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A desinstitucionalização como forma de corrosão da pretensão do monopólio estatal da violência legítima: uma abordagem a partir de Pierre Bourdieu, François Dubet e Danilo Martuccelli

Resumo

O presente artigo pretende discutir o impacto da desinstitucionalização sobre a pretensão de monopólio da violência legítima, física e simbólica, por parte do Estado. Assim, em primeiro lugar, partindo de uma concisa abordagem dos conceitos de campo, de capital e de habitus, apresenta, sem pretensão a um distanciamento crítico (que seria incompatível com as suas dimensões e propósitos), os aspectos gerais da reflexão de Pierre Bourdieu acerca do Estado. Em seguida, examina a tese proposta pelo autor acerca do Estado como instituição responsável pela (re)produção e canonização das formas de classificação social. Após esse exame, enfoca aspectos fundamentais da análise empreendida por François Dubet e Danilo Martuccelli acerca do processo de desinstitucionalização para, a partir dela, indicar alguns dos seus efeitos sobre o Estado.

Palavras-chave:
Estado; Poder simbólico; Legitimidade; Desinstitucionalização; Individualização

Abstract

This article aims to discuss the impact of deinstitutionalization on the state's claim to a monopoly of legitimate physical and symbolic violence. Thus, in the first place, starting with a concise approach to the concepts of field, capital, and habitus, it presents, without pretension to a critical distancing (which would be incompatible with its dimensions and purposes), the general aspects of Pierre Bourdieu's reflection about the State. For this purpose, it then examines the thesis proposed by the author about the State as an institution responsible for the (re)production and canonization of forms of social classification. After this examination, it focuses on fundamental aspects of the analysis undertaken by François Dubet and Danilo Martuccelli about the process of deinstitutionalization to indicate some of its effects on the State.

Keywords:
State; Symbolic power; Legitimacy; Deinstitutionalization; Individualization

Introdução

É possível afirmar que, ao longo de seu desenvolvimento, as ciências sociais atribuíram particular atenção ao Estado.1 1 Como enfatizam Bezes e Pierru (2019, p. 584), “dans le développement des sciences sociales, la sociologie de l’État a constitué historiquement la première manière d’aborder les activités publiques. Tous les fondateurs de la sociologie (Durkheim, Marx, Weber) et, a fortiori, de la science politique ont proposé des analyses de l’État articulant la mise en place d’un État légal-rationnel, la construction d’une administration professionnalisée et une réflexion générale sur la modernité économique, sociale et politique. Ces perspectives pionnières ont donné naissance à une première grammaire d’analyse du pouvoir, riche et intégratrice, en termes de bureaucratisation, de territorialisation, de monopolisation, de construction d’un « centre » et de civilisation des mœurs individuelles qui a structuré, après-guerre, l’analyse comparée de l’État […].” [“no desenvolvimento das ciências sociais, a sociologia do Estado constituiu historicamente a primeira forma de abordar as atividades públicas. Todos os fundadores da sociologia (Durkheim, Marx, Weber) e, a fortiori, da ciência política propuseram análises do Estado articulando a instauração de um Estado legal-racional, a construção de uma administração profissionalizada e uma reflexão geral sobre modernidade economia, social e política. Essas perspectivas pioneiras deram origem a uma primeira gramática de análise do poder, rica e integradora, em termos de burocratização, de territorialização, de monopolização, de construção de um ‘centro’ e de civilização dos costumes individuais que estruturou, no pós-guerra, a análise comparativa do Estado […].” (traduzido livremente do original)]. Trata-se de uma preocupação já claramente expressa na obra dos fundadores da sociologia, especialmente em Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, e que se exprime também nos trabalhos de autores contemporâneos de grande expressividade, tais como Anthony Giddens, Jürgen Habermas, Niklas Luhmann e Pierre Bourdieu. O tema, de forte vocação interdisciplinar, também angaria a atenção de autores da antropologia política, tais como Pierre Clastres e Georges Balandier, de historiadores, como Quentin Skinner, Perry Anderson e Pierre Rosanvallon, de cientistas políticos, como Bertrand Badie, Charles Tilly e Theda Skocpol e de filósofos contemporâneos, quais sejam Ernst Cassirer, Louis Althusser e Michel Foucault.2 2 Clássicos do pensamento brasileiro, de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Raymundo Faoro a Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni e Francisco Weffort, passando por Simon Schwartzman, Roberto DaMatta e Florestan Fernandes, também atribuem particular importância ao Estado em suas análises. Contudo, o tema também é central em autores que se situam mais diretamente no âmbito dos estudos sociojurídicos e da teoria do direito.3 3 Especificamente no que tange aos estudos sociojurídicos, tendo em conta a tradição intelectual na qual se inscrevem os autores que serão mobilizados como fundamentação da presente análise, ver, especialmente: Arnaud (2003; 2004); Chevallier (2008; 2011); Commaille (2015). No contexto brasileiro, em caráter meramente ilustrativo, cabe mencionar: Campilongo (2002) e Faria (2011). No âmbito da teoria do direito, ver, também em caráter apenas ilustrativo: Kelsen (2006 [1945]); Troper (2011) e, no Brasil, Ferraz Jr. (2011).

Tendo em vista que o tema do Estado é enfocado por uma verdadeira miríade de autores, das mais variadas proveniências e com interesses e propósitos díspares, qualquer tentativa de elaboração de um inventário exaustivo da produção a ele concernida está invariavelmente fadada ao fracasso.4 4 Para uma análise com essa pretensão, mostra-se pertinente a constatação feita por Rosanvallon (1990, p. 10): “il y a encore beaucoup de thèses à rédiger, de monographies à dresser et de montagnes d’archives à remuer pour songer à rédiger une histoire générale de l’État.” [“ainda há muitas teses para escrever, monografias para elaborar e montanhas de arquivos para mover para se pensar em escrever uma história geral do Estado.” (traduzido livremente do original)]. Assim, diante da monumental e multifacetada literatura das ciências sociais dirigida à temática do Estado, torna-se indispensável eleger um referencial teórico específico para, com isso, elidir uma abordagem superficial e eclética. Em face do exposto, o presente artigo mobilizará a perspectiva de Bourdieu (1993BOURDIEU, Pierre. Esprits d’État: genèse et structure du champ bureaucratique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 96-97, p. 49-62, 1993.; 1994; 2003 [1997]; 2012) para, a partir dela, discutir os efeitos da desinstitucionalização, nos termos em que Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.) a compreendem.

Contudo, a seleção de um referencial implica justificação e, a esse respeito, a escolha da obra de Pierre Bourdieu justifica-se em razão da amplitude de sua análise, da consistência de suas conclusões e da vasta gama de autores (clássicos e contemporâneos) por ele enfocados. Nesse sentido, vale notar que o seu livro intitulado Sur l’État, que reúne os cursos por ele ministrados no Collège de France entre 1989 e 1992, constitui uma das mais relevantes contribuições atuais para o tratamento das questões relativas à sociogênese, à estrutura e à função do Estado.5 5 O curso ministrado no Collège de France entre 1989 e 1992 está consignado em Bourdieu (2012). A respeito, ver, especialmente: Lenoir (2012b) e Villas Bôas Filho (2020a; 2021a; 2021b). Como se verá a seguir, Bourdieu (2012, p. 66-67), em sua expressiva análise, concebe o Estado como uma instituição que, como tal, consiste no que o autor define como “fiduciário organizado”, ou seja, como “confiança organizada” ou “crença organizada”.

Nessa perspectiva, Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 67) sustenta que uma determinada instituição seria, na verdade, uma espécie de “ficção coletiva” que, em virtude da crença que lhe é depositada, tornar-se-ia real. No entanto, o autor realça também que as instituições caracterizar-se-iam pelo automatismo, uma vez que remetem a processos regulares, repetitivos, constantes e automáticos. Além disso, as instituições existiriam independentemente das pessoas que as habitam.6 6 Segundo Bourdieu (2012, p. 67), “les institutions sont du fiduciaire organisé et doué d’automatisme. Le fiduciaire, une fois qu’il est organisé, fonctionne comme un mécanisme. […] On parle de mécanismes pour dire que ce sont des processus réguliers, répétitifs, constants, automatiques, qui réagissent à la façon d’un automatisme. Ce fiduciaire existe indépendamment des gens qui habitent les institutions considérées.” [“as instituições são o fiduciário organizado e dotado de automatismo. O fiduciário, uma vez que é organizado, funciona como um mecanismo. [...] Fala-se de mecanismos para dizer que são processos regulares, repetitivos, constantes, automáticos, que reagem ao modo de um automatismo. Esse fiduciário existe independente das pessoas que habitam as instituições consideradas.” (traduzido livremente do original)]. Por fim, Bourdieu (2012, p. 263) enfatiza que as instituições existem sempre de duas formas: na realidade (nos Registros Civis, nos Códigos e nos formulários burocráticos, por exemplo) e nos “cérebros das pessoas”. Consequentemente, uma instituição somente funciona se houver a correspondência entre as “estruturas objetivas” e as “estruturas subjetivas”.7 7 Conforme Bourdieu (2012, p. 263), “une institution ne marche lorsqu’il y a correspondance entre des structures objectives et des structures subjectives.” [“uma instituição só funciona quando há correspondência entre estruturas objetivas e estruturas subjetivas.” (traduzido livremente do original)].

Por sua vez, Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.) ressaltam que as instituições designam os mecanismos pelos quais determinada sociedade assegura a sua integração social pela socialização, mediante o controle social e a manutenção de valores. Por conseguinte, nessa perspectiva, elas seriam um instrumento de formação dos indivíduos. Contudo, os autores observam que as instituições, além de suas funções de socialização, abrangem agenciamentos jurídicos da vida política que possibilitam a gestão pacífica dos conflitos sociais.8 8 Dubet e Matuccelli (1998, p. 65) sustentam que “la notion d’institution évoque aussi l’instauration d’un ordre symbolique, d’une structure mythique transformée en structure psychique, d’une loi plus large que les lois du droit. Autrement dit, partant d’un problème d’intégration, la notion d’institution a eu vocation à embrasser la totalité de la société en étudiant le processus de production des individus.” [“a noção de instituição também evoca a instauração de uma ordem simbólica, de uma estrutura mítica transformada em estrutura psíquica, de uma lei mais ampla que as leis do direito. Em outras palavras, partindo de um problema de integração, a noção de instituição pretendeu abarcar a totalidade da sociedade ao estudar o processo de produção dos indivíduos.” (traduzido livremente do original)]. Vale notar que Dubet (1994, p. 170) associa o conceito de instituição, em sua acepção estrita, a “une forte capacite d’intégration fonctionnelle autour des valeurs centrales […].” [“uma forte capacidade de integração funcional em torno de valores centrais [...].” (traduzido livremente do original)]. Logo, seria possível indicar a existência de uma acepção ampla e de uma estrita do conceito de instituição.9 9 Seria possível afirmar que “instituição” seria uma espécie de “palavra plástica”, no sentido em que Uwe Pörksen as define. A esse respeito, vale notar que Pörksen (1995 [1988]) utiliza a expressão “palavras plásticas” (Plastikwörter) para descrever vocábulos que são extraordinariamente maleáveis, porém vazios no que concerne a seu significado real. Assim, as “palavras plásticas”, que entram sub-repticiamente na linguagem cotidiana e passam a ditar nosso modo de pensar, seriam caracterizadas por definições precisas e restritas quando usadas em um contexto científico ou tecnológico. Contudo, essa precisão e definição desapareceriam quando elas são difundidas amplamente no uso comum. Para usos da noção de “palavras plásticas” (Plastikwörter) nas discussões das ciências sociais, ver, por exemplo: Mattei e Nader (2008); Villas Bôas Filho (2016a; 2016b; 2019b). Assim, segundo Martuccelli (2019), em sentido lato, o conceito remete ao conjunto dos modos de agir, de pensar e de sentir existentes em quaisquer formas de vida social. No entanto, em sentido estrito, ele exprime certo número limitado de princípios legítimos incorporados em certas organizações sociais que constituem verdadeiros programas de ação.

Entretanto, autores como Danilo Martuccelli, François Dubet e Jose Santiago têm enfatizado os efeitos do processo de desinstitucionalização na paulatina corrosão dos programas de ação outrora fornecidos pelas instituições.10 10 A respeito, ver, especialmente: Dubet e Martuccelli (1998) e Martuccelli e Santiago (2017). Desse modo, Dubet e Martuccelli (1998, p. 147) sublinham que estas, no decurso das últimas décadas, teriam experimentado um progressivo comprometimento de sua capacidade de socialização dos indivíduos mediante “programas institucionais” que consignam princípios e valores (religiosos ou laicos). Consequentemente, o fenômeno da desinstitucionalização engendra a separação de dois processos tradicionalmente justapostos pela sociologia clássica: a socialização e a subjetivação.11 11 No mesmo sentido, ver: Martuccelli e Santiago (2017). Procurar-se-á apontar aqui que essa situação acarreta consequências para a pretensão estatal de monopólio da violência legítima, tanto física como simbólica, nos termos em que Bourdieu (1993BOURDIEU, Pierre. Esprits d’État: genèse et structure du champ bureaucratique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 96-97, p. 49-62, 1993.; 1994; 2003 [1997]; 2012) as define.

Em face dessas considerações, o presente artigo pretende apresentar, sem pretensão a um distanciamento crítico (que seria incompatível com as suas dimensões e propósitos), os aspectos gerais da reflexão de Bourdieu (1993BOURDIEU, Pierre. Esprits d’État: genèse et structure du champ bureaucratique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 96-97, p. 49-62, 1993.; 1994; 2003 [1997]; 2012) acerca do Estado para, a partir dela, discutir o impacto da desinstitucionalização sobre a sua pretensão de monopolização da violência legítima física e simbólica.12 12 Para críticas ao pensamento de Bourdieu, ver, por exemplo: Martuccelli (1999); Martuccelli e Santiago (2017); Commaille (2015); Heinich (2007); Lahire (2005 [1998]; 2006). Para uma análise concisa de apropriações críticas do pensamento de Bourdieu por autores como Jean-Claude Passeron, Claude Grignon, Michel Dobry, Bernard Lahire, Luc Boltanski e Laurent Thévenot, ver: Corcuff (2007). Para uma reconstrução concisa da perspectiva de Bernard Lahire que a contrasta com a de Bourdieu, ver: Martuccelli e Singly (2012). Quanto aos desdobramentos do pensamento de Bourdieu, ver também: Jourdain e Naulin (2011). Poder-se-ia, por exemplo, discutir o caráter “hexagonal” (no sentido de forte enraizamento na experiência social francesa) da compreensão de Bourdieu acerca do Estado e do Direito. A respeito, a partir de uma breve comparação com a perspectiva de André-Jean Arnaud, ver: Villas Bôas Filho (2018b; 2019c). Nesse particular, García Villegas (2004) observa que a concepção de direito de Bourdieu baseia-se em uma teoria da dominação política centrada no Estado e fortemente vinculada à história política da França. Para o desenvolvimento desse argumento em termos mais concisos, ver: García Villegas (2015). Por sua vez, Ost (2021) ressalta que, em decorrência de sua desconfiança relativamente ao direito e aos juristas (por ele designados de “guardiões da hipocrisia coletiva”), Bourdieu seria levado a conceber o direito como um jogo de aparências que apenas escamotearia (eufemizando) sua violência intrínseca. Para tanto, em primeiro lugar, será realizada uma concisa abordagem dos conceitos de campo, de capital e de habitus que, como se sabe, estruturam o pensamento de Pierre Bourdieu. Em seguida, será examinada a tese proposta pelo autor sobre o Estado como instituição responsável pela (re)produção e canonização das formas de classificação social. Após esse exame, serão enfocados alguns aspectos fundamentais da análise empreendida por Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.) a respeito do processo de desinstitucionalização para, então, indicar alguns dos seus efeitos sobre o Estado. Por fim, em uma breve conclusão, será feita uma síntese da temática abordada.

