bem. Em 1971, John Rawls publicou Uma Teoria da Justiça, expondo a sua teoria da justiça como equidade, uma perspectiva neocontratualista que alcançou reconhecimento internacional. Rawls (2007) apresentou um conjunto de princípios de justiça visando conjugar as tradições democráticas da liberdade e da igualdade. São dois os princípios fundamentais: o primeiro é o princípio da “igual liberdade” e o segundo se desdobra no “princípio da igualdade de oportunidades” e no “da diferença” (as distinções se justificam somente no caso de beneficiarem os membros menos privilegiados da sociedade). Para instigar o senso de justiça dos indivíduos racionais e razoáveis, Rawls introduziu o artifício da “posição original”, uma situação hipotética em que os indivíduos estão sob um “véu de ignorância”, e, por desconhecerem a sua situação e suas funções na sociedade, estão aptos a adotarem regras justas.

Apesar das convergências quanto à defesa do welfare state, da democracia e do princípio da igualdade, os filósofos comunitaristas consideraram que Rawls continuava preso à lógica individualista. Michael Sandel (2012SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.) contestou a visão rawlsiana quanto ao individualismo moral, à visão descontextualizada do indivíduo (unencumbered self), à prioridade do justo sobre o bem e à concepção do Estado neutro. Charles Taylor (2000TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.) vinculou Rawls à tradição procedimentalista da democracia, que peca pela baixa participação popular. Michael Walzer (2003WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) discordou da capacidade da “posição original” rawlsiana contribuir para definir políticas distributivas justas em um mundo de pluralidade cultural, econômica e social.

Através da crítica mútua e da auto-revisão, o debate dos filósofos morais sobre as tensões entre indivíduo e comunidade avançou em direção a certas convergências, mas também de diferenças. Richard Dagger (2004DAGGER, Richard. Communitarianism and republicanism. In: GAUS, G.; KUKATHAS, C. Handbook of political theory. London: Sage Publications, 2004, p. 167-179., p. 173) aponta três contraposições dos liberais aos comunitaristas: a de que as críticas comunitaristas estão mal colocadas devido a uma má compreensão do liberalismo; a de que é possível dar mais atenção a questões como pertencimento, identidade e comunidade no âmbito do próprio liberalismo; e a de que o apelo à comunidade retoma ameaças à liberdade individual. Stephen Holmes (1993HOLMES, Stephen. The anatomy of antiliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 1993.) adotou tons mais duros, ao caracterizar o comunitarismo como uma corrente “iliberal” que encampa seis pressupostos insustentáveis: a ausência de conteúdo definido do conceito de “comunidade”; o uso inadequado (mito) do “social”; a dicotomização entre virtude pública e interesse privado; o aceno a uma comunidade indescritível em lugar da sociedade liberal; a oscilação entre a crítica ao pensamento liberal e a sociedade liberal; a suposta a influência negativa da linguagem liberal sobre a compreensão de aspectos sociais. Na linha de Holmes, o comunitarismo liberal é uma impossibilidade.

Outros autores liberais apresentaram tanto discordâncias quanto as convergências. Roberto Gargarella (2008, p. 153ss) destaca que as críticas comunitaristas conduziram, sim, a revisões do pensamento de Rawls e de outros, assim como anotam as contraposições. Entre as revisões do lado liberal Gargarella nota uma posição mais cautelosa acerca da validade universal dos juízos de valor (isso teria levado Rawls a retraduzir a sua obra como teoria política e não metafísica), a vincular a liberdade de escolha à existência de uma multiplicidade de opções possíveis e significativas, e a examinar mais atentamente a influência de situações passadas como fonte de desigualdades presentes. Por outro lado, os liberais refutam críticas comunitaristas referentes ao “atomismo social”, à incapacidade de entender a influência do contexto social, reafirmam a tese da “neutralidade do Estado” e recriminam os comunitaristas por avalizar interferências estatais excessivas na moral privada e de posições majoritárias na comunidade sobre preferências individuais. Will Kymlicka (2006KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 253ss), além explicitar um conjunto importante de diferenças, indica caminhos para avanços comuns entre as duas correntes, o que exigiria superar certos termos iniciais do debate, como, por exemplo, superar a oposição conceitual entre “atomismo social” liberal e “tese social” comunitarista para avançar nas convergências sobre deliberações de bem comum.

O debate liberais x comunitaristas teve significativa repercussão nos meios acadêmicos norte-americanos e a atenção dada ao tema da comunidade catalisou as preocupações de outros intelectuais das ciências sociais. No final da década de 1980 foi constituída uma rede de cientistas sociais, filósofos, pesquisadores e políticos afinados com a temática da comunidade, que objetivaram disputar a hegemonia não tanto de Rawls, mas do individualismo utilitarista dominante nos Estados Unidos (JOAS, 2004). Tendo o declínio das comunidades como preocupação central, a agenda desta rede comunitarista incluiu mudanças paradigmáticas em disciplinas, como a economia e outras ciências sociais, a remoralização da vida política, das famílias e das escolas, e a importância do engajamento cívico. Esta rede se organizou no movimento comunitarista responsivo2 2 O movimento comunitarista norte-americano adotou o adjetivo responsivo para marcar a sua distinção em relação a outras concepções comunitaristas. Responsivo (responsive) tem o sentido de “dar resposta”, de “ser sensível” às demandas dos cidadãos, da sociedade. , que divulgou em 1991 um documento programático intitulado The Responsive Communitarian Platform: Rights and Responsibilities (Plataforma Comunitária Responsiva: Direitos e Responsabilidades)3 3 The Responsive Communitarian Platform: Rights and Responsibilities (Plataforma Comunitária Responsiva: Direitos e Responsabilidades) (1991), a plataforma programática do movimento comunitarista, teve como principais articuladores Amitai Etzioni e Willian Galston. O documento foi assinado por 104 personalidades, incluindo intelectuais, feministas, líderes afro-americanos e hispânicos, representantes religiosos, republicanos moderados e liberais. Suas principais diretrizes incluem: a importância da comunidade na existência humana; o equilíbrio indispensável entre liberdade e responsabilidade, assim como entre ordem social e autonomia individual; o papel da voz moral diante do Estado e do mercado, exercido mediante persuasão e educação; o fortalecimento da democracia através do aumento da representação, da participação e da responsividade da política; a centralidade dos valores, dos deveres cívicos e da ética na política; a afirmação de uma democracia forte, não apenas de uma democracia majoritária; a necessidade de repensar e apoiar a família, primeira linha de defesa da educação moral; a formação do caráter como o principal papel da escola, segunda linha de defesa; a relevância do fortalecimento das comunidades e do espírito comunitário; a defesa da saúde pública; a perspectiva cosmopolita do comunitarismo responsivo. . O movimento manteve-se ativo por cerca de duas décadas, tendo como principal meio de divulgação a revista quadrimestral The Responsive Community, publicada entre 1990 e 2004, aos cuidados do Institute for Communitarian Policy Studies, da The George Washington University, coordenado por Amitai Etzioni. Este movimento descolou-se em boa parte do debate filosófico (embora lhe tenha prestado atenção), tendo agenda própria e dedicando maior atenção à análise de políticas públicas.

O movimento comunitarista responsivo não propôs a rejeição do liberalismo e sim a correção de rumos quanto às tendências individualistas.4 4 Este ponto de vista foi afirmado também pelos filósofos. No dizer de Michael Walzer (2010, p. 175), “na medida em que o liberalismo tende à instabilidade e à dissociação, necessita de uma correção comunitarista periódica”, uma correção voltada à valorização das comunidades que o liberalismo, por expressar a fragmentação das relações sociais vigente, tende a desconhecer. Todavia, existem outras vertentes comunitaristas que são antiliberais. O chamado comunitarismo asiático, segundo Beng Huat Chua (2017CHUA, Beng Huat. Liberalism disavowed: communitarianism and state capitalism in Singapore. New York: Cornell University Press, 2017.), chancela valores tradicionais de ordem social, coletividade, trabalho duro, frugalidade, disciplina e trabalho em equipe, que constituem um conjunto marcadamente distinto dos valores liberais de autonomia individual, racionalidade e direitos humanos. Tal concepção ganhou notoriedade com o sucesso econômico dos Tigres Asiáticos e está associada a modelos econômicos liderados pelo Estado que nada têm a ver com mercados livres. Os comunitaristas responsivos deixaram clara sua distância em relação à versão asiática.

O presente texto propõe-se a apresentar algumas linhas diretrizes centrais da visão política do comunitarismo liberal elaborada pelo movimento acima referido. O problema de pesquisa aqui abordado é: que elementos são centrais na teoria comunitarista liberal na abordagem do papel do Estado e suas relações com a comunidade e o mercado nas sociedades contemporâneas? Com base em pesquisa bibliográfica o artigo destaca grandes temas da arquitetura conceitual comunitarista, tendo como fio condutor a obra do seu principal expoente, o sociólogo Amitai Etzioni. A seleção dos temas foi feita levando em conta a Plataforma Comunitária Responsiva (1991ETZIONI, Amitai. A responsive society: collected essays on guiding deliberative social change. San Francisco, Oxford: Jossey-Bass, 1991.), a aferição dos temas mais recorrentes na produção teórica de Etzioni ao longo das três últimas décadas e os diálogos diretos do autor do presente trabalho com Etzioni, por ocasião de um estágio pós-doutoral em Washington DC, de março a julho de 2016. A seleção das obras de Etzioni foi feita com base no critério de relevância e repercussão acadêmica, compreendendo livros e textos publicados em fins dos anos 1980 e na década de 1990, que sistematizaram a linha argumentativa do movimento comunitarista (com destaque para The Moral Dimension, The New Golden rule e The Third Way to a Good Society), e obras posteriores nas quais foram desenvolvidos temas sociopolíticos do novo século, mais afastadas das preocupações levantadas no debate inicial entre liberais e comunitaristas. Em vários temas, para complementar a argumentação de Etzioni são trazidas contribuições de outros autores comunitaristas (como Robert Bellah, Philip Selznick e Benjamin Barber) e de intelectuais de outras correntes de pensamento com posições próximas ao comunitarismo.

2. Boa sociedade: referência ético-política para analisar o Estado

Reconhecer o importante papel das comunidades na vida social não significa que a política deva se orientar pela simples aceitação dos valores e da cultura presente nas comunidades particulares. Na teoria comunitarista, a legitimidade da comunidade, assim como do Estado e do mercado, tem como referência ética e política a ideia da boa sociedade.

Boa sociedade é uma expressão comum na literatura liberal, com formulações associadas seja ao liberalismo econômico, como em Walter Lippmann (1937LIPPMANN, Walter. The good society. New York: Little, Brown and Co., 1937.), seja à perspectiva do welfare state, como em John Kenneth Galbraith (1996GALBRAITH, John Kenneth. The good society: the humane dimension. New York: Houghton Mifflin, 1996.). Trata-se de um ideal sociopolítico, não de uma realidade empírica. Sinteticamente falando, a boa sociedade é aquela em que melhor se realizam os grandes ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, segundo as condições de cada sociedade particular.

Na literatura comunitarista a expressão boa sociedade possui uma importância toda especial. Robert Bellah (1996BELLAH, Robert et al. Habits of the heart: individualism and commitment in American life. 3ª ed. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1996.) anota que boa sociedade é um conceito aberto à deliberação comum de cada sociedade, cujos critérios clássicos são paz, prosperidade, liberdade, justiça e democracia. Na formulação de Etzioni (2019ETZIONI, Amitai [2000]. A terceira via para a boa sociedade. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2019., p. 18), a boa sociedade “é aquela em que as pessoas tratam umas às outras como fins em si mesmas, e não meramente como instrumentos; como totalidades pessoais, e não como fragmentos; como membros de uma comunidade, unidos por laços de afeto e compromisso, e não apenas como empregados, comerciantes, consumidores ou até como cidadãos.”

Nesta formulação transparecem premissas filosóficas de Kant e de Buber. A deontologia kantiana proporciona as bases para a rejeição do utilitarismo, a perspectiva predominante no liberalismo anglo-saxão. O núcleo do utilitarismo está na ideia de que a boa sociedade é aquela que proporciona o maior bem ao maior número. À primeira vista, trata-se de um enfoque inclusivo e realista, mas que na verdade é uma visão relativista que não se compromete com princípios universais necessários aos direitos humanos. A ética kantiana assentada no imperativo categórico5 5 Immanuel Kant (1974, p. 223) assim formulou o imperativo categórico: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” , em contrapartida, proporciona uma base universalista própria da boa sociedade. Contra as críticas de muitos intelectuais, que veem no comunitarismo um discurso particularista, a teoria comunitarista liberal é universalista. Os valores das comunidades particulares são vistos à luz da comunidade de comunidades (humanidade) (ETZIONI, 2019ETZIONI, Amitai [2000]. A terceira via para a boa sociedade. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2019., p. 53ss).

A boa sociedade só existe em sociedades que conferem um papel destacado às relações comunitárias, relações de confiança e de autenticidade, segundo a concepção desenvolvida por Buber. A comunidade é o ambiente das relações Eu-Tu, das relações autênticas, imediatas, sem objetivar interesse, negócio, trabalho ou alguma realização, relações que visam apenas o encontro direto com o outro (BUBER, 2008BUBER, Martin. Sobre comunidade. São Paulo: Perspectiva, 2008., p. 88). A comunidade é imprescindível à boa sociedade por fortalecer as relações Eu-Tu. Diversamente, o mercado é o espaço das relações Eu-Coisas e o Estado, o das relações de autoridade e coerção.

Os comunitaristas incorporaram a reflexão de Buber sobre as relações dialógicas próprias da comunidade, mas formularam este conceito em um sentido mais preciso: a comunidade é definida por relações de afeto e pelo compartilhamento de valores e significados. Um grupo social se torna uma comunidade na presença desses elementos: uma rede de relações caracterizadas por afeto e o compartilhamento de uma cultura moral (ETZIONI, 2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022., p. 33ss). Com este conceito, os comunitários responderam à crítica liberal (por ex., Holmes, 1993HOLMES, Stephen. The anatomy of antiliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 1993., p. 176) de que comunidade era um conceito vazio de conteúdo e usado de forma abusiva. Por outro lado, comunidade nem sempre é sinônimo de bem comum, reconhecem os comunitaristas. Levando a sério admoestações de liberais, como Dagger (2004DAGGER, Richard. Communitarianism and republicanism. In: GAUS, G.; KUKATHAS, C. Handbook of political theory. London: Sage Publications, 2004, p. 167-179.) e Holmes (1993), e de sociólogos como Zygmunt Bauman (2003BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.), os intelectuais comunitaristas destacam que historicamente as comunidades particulares têm diferentes feições. O lado obscuro da comunidade aparece em comunidades particulares cujos valores ferem direitos, legitimam discriminações e reproduzem autoritarismos. Por isso, deve-se analisar as comunidades concretas e as organizações comunitárias com base nos valores que afirmam e disseminam. Klu Klux Klan e Médicos sem Fronteiras, National Rifle Association e Mothers Against Drunk Driving, por exemplo, são organizações da sociedade civil que contam com apoio de comunidades particulares, mas são completamente distintas quanto aos valores que afirmam (ETZIONI, 2000, p. 370; SELZNICK, 1994SELZNICK, Philip. The moral commonwealth. Berkeley: University of California Press, 1994.).

O compromisso com o bem comum (ou interesse público ou bem público) está no núcleo da boa sociedade. O que é o bem comum? Quem decide sobre o que é o bem comum? Philip Selznick (1994SELZNICK, Philip. The moral commonwealth. Berkeley: University of California Press, 1994., p. 517ss) argumenta que não há um bem comum externo à sociedade, acima dos indivíduos. O bem comum não é uma substância; diz respeito a uma virtude do procedimento. Não envolve um exercício de imaginação abstrata ou de raciocínio dedutivo: é um processo de aprendizagem social, através de instituições deliberativas. Enquanto os liberais fixam sua atenção nas diferenças de opinião e nos riscos do consenso, os comunitários enfatizam a importância do consenso e da inteligência coletiva para encontrar respostas criativas aos problemas, melhorando a vida das pessoas e das comunidades. Diferentemente da perspectiva individualista liberal, que circunscreve a questão do bem ao âmbito individual, a perspectiva comunitarista “é mais profundamente sistêmica, não redutível a interesses individuais ou a atributos. O bem comum é atendido, por exemplo, por instituições que fornecem bens coletivos, tais como educação ou segurança pública” (SELZNICK, 1994SELZNICK, Philip. The moral commonwealth. Berkeley: University of California Press, 1994., p. 537). Todos decidimos o que é o bem comum, não abandonando nossos interesses e perspectivas, mas transcendendo-os quando necessário e descobrindo maneiras de vinculá-los a interesses e ideais mais abrangentes. A confiança na inteligência coletiva (pensar juntos) está no núcleo do bem comum. O bem comum é uma interminável questão, uma resposta coletiva a problemas definidos por novas circunstâncias e novas ideias.

Na definição de Etzioni (2015ETZIONI, Amitai. The new normal: finding a balance between individual rights and the common good. New Brunswick: Transaction Publishers, 2015., p. 1), o bem comum “designa aqueles bens que servem a todos os membros de uma determinada comunidade e suas instituições, e, como tal, inclui tanto bens que atendem a qualquer grupo, como aqueles que servem a membros de gerações ainda não nascidas.” A reafirmação desse princípio clássico do pensamento grego e medieval, mas negado pelas concepções liberais individualistas e pela tradição marxista, é fundamental para que em cada sociedade concreta haja uma referência de fundo para “a coisa certa a fazer, por si só, por si mesma”, fundamentando critérios para dirimir conflitos, razões para que se faça sacrifícios em prol de outros ou do bem futuro. É um guia do esforço coletivo.

Os comunitaristas destacam os benefícios da vida comunitária, benefícios esses sustentados por extensa pesquisa empírica, conforme Etzioni (2019ETZIONI, Amitai [2000]. A terceira via para a boa sociedade. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2019.):

  • quem vive em comunidade tem vida mental e física mais saudável, mais longa e com maior contentamento;

  • o acolhimento e a integração levam os membros a serem menos propensos a participar em gangues violentas ou milícias;

  • as comunidades proporcionam auxílio valioso na prevenção de situações graves e na proteção social dos membros, podendo substituir com vantagens diversos serviços estatais;

  • as comunidades são fundamentais ao bom desempenho de políticas públicas, como as de segurança, educação e assistência social.