1. Aspectos gerais do pensamento de Pierre Bourdieu: elementos para uma abordagem acerca da centralidade do Estado

A obra de Pierre Bourdieu constitui, indiscutivelmente, uma das mais significativas expressões da sociologia contemporânea.13 13 Para excelentes apresentações do pensamento de Pierre Bourdieu, ver, por exemplo: Bouveresse (2003); Jourdain e Naulin (2011); Mounier (2001) e Pinto (2002). Relativamente ao direito no pensamento de Bourdieu, ver, especialmente: Caillosse (2004); García Villegas (2004); Guibentif (2007; 2010); Lenoir (2004); Roussel (2004); Sckell (2016). No que tange à política, ver, por exemplo: Gambarotta (2016) e Riutort (2012). Apoiando-se, de modo original e criativo, nos pensamentos de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber,14 14 Quanto à influência de Durkheim, Marx e Weber sobre a obra de Bourdieu, ver, por exemplo, Berthelot (2008); Corcuff (2007); Jourdain e Naulin (20111) e Fabiani (2016). No que tange especificamente à influência de Marx, ver: Mauger (2012). Quanto à de Weber, ver: Lenoir (2012a). No que concerne à de Durkheim, ver: Pinto (2012). o autor de La distinction desenvolveu uma complexa teoria social em meio à qual é dada particular atenção aos mecanismos de dominação e de reprodução social e que, como se sabe, articula-se, fundamentalmente, ao redor das noções de “campo”, de “capital” e de habitus15 15 Acerca da centralidade desses três conceitos, ver, especialmente: Bourdieu (2015; 2016). para, a partir delas, propor uma descrição da sociedade moderna que a concebe como estruturalmente diferenciada em diversos campos, entendidos como espaços sociais que constituem uma espécie de “mercado” para capitais específicos, em meio aos quais agentes, ocupando posições assimétricas, estão em disputa.16 16 Para uma caracterização mais bem alinhavada da noção de campo, ver, especialmente: Bourdieu (2002 [1984]; 2003 [1997]; 2015; 2022). Para análises dessa questão, ver: Fabiani (2005) e Lahire (2005).

Assim, como observa Corcuff (2007CORCUFF, Philippe. Les nouvelles sociologies. 2e éd. Paris: Armand Colin, 2007.), na perspectiva de Bourdieu, cada campo seria caracterizado por mecanismos específicos de “capitalização” dos recursos legítimos que lhes são próprios. Consequentemente, a concepção unidimensional de capital, que o reduz apenas à sua dimensão econômica, é substituída por outra que o desdobra em diversas dimensões (cultural, política, simbólica etc.). Como decorrência, ocorreria a substituição de uma representação unidimensional do espaço social por outra que o concebe como pluridimensional, ou seja, como constituído por diversos “microcosmos” que se diferenciam uns dos outros pelas “legalidades específicas” que regem a interação dos agentes que por eles transitam.17 17 Como enfatiza Bourdieu (2003 [1997], p. 143), “le principe de vision et de division et le mode de connaissance (religieux, philosophique, juridique, scientifique, artistique, etc.) qui ont cours dans un champ, en association avec une forme spécifique d’expression, ne peuvent être connus et compris qu’en relation avec la légalité spécifique de ce champ comme microcosme social.” [“o princípio de visão e de divisão e o modo de conhecimento (religioso, filosófico, jurídico, científico, artístico etc.) que prevalecem em um campo, em associação com uma forma específica de expressão, só podem ser conhecidos e compreendidos em relação à legalidade específica desse campo como um microcosmo social” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver, especialmente: Bourdieu (2022).

Por outro lado, como enfatiza Bourdieu (1980BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980., p. 87 e ss.; 2003 [1997], p. 200-205), cada campo consiste na institucionalização de um ponto de vista nas “coisas” e nos habitus, entendidos como “sistemas de disposições duráveis e transponíveis” que constituem “princípios geradores e organizadores” de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas aos seus fins sem que isso implique supor a necessária tomada de consciência por parte do agente. Logo, segundo Bourdieu, o habitus, como um sistema de disposições para prática, constitui uma base objetiva de conduta regular, predispondo os agentes que dele são dotados a se comportarem de determinada maneira em certas circunstâncias.18 18 Para uma análise particularmente elucidativa a esse respeito, ver: Bourdieu (1986a). Quanto a esse aspecto, Corcuff (2007, p. 28) observa que “c’est donc la rencontre de l’habitus et du champ […] qui apparaît comme le mécanisme principal de production du monde social. Bourdieu reprend ici au Jean-Paul Sartre de Question de méthode (1960), en s’efforçant de rendre opératoire pour des travaux empiriques, le double mouvement d’intériorisation de l’extérieur et d’extériorisation de l’intérieur.” ["é, portanto, o encontro do habitus e do campo [...] que aparece como o principal mecanismo de produção do mundo social. Bourdieu retoma aqui a Questão do método (1960), de Jean-Paul Sartre, na tentativa de tornar operativo para os trabalhos empíricos, o duplo movimento de interiorização do exterior e exteriorização do interior." (traduzido livremente do original)]. Sobre a questão do habitus, ver também: Corcuff (2005). Por esse motivo, opondo-se à suposição de um cálculo consciente como princípio gerador de ações, Bourdieu sublinha a relação de “cumplicidade ontológica” entre habitus e campo, expressa justamente nesse acordo pré-reflexivo entre agente e mundo social.19 19 Segundo Bourdieu (1994, p. 154), “a la réduction au calcul conscient, j’oppose le rapport de complicité ontologique entre l’habitus et le champ. Il y a entre les agents et le monde social un rapport de complicité infra-consciente, infra-linguistique […].” [“à redução ao cálculo consciente, eu oponho a relação de cumplicidade ontológica entre o habitus e o campo. Há, entre os agentes e o mundo social, uma relação de cumplicidade infraconsciente, infralinguística [...].” (traduzido livremente do original)].

Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p. 119 e 158-160; 2003 [1997], 142-143) sustenta, ademais, que a emergência dessa configuração, caracterizada pela existência de “campos autônomos” que, em seu entendimento, seria própria da modernidade, decorreria de um progressivo processo de diferenciação do mundo social. Por essa razão, Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999.) inscreve a obra de Bourdieu no âmbito da “matriz da diferenciação social” que, desdobrando-se por autores como Émile Durkheim, Talcott Parsons e Niklas Luhmann, propugna uma interpretação sociológica da configuração social moderna que enfatiza a passagem do simples ao complexo, do homogêneo ao heterogêneo, mantendo significativas “afinidades eletivas” com uma concepção funcionalista.20 20 Referindo-se a Bourdieu, Martuccelli (1999, p. 109-110) assevera que “dans son œuvre, il est facile de repérer une distinction essentielle entre les sociétés peu différenciées et les sociétés hautement différenciées, classement qui suit de près le récit des sociétés modernes qui s’est lentement forgé dans la filiation de la matrice de da différenciation sociale. [...] C’est en effet de la différenciation sociale que découle la préoccupation essentielle de Bourdieu, établir un principe de domination à travers différents champs historiquement constitués et montrer la forte adéquation entre les exigences de chaque champ, les positions sociales occupées et les dispositions individuelles.” [“na sua obra, é fácil identificar uma distinção essencial entre sociedades pouco diferenciadas e sociedades altamente diferenciadas, classificação que segue de perto a narrativa das sociedades modernas que se forjou lentamente na filiação da matriz da diferenciação social [...]. É, de fato, da diferenciação social que decorre a preocupação essencial de Bourdieu de estabelecer um princípio de dominação através de diferentes campos historicamente constituídos e de mostrar a forte adequação entre as exigências de cada campo, as posições sociais ocupadas e as disposições individuais.” (traduzido livremente do original)]. Para uma análise das matrizes sociológicas acerca da modernidade a partir da obra de Martuccelli, ver: Gonçalves e Villas Bôas Filho (2013) e Villas Bôas Filho (2009; 2019b).

Vale notar que Bourdieu (1987BOURDIEU, Pierre. Espace social et pouvoir symbolique. In: BOURDIEU, Pierre. Choses dites. Paris: Les Éditions de Minuit, 1987, p. 147-166., p. 147) afirma partir de uma perspectiva por ele próprio designada de constructivist structuralism ou structuralist constructivism.21 21 A esse respeito, Corcuff (2007, p. 27) observa que “Bourdieu définit le ‘constructivisme structuraliste’ à la jonction de l’objectif et du subjectif […].” [“Bourdieu define o ‘construtivismo estruturalista’ pela junção do objetivo e do subjetivo […].” (traduzido livremente do original)]. Relativamente à assunção de uma concepção estruturalista (que, segundo ele, não se confunde com as que se desenvolveram a partir de Ferdinand Saussure ou de Claude Lévi-Strauss), trata-se de sustentar a existência, no próprio mundo social, de estruturas objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou coagir as suas práticas ou representações. No que concerne à dimensão construtivista de sua reflexão, esta o conduz a propugnar, de um lado, a gênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação que são constitutivos do habitus e, de outro, a existência de estruturas sociais, especialmente campos, grupos e classes sociais.22 22 Contudo, como ressalta Corcuff (2007, p. 34-35), “la priorité donnée par Bourdieu aux aspects objectifs de la réalité l’amène aussi parfois à réactiver le couple apparence/réalité, qui tendrait à éloigner sa sociologie de l’univers constructiviste. […] L’analyse de la construction sociale de la réalité est alors quelque peu limitée par une telle opposition entre une vrai réalité (objective) et une fausse réalité (subjective), car la dialectique du subjectif et de l’objectif y apparaît enrayée.” [“a prioridade dada por Bourdieu aos aspectos objetivos da realidade também o leva, por vezes, a reativar o par aparência/realidade, o que tenderia a distanciar sua sociologia do universo construtivista. [...] A análise da construção social da realidade é então um tanto limitada por tal oposição entre uma realidade verdadeira (objetiva) e uma realidade falsa (subjetiva), porque a dialética do subjetivo e do objetivo parece ficar bloqueada.” (traduzido livremente do original)].

De fato, como observa Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999.), a problemática central que permeia a obra de Bourdieu consiste na articulação entre os diversos processos de diferenciação, descritos a partir da existência de múltiplos campos sociais, e a capacidade de adaptação dos agentes, por meio dos seus habitus.23 23 Todavia, como destaca Martuccelli (1999, p. 33), “Bourdieu [...] ne se lasse pas de répéter l’imbrication intime existant entre l’agent et les champs, organisée autour de la notion d’habitus, et ne cesse pourtant de donner empiriquement la preuve de leurs multiples désaccords au cœur de la modernité.” [“Bourdieu [...] não se cansa de repetir a imbricação íntima existente entre o agente e os campos, organizada em torno da noção de habitus, e, no entanto, não cessa de dar provas empíricas de seus múltiplos desacordos no âmago da modernidade.” (traduzido livremente do original)]. Por conseguinte, afastando-se da tradição que, desde Ferdinand Tönnies (2011TÖNNIES, Ferdinand. Communauté et société. In: DANIEL, Jean (dir.). La société: les plus grands textes d’Auguste Comte et Émile Durkheim à Claude Lévi-Strauss. Paris: Le Nouvel Observateur; CNRS Éditions, 2011 [1887], p. 131-223. [1887]), baseia-se na clivagem entre Gemeinschaft e Gesellschaft, Bourdieu, apoiando-se inclusive nas pesquisas etnológicas que realizou na Argélia,24 24 Quanto a essa questão ver, por exemplo: Martuccelli (1999); Yacine (2005). Aliás, Guibentif (2007), contrastando a obra de Bourdieu com as de Foucault, Habermas e Luhmann, observa que a sua preocupação com o trabalho de campo tornaria as suas análises mais próximas da “realidade social”. A respeito, ver também: Guibentif (2010). sustenta que a “cumplicidade ontológica” entre “agente” e “situação” constituiria o princípio de funcionamento normal de todas as sociedades, mesmo as altamente diferenciadas.25 25 Esse aspecto é particularmente bem analisado por Martuccelli (1999, p. 111) que, referindo-se ao pensamento de Bourdieu, ressalta que ele caracterizar-se-ia por apoiar-se “sur une correspondance étroite entre l’agent et les situations, sur leur complicité ontologique, et faire de cet accord le principe de fonctionnement normal de toute société. […] Bourdieu ne nie pas le mouvement inhérent à la modernité. […] Mais la prise en compte pratique de ce mouvement n’a d’autre fonction que de réaffirmer la présence, au sein des sociétés hautement différenciées, de l’indifférenciation entre les attitudes et les structures.” [“sobre a estreita correspondência entre o agente e as situações, sobre a sua cumplicidade ontológica, e fazer desse acordo o princípio do funcionamento normal de qualquer sociedade. […] Bourdieu não nega o movimento inerente à modernidade. […] Mas a consideração prática desse movimento não tem outra função senão reafirmar a presença, no seio de sociedades altamente diferenciadas, da indiferenciação entre atitudes e estruturas.” (traduzido livremente do original)]. Cabe mencionar, todavia, que Martuccelli (1999) problematiza a tese da “cumplicidade ontológica” entre as disposições dos agentes, engendradas pelo habitus, e a morfologia dos campos, circunscrevendo-a às sociedades tradicionais e aos estratos superiores das sociedades diferenciadas.26 26 Segundo Martuccelli (1999, p. 125 e 140), “malgré la volonté de Bourdieu d’établir un accord aussi étroit que possible entre l’habitus et le champ, cette relation ne cesse jamais, pratiquement, d’être écartelée. […] À terme, on ne peut dès lors que se demander où est encore véritablement à l’œuvre la complicité ontologique entre l’habitus et le champ. L’ajustement ne semble vraiment de rigueur que dans le passé et pour les couches supérieures des sociétés différenciées […].” [“apesar do desejo de Bourdieu de estabelecer um acordo o mais estreito possível entre o habitus e o campo, essa relação praticamente nunca deixa de ser dilacerada. [...] Em última análise, podemos apenas nos perguntar onde a cumplicidade ontológica entre o habitus e o campo ainda está realmente em ação. O ajuste só parece realmente necessário no passado e para os estratos superiores das sociedades diferenciadas [...].” (traduzido livremente do original)]. Ademais, como sustenta Lahire (2005LAHIRE, Bernard. L’homme pluriel: les ressorts de l’action. Paris: Armand Colin, 2005 [1998]. [1998]), a diversidade das formas de socialização infirmaria a tese da unidade e da homogeneidade do habitus de classe propugnada por Bourdieu.27 27 A respeito, ver também: Lahire (2006); Martuccelli e Singly (2012).

Não obstante, como enfatiza Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999.), Bourdieu obviamente não desconsidera as diferenças significativas entre as sociedades tradicionais e as modernas, enfatizando, entre outras coisas, que, na passagem das primeiras às segundas, haveria a paulatina substituição do primado de um capital simbólico, fundado na lógica da honra e do prestígio, pelo do capital econômico, que passaria a ser dominante. Não há, entretanto, como analisar neste artigo todos os aspectos elencados por Martuccelli (1999) para apontar os fatores de distinção entre esses dois tipos de formação social no pensamento de Bourdieu.28 28 Cabe apenas notar que Martuccelli (1999, p. 112-113) também aponta a progressiva substituição do capital simbólico pelo econômico e a crescente codificação como características mobilizadas por Bourdieu para descrever a passagem das sociedades tradicionais para as modernas. Para os propósitos aqui esboçados, importa sublinhar, fundamentalmente, a transformação experimentada pelo modo de exercício da dominação na passagem para modernidade. Trata-se da progressiva substituição de um capital simbólico difuso, fundado apenas no reconhecimento coletivo, por um capital simbólico objetificado, codificado, delegado e garantido pelo Estado.29 29 Referindo-se a esse processo, Bourdieu (1994, p. 122) afirma que “on passe d’un capital symbolique diffus, fondé sur la seule reconnaissance collective, à un capital symbolique objectivé, codifié, délégué et garanti par l’État, bureaucratisé.” [“passa-se de um capital simbólico difuso, baseado apenas no reconhecimento coletivo, a um capital simbólico objetivado, codificado, delegado e garantido pelo Estado, burocratizado.” (traduzido livremente do original)].