Ao desempenhar serviços de interesse público, as comunidades não são concorrentes do welfare state, ao contrário, quando cumprem certas funções sociais desoneram o Estado e acabam por fortalecê-lo, permitindo um redirecionamento dos gastos públicos a funções estatais essenciais (ETZIONI, 2019ETZIONI, Amitai [2000]. A terceira via para a boa sociedade. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2019.).

A cultura moral própria da boa sociedade equilibra direitos individuais com responsabilidade social. Ambos são princípios primordiais, com a mesma importância. Embora as mudanças de condições permitam que um conjunto tenha precedência sobre o outro durante algum tempo, o esforço coletivo deve ser alcançar o seu equilíbrio. Mesmo em condições extremas, os valores da autonomia individual devem ser protegidos (podem apenas ser restringidos). As sociedades concretas podem ser analisadas com base em um continuum de culturas morais, em que um ou o outro conjunto de valores tem peso variável. Países com forte presença de comportamentos individualistas carecem de uma cultura moral comunitária mais robusta; países em que a ordem social sufoca a individualidade requerem valores de liberdade pessoal mais fortes (ETZIONI, 1996ETZIONI, Amitai. The new golden rule: community and morality in a democratic society. New York: Basic Books, 1996.).

Uma cultura moral caracterizada pela forte presença de valores comunitários permite à sociedade resolver seus problemas coletivos e garantir o bem comum. Mas isso não é suficiente. Em momentos de crise, como a pandemia do coronavírus, lembra Etzioni (2021ETZIONI, Amitai. Community and COVID-19: Japan, Sweden and Uruguay. Survival, v. 63, n. 1, p. 53-76, 2021.), outra condição torna-se evidente: a combinação virtuosa entre a cultura moral comunitária e a ação estatal. Países com fraca cultura comunitária, ou liderados por governos que não agem em sintonia com a cultura comunitária, ou onde corporações obstruem os esforços coletivos, respondem de forma ineficaz aos desafios da crise. A convergência entre a cultura moral comunitária e a ação estatal é o que torna possível enfrentar crises profundas.

3. Estado responsivo e poder disperso

Responder adequadamente às necessidades básicas do ser humano é uma condição fundamental não só da política, mas de qualquer organização e instituição. Etzioni (1991ETZIONI, Amitai. A responsive society: collected essays on guiding deliberative social change. San Francisco, Oxford: Jossey-Bass, 1991.), com base na teoria de Abraham Maslow, sustenta que as necessidades básicas do ser humano não podem ser manipuladas no longo prazo, embora possam ser por algum tempo mediante meios “não-naturais” (da mídia, de lideranças carismáticas, do fundamentalismo religioso e outras). No longo prazo, a sociedade não pode ser boa nem mesmo estável sem responder às necessidades dos seus membros. A responsividade descarta o uso reiterado de formas verticais (downward) de decisão política, próprias das modalidades elitistas de governo; requer que as necessidades básicas sejam atendidas mediante formas de decisão baseadas na combinação entre a autoridade e a participação dos cidadãos nas decisões políticas. O conceito de responsividade é central no esforço comunitarista de responder às desconfianças dos liberais, expostos por Holmes (1993HOLMES, Stephen. The anatomy of antiliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 1993.) e Kymlicka (2006KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.), acerca do papel excessivo do Estado na vida social e nas deliberações sobre o bem comum.

A responsividade estatal está conectada ao entendimento de que o poder está disperso nas engrenagens sociais e que as lógicas de decisão de cima para baixo (lógicas de “desenho” e de “controle”) têm alcance limitado (ETZIONI, 1991ETZIONI, Amitai. A responsive society: collected essays on guiding deliberative social change. San Francisco, Oxford: Jossey-Bass, 1991.). O poder das unidades centrais, do topo (overlay), é limitado pelo poder disperso no corpo social, na base (underlay). As unidades centrais não têm capacidade de controle pleno; as unidades controladas têm certa capacidade interna de controle e resistência. A “guiabilidade” de um sistema é condicionada largamente pela compatibilidade ou pela possibilidade de compatibilizar os fins que orientam as unidades underlay e overlay. Uma sociedade ativa6 6 A sociedade ativa é capaz de autocontrole social, dominando as forças econômicas que subjugam os indivíduos. Tem características próximas às da pólis grega na intensidade e amplitude de sua vida política, investe significativos recursos na ação política, e nela a reflexão intelectual tem uma posição mais elevada, mais pública (ETZIONI, 1968). requer o exercício do poder voltado à formação de consenso (congruência de preferências) entre as unidades centrais e periféricas (ETZIONI, 1968).

A concepção comunitária da ação política é “realista”, segundo Etzioni (1991ETZIONI, Amitai. A responsive society: collected essays on guiding deliberative social change. San Francisco, Oxford: Jossey-Bass, 1991.), e se opõe tanto ao voluntarismo como ao determinismo. A confiança exagerada na capacidade governamental de modificar situações sociais é uma marca do voluntarismo, o qual desconhece a complexa imbricação das unidades sociopolíticas e o poder nelas disperso. O fato historicamente comprovado de que nem nos regimes totalitários os governos lograram implementar muitas das mudanças planejadas evidencia o limite do voluntarismo. Seu oposto, o determinismo, minimiza a importância do poder, desconhece que ao longo de todo o processo de uma política é necessário usar o poder para vencer resistências. O poder é indispensável à política e é mais eficaz quando há maior consenso acerca dos fins entre as diferentes unidades.

O enfoque comunitarista reconhece a importância da direção política e da ação governamental, mas destaca que a sociedade ativa depende da formação da vontade coletiva, algo bem mais amplo que a vontade das elites. Somente quando se forma uma vontade coletiva, traduzida em ação coletiva, é que a transformação social se torna possível. A liderança política compatível com a formação da vontade coletiva utiliza amplamente a persuasão (não a força ou a imposição), dialogando com instituições, organizações, redes e comunidades.

Um Estado responsivo está atento à cultura moral das comunidades. A cultura moral ou “voz moral” proporciona aos membros a noção do que é correto e incorreto, e incide sobre em todos os planos da vida, inclusive a política. A voz moral interna insta a pessoa a orientar-se pelos valores aos quais adere e a abster-se de condutas que os contrariem. A voz moral da comunidade estimula seus membros a terem uma conduta coerente com os valores da comunidade. A influência da voz moral sobre a conduta das pessoas tende a ser mais forte quando a voz interna é reforçada pela voz comunitária, e a voz comunitária é mais eficaz quando apela a valores já estabelecidos (ETZIONI, 1996ETZIONI, Amitai. The new golden rule: community and morality in a democratic society. New York: Basic Books, 1996., cap. 5).

Quanto mais eficaz é a voz moral, menos necessária é a coerção. Grandes mudanças sociais - como o reconhecimento dos direitos das mulheres e dos negros e a maior preocupação com o ambiente natural - só ocorreram com a mudança na cultura moral das comunidades. Por outro lado, muitos dos agudos problemas sociais atuais, incluindo o crescimento da violência e da criminalidade, estão relacionados à perda da força moral das comunidades, levando amplos segmentos da sociedade a pedir aos governos mais repressão e coerção, sem êxito. A estratégia para o enfrentamento dos grandes problemas sociais requer um esforço para habilitar as comunidades a retomar o seu papel moral em favor da coesão e da ordem social.

4. O Estado comprometido com valores nucleares

Os comunitaristas opõem-se a uma das ideias características do liberalismo político: o Estado neutro. A neutralidade estatal diante das variadas concepções do bem e do bem viver em sociedades plurais, segundo Rawls e outros, é uma exigência democrática. A autonomia individual não pode ser constrangida ou sufocada por imposições estatais sobre o que os indivíduos consideram o bem e a boa vida. Ao Estado democrático (e a uma sociedade democrática) não cabe outra postura senão a de manter a neutralidade. Na perspectiva de Holmes (1993HOLMES, Stephen. The anatomy of antiliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 1993., p. 198ss), a autonomia do indivíduo deve ser protegida no ordenamento jurídico para que cada qual possa traçar o que é “bom”. Essa concepção é tão mais importante em tempos de grandes migrações e diversidade multicultural. Segundo Kymlicka (2006KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 253ss), o Estado deve reconhecer e respeitar todas as tradições culturais.

A posição comunitarista acolhe a preocupação multicultural, mas evita resvalar para a dispersão cultural ao se afastar de dois extremos. De um lado, a concepção liberal tradicional do Estado neutro; de outro, a visão conservadora do Estado prescritivo. O Estado prescritivo tem em alguns países uma feição religiosa: grupos religiosos valem-se do Estado para impor a sua extensa lista de valores; em outros, a feição de tirania secular: valores são impostos em nome da nação ou da sociedade. "Estados prescritivos de ambos os tipos frequentemente procuram controlar a maior parte do que uma pessoa faz, consome, lê, ouve e até pensa", explica Etzioni (2000ETZIONI, Amitai. Law in civil society, good society, and the prescriptive state. Chicago-Kent Law Review, v. 75, n. 2, Article 4, 2000., p. 361-362). Exemplos conhecidos de Estados prescritivos são as teocracias do Iran e Afeganistão, a URSS, o regime nazista, a Coreia do Norte e certas comunidades autoritárias norte-americanas de meados do séc. XX.

A concepção comunitarista centra-se na ideia do Estado comprometido com um “conjunto central de valores” (core values), definido com base no diálogo moral entre os membros da comunidade. Conforme Etzioni (2003), os valores nucleares (core values) são poucos, incluindo o compromisso do indivíduo com a comunidade, a participação nos assuntos públicos, a proteção do meio ambiente, o respeito aos direitos humanos, a garantia de renda básica para todos, a harmonização entre o interesse coletivo e a liberdade individual, e a construção da unidade respeitando à diversidade.

O manifesto comunitarista The Diversity Within Unity Platform (2001) detalha essa linha de raciocínio ao tratar de aspectos práticos envolvendo as migrações. Respeitar a a diversidade na unidade significa que a ação estatal deve afastar-se de dois extremos: o modelo assimilacionista, que busca a imposição de leis universais, ignorando as diferenças culturais, e o da diversidade sem limites, que autoriza cada comunidade a seguir suas tradições, mesmo se estão em conflito com a ordem jurídica vigente. A diversidade na unidade orienta-se pela noção de que a lei (o Estado) deve exigir a adesão de todos a imperativos fundamentais, deixando uma larga margem para costumes e tradições das comunidades particulares. Os imperativos fundamentais a serem respeitados por todos incluem a Constituição do país, leis regionais (como os regramentos da União Europeia) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Documentos esses que reclamam o compromisso de todos com os direitos fundamentais, o modo de vida democrático e a tolerância mútua.

O tema das migrações permite entender o sentido do Estado responsivo em sociedades plurais. O Estado e as instituições devem ser sensíveis aos valores morais das comunidades particulares, mas não devem absolutizá-los. Elas não são árbitros definitivos dos valores comunitários; o árbitro final é a comunidade de comunidades, o conjunto da humanidade. Os conflitos multiculturais internacionais só podem ser tratados adequadamente mediante diálogos morais de alcance mundial, ou seja, por megálogos globais. (ETZIONI, 1996ETZIONI, Amitai. The new golden rule: community and morality in a democratic society. New York: Basic Books, 1996.) As organizações multilaterais, como a Organização das Nações Unidas e os Acordos Climáticos, cumprem um papel fundamental na articulação dos megálogos, sem os quais o recurso à força é a única alternativa para os conflitos e problemas globais.

5. Funções fundamentais, mas limitadas, do Estado

Numa das suas primeiras obras, The Active Society, Etzioni (1968ETZIONI, Amitai. The active society: a theory of societal and political processes. London: Collier-Macmillan; New York: Free Press, 1968.) escreveu que o grande ataque ao Estado e à administração pública em geral - do qual participaram fabianos, socialdemocratas utópicos, marxistas, liberais e conservadores ultraliberais - não reconhece que o Estado tem funções fundamentais: "além de ser um importante instrumento de transformação da sociedade e da redistribuição socialmente aprovada da riqueza e do estatuto, o Estado tem um papel permanente na proteção dos direitos civis e humanos e na contenção dos conflitos armados intra-societários". É verdade que a atuação do Estado tem sido falha nestas áreas, mas "é precisamente na medida em que a sua base política é alargada que a sua utilização legítima pode ser aumentada". (ETZIONI, 1968ETZIONI, Amitai. The active society: a theory of societal and political processes. London: Collier-Macmillan; New York: Free Press, 1968., p. 515)

As grandes questões das sociedades contemporâneas são tratadas no âmbito estatal. Não há um leque pré-determinado de assuntos públicos; questões novas são colocadas constantemente na pauta dos debates, entram na agenda política e as autoridades públicas são demandadas a dar encaminhamento às mesmas. Todavia, os Estados têm limitadas condições de dar respostas, especialmente quando se trata de crises civilizacionais. "O Estado, portanto, não é nem a fonte de todo o mal da sociedade - como muito da tradição ocidental o tem compreendido - nem a grande esperança de cidadania universal e justiça. É, antes, a grande opção para uma mudança social fundamental". (ETZIONI, 1968ETZIONI, Amitai. The active society: a theory of societal and political processes. London: Collier-Macmillan; New York: Free Press, 1968., p. 516)

Este entendimento foi aprofundado décadas mais tarde, quando Etzioni e outros intelectuais passaram a formular sistematicamente as diretrizes do pensamento comunitarista. Essa formulação foi feita sob o impacto da queda do Muro de Berlim, da dissolução da União Soviética e da ascensão do ideário neoliberal. Ao denominar sua concepção política de terceira via (Etzioni criou esta expressão, assim como a de terceiro setor), os comunitaristas liberais buscaram evidenciar seu distanciamento tanto da hipertrofia do Estado - associada aos soviéticos e defendida pelos conservadores sociais - quanto do fundamentalismo de mercado - defendido pelos neoliberais e consolidado no Consenso de Washington. O comunitarismo caracteriza-se por ressaltar a importância e os limites da ação governamental. Mesmo que seja indispensável para tratar os assuntos públicos, nas mudanças profundas geralmente o papel principal cabe aos movimentos sociais e à esfera comunal (ETZIONI, 2009ETZIONI, Amitai. A crisis in consumerism. In: HEMERIJCK, A.; KNAPEN, B.; VAN DOORNE, E. Aftershocks: economic crisis and institutional choice. Amsterdam: Amsterdam University Press, p. 55-62, 2009.).

Em oposição à hipertrofia do Estado - preocupação central dos liberais, que enfatizam a necessidade de “restringir o abuso das instituições públicas sobre o privado” (HOLMES, 1993HOLMES, Stephen. The anatomy of antiliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 1993., p. 207) - os comunitaristas compreendem que a experiência histórica é clara ao indicar que nem todas as necessidades públicas podem ser bem atendidas pelo Estado e que a estatização da economia não é a forma adequada de garantir o desenvolvimento e a igualdade socioeconômica. Reconhecer que o Estado cumpre funções relevantes e insubstituíveis não é o mesmo que defender sua constante expansão e onipresença na sociedade. O gigantismo do Estado aumenta o risco de oligarquização do poder, o autoritarismo e o uso de meios coercivos. O Estado hipertrofiado se baseia em concepções que afirmam a supremacia do coletivo sobre o individual, dos interesses gerais sobre os individuais, do universal sobre o particular. Deve-se buscar um novo equilíbrio, baseado em uma nova regra de ouro: comunidade e indivíduo, ordem social e autonomia individual, são ambos de igual importância; são dois polos que se exigem um ao outro. "E a ordem tem que ser de um tipo especial: voluntária e limitada aos valores centrais, em vez de imposta e difundida. E a autonomia, longe de carecer de limites, tem que ser contextualizada dentro de um tecido social de laços e valores" (ETZIONI, 1996ETZIONI, Amitai. The new golden rule: community and morality in a democratic society. New York: Basic Books, 1996., p. 49).

Este tema, o da capacidade do Estado em atender adequadamente as necessidades públicas, vinha sendo objeto de controvérsia na ciência política em meados do século XX, opondo racionalistas e incrementalistas (HEIDEMAN; SALM, 2009HEIDEMAN, Francisco; SALM, José. Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília: Edunb, 2009.). Para os racionalistas, os limites estatais estariam nas falhas dos agentes responsáveis pela decisão e execução das políticas públicas, e a solução estaria na capacitação técnica dos agentes estatais, no aperfeiçoamento de processos racionais de decisão com a exclusão de interferências emocionais, e na utilização de sofisticados instrumentos tecnológicos. No polo oposto, incrementalistas liderados por Charles Lindblom realçavam que o ato de governar nunca supera a condição de muddling through, dos passos cambaleantes em meio a cenários complexos e dos quais os governantes não conhecem mais que poucos aspectos. A ação governamental estaria limitada a pequenos incrementos em relação à situação posta.

Afastando-se de ambas as posições, Etzioni formulou a teoria do escaneamento misto (mixed scanning). O escaneamento misto é uma perspectiva intermediária entre o racionalismo otimista (que supõe ser possível submeter as decisões políticas a um planejamento tecnocrático altamente eficaz e eficiente, com o uso de tecnologias sofisticadas) e o incrementalismo pessimista (que vê as políticas públicas como nada mais que avanços desordenados e cambaleantes). Etzioni defende enfoques adaptativos: a racionalidade dos decisores sempre será limitada e influenciada por fatores normativo-afetivos; as tecnologias da informação jamais resolverão o problema da informação incompleta, da impossibilidade de analisar todas as alternativas políticas possíveis, da escolha “científica” da melhor opção; mas, há uma série de procedimentos utilizáveis pela inteligência coletiva que pode melhorar as escolhas políticas e que deve ser estimulada (ETZIONI, 2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022., cap. 7).