Assim, segundo Bourdieu (1993BOURDIEU, Pierre. Esprits d’État: genèse et structure du champ bureaucratique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 96-97, p. 49-62, 1993.; 1994; 2003 [1997]; 2012; 2022), as sociedades modernas, estruturadas pela diferenciação em campos autônomos, caracterizar-se-iam por uma intensa concentração do capital simbólico no Estado que, por esse motivo, impor-se-ia progressivamente como instância detentora de um poder de nominação e, enquanto tal, como uma espécie de “banco do capital simbólico” que garante os atos de autoridade que, sem sua chancela, remanesceriam arbitrários e desconhecidos.30 30 Referindo-se ao poder de nominação, Bourdieu (1994, p. 122) enfatiza que “la nomination est un acte, en définitive, très mystérieux qui obéit à une logique proche de celle de la magie telle que la décrit Marcel Mauss.” ["a nominação é, em última análise, um ato muito misterioso que segue uma lógica próxima à da magia, conforme a descreve Marcel Mauss.” (traduzido livremente do original)]. Isso ocorre porque, como sustenta Bourdieu (1994, p. 122), a nominação pertence a uma classe de atos ou de discursos oficiais que são simbolicamente eficientes, visto que realizados em situações de autoridade por personagens “oficiais” que agem ex officio, na qualidade de detentores de um officium (publicum), ou seja, de uma função atribuída pelo Estado.31 31 Bourdieu (1994, p. 123) exemplifica esses atos aludindo aos veredictos de um juiz ou de um professor, aos procedimentos notariais etc.

Desse modo, como enfatiza Bourdieu (1993BOURDIEU, Pierre. Esprits d’État: genèse et structure du champ bureaucratique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 96-97, p. 49-62, 1993.; 1994; 2012), resultando de um processo de concentração de diversos tipos de capital, o Estado passa a ser detentor de uma espécie de “metacapital” que o habilita a exercer poder sobre outras espécies de capital e seus respectivos detentores.32 32 A gênese do Estado, como processo de concentração de diversas espécies de capital, é amplamente analisada por Bourdieu (1993; 1994; 2012). Sobre essa questão, ver também: Bourdieu e Guibert (1995) e Déloye (2007). Não há, entretanto, como analisar essa questão aqui. Basta apenas sublinhar que, segundo Bourdieu (1993, p. 52), “l’État est l'aboutissement d’un processus de concentration des différentes espèces de capital, capital de force physique ou d’instruments de coercition (armée, police), capital économique, capital culturel ou, mieux, informationnel, capital symbolique, concentration qui, en tant que telle, constitue l’État en détenteur d’une sorte de méta-capital, donnant pouvoir sur les autres espèces de capital et sur leurs détenteurs. La concentration de différentes espèces de capital (qui va de pair avec la construction des différents champs correspondants) conduit en effet à l’émergence d’un capital spécifique, proprement étatique, qui permet à l’État d’exercer un pouvoir sur les différents champs et sur les différentes espèces particulières de capital, et en particulier sur les taux de change entre elles (et, du même coup, sur les rapports de force entre leurs détenteurs).” [“o Estado é a culminação de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural ou, melhor, capital informacional, capital simbólico, concentração que, como tal, constitui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital, conferindo poder sobre os demais capitais e sobre seus titulares. A concentração de diferentes tipos de capital (que anda de mãos dadas com a construção dos diferentes campos correspondentes) conduz, de fato, à emergência de um capital específico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer poder sobre os diferentes campos e sobre as diferentes espécies particulares de capital e, em particular, sobre as taxas de câmbio entre eles (e, ao mesmo tempo, sobre o equilíbrio de poder entre seus detentores).” (traduzido livremente do original)]. Justamente por isso, Bourdieu (1994, p. 123-131; 2003 [1997], p. 252-253) assevera que, nas sociedades modernas, o Estado seria o principal responsável pela construção das categorias oficiais a partir das quais estruturam-se as populações e os “espíritos”. Como se verá a seguir, para o autor de Méditations pascaliennes, o Estado produz e impõe, especialmente a partir das instituições escolares,33 33 Sobre essa questão, ver, especialmente: Bourdieu (1989; 1993; 1994; 2012) e Bourdieu e Passeron (1970). Vale notar que, segundo Bert (2011), Foucault, no bojo de suas análises sobre o poder, criticava a tese de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron acerca da dominação escolar. as categorias de pensamento aplicadas espontaneamente a todas as coisas e a ele próprio.34 34 Quanto a essa questão, ver, sobretudo: Bourdieu (1989; 1993; 1994; 2012). Aliás, decorreria daí a concepção do direito como uma normatividade emanada exclusivamente do Estado.35 35 Não é possível desenvolver essa questão no bojo deste artigo. A respeito, García Villegas (2004, p. 60) ressalta que, para Bourdieu, “legal authority is the privileged form of power, especially in terms of legitimate symbolic violence - monopolized by the State - which the State both produces and practices.” ["a autoridade legal é a forma privilegiada de poder, especialmente em termos de violência simbólica legítima - monopolizada pelo Estado - que o Estado tanto produz como pratica." (traduzido livremente do original)].

Nota-se, por conseguinte, que Bourdieu (1989BOURDIEU, Pierre. La noblesse d’État: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1989.; 1993; 1994; 2003 [1997]; 2012) atribui grande importância ao Estado no bojo de sua obra.36 36 Acerca do Estado no pensamento de Pierre Bourdieu, ver: Lenoir (2012b); Sueur (2013); Villas Bôas Filho (2021b). Para um instigante contraste das concepções de Bourdieu e de Althusser acerca do Estado, ver: Pallotta (2015). Trata-se de um tema cuja abordagem é particularmente difícil, pois, como enfatiza Bourdieu (1993; 1994; 2012), o próprio Estado produziria as categorias a partir das quais o pensamos. Por esse motivo, apoiando-se especialmente na obra de Émile Durkheim, Bourdieu (1993; 2012) sublinha a necessidade de cuidados com as prenoções, com os preconceitos e com o que designa de “sociologia espontânea”. Assim, a análise empreendida por Bourdieu (2012), a despeito de mobilizar uma miríade de autores,37 37 Em sua expressiva análise acerca do Estado, Bourdieu (2012) mobiliza, além de Marx, Durkheim e Weber, os trabalhos de Shmuel Noah Eisenstadt, Perry Anderson, Barrington Moore, Reinhard Bendix, Theda Skocpol, Norbert Elias, Charles Tilly, Philip Corrigan e Derek Sayer. Vale notar que a reflexão de Bourdieu (1993; 1994; 2003 [1997]; 2012) sobre o Estado, apesar de controvertida, proporciona aportes muito profícuos para a pesquisa sociojurídica, entendida como campo interdisciplinar. Acerca da interdisciplinaridade nos estudos sociojurídicos, ver, por exemplo: Arnaud (1992); Bailleux e Ost (2013); Dumont e Bailleux (2010); Villas Bôas Filho (2018a; 2019a). é particularmente atenta a uma consideração básica que está presente na sociologia de Durkheim: a gênese social de nossas formas de classificação.38 38 A respeito, além dos textos supracitados, ver, especialmente, Bourdieu (2001).

Ademais, a “teoria sociológica das instituições” de Durkheim é importante por sustentar que a compreensão de uma instituição implica reconstruir a sua história, ou seja, demanda um estudo genético que recomponha o seu desenvolvimento progressivo.39 39 Segundo Durkheim (2010 [1895]), as instituições respondem não a interesses particulares e contingentes, e sim a tendências coletivas profundas e, enquanto tais, duráveis. Desse modo, seria preciso estudar em que sentido as instituições “convêm” ou não a determinado meio social. Há situações em que uma instituição pode deixar de se ajustar a um dado meio social (regime de castas, por exemplo). Nesse caso, a instituição precisaria se transformar. Daí a necessidade de um estudo comparativo e histórico das instituições. A respeito, Durkheim (2010 [1895], p. 267) afirma que “pour rendre compte d’une institution sociale, appartenant à une espèce déterminée, on comparera les formes différentes qu’elle présente, non seulement chez les peuples de cette espèce, mais dans toutes les espèces antérieures. [...] Par conséquent, on ne peut expliquer un fait social de quelque complexité qu’à condition d’en suivre le développement intégral à travers toutes les espèces sociales. La sociologie comparée n’est pas une branche particulière de la sociologie; c’est la sociologie même, en tant qu’elle cesse d’être purement descriptive et aspire à rendre compte des faits.” [“para dar conta de uma instituição social, pertencente a uma espécie específica, vamos comparar as diferentes formas que ela apresenta, não apenas entre os povos dessa espécie, mas em todas as espécies anteriores. [...] Consequentemente, não se pode explicar um fato social de qualquer complexidade senão sob a condição de acompanhar seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais. A sociologia comparada não é um ramo particular da sociologia; é a própria sociologia, na medida em que deixa de ser puramente descritiva e aspira a dar conta dos fatos”. (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver, especialmente: Revel (2013 [1995]). Aliás, cabe notar que isso também explica a influência exercida pelo pensamento de Durkheim sobre autores como Douglas (1986). Para uma introdução à sociologia jurídica durkheimiana, ver: Villas Bôas Filho (2019b). No que tange aos reflexos de Durkheim sobre Douglas, ver: Villas Bôas Filho (2020a; 2022). Trata-se justamente da estratégia da adotada por Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012.) que, como se sabe, desenvolve uma “sociologia genética” ou “história social” do Estado para, a partir daí, procurar compreendê-lo. Assim, para Bourdieu (2012), a compreensão da instituição estatal deve articular dois pressupostos: a) a “desbanalização” (ênfase no caráter artificial/socialmente construído dessa instituição que molda nossos esquemas de percepção do real); b) a análise sociogenética dessa instituição.

2. Pierre Bourdieu e o Estado como instituição responsável pela (re)produção e canonização das formas de classificação social

A tese de que os sistemas de classificação são produzidos socialmente é amplamente mobilizada por Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions du Seuil, 1994.; 2001; 2012).40 40 Para uma concisa reconstrução dessa questão, ver: Villas Bôas Filho (2020a; 2021a; 2021b). No bojo de sua análise acerca do “poder simbólico”, por exemplo, Bourdieu (2001, p. 201-205) ressalta que, a partir de Durkheim, as formas de classificação teriam deixado de ser consideradas universais (transcendentais) e se tornado “formas sociais”, ou seja, arbitrárias (no sentido de serem relativas a um grupo particular) e, portanto, socialmente determinadas. Aliás, Bourdieu (2012) também sustenta que a noção de “forma simbólica” proposta por Ernst Cassirer - como englobante não apenas das formas constitutivas da ordem científica, mas também das da língua, do mito e da arte - apresentaria clara afinidade com a análise das “formas primitivas de classificação” realizada por Émile Durkheim e Marcel Mauss.41 41 Segundo Bourdieu (2012, p. 262), “Cassirer [...] écrit en toutes lettres: « quand je dis ‘forme symbolique’, je ne dis pas autre chose que ce que dit Durkheim lorsqu’il parle de ‘formes primitives de classification’».” [“Cassirer [...] escreve com todas as letras: ‘quando digo ‘forma simbólica’, não digo outra coisa senão o que diz Durkheim quando fala de ‘formas primitivas de classificação’.” (traduzido livremente do original)]. Vale notar, entretanto, que a afirmação feita por Cassirer (1992 [1947], p. 22) não é exatamente assim. Quanto à questão das “formas primitivas de classificação”, ver: Durkheim e Mauss (1969 [1903]). A respeito, ver também: Bourdieu (2003 [1997]).

No entanto, conforme enfatiza Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 262), se a perspectiva de Ernst Cassirer, em consonância com a tradição kantiana, considera que as “formas de classificação” são transcendentais e, portanto, universais, a de Durkheim propugna que tais formas são, na verdade, historicamente constituídas, ou seja, associadas a condições históricas de produção e, por conseguinte, arbitrárias, isto é, convencionais no sentido saussuriano do termo. Logo, a tese de Durkheim é a de que as “formas de classificação” seriam produzidas socialmente e, portanto, convencionais, pois relativas às estruturas de um grupo determinado. Consequentemente, se as “estruturas cognitivas” não são desprovidas de gênese social, os princípios de classificação deveriam ser relacionados às “estruturas da ordem social” em que as “estruturas mentais” são constituídas. Haveria, em outras palavras, uma “relação genética” entre as “estruturas mentais”, entendidas como os princípios a partir dos quais a realidade física e social é construída, e as “estruturas sociais”.42 42 Sobre essa questão, ver também: Bourdieu (1994, p. 124-125).

Vale destacar que, com base nesse pressuposto, Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 262) aponta o Estado como “produtor de princípios de classificação”, ou seja, como uma instância capaz de engendrar “estruturas estruturantes” suscetíveis de aplicação a quaisquer coisas, especialmente as sociais. Aliás, seria por esse motivo que, segundo o autor, o Estado existe como instituição.43 43 Bourdieu (2012, p. 263) sustenta que “si l’on suit cette tradition, on peut dire que nous avons des formes de pensée produites par l’incorporation de formes sociales, et que l’État existe en tant qu’institution.” [“se se segue essa tradição, pode-se dizer que temos formas de pensamento produzidas pela incorporação de formas sociais, e que o Estado existe como instituição.” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver, especialmente: Chevallier (2008; 2011); Commaille (2015); Delpeuch, Dumoulin e Galembert (2014). Entretanto, Bourdieu (2012, p. 66-67) assinala o caráter pouco preciso do termo “instituição” na “linguagem sociológica” e, diante disso, a necessidade de definir em termos mais rigorosos o que se entende por tal. A esse respeito, aludindo à noção de instituição que, na tradição durkheimiana, teria tendido a ser identificada com o “social”, Bourdieu (2016, p. 118-119) sublinha a necessidade de delineamento de uma acepção mais restrita para essa noção.

Em primeiro lugar, Bourdieu (2016BOURDIEU, Pierre. Sociologie générale, v. 2: cours au Collège de France (1983-1986). Paris: Éditions du Seuil, 2016., p. 119) distingue as noções de “instituição” e de “campo”,44 44 Como se sabe, a noção de “campo” é central na obra de Bourdieu. A respeito, ver, especialmente: Bourdieu (1986b; 2002 [1984]; 2003 [1997]; 2012; 2015; 2016; 2022) e Bourdieu e Chartier (2010). ressaltando que nem tudo é instituído em determinado campo social.45 45 Conforme Bourdieu (2016, p. 119), “dans un jeu, un espace ou un champ social, il y a donc de l’institutionnalisé et du non-institutionnalisé.” [“num jogo, num espaço ou num campo social, há, portanto, o institucionalizado e o não institucionalizado.” (traduzido livremente do original)]. Aliás, salienta também que os campos não são institucionalizados uniformemente, ou seja, haveria diferentes graus de institucionalização no interior de campos sociais distintos. Desse modo, segundo Bourdieu (2016), considerando as especificidades de cada campo social, seria possível indagar acerca do grau de institucionalização dos procedimentos de luta, de sucesso, de acumulação, de consagração, de reprodução e de transmissão que lhes são correlatos.46 46 Segundo Bourdieu (2016, p. 37), “on pose la question universelle et on s’interroge dans chaque cas sur le degré d’institutionnalisation et les effets liés au degré élevé ou faible d’institutionnalisation des acquis antérieurs.” [“fazemos a pergunta universal e nos interrogamos em cada caso sobre o grau de institucionalização e os efeitos ligados ao alto ou baixo grau de institucionalização das aquisições prévias.” (traduzido livremente do original)]. Logo, Bourdieu (2016) correlaciona “instituição” e “codificação”, “nominação” e “objetivação”.47 47 A respeito, Bourdieu (2016, p. 119) enfatiza que “l’institué serait, selon moi, cet aspect des mécanismes sociaux qui est porté de l’état de régularité à l’état de règle; c’est le produit d’un travail de codification ou d’un acte d’institution qui est, par soi, un acte de codification […] il y a institution lorsque, non seulement les choses se font, mais que quelqu’un doté d’autorité dit comment elles doivent se faire et que la forme selon laquelle les choses doivent se faire est l’objet d’une objectivation.” [“o instituído seria, a meu ver, esse aspecto dos mecanismos sociais que se transporta do estado de regularidade ao estado de regra; é o produto de um trabalho de codificação ou de um ato de instituição que é, por si, um ato de codificação [...] há uma instituição quando, não apenas as coisas são feitas, mas alguém dotado de autoridade diz como elas devem ser feitas e que a forma como as coisas devem ser feitas é objeto de uma objetivação.” (traduzido livremente do original)]. Acerca das questões da codificação, da nominação e da objetivação, ver, especialmente: Bourdieu (1986a; 1986b). Para uma análise do papel dos juristas na construção do Estado, ver, especialmente: Bourdieu (1991; 1993; 1994 e 2012). Não há, entretanto, como analisar essa questão aqui, pois isso demandaria uma digressão incompatível com as dimensões e o escopo deste artigo.

Para os propósitos aqui esboçados, importa acentuar que Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 66-67), no bojo de sua expressiva análise sobre o Estado, define as instituições como o “fiduciário organizado”, ou seja, como “confiança organizada” ou “crença organizada”. Nesse sentido, para Bourdieu (2012, p. 66-67), determinada instituição seria, na verdade, uma espécie de “ficção coletiva” que, em virtude da crença que lhe é depositada, tornar-se-ia real. Como já mencionado, Bourdieu (2012) sustenta que, na qualidade de “fiduciário organizado”, as instituições caracterizar-se-iam pelo automatismo, uma vez que remetem a processos regulares, repetitivos, constantes e automáticos.48 48 Vale notar que Saussois (2012, p. 97), baseando-se em autores como Douglas North, ressalta que a “estrutura” (framework) institucional condicionaria a “estrutura” (ou forma) organizacional. Desse modo, segundo o autor, essas duas estruturas evoluiriam de maneira dinâmica para se colocar em coerência, senão em equilíbrio. Para uma perspectiva crítica dessa relação, ver: Luhmann (2010 [2006]). Além disso, as instituições existiriam independentemente das pessoas que as habitam.49 49 Conforme já mencionado, para Bourdieu (2012), as instituições são o fiduciário organizado e dotado de automatismo. Por fim, como visto, Bourdieu (2012, p. 262) enfatiza que as instituições existiriam sempre de duas formas: na realidade (no registro civil, nos Códigos e nos formulários burocráticos, por exemplo) e nos “cérebros das pessoas”. Por conseguinte, Bourdieu (2012, p. 263) assevera que uma instituição somente funcionaria na hipótese de haver a correspondência entre as “estruturas objetivas” e as “estruturas subjetivas”.

É justamente com base nesses pressupostos que Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012.), partindo da clássica definição weberiana de Estado, afirma que este seria detentor do monopólio legítimo das violências física e simbólica, ressaltando que, em última instância, a segunda seria condição da posse e do exercício da primeira.50 50 Bourdieu (2012, p. 14) afirma que “j’ai fait, il y a déjà plusieurs années, une addition à la définition célèbre de Max Weber qui définit l’État [comme le] ‘monopole de la violence légitime’, que je corrige en ajoutant: ‘monopole de la violence physique et symbolique’; on pourrait même dire: ‘monopole de la violence symbolique légitime’, dans la mesure où le monopole de la violence symbolique est la condition de la possession de l’exercice de la violence physique elle-même.” [“já há alguns anos, eu fiz um acréscimo à famosa definição de Max Weber que define o Estado [como o] ‘monopólio da violência legítima’, que corrijo acrescentando: ‘monopólio da violência física e simbólica’; poder-se-ia mesmo dizer: ‘monopólio da violência simbólica legítima’, na medida em que o monopólio da violência simbólica é a condição da posse do próprio exercício da violência física.” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver: Weber (2002 [1922], p. 1056 e ss.). Sobre a definição weberiana de Estado, ver, por exemplo: Colliot-Thélène (2006); Fleury (2009); Freund (1987); Hübinger (2009); Lassman (2000). Isso implica conceber o Estado como “produtor de princípios de classificação”, o que, por sua vez, pressupõe a “relação genética” entre as “estruturas mentais” e as “estruturas sociais”. Assim, em consonância com Émile Durkheim e Marcel Mauss,51 51 Cf. Durkheim (2013 [1912], p. 23-25) e, especialmente, Durkheim e Mauss (1969 [1903]). Bourdieu (1994; 2003 [1997]; 2012) explica a “dominação simbólica”, ou seja, a adesão espontânea dos indivíduos à ordem social em que estão inscritos, sublinhando que as suas categorias mentais seriam, em grande medida, produzidas socialmente e, no contexto ocidental moderno, em especial, pelo Estado.52 52 Bourdieu (1994, p. 114-115) afirma que “l’État façonne les structures mentales et impose des principes de vision et de division communs, des formes de pensée qui sont à la pensée cultivée ce que les formes primitives de classification décrites para Durkheim et Mauss sont à la ‘pensée sauvage’, contribuant par là à construire ce que l’on désigne communément comme l’identité nationale - ou, dans un langage plus traditionnel, le caractère national.” [“o Estado molda estruturas mentais e impõe princípios comuns de visão e de divisão, formas de pensamento que são para o pensamento cultivado o que as formas primitivas de classificação, descritas por Durkheim e Mauss, são para o ‘pensamento selvagem’, contribuindo assim para construir o que comumente se designa como a identidade nacional - ou, em linguagem mais tradicional, o caráter nacional.” (traduzido livremente do original)]. No mesmo sentido, ver: Bourdieu (2003 [1997] ; 2012).

Partindo da distinção durkheimiana entre “integração lógica” e “integração moral”, Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 15) assevera que o Estado, tal como ele geralmente é compreendido, afigura-se como o fundamento dessas duas formas de integração. Segundo Bourdieu (2012, p. 15), a “integração lógica”, no sentido em que Durkheim a concebe, consistiria no fato de os agentes do mundo social partilharem as mesmas percepções lógicas que ensejam um acordo imediato decorrente da orientação por idênticas categorias de pensamento, de percepção e de construção da realidade. A “integração moral” consistiria no acordo relativamente a certo número de valores.53 53 Por esse motivo, referindo-se ao Estado, Bourdieu (2003 [1997], p. 249) afirma que “il est de ce fait le fondement d’un ‘conformisme logique’ et d’un ‘conformisme moral’ (les expressions sont de Durkheim), d’un consensus préréflexif, immédiat, sur le sens du monde, qui est au principe de l’expérience du monde comme ‘monde du sens commun’.” [“ele é, portanto, o fundamento de um ‘conformismo lógico’ e de um ‘conformismo moral’ (as expressões são de Durkheim), de um consenso pré-reflexivo, imediato, sobre o sentido do mundo, que é o princípio da experiência do mundo como um 'mundo do senso comum'.” (traduzido livremente do original)]. Todavia, para Bourdieu (2012, p. 15-16), nas leituras dirigidas à obra de Durkheim, haveria uma tendência de se considerar apenas a questão da “integração moral”, deixando-se de lado o que, em seu entendimento, constituiria o seu aspecto fundamental, a saber: a “integração lógica”.54 54 Esse aspecto evidencia o caráter parcial e limitado das críticas que Luhmann (2008 [1972]; 2009 [1980]; 2004 [1993]; 2013 [2002]) endereça ao pensamento de Durkheim. A respeito, ver: Villas Bôas Filho (2010; 2017; 2019b). Para um conciso exame da sociologia jurídica de Durkheim, ver: Serverin (2000).

Portanto, ao definir o Estado como o detentor do monopólio da violência legítima tanto física como simbólica, Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012.) ilustra essa tese da integração lógica, ou seja, da partilha social de categorias de percepção e de formas de pensamento, mediante uma alusão ao papel do Estado na construção social da estrutura de temporalidade. Assim, aludindo ao clássico livro do historiador Lucien Febvre sobre Rabelais (Le problème de l’incroyance au XVI e siècle: la religion de Rabelais), Bourdieu (2012, p. 23) ressalta que o século XVI seria altamente revelador relativamente à gênese do que hoje designamos de Estado. De acordo com Bourdieu (2012), isso se expressaria, por exemplo, na partilha social da temporalidade. Conforme sublinha o autor, a regulação coletiva do tempo, que hoje se considera evidente, com os relógios que tocam mais ou menos na mesma hora, não seria algo antigo. Ao contrário, o mundo em que o tempo público é constituído, instituído e garantido simultaneamente por estruturas objetivas - os calendários e os relógios, por exemplo - e por estruturas mentais, ou seja, por pessoas concretas que consultam habitualmente um relógio e marcam compromissos com base nele, seria algo novo. Logo, para Bourdieu (2012, p. 23), essa espécie de “compatibilidade do tempo”, que supõe sua partilha pública, seria uma invenção relativamente recente e relacionada à constituição de “estruturas estatais”.

Por isso, Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 15-16) assevera que, além de proporcionar a “integração moral”, entendida como a promoção de um acordo acerca dos valores, o Estado como instituição seria responsável pela produção e pela canonização das classificações sociais, o que implica a progressiva monopolização das estruturas de percepção que estabelecem a “integração lógica” na sociedade. Consequentemente, nessa perspectiva, o Estado seria uma instituição fundamental na construção do mundo social. Aliás, Bourdieu (2012, p. 94), mediante um jogo de palavras não passível de tradução adequada para o português, afirma que o “Estado é meta” (l’État est méta), no sentido de que, na qualidade de detentor do monopólio da violência simbólica legítima, ele quantificaria e codificaria os indivíduos, atribuindo-lhes uma identidade social legítima. Assim, segundo Bourdieu (2012), caberia às ciências sociais desvelar essa situação mediante a “desbanalização” e a “análise da gênese do Estado”.55 55 A respeito, ver, especialmente, Bourdieu (2012, p. 169 e ss.). Para excelentes sínteses dessa questão a partir da obra de Bourdieu, ver: Lenoir (2012b) e Genet (2014).

3. O impacto do processo de desinstitucionalização sobre o Estado: notas a partir de François Dubet e Danilo Martuccelli

Na sociologia contemporânea, observa-se uma discussão não desprezível acerca do processo de desinstitucionalização.56 56 Como enfatizam Martuccelli e Singly (2012, p. 32), “à partir des années 1980, se répand l’idée que, dans la mésure ou la société ou les institutions ne transmettent plus de manière harmonieuse des normes d’action, il revient aux individus de donner un sens à leurs trajectoires.” [“a partir da década de 1980, difundiu-se a ideia de que, na medida em que a sociedade ou as instituições não mais transmitem padrões de ação de forma harmoniosa, cabe aos indivíduos dar sentido às suas trajetórias.” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver também: Dubet e Martuccelli (1998); Martuccelli e Santiago (2017). Evidentemente, não há como enfocar tal discussão em termos mais amplos no bojo de um artigo. Por essa razão, a presente análise estará calcada nas considerações de Danilo Martuccelli e François Dubet a respeito dessa questão. Assim, cabe preliminarmente ressaltar que Martuccelli (2002, p. 347) observa que a pesquisa sociológica tenderia a atribuir as seguintes exigências às instituições: a) o estabelecimento de “significações legítimas”, às quais os indivíduos confeririam autoridade; b) o caráter de exterioridade de significações, cuja validade não dependeria de nenhuma pessoa em particular.57 57 Note-se que, conforme enfatiza Martuccelli (2019), o conceito de instituição comporta um sentido lato e um estrito. É ao segundo deles que o autor se refere. Acerca da polissemia do conceito de instituição, ver, entre outros: Dubet (2010); Dubet e Martuccelli (1998); Revel (2013); Tornay (2011). Contudo, conforme Martuccelli (2002), observar-se-ia, cada vez mais, a transferência ao indivíduo, em detrimento das instituições, da conformação de seu próprio destino, fenômeno esse que, na literatura sociológica, seria descrito em termos de desinstitucionalização.58 58 Segundo Martuccelli (2002, p. 348), “désinstitutionalisation, veut alors dire que ce qui hier était pris en charge collectivement par les institutions est de plus en plus transmis à l’individu lui-même, qui doit dès lors assumer, sous forme de trajectoire personnelle, son propre destin.” [“desinstitucionalização, então, significa que aquilo que ontem era cuidado coletivamente pelas instituições é cada vez mais transmitido ao próprio indivíduo, que deve, portanto, assumir, na forma de uma trajetória pessoal, seu próprio destino.” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver: Martuccelli (2006).

A esse respeito, Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998., p. 147) sustentam que a tradição sociológica teria concebido as instituições como “máquinas de produção da ordem social” capazes de engendrar indivíduos ao mesmo tempo autônomos e em conformidade com as exigências do sistema social. Assim, segundo os autores, encontrar-se-ia na maior parte dos manuais de sociologia a afirmação de que a família, a escola, a igreja etc. seriam instituições fundamentais à reprodução e à estabilidade, na medida em que produziriam atores adaptados às necessidades da sociedade.59 59 Cabe notar que Dubet e Martuccelli (1998) analisam apenas três instituições: escola, família e igreja. Entretanto, é evidente que suas conclusões podem e, aliás, devem ser estendidas também ao Estado. Entretanto, conforme a tese por eles proposta, essa representação já não corresponderia mais ao que se passa na vida social contemporânea.60 60 Quanto a esse respeito, Martuccelli (2010, p. 7) observa que “en apparence, rien n’a changé. Les institutions fonctionnent, les acteurs agissent, les États régulent, la vie sociale se reproduit. […] Mais nous sentons bien que quelque chose d’étrangement profond et d’insaisissable a eu lieu. […] De quoi s’agit-il en juste ? D’une transformation de notre sensibilité sociale. L’individu, à l’échelle de notre vie singulière, est devenu l’horizon liminaire de notre perception sociale.” [“na aparência, nada mudou. As instituições funcionam, os atores agem, os Estados regulam, a vida social se reproduz. [...] Mas sentimos que algo estranhamente profundo e elusivo aconteceu. […] O que exatamente se trata? De uma transformação da nossa sensibilidade social. O indivíduo, na escala de nossa vida singular, tornou-se o horizonte liminar de nossa percepção social.” (traduzido livremente do original)]. Aliás, referindo-se à dominação no contexto da “condição moderna”, Martuccelli (2001) enfatiza que o poder residiria menos na estrutura das organizações do que nas redes que as constituem.61 61 Sobre a “condição social moderna”, ver, especialmente: Martuccelli (1999; 2001; 2017).

As razões elencadas por Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998., p. 147) para a explicação dessa situação seriam, fundamentalmente, as seguintes: a) as instituições estariam em crise, pois já não funcionariam como “aparelhos” (appareils) capazes de transformar os valores em normas e impô-las às personalidades individuais; b) assim, aquilo que outrora era levado a cabo coletivamente pelas instituições (introjeção de valores, formação de esquemas de percepção e de classificação) estaria sendo progressivamente transmitido ao indivíduo que, por esse motivo, passaria a assumir, pela sua trajetória pessoal, uma determinação mais efetiva de seu próprio destino; c) logo, nessa perspectiva, os indivíduos passariam a transitar por um horizonte social em que as identidades seriam cada vez menos moldadas diretamente pelas instituições; d) como decorrência da fragmentação do mundo contemporâneo, a integração de princípios não seria mais assegurada por um modelo cultural coerente e unitário.62 62 Como enfatiza Martuccelli (2002, p. 349), “l’intégration des principes n’est plus assurée par le bias d’un modèle culturel cohérent et unitaire, mais il doit être établi par chaque acteur.” [“a integração dos princípios não é mais assegurada por meio de um modelo cultural coerente e unitário, mas deve ser estabelecida por cada ator.” (traduzido livremente do original)].

Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.) asseveram que a ideia de instituição pressuporia uma relativa homogeneidade de valores a partir da qual se estabelece um sistema de normas e de papéis que não existiria mais. Nessa perspectiva, a fragmentação do mundo social contemporâneo e os efeitos que dela decorrem contribuiriam para o fenômeno da desinstitucionalização. Isso posto, os autores enfatizam que esse fenômeno decorreria, fundamentalmente, do estiolamento progressivo da centralidade das instituições tradicionais na reprodução social.63 63 Dubet e Martuccelli (1998, p. 168-169) afirmam que “l’idée d’institution suppose une relative homogénéité des valeurs à partir de laquelle s’enclenche un système de normes et de rôles. […] La désinstitutionnalisation procède aussi de la perte de monopole des vieilles institutions. […] Toutes institutions ont perdu ce qui faisait leur ‘essence’, leur identification à des principes généraux et leur capacité de socialiser les individus à partir de ces principes.” [“a ideia de instituição pressupõe uma relativa homogeneidade de valores a partir da qual se põe em movimento um sistema de normas e papéis. […] A desinstitucionalização decorre também da perda do monopólio das antigas instituições. […] Todas as instituições perderam sua ‘essência’, sua identificação com os princípios gerais e sua capacidade de socializar os indivíduos com base nesses princípios.” (traduzido livremente do original)]. À guisa de ilustração desse argumento, Dubet e Martuccelli (1998) analisam, como já mencionado, três instituições: a escola, a família e a igreja. Contudo, é evidente que suas conclusões podem e, aliás, devem ser estendidas também ao Estado.64 64 Os efeitos da desinstitucionalização no plano estatal são bastante evidentes no contexto brasileiro atual. Embora o propósito deste artigo não seja empreender uma discussão concreta de tais efeitos, a alusão a alguns deles pode ser profícua, inclusive para ressaltar a importância e a atualidade dessa temática em nosso país. Assim, à guisa de ilustração, vale indicar as práticas de cooptação de autoridades de instituições como, por exemplo, a Procuradoria-Geral da República, e de membros das Forças Armadas e da Polícia Federal que, uma vez aliciados, passam a desbordar-se de suas funções, ensejando, no limite, o descrédito de tais instituições. Do mesmo modo, a contaminação ideológica de políticas públicas, a recorrente tentativa de intervenção em Agências Reguladoras, em Empresas Públicas, em Autarquias e Fundações visando a sua instrumentalização para fins políticos e/ou eleitorais, também são um flagrante exemplo de desinstitucionalização. A utilização de subterfúgios para escamotear a alocação de recursos do orçamento público que acarreta a concentração de poder (e, portanto, de barganha) nas mãos Presidente da Câmara dos Deputados, comprometendo a impessoalidade e a transparência na gestão de tais recursos, também exprime essa mesma tendência. Por fim, as iniciativas de deslegitimação do último processo eleitoral, especialmente pelo mandatário de turno, mediante a propagação sistemática de notícias falsas, a introdução de atores externos e de neutralidade duvidosa com pretensão de interferência na condução do pleito e, inclusive, a contratação de uma empresa privada para auditar do processo, também constituem evidentes exemplos de desinstitucionalização.