Tendo em vista a insistência nas limitações insuperáveis do Estado, estariam os comunitaristas sugerindo que o welfare state viável é o modelo residual (segundo a tipologia de ESPING-ANDERSEN, 1991ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas de welfare state. Lua Nova, n. 24, p. 85-116, 1991.) vigente nos Estados Unidos, em que grande parte dos serviços públicos é prestada pelo mercado e pelo setor não lucrativo? Não se trata disso. A visão comunitarista é uma visão de welfare state que reconhece a ação estatal tanto no âmbito das políticas sociais quanto das políticas econômicas. A coordenação e manutenção de sistemas públicos de saúde, de educação e de previdência e assistência social, administração de programas de apoio a desempregados e populações vulneráveis são tarefas fundamentais do poder público. Não podem ser repassadas a agentes privados ou às comunidades, podendo estas participar dos serviços. Na seara econômica, o Estado tem um insubstituível papel regulador, devendo assegurar um ambiente favorável à competição, impedindo a concentração excessiva da riqueza e assegurando condições dignas aos trabalhadores (ETZIONI, 2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022.). São diretrizes que condizem com os regimes da social-democracia, não com um modelo residual.

E na economia, que funções relevantes desempenha o Estado? A socioeconomia - teoria econômica cujas bases Etzioni expôs em A Dimensão Moral (2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022.) [a publicação original é de 1988] - segue a perspectiva delineada por Karl Polanyi de que o mercado foi a consequência de uma intervenção consciente e não poucas vezes violenta de governos, que o mercado não se estabeleceu naturalmente e que só há economia de mercado com ação estatal. Nas sociedades capitalistas contemporâneas, é preciso estar atento a dois excessos: por um lado, os excessos do Estado na regulação do mercado; por outro, a captura do Estado por interesses particulares, corporativos. Etzioni (2022) utiliza a expressão competição encapsulada para ressaltar que em parte alguma existe algo como a livre competição. A competição não acontece em algum âmbito isolado da vida social: o mercado é um subsistema que está inserido em um sistema maior, a sociedade; está dentro de uma cápsula social. O poder governamental constitui uma variável fundamental do jogo competitivo do mercado, algo ignorado pelo modelo liberal paretiano da competição perfeita (uma ficção irrealista).

A visão liberal da competição perfeita baseia-se na concepção errônea do homo economicus, que supõe que os agentes econômicos sejam calculistas frios buscando maximizar seu auto-interesse. Etzioni (2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022.) aponta que essa concepção não se sustenta. O comportamento humano é motivado não por um único impulso básico (prazer) e sim é duplamente motivado (prazer e moralidade). Quando se leva em conta a dupla motivação do prazer e moralidade e a influência insuperável dos fatores normativos-afetivos no agir econômico, toda a arquitetura conceitual da economia neoclássica vem abaixo. A suposta autonomia do mercado frente às outras esferas mostra-se uma ficção sem base real, exigindo uma perspectiva nova, em que a dimensão econômica é compreendida à luz das suas interconexões com o sistema social.

O Estado - subsistema integrante do sistema maior, a sociedade - mantém relação permanente com o subsistema econômico, o qual interfere de formas variadas na dinâmica competitiva do mercado. Os conflitos são endêmicos ao mercado e seu tratamento não pode depender apenas de compromissos normativos e vínculos sociais, porque os agentes podem violá-los. O governo exerce o papel de árbitro de última instância. A ação do poder político pode vir a sustentar ou a prejudicar a competição econômica. Leis que protegem a moeda e a propriedade privada ou proíbem fraudes e violência são notoriamente ações de sustentação; são prejudiciais aquelas ações que beneficiam alguns concorrentes em detrimento de outros; e há ações que precisam ser estudadas antes de poderem ser classificadas adequadamente.

A literatura liberal hegemônica, segundo Etzioni (2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022.), mistifica um aspecto central da economia de mercado: o poder. A presença do poder nas relações econômicas não se dá apenas na forma de interferência do Estado, mas da manipulação do poder estatal por agentes do mercado. Agentes econômicos poderosos têm capacidade de manipular o governo gerando efeitos de pseudoconcentração, ou seja, efeitos comparáveis aos causados por uma concentração de poder econômico, por monopólios ou conluio oligopolista, sem haver necessariamente uma concentração real de poder econômico. No âmbito econômico, “poder político é a capacidade de atores não governamentais em guiar o governo”. (ETZIONI, 2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022., p. 288) O poder intervencionista designa o uso do poder governamental pelos agentes econômicos para seus fins, um fenômeno comum em grandes corporações, mas que também pode-se referir a organizações sindicais e outros. Levando em conta o poder intervencionista, a economia mista não se aplica apenas a países europeus com tradição socialdemocrata, mas à própria economia norte-americana, indevidamente caracterizada como de livre mercado.

Etzioni aborda a questão dos impostos nos Estados de Bem-Estar com base na relação entre direitos e responsabilidades: mais serviços públicos requerem, em geral, mais receitas fiscais. Os novos direitos e a proteção social nos Estados-Providência tiveram como contrapartida em todos os países um aumento significativo da carga tributária. Esse entendimento é convergente com o do economista Thomas Piketty (2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.). Segundo Piketty, até a década de 1910, a receita tributária nos países ricos não ultrapassava 10% da renda nacional, destinada principalmente a funções soberanas: justiça, exército, relações exteriores e administração. Nas décadas seguintes, as receitas fiscais evoluíram progressivamente, atingindo nos anos 1970 o nível de 40% a 50% nos países europeus, financiando sistemas públicos de educação, saúde, aposentadoria, pensões, seguro desemprego e outras políticas de proteção social. A queixa contra os impostos foi uma das forças motrizes por detrás dos ventos neoliberais nos anos 1980, mas nos países ricos, segundo os dados sistematizados por Piketty, o nível geral de impostos não mudou significativamente. As reclamações contra os impostos, para Etzioni (2009, p. 156), muitas vezes constituem uma espécie de esquizofrenia. Quer-se direitos sem responsabilidades, exige-se serviços de Estado de Bem-Estar com impostos de Estado liberal: "por um lado, os norte-americanos exigem impostos baixos e governo pequeno, mas por outro lado apelam para uma gama completa de serviços públicos sobre educação, habitação e política de saúde".

A expansão das estruturas estatais dos welfare states ao longo do século XX possibilitou grandes avanços em termos de direitos, mas preocupa os liberais, como Holmes (1993HOLMES, Stephen. The anatomy of antiliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 1993.), pela excessiva estatização. Os comunitaristas apontam outro problema: as conquistas sociais asseguradas pelas políticas públicas significaram a absorção de funções antes desempenhadas pelas comunidades (em saúde, educação, assistência e outros). Os benefícios e desvantagens da estatização deve ser objeto de permanente atenção e análise, visando evitar o afastamento dos cidadãos das decisões públicas. Etzioni (2019ETZIONI, Amitai [2000]. A terceira via para a boa sociedade. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2019.; 2022) desenvolve uma linha de raciocínio similar à teoria dos bens comuns, de Elinor Ostrom (1990OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. New York: Cambridge University Press, 1990.): a melhor opção na prestação de serviços de interesse público deve ser vista caso a caso. Os estudos de Ostrom evidenciaram que em todos os continentes há experiências comunitárias bem-sucedidas, de longa duração, na gestão do uso de terras, de pastagens, de água escassa, de pesqueiros e de outros bens comuns. O exame dessas experiências indicou que o sucesso desses empreendimentos costuma estar associado a oito princípios: 1. Limites claramente definidos; 2. congruência entre regras de apropriação e provisão e condições locais; 3. arranjos de escolha coletiva; 4. monitoramento; 5. sanções graduadas; 6. mecanismos de resolução de conflitos; 7. reconhecimento mínimo dos direitos de organização; 8. empresas aninhadas (OSTROM, 1990OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. New York: Cambridge University Press, 1990., p. 90). A inobservância desses princípios produziu experiências mal-sucedidas. A lição principal é que não há regra única quanto à prestação de serviços públicos. Na ótica de Ostrom e Etzioni, às vezes a melhor opção é que a prestação de serviços seja feita por organizações da sociedade civil, outras por agências estatais, outras por empresas privadas.

Quando o Estado age de forma responsiva em uma sociedade com forte cultura comunitária e respeito à autonomia individual, com nível moderado de regulação econômica e complementaridade na ação dos agentes públicos, comunitários e privados, os resultados são compatíveis com a boa sociedade. Um exemplo atual sobre a convergência entre a ação estatal e a cultura comunitária pode ser observado, segundo Etzioni (2021ETZIONI, Amitai. Community and COVID-19: Japan, Sweden and Uruguay. Survival, v. 63, n. 1, p. 53-76, 2021.), nas diferenças de adesão popular ao isolamento social, às práticas de higiene e à vacinação durante a pandemia da covid-19. As evidências relativas à primeira onda do coronavírus indicam que países em que os valores comunitários da responsabilidade de todos por todos são mais fortes a pandemia vem sendo melhor enfrentada do que naqueles em que prevalecem valores libertários, individualistas. Mas, mesmo em países com forte tradição cultural comunitária foram observadas significativas diferenças. Etzioni analisa o caso de três países: Japão, Suécia e Uruguai. Nos três países a confiança no governo é relativamente alta, o que evita parte substancial dos conflitos comuns entre comunidades e governos em países com alto nível de sentimentos libertários. A crise foi bem enfrentada no Japão e no Uruguai, mas não na Suécia. As diferenças, segundo Etzioni (2021, p. 69), são explicáveis pelo fato de que “o governo sueco simplesmente não forneceu uma orientação eficaz” enquanto “os governos japonês e uruguaio sinalizaram com firmeza o que tinha de ser feito, o que foi suficiente para ativar os processos comunitários. Em suma, os valores liberal-comunitários saíram-se bem durante uma grande crise internacional.”