Em consonância com essa constatação, expressivos autores apontam a necessidade de repensar o Estado tendo em vista a configuração social contemporânea. Chevallier (2008CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne. 3e éd. Paris: LGDJ, 2008.), por exemplo, observa que as transformações experimentadas pelo Estado não podem ser desconectadas do horizonte social em que ele se inscreve.65 65 A respeito, ver também: Commaille (2015). Segundo Chevallier (2008), tais transformações exprimiriam uma crise geral das instituições nas sociedades ocidentais e, inclusive, dos próprios valores da modernidade. Como decorrência dessa situação, observar-se-ia uma pressão pela construção de um “novo modelo de organização social”. É com base nessa constatação, aliás, que o autor, ao desenvolver a sua análise acerca do “Estado pós-moderno”, sublinha, entre outras coisas, os efeitos do “hiperindividualismo” na reconfiguração da relação com o coletivo.66 66 A respeito, Chevallier (2008, p. 16) sustenta que “cet hyper-individualisme imprègne la vie sociale tout entière. La société contemporaine est travaillée par un mouvement d’individuation, rendant caduques les anciennes classifications, catégorisations, dispositifs de contrôle, territorialités qui assuraient le quadrillage de l’espace social et la production des identités collectives […].” [“esse hiperindividualismo impregna toda a vida social. A sociedade contemporânea é afetada por um movimento de individuação, tornando obsoletas as velhas classificações, categorizações, dispositivos de controle, territorialidades que asseguravam a grade do espaço social e a produção de identidades coletivas [...].” (traduzido livremente do original)]. É possível afirmar que, em linhas gerais, a análise de Jacques Chevallier - que por sua complexidade não pode ser reconstruída aqui - serviria de ilustração da desinstitucionalização do Estado, tal como Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012.) o concebe, e de seus efeitos sobre a regulação jurídica.67 67 Quanto a esse último aspecto, Chevallier (2008, p. 123 e ss.) analisa o que designa de “explosão da regulação jurídica” (l’éclatement de la régulation juridique). Vale notar que, no que tange ao Estado, a desinstitucionalização também pode associar-se ao fenômeno do populismo, nos termos em que Godin (2012), Tarragoni (2013) e, sobretudo, Rosanvallon (2020) o definem. Acerca da judiciarização da política como instrumento de contenção da degradação populista da legitimidade democrática, ver: Villas Bôas Filho (2020b).

Contudo, vale notar que a discussão relativa à desinstitucionalização tem por horizonte empírico mais direto as sociedades caracterizadas pelo que Martuccelli (2019MARTUCCELLI, Danilo. Variantes del individualismo. Estudios Sociológicos, v. 37, n. 109, p. 7-37, 2019.) designa de “individualismo institucional”, ou seja, configurações sociais nas quais as instituições proporcionam verdadeiros “programas de ação” aos indivíduos. Assim, caberia discutir a sua especificidade em contextos, tais como os das sociedades latino-americanas, nos quais, em virtude de um precário suporte institucional, prevalece um “individualismo agêntico”,68 68 Demarcando a sua posição da de autores como Anthony Giddens, Martuccelli (2019, p. 26) enfatiza que o termo “agêntico” designa “la generalización de acciones y experiencias distantes, indiferentes, transgresivas o antagonistas respecto a las prescripciones institucionales o convenciones vigentes en una sociedad.” [“a generalização de ações e experiências distantes, indiferentes, transgressoras ou antagônicas em relação às prescrições institucionais ou convenções vigentes em uma sociedade.” (traduzido livremente do original)]. marcado pela tensão permanente entre as capacidades individuais e as prescrições institucionais, com a decorrente sobrecarga nas habilidades pessoais dos agentes.69 69 Como enfatiza Martuccelli (2019, p. 27), em muitas sociedades contemporâneas com “Estados de bem-estar residuais”, os atores se desenvolveriam em meio a instituições que, na melhor hipótese, só geram recursos ambivalentes. Por conseguinte, os indivíduos deveriam aprender a se proteger das instituições, de seus erros ou insuficiências, de suas prescrições impossíveis ou contraditórias. Referindo-se ao individualismo agêntico que, em seu entendimento, ocorre em diversas sociedades latino-americanas, o autor sustenta a existência de uma “autoconfrontação desregulada” com a vida social que, em seu entendimento, aumentaria as inseguranças ontológicas e obrigaria os indivíduos a criar um sistema funcional alternativo. Diante disso, eles seriam levados a desconfiar dos grupos e a confiar nas suas capacidades pessoais. Portanto, nos contextos em que prevalece o individualismo agêntico, os atores seriam instados a resolver, com suas habilidades e recursos, desafios que alhures são geridos pelas instituições ou em estreita relação com elas. Nesses contextos de individualismo agêntico, haveria uma tensão permanente entre as capacidades individuais e os modelos institucionais. Os indivíduos seriam compelidos a exceder sistematicamente as prescrições institucionais e a enfrentar uma série de desafios e imprevistos, tais como: ausência de assistência institucional; práticas clientelistas que minam sua independência; nexos insuficientes de solidariedades e abusos cometidos por parte das autoridades. A respeito, ver também: Martuccelli (2017). Seria possível sustentar que nesses contextos sociais, em que redes de relações interpessoais são construídas para suprir a ausência das instituições, o Estado assume uma posição distinta da que lhe é atribuída por análises que têm o “individualismo institucional” como seu referencial.70 70 A respeito, Martuccelli (2017, p. 379-381) ressalta, por exemplo, que “le mode d’individuation à l’œuvre dans la société française est indissociable d’un ensemble de droits très concrètement mis en œuvre par l’État social national. […] Si le processus d’individuation en France est irréductible au seul État social national, sa réalité est omniprésente dans la vie des individus.” [“o modo de individuação em funcionamento na sociedade francesa é inseparável de um conjunto de direitos muito concretamente implementados pelo Estado social nacional. […] Se o processo de individuação na França não pode ser reduzido apenas ao Estado social nacional, sua realidade é onipresente na vida dos indivíduos.” (traduzido livremente do original)].

Considerações finais

O presente artigo procurou analisar o impacto do processo de desinstitucionalização sobre a pretensão estatal de monopolização da violência legítima física e simbólica. Para tanto, buscou empreender um exame do Estado como “fiduciário organizado”, nos termos em que o sociólogo francês Pierre Bourdieu o concebe. Como visto, a escolha da obra do autor de Le sens pratique como referencial para pensar o Estado pelo ângulo sociológico decorre da exuberância e profundidade de sua análise, da ampla gama de autores (clássicos e contemporâneos) por ele enfocados e da consistência de suas conclusões. No entanto, além disso, essa escolha se sustenta em virtude de autores que discutem o processo de desinstitucionalização, notadamente Danilo Martuccelli e François Dubet, tomarem-no como referência incontornável no âmbito de suas análises.71 71 Cf. Dubet e Martuccelli (1998); Martuccelli e Santiago (2017).

Consequentemente, a partir de uma concisa abordagem dos conceitos fundamentais que estruturam o pensamento de Pierre Bourdieu, foi realizada uma concisa análise de sua tese relativa ao Estado como responsável pela reprodução e canonização das classificações sociais. Assim, enfatizou-se, preliminarmente, a apropriação feita pelo autor da tese de Émile Durkheim e de Marcel Mauss acerca do caráter convencional e, portanto, socialmente constituído das “formas de classificação”. Em seguida, procurou-se mostrar que, com base nesse pressuposto, Bourdieu (1993; 1994; 2003 [1997]; 2012) concebe o Estado como “produtor de princípios de classificação” e, por conseguinte, como uma instância capaz de engendrar “estruturas estruturantes” que, em seu entendimento, seriam suscetíveis de aplicação a quaisquer coisas, especialmente as sociais.

Por conseguinte, foi sublinhado que Bourdieu (1993BOURDIEU, Pierre. Esprits d’État: genèse et structure du champ bureaucratique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 96-97, p. 49-62, 1993.; 1994; 2003 [1997]; 2012), partindo da distinção durkheimiana entre “integração lógica” e “integração moral”, considera que o Estado, tal como ele geralmente é compreendido, constituiria o fundamento dessas duas formas de integração do mundo social. A esse respeito, foi realçado o fato de que, para o autor de La misère du monde, o Estado como instituição, além de proporcionar a “integração moral”, entendida como a promoção de um acordo acerca dos valores, seria responsável pela produção e pela canonização das classificações sociais, o que implicaria a progressiva monopolização das estruturas de percepção que estabelecem a “integração lógica” na sociedade. Daí a definição do autor de que o Estado seria detentor do monopólio da violência legítima tanto física como simbólica.

Por fim, foi feita uma breve alusão à tese da desinstitucionalização proposta por Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.). Quanto a essa questão, sublinhou-se, especialmente, a ideia, sustentada pelos autores, de que a instituição pressuporia uma relativa homogeneidade de valores a partir da qual se estabelece um sistema de normas e de papéis já não mais existente. Enfatizou-se, assim, que, para Dubet e Martuccelli (1998), a fragmentação do mundo social contemporâneo e os efeitos que dela decorrem contribuiriam para o fenômeno da desinstitucionalização. Ressaltando que os autores ilustram o seu argumento, mediante a análise de três instituições - a escola, a família e a igreja - sustentou-se a possibilidade de extensão de suas conclusões também ao Estado. Contudo, observou-se que a discussão relativa à desinstitucionalização tem por horizonte empírico mais direto as sociedades caracterizadas pelo que Martuccelli (2019) designa de “individualismo institucional”, ou seja, configurações sociais nas quais as instituições proporcionam verdadeiros “programas de ação” aos indivíduos. Assim, caberia discutir a sua especificidade em contextos, tais como os das sociedades latino-americanas, nos quais, em virtude de um precário suporte institucional, prevalece um “individualismo agêntico”.