6. O equilíbrio entre Estado, comunidade e mercado

Em todas as sociedades contemporâneas - e não apenas em sociedades totalitárias - revela-se o caráter controlador e coercitivo da superorganização que é o Estado: “o Estado é mais um mecanismo de controle político ‘descendente’ (top-down) do que um mecanismo de formação de consenso societal ‘ascendente’ (bottom-up)”, sustenta Etzioni (1968ETZIONI, Amitai. The active society: a theory of societal and political processes. London: Collier-Macmillan; New York: Free Press, 1968., p. 124) A essência do Estado são as funções de controle e coerção. Como outras organizações, o Estado adota estatutos escritos, critérios para a inclusão dos membros e tem papeis definidos. Os riscos da oligarquização e do enrijecimento das estruturas presentes em qualquer organização está sempre posto. Porém, o Estado não pode ser compreendido sem considerar a sua relação com a sociedade (sistema social amplo). Nas sociedades ativas, as redes de formação de consenso no interior do Estado são fortalecidas, enquanto nas sociedades passivas são mais fortes as redes de controle.

Apesar de sua relevância, o pensamento político comunitarista não faz a apologia da comunidade, como se fosse a fonte de todo o bem e a solução de todos os problemas. Em sintonia com a teoria da subsidiariedade, assinala que as comunidades têm capacidade de assumir uma parcela das tarefas coletivas necessárias ao bem-estar, mas que as políticas públicas coordenadas pelo Estado são indispensáveis na organização dos serviços públicos. A comunidade é forte naquilo que o Estado é fraco: em persuasão, em convencimento das pessoas com base em valores (ETZIONI, 2004aETZIONI, Amitai. The common good. Cambridge: Polity Press, 2004a.). A fragilidade do Estado está no fato de que o controle e a coerção são insuficientes para alcançar as finalidades últimas da paz, prosperidade, liberdade, justiça e democracia. O alcance dessas finalidades depende de legitimação social, da aceitação e do apoio das pessoas à ordem social estabelecida, o que pode ser alcançado com diálogos morais e persuasão comunitária.

Estado, comunidade e mercado são esferas sociais distintas, com características próprias, cada qual com suas forças e fraquezas, cada qual com suas contribuições para a boa sociedade. Embora a terceira via comunitarista tenha em comum com a terceira via de Anthony Giddens certas críticas ao welfare state tradicional - centralismo nas decisões, baixa participação da sociedade, uso do poder político por grandes corporações econômicas, discurso político com ênfase em direitos sem contrapartida nas responsabilidades - a sua marca característica é revalorização da comunidade e dos vínculos sociais, distanciando-se do individualismo. Seu argumento principal é o de que nas sociedades ocidentais a comunidade vem sendo menosprezada, e que um novo equilíbrio requer mais atenção às comunidades e às suas organizações (terceiro setor).

Há, por outro lado, ambientes com ênfase excessiva na ordem social em detrimento da autonomia individual, como acontece em países orientais. O comunitarismo asiático expressa essa cultura ao antepor a família, a harmonia social e os deveres sociais à autonomia individual, à sociedade civil e às liberdades políticas (BELL, 2009; CHUA, 2017CHUA, Beng Huat. Liberalism disavowed: communitarianism and state capitalism in Singapore. New York: Cornell University Press, 2017.). No lado ocidental, a atenção exagerada à ordem social é própria do social-conservadorismo. A visão social-conservadora considera a comunidade e a autoridade como fundamentos da sociedade: “aqui a nação, a pátria, a igreja ou a sociedade têm prioridade sobre o indivíduo”. (ETZIONI, 2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022., p. 7)

A valorização das comunidades não deve seguir fórmulas gerais. É preciso levar em conta o contexto social e as diferentes expertises desenvolvidas pelas organizações comunitárias. Nos Estados Unidos, o setor não lucrativo tem forte atuação em variadas áreas, incluindo educação, saúde, museus e assistência social. Na Europa, há uma rica tradição de economia social, com destaque às entidades mutualistas e às cooperativas. O policiamento comunitário é um modelo solidificado em países como França, Reino Unido, Holanda e Japão. A influência das organizações cívicas italianas tornou-se conhecida internacionalmente pelos estudos sobre o capital social, de Robert Putnam. Formas de mediação comunitária e de justiça restaurativa não estatais são conhecidas em diferentes países. No Brasil, há uma extensa rede de universidades, escolas e hospitais comunitários com presença significativa nas áreas de educação e saúde. Na América Latina multiplicam-se as iniciativas de economia solidária, especialmente nas camadas populares.

Seja em países com Estado forte, seja em países com Estado fraco, o terceiro setor vem se mostrando indispensável e continuará a ser indispensável. Este entendimento é sublinhado por diversas teorias da sociedade civil e do capital social e há fortes razões econômicas para seguir tal direção. Segundo Piketty (2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.), o welfare state do século XXI está diante de uma encruzilhada: as demandas sociais ao Estado Social são elevadas, mas é impensável que a carga tributária possa crescer neste século em índices similares aos do século passado. Não é plausível esperar que os cidadãos concordem que para atender novas demandas sociais os governos continuem elevando indefinidamente os tributos num contexto de baixo crescimento futuro. A participação de organizações sociais na prestação de serviços é indispensável e novas formas de organização e propriedade estão para ser inventadas.

Quanto ao papel do mercado, a teoria comunitarista liberal reconhece que ele cumpre um papel importante, é um parceiro do tripé de uma boa sociedade: “o mercado é o melhor motor para a produção de bens e serviços, para o trabalho e, portanto, para o progresso econômico. Além disso, o setor privado pode estimular a inovação que adapte a economia às oportunidades e às condições cambiantes” (ETZIONI, 2019ETZIONI, Amitai [2000]. A terceira via para a boa sociedade. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2019., p. 63-64). Há alguns aspectos que devem ser esclarecidos nesta concepção.

Primeiro: o mercado regulado é a melhor alternativa para as sociedades atuais, preferível ao livre mercado e à economia centralizada. O mercado livre é uma quimera, que encobre práticas monopolistas e oligopolistas, bem como o intercâmbio do poder econômico e político. Porém, diferentemente da posição marxiana, a concepção comunitarista não vê o mercado como a fonte de todos os males, nem vê a nacionalização da economia como uma solução para seus males. A coletivização dos meios de produção não é o caminho para superar a alienação. A ideia de que a objetificação do ser humano poderia ser superada "se os novos meios de produção fossem entregues à coletividade provou ser falsa. Em vez disso, combinou-se com maior objetificação em outros âmbitos, bem como na produção” (ETZIONI, 1968ETZIONI, Amitai. The active society: a theory of societal and political processes. London: Collier-Macmillan; New York: Free Press, 1968., p. 6).

Segundo: a regulação estatal do mercado é indispensável, não só para assegurar direitos e proteção social aos cidadãos como também para o funcionamento do próprio mercado. O mercado é incapaz por si próprio de solucionar seus conflitos e de prover instrumentos de defesa das pessoas diante das forças econômicas. Etzioni (2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022.) argumenta que um governo regulador, que esteja a serviço do interesse coletivo, é indispensável ao bom funcionamento do mercado e à saúde social, mas as regulações não são inerentemente boas. Podem ser excessivas, vazias ou a serviço de interesses particulares. Estabelecer mecanismos adequados de regulação é um dos desafios políticos permanentes das boas sociedades.

Terceiro: a economia e o mercado refletem os valores vigentes na sociedade. O mercado está imerso numa cápsula social e as transações e formas de competição entre os agentes e grupos econômicos são influenciadas fortemente pelos valores dominantes na sociedade. Ao Estado compete estabelecer mecanismos para controlar e proteger a competição, pois deixada a si pode chegar à autodestruição. A competição, diz Etzioni (2022ETZIONI, Amitai [1988]. A dimensão moral: rumo a uma nova economia. Salvador: Edufba; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2022., p. 261ss), adequadamente limitada é uma força construtiva; a competição desatada é destrutiva; a competição reprimida inibe a criatividade.