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  • 1
    Como enfatizam Bezes e Pierru (2019BEZES, Philippe; PIERRU, Frédéric. Sociologie de l’État et politiques publiques. In: BOUSSAGUET, Laurie; JACQUOT, Sophie; RAVINET, Pauline (dir.). Dictionnaire des politiques publiques. 5e éd. Paris: Presses de Sciences Po, 2019, p. 584-593., p. 584), “dans le développement des sciences sociales, la sociologie de l’État a constitué historiquement la première manière d’aborder les activités publiques. Tous les fondateurs de la sociologie (Durkheim, Marx, Weber) et, a fortiori, de la science politique ont proposé des analyses de l’État articulant la mise en place d’un État légal-rationnel, la construction d’une administration professionnalisée et une réflexion générale sur la modernité économique, sociale et politique. Ces perspectives pionnières ont donné naissance à une première grammaire d’analyse du pouvoir, riche et intégratrice, en termes de bureaucratisation, de territorialisation, de monopolisation, de construction d’un « centre » et de civilisation des mœurs individuelles qui a structuré, après-guerre, l’analyse comparée de l’État […].” [“no desenvolvimento das ciências sociais, a sociologia do Estado constituiu historicamente a primeira forma de abordar as atividades públicas. Todos os fundadores da sociologia (Durkheim, Marx, Weber) e, a fortiori, da ciência política propuseram análises do Estado articulando a instauração de um Estado legal-racional, a construção de uma administração profissionalizada e uma reflexão geral sobre modernidade economia, social e política. Essas perspectivas pioneiras deram origem a uma primeira gramática de análise do poder, rica e integradora, em termos de burocratização, de territorialização, de monopolização, de construção de um ‘centro’ e de civilização dos costumes individuais que estruturou, no pós-guerra, a análise comparativa do Estado […].” (traduzido livremente do original)].
  • 2
    Clássicos do pensamento brasileiro, de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Raymundo Faoro a Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni e Francisco Weffort, passando por Simon Schwartzman, Roberto DaMatta e Florestan Fernandes, também atribuem particular importância ao Estado em suas análises.
  • 3
    Especificamente no que tange aos estudos sociojurídicos, tendo em conta a tradição intelectual na qual se inscrevem os autores que serão mobilizados como fundamentação da presente análise, ver, especialmente: Arnaud (2003ARNAUD, André-Jean. Critique de la raison juridique 2. Gouvernants sans frontières. Entre mondialisation et post-mondialisation. Paris: LGDJ, 2003.; 2004); Chevallier (2008CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne. 3e éd. Paris: LGDJ, 2008.; 2011); Commaille (2015COMMAILLE, Jacques. À quoi nous sert le droit? Paris: Gallimard, 2015.). No contexto brasileiro, em caráter meramente ilustrativo, cabe mencionar: Campilongo (2002CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002.) e Faria (2011FARIA, José Eduardo. O Estado e o direito depois da crise. São Paulo: Saraiva, 2011.). No âmbito da teoria do direito, ver, também em caráter apenas ilustrativo: Kelsen (2006KELSEN, Hans. General theory of law and State. New Brunswick, New Jersey: Transaction Publishers, 2006 [1945]. [1945]); Troper (2011TROPER, Michel. Le droit et la nécessité. Paris: Presses Universitaires de France, 2011.) e, no Brasil, Ferraz Jr. (2011FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª edição revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 2011.).
  • 4
    Para uma análise com essa pretensão, mostra-se pertinente a constatação feita por Rosanvallon (1990ROSANVALLON, Pierre. L’État en France: de nous 1789 à nos jours. Paris: Éditions du Seuil, 1990., p. 10): “il y a encore beaucoup de thèses à rédiger, de monographies à dresser et de montagnes d’archives à remuer pour songer à rédiger une histoire générale de l’État.” [“ainda há muitas teses para escrever, monografias para elaborar e montanhas de arquivos para mover para se pensar em escrever uma história geral do Estado.” (traduzido livremente do original)].
  • 5
    O curso ministrado no Collège de France entre 1989 e 1992 está consignado em Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012.). A respeito, ver, especialmente: Lenoir (2012bLENOIR, Rémi. L’État selon Pierre Bourdieu. Sociétés Contemporaines, n. 87, p. 123-154, 2012b.) e Villas Bôas Filho (2020a; 2021a; 2021b).
  • 6
    Segundo Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 67), “les institutions sont du fiduciaire organisé et doué d’automatisme. Le fiduciaire, une fois qu’il est organisé, fonctionne comme un mécanisme. […] On parle de mécanismes pour dire que ce sont des processus réguliers, répétitifs, constants, automatiques, qui réagissent à la façon d’un automatisme. Ce fiduciaire existe indépendamment des gens qui habitent les institutions considérées.” [“as instituições são o fiduciário organizado e dotado de automatismo. O fiduciário, uma vez que é organizado, funciona como um mecanismo. [...] Fala-se de mecanismos para dizer que são processos regulares, repetitivos, constantes, automáticos, que reagem ao modo de um automatismo. Esse fiduciário existe independente das pessoas que habitam as instituições consideradas.” (traduzido livremente do original)].
  • 7
    Conforme Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 263), “une institution ne marche lorsqu’il y a correspondance entre des structures objectives et des structures subjectives.” [“uma instituição só funciona quando há correspondência entre estruturas objetivas e estruturas subjetivas.” (traduzido livremente do original)].
  • 8
    Dubet e Matuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998., p. 65) sustentam que “la notion d’institution évoque aussi l’instauration d’un ordre symbolique, d’une structure mythique transformée en structure psychique, d’une loi plus large que les lois du droit. Autrement dit, partant d’un problème d’intégration, la notion d’institution a eu vocation à embrasser la totalité de la société en étudiant le processus de production des individus.” [“a noção de instituição também evoca a instauração de uma ordem simbólica, de uma estrutura mítica transformada em estrutura psíquica, de uma lei mais ampla que as leis do direito. Em outras palavras, partindo de um problema de integração, a noção de instituição pretendeu abarcar a totalidade da sociedade ao estudar o processo de produção dos indivíduos.” (traduzido livremente do original)]. Vale notar que Dubet (1994, p. 170) associa o conceito de instituição, em sua acepção estrita, a “une forte capacite d’intégration fonctionnelle autour des valeurs centrales […].” [“uma forte capacidade de integração funcional em torno de valores centrais [...].” (traduzido livremente do original)].
  • 9
    Seria possível afirmar que “instituição” seria uma espécie de “palavra plástica”, no sentido em que Uwe Pörksen as define. A esse respeito, vale notar que Pörksen (1995PÖRKSEN, Uwe. Plastic words. Tradução Jutta Mason e David Cayley. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 1995 [1988]. [1988]) utiliza a expressão “palavras plásticas” (Plastikwörter) para descrever vocábulos que são extraordinariamente maleáveis, porém vazios no que concerne a seu significado real. Assim, as “palavras plásticas”, que entram sub-repticiamente na linguagem cotidiana e passam a ditar nosso modo de pensar, seriam caracterizadas por definições precisas e restritas quando usadas em um contexto científico ou tecnológico. Contudo, essa precisão e definição desapareceriam quando elas são difundidas amplamente no uso comum. Para usos da noção de “palavras plásticas” (Plastikwörter) nas discussões das ciências sociais, ver, por exemplo: Mattei e Nader (2008MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Plunder: when the rule of law is illegal. Oxford: Blackwell Publishing, 2008.); Villas Bôas Filho (2016a; 2016b; 2019b).
  • 10
    A respeito, ver, especialmente: Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.) e Martuccelli e Santiago (2017).
  • 11
    No mesmo sentido, ver: Martuccelli e Santiago (2017MARTUCCELLI, Danilo; SANTIAGO, Jose. El desafío sociológico hoy: individuo y retos sociales. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas, 2017.).
  • 12
    Para críticas ao pensamento de Bourdieu, ver, por exemplo: Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999.); Martuccelli e Santiago (2017); Commaille (2015COMMAILLE, Jacques. À quoi nous sert le droit? Paris: Gallimard, 2015.); Heinich (2007HEINICH, Nathalie. Pourquoi Bourdieu? Paris: Gallimard, 2007.); Lahire (2005LAHIRE, Bernard. L’homme pluriel: les ressorts de l’action. Paris: Armand Colin, 2005 [1998]. [1998]; 2006). Para uma análise concisa de apropriações críticas do pensamento de Bourdieu por autores como Jean-Claude Passeron, Claude Grignon, Michel Dobry, Bernard Lahire, Luc Boltanski e Laurent Thévenot, ver: Corcuff (2007CORCUFF, Philippe. Les nouvelles sociologies. 2e éd. Paris: Armand Colin, 2007.). Para uma reconstrução concisa da perspectiva de Bernard Lahire que a contrasta com a de Bourdieu, ver: Martuccelli e Singly (2012). Quanto aos desdobramentos do pensamento de Bourdieu, ver também: Jourdain e Naulin (2011JOURDAIN, Anne; NAULIN, Sidonie. La théorie de Pierre Bourdieu et ses usages sociologiques. Paris: Armand Colin, 2011.). Poder-se-ia, por exemplo, discutir o caráter “hexagonal” (no sentido de forte enraizamento na experiência social francesa) da compreensão de Bourdieu acerca do Estado e do Direito. A respeito, a partir de uma breve comparação com a perspectiva de André-Jean Arnaud, ver: Villas Bôas Filho (2018b; 2019c). Nesse particular, García Villegas (2004) observa que a concepção de direito de Bourdieu baseia-se em uma teoria da dominação política centrada no Estado e fortemente vinculada à história política da França. Para o desenvolvimento desse argumento em termos mais concisos, ver: García Villegas (2015). Por sua vez, Ost (2021OST, François. Le droit ou l’empire du tiers. Paris: Dalloz, 2021.) ressalta que, em decorrência de sua desconfiança relativamente ao direito e aos juristas (por ele designados de “guardiões da hipocrisia coletiva”), Bourdieu seria levado a conceber o direito como um jogo de aparências que apenas escamotearia (eufemizando) sua violência intrínseca.
  • 13
    Para excelentes apresentações do pensamento de Pierre Bourdieu, ver, por exemplo: Bouveresse (2003BOUVERESSE, Jacques. Bourdieu, savant & politique. Paris: Agone, 2003.); Jourdain e Naulin (2011JOURDAIN, Anne; NAULIN, Sidonie. La théorie de Pierre Bourdieu et ses usages sociologiques. Paris: Armand Colin, 2011.); Mounier (2001MOUNIER, Pierre. Pierre Bourdieu, une introduction. Paris: Pocket/La Découverte, 2001.) e Pinto (2002PINTO, Louis. Pierre Bourdieu et la théorie du monde social. Paris: Éditions Albin Michel, 2002.). Relativamente ao direito no pensamento de Bourdieu, ver, especialmente: Caillosse (2004CAILLOSSE, Jacques. Pierre Bourdieu, juris lector: anti-juridisme et science du droit. Droit et Société, n. 56-57, p. 17-37, 2004.); García Villegas (2004); Guibentif (2007GUIBENTIF, Pierre. Teorias sociológicas comparadas e aplicadas: Bourdieu, Foucault, Habermas e Luhmann face ao direito. Cidades, Comunidades e Territórios, n. 14, p. 89-104, 2007.; 2010); Lenoir (2004LENOIR, Rémi. Du droit au champ juridique. In: PINTO, Louis; SAPIRO, Gisèle; CHAMPAGNE, Patrick. Pierre Bourdieu, sociologue. Paris: Librairie Arthème Fayard, 2004, p. 231-253.); Roussel (2004ROUSSEL, Violaine. Le droit et ses formes. Éléments de discussion de la sociologie du droit de Pierre Bourdieu. Droit et Société, n. 56-57, p. 41-55, 2004.); Sckell (2016SCKELL, Soraya Nour. Os juristas e o direito em Bourdieu. A conflituosa construção histórica da racionalidade jurídica. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 28, n. 1, p. 157-178, 2016.). No que tange à política, ver, por exemplo: Gambarotta (2016GAMBAROTTA, Emiliano. Bourdieu y lo político. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2016.) e Riutort (2012RIUTORT, Philippe. Le champ politique. In: LEBARON, Frédéric; MAUGER, Gérard (Dir.). Lectures de Bourdieu. Paris: Ellipses, 2012, p. 295-304.).
  • 14
    Quanto à influência de Durkheim, Marx e Weber sobre a obra de Bourdieu, ver, por exemplo, Berthelot (2008BERTHELOT, Jean-Michel. La construction de la sociologie. 6e éd. Paris: Presses Universitaires de France, 2008.); Corcuff (2007CORCUFF, Philippe. Les nouvelles sociologies. 2e éd. Paris: Armand Colin, 2007.); Jourdain e Naulin (2011JOURDAIN, Anne; NAULIN, Sidonie. La théorie de Pierre Bourdieu et ses usages sociologiques. Paris: Armand Colin, 2011.1) e Fabiani (2016FABIANI, Jean-Louis. Pierre Bourdieu. Un structuralisme héroïque. Paris: Éditions du Seuil, 2016.). No que tange especificamente à influência de Marx, ver: Mauger (2012MAUGER, Gérard. Bourdieu et Marx. In: LEBARON, Frédéric; MAUGER, Gérard (dir.). Lectures de Bourdieu. Paris: Ellipses, 2012, p. 25-39.). Quanto à de Weber, ver: Lenoir (2012aLENOIR, Remi. Bourdieu avec Weber. In: LEBARON, Frédéric; MAUGER, Gérard (dir.). Lectures de Bourdieu. Paris: Ellipses, 2012a, p. 41-59.). No que concerne à de Durkheim, ver: Pinto (2012PINTO, Louis. Pierre Bourdieu et la sociologie d’Émile Durkheim. In: LEBARON, Frédéric; MAUGER, Gérard (dir.). Lectures de Bourdieu. Paris: Ellipses, 2012, p. 61-74.).
  • 15
    Acerca da centralidade desses três conceitos, ver, especialmente: Bourdieu (2015BOURDIEU, Pierre. Sociologie générale, v. 1: cours au Collège de France (1981-1983). Paris: Éditions du Seuil, 2015.; 2016).
  • 16
    Para uma caracterização mais bem alinhavada da noção de campo, ver, especialmente: Bourdieu (2002BOURDIEU, Pierre. Quelques propriétés des champs. In: BOURDIEU, Pierre. Questions de sociologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002 [1984], p. 113-120. [1984]; 2003 [1997]; 2015; 2022). Para análises dessa questão, ver: Fabiani (2005FABIANI, Jean-Louis. Las reglas del campo. In: LAHIRE, Bernard (dir.). El trabajo sociológico de Pierre Bourdieu: deudas y críticas. Traducción de Ariel Dilon. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005, p. 91-110.) e Lahire (2005LAHIRE, Bernard. L’homme pluriel: les ressorts de l’action. Paris: Armand Colin, 2005 [1998].).
  • 17
    Como enfatiza Bourdieu (2003BOURDIEU, Pierre. Méditations pascaliennes. Paris: Éditions du Seuil, 2003 [1997]. [1997], p. 143), “le principe de vision et de division et le mode de connaissance (religieux, philosophique, juridique, scientifique, artistique, etc.) qui ont cours dans un champ, en association avec une forme spécifique d’expression, ne peuvent être connus et compris qu’en relation avec la légalité spécifique de ce champ comme microcosme social.” [“o princípio de visão e de divisão e o modo de conhecimento (religioso, filosófico, jurídico, científico, artístico etc.) que prevalecem em um campo, em associação com uma forma específica de expressão, só podem ser conhecidos e compreendidos em relação à legalidade específica desse campo como um microcosmo social” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver, especialmente: Bourdieu (2022).
  • 18
    Para uma análise particularmente elucidativa a esse respeito, ver: Bourdieu (1986aBOURDIEU, Pierre. Habitus, code et codification. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 64, p. 40-44, 1986a.). Quanto a esse aspecto, Corcuff (2007CORCUFF, Philippe. Les nouvelles sociologies. 2e éd. Paris: Armand Colin, 2007., p. 28) observa que “c’est donc la rencontre de l’habitus et du champ […] qui apparaît comme le mécanisme principal de production du monde social. Bourdieu reprend ici au Jean-Paul Sartre de Question de méthode (1960), en s’efforçant de rendre opératoire pour des travaux empiriques, le double mouvement d’intériorisation de l’extérieur et d’extériorisation de l’intérieur.” ["é, portanto, o encontro do habitus e do campo [...] que aparece como o principal mecanismo de produção do mundo social. Bourdieu retoma aqui a Questão do método (1960), de Jean-Paul Sartre, na tentativa de tornar operativo para os trabalhos empíricos, o duplo movimento de interiorização do exterior e exteriorização do interior." (traduzido livremente do original)]. Sobre a questão do habitus, ver também: Corcuff (2005).
  • 19
    Segundo Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p. 154), “a la réduction au calcul conscient, j’oppose le rapport de complicité ontologique entre l’habitus et le champ. Il y a entre les agents et le monde social un rapport de complicité infra-consciente, infra-linguistique […].” [“à redução ao cálculo consciente, eu oponho a relação de cumplicidade ontológica entre o habitus e o campo. Há, entre os agentes e o mundo social, uma relação de cumplicidade infraconsciente, infralinguística [...].” (traduzido livremente do original)].
  • 20
    Referindo-se a Bourdieu, Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999., p. 109-110) assevera que “dans son œuvre, il est facile de repérer une distinction essentielle entre les sociétés peu différenciées et les sociétés hautement différenciées, classement qui suit de près le récit des sociétés modernes qui s’est lentement forgé dans la filiation de la matrice de da différenciation sociale. [...] C’est en effet de la différenciation sociale que découle la préoccupation essentielle de Bourdieu, établir un principe de domination à travers différents champs historiquement constitués et montrer la forte adéquation entre les exigences de chaque champ, les positions sociales occupées et les dispositions individuelles.” [“na sua obra, é fácil identificar uma distinção essencial entre sociedades pouco diferenciadas e sociedades altamente diferenciadas, classificação que segue de perto a narrativa das sociedades modernas que se forjou lentamente na filiação da matriz da diferenciação social [...]. É, de fato, da diferenciação social que decorre a preocupação essencial de Bourdieu de estabelecer um princípio de dominação através de diferentes campos historicamente constituídos e de mostrar a forte adequação entre as exigências de cada campo, as posições sociais ocupadas e as disposições individuais.” (traduzido livremente do original)]. Para uma análise das matrizes sociológicas acerca da modernidade a partir da obra de Martuccelli, ver: Gonçalves e Villas Bôas Filho (2013GONÇALVES, Guilherme Leite; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013.) e Villas Bôas Filho (2009; 2019b).
  • 21
    A esse respeito, Corcuff (2007CORCUFF, Philippe. Les nouvelles sociologies. 2e éd. Paris: Armand Colin, 2007., p. 27) observa que “Bourdieu définit le ‘constructivisme structuraliste’ à la jonction de l’objectif et du subjectif […].” [“Bourdieu define o ‘construtivismo estruturalista’ pela junção do objetivo e do subjetivo […].” (traduzido livremente do original)].
  • 22
    Contudo, como ressalta Corcuff (2007CORCUFF, Philippe. Les nouvelles sociologies. 2e éd. Paris: Armand Colin, 2007., p. 34-35), “la priorité donnée par Bourdieu aux aspects objectifs de la réalité l’amène aussi parfois à réactiver le couple apparence/réalité, qui tendrait à éloigner sa sociologie de l’univers constructiviste. […] L’analyse de la construction sociale de la réalité est alors quelque peu limitée par une telle opposition entre une vrai réalité (objective) et une fausse réalité (subjective), car la dialectique du subjectif et de l’objectif y apparaît enrayée.” [“a prioridade dada por Bourdieu aos aspectos objetivos da realidade também o leva, por vezes, a reativar o par aparência/realidade, o que tenderia a distanciar sua sociologia do universo construtivista. [...] A análise da construção social da realidade é então um tanto limitada por tal oposição entre uma realidade verdadeira (objetiva) e uma realidade falsa (subjetiva), porque a dialética do subjetivo e do objetivo parece ficar bloqueada.” (traduzido livremente do original)].
  • 23
    Todavia, como destaca Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999., p. 33), “Bourdieu [...] ne se lasse pas de répéter l’imbrication intime existant entre l’agent et les champs, organisée autour de la notion d’habitus, et ne cesse pourtant de donner empiriquement la preuve de leurs multiples désaccords au cœur de la modernité.” [“Bourdieu [...] não se cansa de repetir a imbricação íntima existente entre o agente e os campos, organizada em torno da noção de habitus, e, no entanto, não cessa de dar provas empíricas de seus múltiplos desacordos no âmago da modernidade.” (traduzido livremente do original)].
  • 24
    Quanto a essa questão ver, por exemplo: Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999.); Yacine (2005YACINE, Tassadit. Argélia, matriz de uma obra. In: ENCREVÉ, Pierre; LAGRAVE, Rose-Marie (coord.). Trabalhar com Bourdieu. Tradução de Karina Jannini. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 337-349.). Aliás, Guibentif (2007GUIBENTIF, Pierre. Teorias sociológicas comparadas e aplicadas: Bourdieu, Foucault, Habermas e Luhmann face ao direito. Cidades, Comunidades e Territórios, n. 14, p. 89-104, 2007.), contrastando a obra de Bourdieu com as de Foucault, Habermas e Luhmann, observa que a sua preocupação com o trabalho de campo tornaria as suas análises mais próximas da “realidade social”. A respeito, ver também: Guibentif (2010).
  • 25
    Esse aspecto é particularmente bem analisado por Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999., p. 111) que, referindo-se ao pensamento de Bourdieu, ressalta que ele caracterizar-se-ia por apoiar-se “sur une correspondance étroite entre l’agent et les situations, sur leur complicité ontologique, et faire de cet accord le principe de fonctionnement normal de toute société. […] Bourdieu ne nie pas le mouvement inhérent à la modernité. […] Mais la prise en compte pratique de ce mouvement n’a d’autre fonction que de réaffirmer la présence, au sein des sociétés hautement différenciées, de l’indifférenciation entre les attitudes et les structures.” [“sobre a estreita correspondência entre o agente e as situações, sobre a sua cumplicidade ontológica, e fazer desse acordo o princípio do funcionamento normal de qualquer sociedade. […] Bourdieu não nega o movimento inerente à modernidade. […] Mas a consideração prática desse movimento não tem outra função senão reafirmar a presença, no seio de sociedades altamente diferenciadas, da indiferenciação entre atitudes e estruturas.” (traduzido livremente do original)].
  • 26
    Segundo Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999., p. 125 e 140), “malgré la volonté de Bourdieu d’établir un accord aussi étroit que possible entre l’habitus et le champ, cette relation ne cesse jamais, pratiquement, d’être écartelée. […] À terme, on ne peut dès lors que se demander où est encore véritablement à l’œuvre la complicité ontologique entre l’habitus et le champ. L’ajustement ne semble vraiment de rigueur que dans le passé et pour les couches supérieures des sociétés différenciées […].” [“apesar do desejo de Bourdieu de estabelecer um acordo o mais estreito possível entre o habitus e o campo, essa relação praticamente nunca deixa de ser dilacerada. [...] Em última análise, podemos apenas nos perguntar onde a cumplicidade ontológica entre o habitus e o campo ainda está realmente em ação. O ajuste só parece realmente necessário no passado e para os estratos superiores das sociedades diferenciadas [...].” (traduzido livremente do original)].
  • 27
    A respeito, ver também: Lahire (2006LAHIRE, Bernard. La culture des individus: dissonances culturelles et distinction de soi. Paris: La Découverte, 2006.); Martuccelli e Singly (2012MARTUCCELLI, Danilo; SINGLY, François de. Les sociologies de l’individu. 2e éd. Paris: Armand Colin, 2012.).
  • 28
    Cabe apenas notar que Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999., p. 112-113) também aponta a progressiva substituição do capital simbólico pelo econômico e a crescente codificação como características mobilizadas por Bourdieu para descrever a passagem das sociedades tradicionais para as modernas.
  • 29
    Referindo-se a esse processo, Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p. 122) afirma que “on passe d’un capital symbolique diffus, fondé sur la seule reconnaissance collective, à un capital symbolique objectivé, codifié, délégué et garanti par l’État, bureaucratisé.” [“passa-se de um capital simbólico difuso, baseado apenas no reconhecimento coletivo, a um capital simbólico objetivado, codificado, delegado e garantido pelo Estado, burocratizado.” (traduzido livremente do original)].
  • 30
    Referindo-se ao poder de nominação, Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p. 122) enfatiza que “la nomination est un acte, en définitive, très mystérieux qui obéit à une logique proche de celle de la magie telle que la décrit Marcel Mauss.” ["a nominação é, em última análise, um ato muito misterioso que segue uma lógica próxima à da magia, conforme a descreve Marcel Mauss.” (traduzido livremente do original)].
  • 31
    Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p. 123) exemplifica esses atos aludindo aos veredictos de um juiz ou de um professor, aos procedimentos notariais etc.
  • 32
    A gênese do Estado, como processo de concentração de diversas espécies de capital, é amplamente analisada por Bourdieu (1993BOURDIEU, Pierre. Esprits d’État: genèse et structure du champ bureaucratique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 96-97, p. 49-62, 1993.; 1994; 2012). Sobre essa questão, ver também: Bourdieu e Guibert (1995) e Déloye (2007DÉLOYE, Yves. Sociologie historique du politique. 3e éd. Paris: La Découverte, 2007.). Não há, entretanto, como analisar essa questão aqui. Basta apenas sublinhar que, segundo Bourdieu (1993, p. 52), “l’État est l'aboutissement d’un processus de concentration des différentes espèces de capital, capital de force physique ou d’instruments de coercition (armée, police), capital économique, capital culturel ou, mieux, informationnel, capital symbolique, concentration qui, en tant que telle, constitue l’État en détenteur d’une sorte de méta-capital, donnant pouvoir sur les autres espèces de capital et sur leurs détenteurs. La concentration de différentes espèces de capital (qui va de pair avec la construction des différents champs correspondants) conduit en effet à l’émergence d’un capital spécifique, proprement étatique, qui permet à l’État d’exercer un pouvoir sur les différents champs et sur les différentes espèces particulières de capital, et en particulier sur les taux de change entre elles (et, du même coup, sur les rapports de force entre leurs détenteurs).” [“o Estado é a culminação de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural ou, melhor, capital informacional, capital simbólico, concentração que, como tal, constitui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital, conferindo poder sobre os demais capitais e sobre seus titulares. A concentração de diferentes tipos de capital (que anda de mãos dadas com a construção dos diferentes campos correspondentes) conduz, de fato, à emergência de um capital específico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer poder sobre os diferentes campos e sobre as diferentes espécies particulares de capital e, em particular, sobre as taxas de câmbio entre eles (e, ao mesmo tempo, sobre o equilíbrio de poder entre seus detentores).” (traduzido livremente do original)].
  • 33
    Sobre essa questão, ver, especialmente: Bourdieu (1989BOURDIEU, Pierre. La noblesse d’État: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1989.; 1993; 1994; 2012) e Bourdieu e Passeron (1970). Vale notar que, segundo Bert (2011BERT, Jean-François. Introduction à Michel Foucault. Paris: La Découverte, 2011.), Foucault, no bojo de suas análises sobre o poder, criticava a tese de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron acerca da dominação escolar.
  • 34
    Quanto a essa questão, ver, sobretudo: Bourdieu (1989BOURDIEU, Pierre. La noblesse d’État: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1989.; 1993; 1994; 2012).
  • 35
    Não é possível desenvolver essa questão no bojo deste artigo. A respeito, García Villegas (2004, p. 60) ressalta que, para Bourdieu, “legal authority is the privileged form of power, especially in terms of legitimate symbolic violence - monopolized by the State - which the State both produces and practices.” ["a autoridade legal é a forma privilegiada de poder, especialmente em termos de violência simbólica legítima - monopolizada pelo Estado - que o Estado tanto produz como pratica." (traduzido livremente do original)].
  • 36
    Acerca do Estado no pensamento de Pierre Bourdieu, ver: Lenoir (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012.b); Sueur (2013SUEUR, Jean-Jacques. Pierre Bourdieu, le droit et les juristes. La méprise. Droit et Société, n. 85, p. 725-753, 2013.); Villas Bôas Filho (2021b). Para um instigante contraste das concepções de Bourdieu e de Althusser acerca do Estado, ver: Pallotta (2015PALLOTTA, Julien. Bourdieu face au marxisme althussérien: la question de l’État. Actuel Marx, n. 58, p. 130-143, 2015.).
  • 37
    Em sua expressiva análise acerca do Estado, Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012.) mobiliza, além de Marx, Durkheim e Weber, os trabalhos de Shmuel Noah Eisenstadt, Perry Anderson, Barrington Moore, Reinhard Bendix, Theda Skocpol, Norbert Elias, Charles Tilly, Philip Corrigan e Derek Sayer. Vale notar que a reflexão de Bourdieu (1993; 1994; 2003 [1997]; 2012) sobre o Estado, apesar de controvertida, proporciona aportes muito profícuos para a pesquisa sociojurídica, entendida como campo interdisciplinar. Acerca da interdisciplinaridade nos estudos sociojurídicos, ver, por exemplo: Arnaud (1992ARNAUD, André-Jean. Droit et société: du constat à la construction d’un champ commun. Droit et Société, n. 20-21, p. 17-38, 1992.); Bailleux e Ost (2013BAILLEUX, Antoine; OST, François. Droit, contexte et interdisciplinarité: refondation d’une démarche. Revue Interdisciplinaire d’Études Juridiques, Bruxelles, v. 70, n. 1, p. 25-44, 2013.); Dumont e Bailleux (2010DUMONT, Hugues; BAILLEUX, Antoine. Esquisse d’une théorie des ouvertures interdisciplinaires accessibles aux juristes. Droit et Société, n. 75, p. 275-293, 2010.); Villas Bôas Filho (2018a; 2019a).
  • 38
    A respeito, além dos textos supracitados, ver, especialmente, Bourdieu (2001BOURDIEU, Pierre. Langage et pouvoir symbolique. Paris: Éditons du Seuil, 2001.).
  • 39
    Segundo Durkheim (2010DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. Paris: Flammarion, 2010 [1895]. (Champs Classiques.) [1895]), as instituições respondem não a interesses particulares e contingentes, e sim a tendências coletivas profundas e, enquanto tais, duráveis. Desse modo, seria preciso estudar em que sentido as instituições “convêm” ou não a determinado meio social. Há situações em que uma instituição pode deixar de se ajustar a um dado meio social (regime de castas, por exemplo). Nesse caso, a instituição precisaria se transformar. Daí a necessidade de um estudo comparativo e histórico das instituições. A respeito, Durkheim (2010 [1895], p. 267) afirma que “pour rendre compte d’une institution sociale, appartenant à une espèce déterminée, on comparera les formes différentes qu’elle présente, non seulement chez les peuples de cette espèce, mais dans toutes les espèces antérieures. [...] Par conséquent, on ne peut expliquer un fait social de quelque complexité qu’à condition d’en suivre le développement intégral à travers toutes les espèces sociales. La sociologie comparée n’est pas une branche particulière de la sociologie; c’est la sociologie même, en tant qu’elle cesse d’être purement descriptive et aspire à rendre compte des faits.” [“para dar conta de uma instituição social, pertencente a uma espécie específica, vamos comparar as diferentes formas que ela apresenta, não apenas entre os povos dessa espécie, mas em todas as espécies anteriores. [...] Consequentemente, não se pode explicar um fato social de qualquer complexidade senão sob a condição de acompanhar seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais. A sociologia comparada não é um ramo particular da sociologia; é a própria sociologia, na medida em que deixa de ser puramente descritiva e aspira a dar conta dos fatos”. (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver, especialmente: Revel (2013REVEL, Jacques. L’institution et le social. In: LEPETIT, Bernard. (dir.). Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris: Albin Michel, 2013 [1995], p. 85-113. [1995]). Aliás, cabe notar que isso também explica a influência exercida pelo pensamento de Durkheim sobre autores como Douglas (1986DOUGLAS, Mary. How institutions think. Syracuse, New York: Syracuse University Press, 1986.). Para uma introdução à sociologia jurídica durkheimiana, ver: Villas Bôas Filho (2019b). No que tange aos reflexos de Durkheim sobre Douglas, ver: Villas Bôas Filho (2020a; 2022).
  • 40
    Para uma concisa reconstrução dessa questão, ver: Villas Bôas Filho (2020a; 2021a; 2021b).
  • 41
    Segundo Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 262), “Cassirer [...] écrit en toutes lettres: « quand je dis ‘forme symbolique’, je ne dis pas autre chose que ce que dit Durkheim lorsqu’il parle de ‘formes primitives de classification’».” [“Cassirer [...] escreve com todas as letras: ‘quando digo ‘forma simbólica’, não digo outra coisa senão o que diz Durkheim quando fala de ‘formas primitivas de classificação’.” (traduzido livremente do original)]. Vale notar, entretanto, que a afirmação feita por Cassirer (1992 [1947], p. 22) não é exatamente assim. Quanto à questão das “formas primitivas de classificação”, ver: Durkheim e Mauss (1969 [1903]). A respeito, ver também: Bourdieu (2003 [1997]).
  • 42
    Sobre essa questão, ver também: Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p. 124-125).
  • 43
    Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 263) sustenta que “si l’on suit cette tradition, on peut dire que nous avons des formes de pensée produites par l’incorporation de formes sociales, et que l’État existe en tant qu’institution.” [“se se segue essa tradição, pode-se dizer que temos formas de pensamento produzidas pela incorporação de formas sociais, e que o Estado existe como instituição.” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver, especialmente: Chevallier (2008CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne. 3e éd. Paris: LGDJ, 2008.; 2011); Commaille (2015COMMAILLE, Jacques. À quoi nous sert le droit? Paris: Gallimard, 2015.); Delpeuch, Dumoulin e Galembert (2014DELPEUCH, Thierry; DUMOULIN, Laurence; GALEMBERT, Claire de. Sociologie du droit et de la justice. Paris: Armand Colin, 2014.).
  • 44
    Como se sabe, a noção de “campo” é central na obra de Bourdieu. A respeito, ver, especialmente: Bourdieu (1986bBOURDIEU, Pierre. La force du droit. Éléments pour une sociologie du champ juridique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, v. 64, p. 3-19, 1986b.; 2002 [1984]; 2003 [1997]; 2012; 2015; 2016; 2022) e Bourdieu e Chartier (2010).
  • 45
    Conforme Bourdieu (2016BOURDIEU, Pierre. Sociologie générale, v. 2: cours au Collège de France (1983-1986). Paris: Éditions du Seuil, 2016., p. 119), “dans un jeu, un espace ou un champ social, il y a donc de l’institutionnalisé et du non-institutionnalisé.” [“num jogo, num espaço ou num campo social, há, portanto, o institucionalizado e o não institucionalizado.” (traduzido livremente do original)].
  • 46
    Segundo Bourdieu (2016BOURDIEU, Pierre. Sociologie générale, v. 2: cours au Collège de France (1983-1986). Paris: Éditions du Seuil, 2016., p. 37), “on pose la question universelle et on s’interroge dans chaque cas sur le degré d’institutionnalisation et les effets liés au degré élevé ou faible d’institutionnalisation des acquis antérieurs.” [“fazemos a pergunta universal e nos interrogamos em cada caso sobre o grau de institucionalização e os efeitos ligados ao alto ou baixo grau de institucionalização das aquisições prévias.” (traduzido livremente do original)].
  • 47