Quarto: o mercado capitalista vem acarretando impactos fortemente negativos à vida social decorrentes da exacerbação do egoísmo e do consumo fácil, próprios da euforia neoliberal e do triunfalismo do mercado, diz Etzioni (2009ETZIONI, Amitai. A crisis in consumerism. In: HEMERIJCK, A.; KNAPEN, B.; VAN DOORNE, E. Aftershocks: economic crisis and institutional choice. Amsterdam: Amsterdam University Press, p. 55-62, 2009.). Robert Bellah (1996BELLAH, Robert et al. Habits of the heart: individualism and commitment in American life. 3ª ed. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1996.) chama a atenção aos impactos da cultura individualista sobre a ecologia social, levando à destruição de laços tênues que unem os seres humanos uns aos outros, tornando-os temerosos e isolados. Para Sandel (2012SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.), a sociedade capitalista de consumo opera uma invasão de valores de mercado em dimensões que jamais deveriam ser sujeitas à mercantilização. O autor constata que nas sociedades atuais nem tudo está à venda, mas os exemplos de mercantilização de novos “produtos” à venda são abundantes: alugar partes do próprio corpo, vender órgãos, ser remunerado para deixar de fumar, ser pago para reservar vaga na fila de um evento público, comercializar presentes recebidos ou mesmo pagar para poder poluir (créditos de carbono). A invasão de diferentes dimensões sociais por valores de mercado continua sendo justificada pelos economistas tradicionais em nome da independência da economia frente à moral. Se algo traz benefícios, por que não comercializar? Porque, diz Sandel (2012, p. 38), envolve corrupção (degradação) e aproveita-se da vulnerabilidade dos mais fracos.

Quinto: os comunitaristas entendem que a economia capitalista de mercado foi uma condição para a emergência da democracia, mas hoje limita seriamente o alcance da democracia. Se a democracia moderna só existiu até hoje em países com economia de mercado, não é menos verdade que esse convívio se dá em meio a conflitos permanentes. No dizer de Benjamin Barber (2009BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2009.), uma democracia forte não pode coexistir com adultos infantilizados pela cultura do consumo e crianças educadas desde cedo para serem consumidores vorazes submetidos a necessidades artificialmente produzidas. O capitalismo de consumo alimenta-se do ethos do infantilismo e da ideologia da privatização, que privilegiam o consumidor que existe em nós em detrimento do cidadão que existe em nós. Um nível superior de democracia requer outra forma de mercado, em que a comunidade e o bem público prevaleçam sobre o interesse privado focado no consumo.

A formulação comunitarista vai ao encontro da afirmação de Holmes (1993HOLMES, Stephen. The anatomy of antiliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 1993., p. 212ss) de que o liberalismo não é um economicismo e não se dobra à maximização do lucro a qualquer custo. Reconhecendo que há, sim, riscos reais de economicismo no pensamento liberal, o comunitarismo liberal aponta para a possibilidade e a necessidade de um novo mercado, o que requer uma cápsula social orientada por valores transcendentais, em lugar da cápsula marcada por valores da sociedade de consumo. A sociedade de consumo, diz Etzioni (2015ETZIONI, Amitai. The new normal: finding a balance between individual rights and the common good. New Brunswick: Transaction Publishers, 2015.), é uma distorção, não a realização das necessidades básicas. A lógica das necessidades básicas é outra: garantida a segurança econômica básica, os cidadãos vão em busca daquilo que lhes traz maior satisfação e contentamento: afeto, reconhecimento social e auto-realização, cujas fontes principais são atividades colaborativas, vida comunitária e espiritualidade.

7. Comunidade política global versus imperialismo

O discurso liberal das liberdades e dos direitos humanos universais tem se chocado com as práticas imperialistas dos países em que esse discurso é predominante, em particular os Estados Unidos e seus aliados. Dezenas de ocupações de territórios em nome das causas liberais vem sendo contestadas por vasto conjunto de lideranças e intelectuais e por setores liberais minoritários, entre os quais os comunitaristas liberais.

As práticas imperialistas norte-americanas e seus aliados nas últimas décadas têm sido avalizadas por teorias como o realismo de Henry Kissinger, para quem os Estados Unidos não tinham amigos nem inimigos permanentes, apenas interesses; a teoria do fim da história, de Francis Fukuyama (1992FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.), que celebra a suposta vitória final do capitalismo e dos valores liberais; e a do choque de civilizações, de Samuel Huntington (1997HUNTINGTON, Samuel. O choque das civilizações e a recomposição da nova ordem mundial. Rio de janeiro: Objetiva, 1997.), que prevê que a principal fonte de conflitos da era da globalização são os valores inconciliáveis das civilizações ocidental-cristã e islâmica. Trata-se de perspectivas cultural e ideologicamente situadas, que supõe a superioridade dos valores e das formas de vida ocidentais e consideram que as nações não-Ocidentais têm pouco a contribuir para o desenvolvimento das instituições políticas e econômicas. Posições que favorecem os conflitos internacionais.

Etzioni (2004bETZIONI, Amitai. From empire to community: a new approach to international relations. New York: Palgrave Macmillan, 2004b., 2007, 2016) desenvolve uma forte crítica às abordagens que justificam as práticas imperialistas. Tendo como pano de fundo a noção de comunidade de comunidades, chama a atenção para a urgência de pensar fora da caixa no âmbito das relações internacionais. Abrir a caixa significa colocar em questão as justificativas que os governos apresentaram aos cidadãos para atos de guerras no Iraque, Afeganistão e outros. As justificativas incluíam argumentos sobre a necessidade e legitimidade do uso da força para implantar a democracia e os direitos humanos em países autoritários e discriminatórios. Tal entendimento não tem qualquer sentido quando se tem em mente que a democracia não se resume a eleições e só se mostrou viável na presença de um conjunto de condições: um nível básico de ordem e respeito à lei, desenvolvimento econômico e educacional, existência de juízes independentes, classe média significativa, rico tecido social de associações voluntárias, separação de poderes, liberdade de associação, de expressão e de imprensa. Essas condições estiveram presentes, ao menos em parte, nas poucas intervenções norte-americanas do século XX que viabilizaram regimes democráticos posteriores, entre as quais Alemanha, Itália e Japão, mas estão ausentes nas intervenções das últimas décadas, que destruíram o tecido social, político e econômico existente sem edificar a democracia. (ETZIONI, 2016ETZIONI, Amitai. Foreign policy: thinking outside the box. London: Chatam House, 2016.)

A concepção comunitarista respaldada pelo conceito de comunidade de comunidades sustenta que, em vez de impor os padrões da democracia liberal e dos direitos humanos, uma política realista e pragmática de relações internacionais deve ser centrada na ideia de segurança básica. A ideia de segurança em primeiro lugar (security first) repousa no princípio da primazia da vida, um princípio aceito por todos os povos. Enquanto a democracia e os direitos humanos são temas ocidentais, a segurança em primeiro lugar atrai a atenção de todos (ETZIONI, 2007ETZIONI, Amitai. Security first: for a muscular, moral foreign policy. New Haven & London: Yale University Press, 2007.). Segurança em primeiro lugar para todos significa não ser submetido à violência mortal, mutilação e tortura, ou seja, a garantia da vida. É uma medida de paz social e torna possível um governo estável.

Etzioni busca identificar condições sob as quais pode prosperar o convívio pacífico. É preciso superar os preconceitos de lado a lado. Ocidentais pretendem ter o monopólio das crenças legítimas e atribuem aos orientais valores ligados ao autoritarismo e à falta de autonomia individual. Orientais consideram que a cultura ocidental avaliza o individualismo, o relativismo e o hedonismo. Uma síntese só é possível quando se toma como ponto de partida a constatação de que “há milhões de pessoas moderadas (embora muitas sejam iliberais) em todas as civilizações, assim como há extremistas” (ETZIONI, 2016ETZIONI, Amitai. Foreign policy: thinking outside the box. London: Chatam House, 2016., p. 38). Há lideranças e setores moderados em todos os países e culturas, dispostos a contribuir para o entendimento entre os povos, mas boa parte deles não professam crenças liberais. Compreender isso torna possível desenvolver diálogos morais em vista da edificação de uma base comunal intercultural, uma síntese entre os valores da autonomia individual ocidental e os da ordem social oriental. “Considero que uma boa sociedade pode encontrar maneiras de combinar as formas associativas mais próximas à comunidade com o respeito aos direitos e à autonomia que uma sociedade moderna livre proporciona”. (ETZIONI, 2004, p. 45)

É na construção de uma síntese global normativa, que leve em conta valores interculturais, que está a única chance do convívio pacífico mundial. A linguagem dos documentos internacionais deve respeitar a interculturalidade. Por isso, é valioso o esforço de reescrever a Declaração dos Direitos Humanos em linguagem intercultural, inserindo as responsabilidades junto aos direitos. A síntese global normativa deverá ser sustentada mais em persuasão autêntica que em interesses ocasionais e em poder coercitivo. A ação de líderes persuasivos é fundamental, construindo convergências entre as nações. Discernindo entre o nacionalismo tóxico e o legítimo amor à pátria, estabelecendo diálogos respeitosos sobre os fundamentos dos valores sustentados pelos diferentes povos, criam-se as condições para a construção do bem comum da humanidade.

Conclusão

O comunitarismo liberal aportou inovadoras formas de pensar a política a partir da retomada de um conceito clássico do pensamento ocidental - o conceito de comunidade, conceito esse que havia caído em descrédito após seu uso desairoso pelo nazismo e nacionalismos autoritários. Tal retomada levou a sério as críticas dos filósofos liberais sobre os riscos derivados da supervalorização da comunidade e do Estado. A comunidade é abordada pelos comunitaristas como um fenômeno universal que preenche uma profunda necessidade humana, mas que se repõe de modos diversos nas diferentes sociedades e tem significado político ambíguo, às vezes autoritário, às vezes democrático. Os filósofos lançaram os fundamentos do comunitarismo contemporâneo, mas a formulação sociopolítica foi desenvolvida no principal no âmbito da rede de cientistas sociais e avançaram para além das questões iniciais do debate liberais x comunitaristas, abordando novos temas e issues de outros campos do conhecimento. Nas obras de Amitai Etzioni encontra-se, além da reflexão sobre os temas clássicos, análises de múltiplos aspectos de políticas públicas do Século 21, de pesquisas de opinião pública, de estatísticas socioeconômicas e estudos empíricos. Esta faceta da teoria comunitarista é pouco conhecida no Brasil, onde ainda predominam os estudos de caráter filosófico.

Ao longo do texto foram delineados sete elementos centrais à teoria política comunitarista, que confluem para o entendimento de que a comunidade é uma esfera fundamental para a aprimorar a política democrática. Vale perguntar: que problemas este ideário pode ajudar a resolver? Que novos ângulos de visão este ideário proporciona? Três aspectos podem ser destacados.

A concepção triádica das esferas sociais - Estado/comunidade/mercado - proporciona um ângulo fecundo para a análise das organizações da sociedade civil. A cultura política e jurídica brasileira e internacional ainda está permeada pela visão dualista - público/privado ou Estado/mercado - cujas raízes remontam à tradição greco-romana e que é inadequada para analisar a complexa teia das organizações contemporâneas. A visão dualista obscurece as diferenças entre empresas e organizações da sociedade civil, entre setor privado e terceiro setor, ao passo que a visão triádica evidencia as especificidades de cada qual, jogando luz sobre as dinâmicas totalmente distintas que movem uma empresa em busca do lucro e uma associação que presta serviços aos membros e à comunidade. A arquitetura conceitual de Etzioni pode iluminar mudanças legislativas, de forma similar ao implementado na legislação da educação superior, com a introdução da tríade instituições públicas, instituições comunitárias e instituições privadas, mediante a Lei 12.881/2013 e nova redação do artigo 19 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

Outra contribuição é a concepção de Estado presente no ideário comunitarista, que pode favorecer a superação da oposição entre o viés estadocêntrico e o viés neoliberal. O entendimento de que o Estado é um elemento central da organização política, imprescindível para enfrentar os grandes problemas sociais, mas ao mesmo tempo tem claros limites, fortalece a concepção de que é necessário um Estado forte, mas não um Estado gigante. As funções bem cumpridas pelo Estado são aquelas que requerem a autoridade baseada na lei e na coerção, o que lhe confere o insubstituível papel de coordenação das políticas públicas. Em aspectos que demandam a formação de consensos sociais, mais sensíveis à persuasão do que ao controle, a comunidade ou sociedade civil frequentemente se mostra mais eficaz. No âmbito econômico, a regulação moderada do mercado é o caminho mais adequado de uma boa sociedade.

Nas relações internacionais, a perspectiva comunitarista traz elementos para avançar para além da visão liberal ocidental que subjaz às práticas imperialistas pós-2ª Guerra. As relações internacionais conduzidas pelas potências imperialistas vêm priorizando os valores da democracia e dos direitos humanos, que se mostram inadequadas ao diálogo com culturas não-ocidentais. A premissa comunitarista da segurança em primeiro lugar dialoga com um valor tido como universal - a primazia da vida - e fundamenta uma linha realista e pragmática às relações entre os povos. Trata-se de uma abordagem que tem especial importância no momento da (provável) transição do mundo unipolar (centrado em um único polo de poder econômico e político, os Estados Unidos) para o mundo bipolar (com dois polos importantes, Estados Unidos-China) e talvez multipolar (incluindo União Europeia, Rússia e América Latina). Há sinais preocupantes de que a transição da unipolaride à multipolaridade pode se dar em meio a fortes conflitos, inclusive bélicos.

As fragilidades do comunitarismo liberal e da obra de Etzioni não foram destacadas neste texto, tendo em vista os limites de um artigo e o objetivo de dar visibilidade às suas contribuições. Vale assinalar que no caso de Etzioni, nas suas análises sobre assuntos específicos foram costumeiros tanto as concordâncias quanto os contrapontos. Sua condição de intelectual público, tomando posição em assuntos momentosos, favoreceu particularmente o envolvimento em polêmicas. Quanto às fragilidades do comunitarismo liberal, é oportuno referir ao menos uma de suas limitações mais notórias: o de refletir fortemente questões da academia e do ambiente social norte-americano e europeu. Há falta de aproximações com realidades da periferia capitalista, como a América Latina. Aqui, o desenvolvimento de um pensamento centrado na comunidade requer ênfases complementares, como a desigualdade social, a permanência da herança escravocrata, a colonialidade confrontada pelo pensamento decolonial, a cultura comunitária dos povos originários, as ameaças autoritárias que recrudesceram recentemente. São tarefas que só podem ser cumpridas por intelectuais latino-americanos, atentos às singularidades de nossos povos. Amitai Etzioni, que encerrou sua militância intelectual pública em 2022, teve clara noção do vínculo social da sua teoria. Sua origem germânica (passou sua primeira infância na Alemanha nazista), sua vivência em Israel (na juventude) e a transferência para os Estados Unidos (para concluir os estudos, onde permaneceu) favoreceu um olhar sensível às dinâmicas simultâneas da homogeneização e diferenciação em tempos de globalização.

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  • WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • 1
    Comunidade é o conceito-chave em torno do qual foi edificado o comunitarismo. Enquanto comunidade é um termo antigo, presente em todos os grandes sistemas de pensamento e religiões universais (NISBET, 1982NISBET, Robert. Os filósofos sociais. Brasília: Edunb, 1982.), o comunitarismo tem um caminho mais curto. Henry Tam (2019) atribui seu uso pioneiro a Robert Owen na década de 1840 e sua concepção de comunidade construída através da educação e organização cooperativa. De acordo com Amitai Etzioni (1998ETZIONI, Amitai. Introduction. In: A. ETZIONI (ed.). The essential communitarian reader. Lanham, Rowman & Littlefield Publishers, p. ix-xxiv, 1998., p. ix), o termo foi usado pela primeira vez em 1841 por John Barmby, fundador da Associação Comunitária Universal, que considerava comunitarista o "membro de uma comunidade formada para colocar em prática teorias comunistas ou socialistas". O significado contemporâneo ("de pertencer a ou ser característica de uma comunidade") apareceu no Webster's Dictionary, em 1909.
  • 2
    O movimento comunitarista norte-americano adotou o adjetivo responsivo para marcar a sua distinção em relação a outras concepções comunitaristas. Responsivo (responsive) tem o sentido de “dar resposta”, de “ser sensível” às demandas dos cidadãos, da sociedade.
  • 3
    The Responsive Communitarian Platform: Rights and Responsibilities (Plataforma Comunitária Responsiva: Direitos e Responsabilidades) (1991), a plataforma programática do movimento comunitarista, teve como principais articuladores Amitai Etzioni e Willian Galston. O documento foi assinado por 104 personalidades, incluindo intelectuais, feministas, líderes afro-americanos e hispânicos, representantes religiosos, republicanos moderados e liberais. Suas principais diretrizes incluem: a importância da comunidade na existência humana; o equilíbrio indispensável entre liberdade e responsabilidade, assim como entre ordem social e autonomia individual; o papel da voz moral diante do Estado e do mercado, exercido mediante persuasão e educação; o fortalecimento da democracia através do aumento da representação, da participação e da responsividade da política; a centralidade dos valores, dos deveres cívicos e da ética na política; a afirmação de uma democracia forte, não apenas de uma democracia majoritária; a necessidade de repensar e apoiar a família, primeira linha de defesa da educação moral; a formação do caráter como o principal papel da escola, segunda linha de defesa; a relevância do fortalecimento das comunidades e do espírito comunitário; a defesa da saúde pública; a perspectiva cosmopolita do comunitarismo responsivo.
  • 4
    Este ponto de vista foi afirmado também pelos filósofos. No dizer de Michael Walzer (2010WALZER, Michael. Pensar políticamente. Madrid: Espasa Libros, 2010., p. 175), “na medida em que o liberalismo tende à instabilidade e à dissociação, necessita de uma correção comunitarista periódica”, uma correção voltada à valorização das comunidades que o liberalismo, por expressar a fragmentação das relações sociais vigente, tende a desconhecer.
  • 5
    Immanuel Kant (1974KANT, Immanuel. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974., p. 223) assim formulou o imperativo categórico: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.”
  • 6
    A sociedade ativa é capaz de autocontrole social, dominando as forças econômicas que subjugam os indivíduos. Tem características próximas às da pólis grega na intensidade e amplitude de sua vida política, investe significativos recursos na ação política, e nela a reflexão intelectual tem uma posição mais elevada, mais pública (ETZIONI, 1968ETZIONI, Amitai. The active society: a theory of societal and political processes. London: Collier-Macmillan; New York: Free Press, 1968.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2022
  • Aceito
    07 Fev 2023
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