    A respeito, Bourdieu (2016BOURDIEU, Pierre. Sociologie générale, v. 2: cours au Collège de France (1983-1986). Paris: Éditions du Seuil, 2016., p. 119) enfatiza que “l’institué serait, selon moi, cet aspect des mécanismes sociaux qui est porté de l’état de régularité à l’état de règle; c’est le produit d’un travail de codification ou d’un acte d’institution qui est, par soi, un acte de codification […] il y a institution lorsque, non seulement les choses se font, mais que quelqu’un doté d’autorité dit comment elles doivent se faire et que la forme selon laquelle les choses doivent se faire est l’objet d’une objectivation.” [“o instituído seria, a meu ver, esse aspecto dos mecanismos sociais que se transporta do estado de regularidade ao estado de regra; é o produto de um trabalho de codificação ou de um ato de instituição que é, por si, um ato de codificação [...] há uma instituição quando, não apenas as coisas são feitas, mas alguém dotado de autoridade diz como elas devem ser feitas e que a forma como as coisas devem ser feitas é objeto de uma objetivação.” (traduzido livremente do original)]. Acerca das questões da codificação, da nominação e da objetivação, ver, especialmente: Bourdieu (1986a; 1986b). Para uma análise do papel dos juristas na construção do Estado, ver, especialmente: Bourdieu (1991; 1993; 1994 e 2012).
  • 48
    Vale notar que Saussois (2012SAUSSOIS, Jean-Michel. Théorie des organisations. Paris: La Découverte, 2012., p. 97), baseando-se em autores como Douglas North, ressalta que a “estrutura” (framework) institucional condicionaria a “estrutura” (ou forma) organizacional. Desse modo, segundo o autor, essas duas estruturas evoluiriam de maneira dinâmica para se colocar em coerência, senão em equilíbrio. Para uma perspectiva crítica dessa relação, ver: Luhmann (2010LUHMANN, Niklas. Organización y decisión. Traducción de Darío Rodriguez Mansilla. México: Editorial Herder, 2010 [2006]. [2006]).
  • 49
    Conforme já mencionado, para Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012.), as instituições são o fiduciário organizado e dotado de automatismo.
  • 50
    Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 14) afirma que “j’ai fait, il y a déjà plusieurs années, une addition à la définition célèbre de Max Weber qui définit l’État [comme le] ‘monopole de la violence légitime’, que je corrige en ajoutant: ‘monopole de la violence physique et symbolique’; on pourrait même dire: ‘monopole de la violence symbolique légitime’, dans la mesure où le monopole de la violence symbolique est la condition de la possession de l’exercice de la violence physique elle-même.” [“já há alguns anos, eu fiz um acréscimo à famosa definição de Max Weber que define o Estado [como o] ‘monopólio da violência legítima’, que corrijo acrescentando: ‘monopólio da violência física e simbólica’; poder-se-ia mesmo dizer: ‘monopólio da violência simbólica legítima’, na medida em que o monopólio da violência simbólica é a condição da posse do próprio exercício da violência física.” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver: Weber (2002 [1922], p. 1056 e ss.). Sobre a definição weberiana de Estado, ver, por exemplo: Colliot-Thélène (2006); Fleury (2009FLEURY, Laurent. Max Weber. 2e éd. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.); Freund (1987FREUND, Julien. A sociología de Max Weber. Tradução de Paulo Guimarães do Couto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.); Hübinger (2009HÜBINGER, Gangolf. La « sociologie de l’État » de Max Weber et la « science du politique » en Allemagne. In: BRUHNS, Hinnerk; DURAN, Patrice (dir.). Max Weber et le politique. Paris: LGDJ, 2009, p. 15-29.); Lassman (2000LASSMAN, Peter. The rule of man over man: politics, power and legitimation. In: TURNER, Stephen (ed.). The Cambridge Companion to Weber. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 83-98.).
  • 51
    Cf. Durkheim (2013DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. 7e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 2013 [1912]. (Quadrige.) [1912], p. 23-25) e, especialmente, Durkheim e Mauss (1969 [1903]).
  • 52
    Bourdieu (1994BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Éditions du Seuil, 1994., p. 114-115) afirma que “l’État façonne les structures mentales et impose des principes de vision et de division communs, des formes de pensée qui sont à la pensée cultivée ce que les formes primitives de classification décrites para Durkheim et Mauss sont à la ‘pensée sauvage’, contribuant par là à construire ce que l’on désigne communément comme l’identité nationale - ou, dans un langage plus traditionnel, le caractère national.” [“o Estado molda estruturas mentais e impõe princípios comuns de visão e de divisão, formas de pensamento que são para o pensamento cultivado o que as formas primitivas de classificação, descritas por Durkheim e Mauss, são para o ‘pensamento selvagem’, contribuindo assim para construir o que comumente se designa como a identidade nacional - ou, em linguagem mais tradicional, o caráter nacional.” (traduzido livremente do original)]. No mesmo sentido, ver: Bourdieu (2003 [1997] ; 2012).
  • 53
    Por esse motivo, referindo-se ao Estado, Bourdieu (2003BOURDIEU, Pierre. Méditations pascaliennes. Paris: Éditions du Seuil, 2003 [1997]. [1997], p. 249) afirma que “il est de ce fait le fondement d’un ‘conformisme logique’ et d’un ‘conformisme moral’ (les expressions sont de Durkheim), d’un consensus préréflexif, immédiat, sur le sens du monde, qui est au principe de l’expérience du monde comme ‘monde du sens commun’.” [“ele é, portanto, o fundamento de um ‘conformismo lógico’ e de um ‘conformismo moral’ (as expressões são de Durkheim), de um consenso pré-reflexivo, imediato, sobre o sentido do mundo, que é o princípio da experiência do mundo como um 'mundo do senso comum'.” (traduzido livremente do original)].
  • 54
    Esse aspecto evidencia o caráter parcial e limitado das críticas que Luhmann (2008LUHMANN, Niklas. Rechtssoziologie. 4. Auflage. Opladen: Westdeutscher, 2008 [1972]. (trad. port. Sociologia do Direito, 2 v.). [1972]; 2009 [1980]; 2004 [1993]; 2013 [2002]) endereça ao pensamento de Durkheim. A respeito, ver: Villas Bôas Filho (2010DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. Paris: Flammarion, 2010 [1895]. (Champs Classiques.); 2017; 2019b). Para um conciso exame da sociologia jurídica de Durkheim, ver: Serverin (2000SERVERIN, Évelyne. Sociologie du droit. Paris: La Découverte, 2000.).
  • 55
    A respeito, ver, especialmente, Bourdieu (2012BOURDIEU, Pierre. Sur l’État: cours au Collège de France 1989-1992. Paris: Éditions du Seuil, 2012., p. 169 e ss.). Para excelentes sínteses dessa questão a partir da obra de Bourdieu, ver: Lenoir (2012bLENOIR, Rémi. L’État selon Pierre Bourdieu. Sociétés Contemporaines, n. 87, p. 123-154, 2012b.) e Genet (2014GENET, Jean-Philippe. À propos de Pierre Bourdieu et de la genèse de l’État moderne. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 201-202, p. 98-105, 2014.).
  • 56
    Como enfatizam Martuccelli e Singly (2012MARTUCCELLI, Danilo; SINGLY, François de. Les sociologies de l’individu. 2e éd. Paris: Armand Colin, 2012., p. 32), “à partir des années 1980, se répand l’idée que, dans la mésure ou la société ou les institutions ne transmettent plus de manière harmonieuse des normes d’action, il revient aux individus de donner un sens à leurs trajectoires.” [“a partir da década de 1980, difundiu-se a ideia de que, na medida em que a sociedade ou as instituições não mais transmitem padrões de ação de forma harmoniosa, cabe aos indivíduos dar sentido às suas trajetórias.” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver também: Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.); Martuccelli e Santiago (2017).
  • 57
    Note-se que, conforme enfatiza Martuccelli (2019MARTUCCELLI, Danilo. Variantes del individualismo. Estudios Sociológicos, v. 37, n. 109, p. 7-37, 2019.), o conceito de instituição comporta um sentido lato e um estrito. É ao segundo deles que o autor se refere. Acerca da polissemia do conceito de instituição, ver, entre outros: Dubet (2010DUBET, François. Déclin de l’institution et/ou néolibéralisme? Éducation et Société, n. 25, p. 17-34, 2010.); Dubet e Martuccelli (1998); Revel (2013REVEL, Jacques. L’institution et le social. In: LEPETIT, Bernard. (dir.). Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris: Albin Michel, 2013 [1995], p. 85-113.); Tornay (2011).
  • 58
    Segundo Martuccelli (2002MARTUCCELLI, Danilo. Grammaires de l’individu. Paris: Gallimard, 2002., p. 348), “désinstitutionalisation, veut alors dire que ce qui hier était pris en charge collectivement par les institutions est de plus en plus transmis à l’individu lui-même, qui doit dès lors assumer, sous forme de trajectoire personnelle, son propre destin.” [“desinstitucionalização, então, significa que aquilo que ontem era cuidado coletivamente pelas instituições é cada vez mais transmitido ao próprio indivíduo, que deve, portanto, assumir, na forma de uma trajetória pessoal, seu próprio destino.” (traduzido livremente do original)]. A respeito, ver: Martuccelli (2006).
  • 59
    Cabe notar que Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.) analisam apenas três instituições: escola, família e igreja. Entretanto, é evidente que suas conclusões podem e, aliás, devem ser estendidas também ao Estado.
  • 60
    Quanto a esse respeito, Martuccelli (2010MARTUCCELLI, Danilo. La société singulariste. Paris: Armand Colin, 2010., p. 7) observa que “en apparence, rien n’a changé. Les institutions fonctionnent, les acteurs agissent, les États régulent, la vie sociale se reproduit. […] Mais nous sentons bien que quelque chose d’étrangement profond et d’insaisissable a eu lieu. […] De quoi s’agit-il en juste ? D’une transformation de notre sensibilité sociale. L’individu, à l’échelle de notre vie singulière, est devenu l’horizon liminaire de notre perception sociale.” [“na aparência, nada mudou. As instituições funcionam, os atores agem, os Estados regulam, a vida social se reproduz. [...] Mas sentimos que algo estranhamente profundo e elusivo aconteceu. […] O que exatamente se trata? De uma transformação da nossa sensibilidade social. O indivíduo, na escala de nossa vida singular, tornou-se o horizonte liminar de nossa percepção social.” (traduzido livremente do original)].
  • 61
    Sobre a “condição social moderna”, ver, especialmente: Martuccelli (1999MARTUCCELLI, Danilo. Sociologies de la modernité: l’itinéraire du XXe siècle. Paris: Gallimard, 1999.; 2001; 2017).
  • 62
    Como enfatiza Martuccelli (2002MARTUCCELLI, Danilo. Grammaires de l’individu. Paris: Gallimard, 2002., p. 349), “l’intégration des principes n’est plus assurée par le bias d’un modèle culturel cohérent et unitaire, mais il doit être établi par chaque acteur.” [“a integração dos princípios não é mais assegurada por meio de um modelo cultural coerente e unitário, mas deve ser estabelecida por cada ator.” (traduzido livremente do original)].
  • 63
    Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998., p. 168-169) afirmam que “l’idée d’institution suppose une relative homogénéité des valeurs à partir de laquelle s’enclenche un système de normes et de rôles. […] La désinstitutionnalisation procède aussi de la perte de monopole des vieilles institutions. […] Toutes institutions ont perdu ce qui faisait leur ‘essence’, leur identification à des principes généraux et leur capacité de socialiser les individus à partir de ces principes.” [“a ideia de instituição pressupõe uma relativa homogeneidade de valores a partir da qual se põe em movimento um sistema de normas e papéis. […] A desinstitucionalização decorre também da perda do monopólio das antigas instituições. […] Todas as instituições perderam sua ‘essência’, sua identificação com os princípios gerais e sua capacidade de socializar os indivíduos com base nesses princípios.” (traduzido livremente do original)].
  • 64
    Os efeitos da desinstitucionalização no plano estatal são bastante evidentes no contexto brasileiro atual. Embora o propósito deste artigo não seja empreender uma discussão concreta de tais efeitos, a alusão a alguns deles pode ser profícua, inclusive para ressaltar a importância e a atualidade dessa temática em nosso país. Assim, à guisa de ilustração, vale indicar as práticas de cooptação de autoridades de instituições como, por exemplo, a Procuradoria-Geral da República, e de membros das Forças Armadas e da Polícia Federal que, uma vez aliciados, passam a desbordar-se de suas funções, ensejando, no limite, o descrédito de tais instituições. Do mesmo modo, a contaminação ideológica de políticas públicas, a recorrente tentativa de intervenção em Agências Reguladoras, em Empresas Públicas, em Autarquias e Fundações visando a sua instrumentalização para fins políticos e/ou eleitorais, também são um flagrante exemplo de desinstitucionalização. A utilização de subterfúgios para escamotear a alocação de recursos do orçamento público que acarreta a concentração de poder (e, portanto, de barganha) nas mãos Presidente da Câmara dos Deputados, comprometendo a impessoalidade e a transparência na gestão de tais recursos, também exprime essa mesma tendência. Por fim, as iniciativas de deslegitimação do último processo eleitoral, especialmente pelo mandatário de turno, mediante a propagação sistemática de notícias falsas, a introdução de atores externos e de neutralidade duvidosa com pretensão de interferência na condução do pleito e, inclusive, a contratação de uma empresa privada para auditar do processo, também constituem evidentes exemplos de desinstitucionalização.
  • 65
    A respeito, ver também: Commaille (2015COMMAILLE, Jacques. À quoi nous sert le droit? Paris: Gallimard, 2015.).
  • 66
    A respeito, Chevallier (2008CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne. 3e éd. Paris: LGDJ, 2008., p. 16) sustenta que “cet hyper-individualisme imprègne la vie sociale tout entière. La société contemporaine est travaillée par un mouvement d’individuation, rendant caduques les anciennes classifications, catégorisations, dispositifs de contrôle, territorialités qui assuraient le quadrillage de l’espace social et la production des identités collectives […].” [“esse hiperindividualismo impregna toda a vida social. A sociedade contemporânea é afetada por um movimento de individuação, tornando obsoletas as velhas classificações, categorizações, dispositivos de controle, territorialidades que asseguravam a grade do espaço social e a produção de identidades coletivas [...].” (traduzido livremente do original)].
  • 67
    Quanto a esse último aspecto, Chevallier (2008CHEVALLIER, Jacques. L’État post-moderne. 3e éd. Paris: LGDJ, 2008., p. 123 e ss.) analisa o que designa de “explosão da regulação jurídica” (l’éclatement de la régulation juridique). Vale notar que, no que tange ao Estado, a desinstitucionalização também pode associar-se ao fenômeno do populismo, nos termos em que Godin (2012GODIN, Christian. Qu’est-ce que le populisme? Cités, n. 49, p. 11-25, 2012.), Tarragoni (2013TARRAGONI, Federico. La science du populisme au crible de la critique sociologique: archéologie d’un mépris savant du peuple. Actuel Marx, n. 54, p. 56-70, 2013.) e, sobretudo, Rosanvallon (2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme: histoire, théorie, critique. Paris: Éditions du Seuil, 2020.) o definem. Acerca da judiciarização da política como instrumento de contenção da degradação populista da legitimidade democrática, ver: Villas Bôas Filho (2020b).
  • 68
    Demarcando a sua posição da de autores como Anthony Giddens, Martuccelli (2019MARTUCCELLI, Danilo. Variantes del individualismo. Estudios Sociológicos, v. 37, n. 109, p. 7-37, 2019., p. 26) enfatiza que o termo “agêntico” designa “la generalización de acciones y experiencias distantes, indiferentes, transgresivas o antagonistas respecto a las prescripciones institucionales o convenciones vigentes en una sociedad.” [“a generalização de ações e experiências distantes, indiferentes, transgressoras ou antagônicas em relação às prescrições institucionais ou convenções vigentes em uma sociedade.” (traduzido livremente do original)].
  • 69
    Como enfatiza Martuccelli (2019MARTUCCELLI, Danilo. Variantes del individualismo. Estudios Sociológicos, v. 37, n. 109, p. 7-37, 2019., p. 27), em muitas sociedades contemporâneas com “Estados de bem-estar residuais”, os atores se desenvolveriam em meio a instituições que, na melhor hipótese, só geram recursos ambivalentes. Por conseguinte, os indivíduos deveriam aprender a se proteger das instituições, de seus erros ou insuficiências, de suas prescrições impossíveis ou contraditórias. Referindo-se ao individualismo agêntico que, em seu entendimento, ocorre em diversas sociedades latino-americanas, o autor sustenta a existência de uma “autoconfrontação desregulada” com a vida social que, em seu entendimento, aumentaria as inseguranças ontológicas e obrigaria os indivíduos a criar um sistema funcional alternativo. Diante disso, eles seriam levados a desconfiar dos grupos e a confiar nas suas capacidades pessoais. Portanto, nos contextos em que prevalece o individualismo agêntico, os atores seriam instados a resolver, com suas habilidades e recursos, desafios que alhures são geridos pelas instituições ou em estreita relação com elas. Nesses contextos de individualismo agêntico, haveria uma tensão permanente entre as capacidades individuais e os modelos institucionais. Os indivíduos seriam compelidos a exceder sistematicamente as prescrições institucionais e a enfrentar uma série de desafios e imprevistos, tais como: ausência de assistência institucional; práticas clientelistas que minam sua independência; nexos insuficientes de solidariedades e abusos cometidos por parte das autoridades. A respeito, ver também: Martuccelli (2017).
  • 70
    A respeito, Martuccelli (2017MARTUCCELLI, Danilo; SANTIAGO, Jose. El desafío sociológico hoy: individuo y retos sociales. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas, 2017., p. 379-381) ressalta, por exemplo, que “le mode d’individuation à l’œuvre dans la société française est indissociable d’un ensemble de droits très concrètement mis en œuvre par l’État social national. […] Si le processus d’individuation en France est irréductible au seul État social national, sa réalité est omniprésente dans la vie des individus.” [“o modo de individuação em funcionamento na sociedade francesa é inseparável de um conjunto de direitos muito concretamente implementados pelo Estado social nacional. […] Se o processo de individuação na França não pode ser reduzido apenas ao Estado social nacional, sua realidade é onipresente na vida dos indivíduos.” (traduzido livremente do original)].
  • 71
    Cf. Dubet e Martuccelli (1998DUBET, François; MARTUCCELLI, Danilo. Dans quelle société vivons-nous? Paris: Éditions du Seuil, 1998.); Martuccelli e Santiago (2017).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2022
  • Aceito
    21 Jan 2023
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