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Os Estados Ibéricos e a Questão da Transição em Portugal

The Iberian States and the Question of Transition in Portugal

Resumo

Os Estados Ibéricos iniciaram a expansão ultramarina europeia - como empreendimento europeu - na viragem do século XV para o XVI, e nos séculos XVII e XVIII assumem os contornos da transição à modernidade, marcada por um desenho que remonta à luta contra o islão, que marcou a formação da contemporaneidade e da transição do Antigo Regime ao período capitalista no sul da Europa, com impacto no mundo (desde logo na relação com a Inglaterra, motor dos capitalismo), numa visão integrada global: modos de produção, comércio à escala global, regimes políticos, afinal, qual a marca da transição à modernidade no sul da Europa? E como ela se dá em Portugal?

Palavras-chave:
Despotismo; Capitalismo; Transição; Modernidade; Estados Ibéricos

Abstract

The Iberian States began the European overseas expansion - as a European enterprise - at the turn of the 15th to the 16th century, and in the 17th and 18th centuries, assuming the contours of the transition to modernity, marked by a design that dates back to the fight against Islam, which marked the formation of contemporaneity and the transition from the Ancien Régime to the capitalist period in southern Europe, with an impact on the world (from the outset in the relationship with England, the engine of capitalism), in an integrated global vision: modes of production, trade on a global scale, political regimes, finally, what is the mark of the transition to modernity in southern Europe? And how is it in Portugal?

Keywords:
Despotism; Capitalism; Transition; Modernity; Iberian States

Os Estados Ibéricos e a Questão da Transição1 1 Devo um agradecimento especial, no debate sobre os Estados Ibéricos e a transição à longa entrevista/conversa (março de 2022), que aqui transcrevo (nem sempre literalmente, por isso abdiquei das aspas) e com autorização do entrevistado, ao meu colega e amigo Osvaldo Coggiola. Não sendo eu uma estudiosa do período moderno as suas reflexões permitiram a síntese que aqui é feita. Este artigo é parte da tese de mestrado de Raquel Varela em didática da história.

Segundo Perry Anderson, historiador, há três coordenadas históricas que são os primeiros embriões de um novo tipo de história da humanidade, a qual o autor irá denominar “espectro da autodeterminação”: uma forma historicamente inédita de agência humana, que envolve amplos projetos societários de autotransformação histórica global. Esse novo tipo de agência humana - consciente de si - que surge depois das maiores revoluções dos séculos XIX e XX, teve «antevisões antecipatórias» nas formas históricas da: i) expansão marítima, ii) heterodoxia religiosa e iii) utopia literária, segundo Anderson (Anderson, 2018).

A história de Portugal está ligada intrinsecamente de um lado a Espanha e do outro a Inglaterra, mas no período pré-capitalista (até 1820 ou 1850) está mais vinculada a Espanha do que a Inglaterra - ao ponto de no século XVI chegarem a constituir um Estado Único (1580-1640). Portugal, junto com a Espanha, iniciou a expansão ultramarina europeia. Para compreender a formação da contemporaneidade e da transição do Antigo Regime ao período capitalista, contemporâneo, e a existência de um modo de acumulação assente em duas classes fundamentais - burguesia e trabalhadores - é preciso perceber que Estado português e espanhol não surgem da superação de particularismos feudais, como foi o caso da Inglaterra, França e outros países europeus. Surgem da luta contra o império islâmico (a “reconquista” na mitologia nacionalista”), um Império tributário. O estancamento da economia Islâmica faz com que a sua presença na Península Ibérica seja parasitária, extratora de impostos, e aí se dão as conquistas e o nascimento do Estado (ainda não, inicialmente, moderno,) português e espanhol.

A outra característica é que Espanha e Portugal são o instrumento de um empreendimento europeu internacional, de toda a Europa! não de Portugal e Espanha exclusivamente, que é a expansão marítima. Há uma economia europeia a desenvolver-se, e para a resgatar, os instrumentos históricos foram dois Estados: Espanha e Portugal. Foram, porém, instrumentos de uma economia europeia - Colombo era genovês. Não é um acaso. Tratava-se de encontrar rotas alternativas às do Mediterrânio. Os esforços da expansão foram em grande medida impulsionados pelos financiadores das repúblicas italianas, entre eles os banqueiros florentinos. Entre os financeiros destas expedições, estavam os judeus, que tiveram um papel essencial - e a expulsão destes de Portugal só adensou estas redes comerciais mundiais. Como assinala António Andrade “Mas são também esses mesmos homens que assumem um papel decisivo e incontornável na diáspora sefardita, organizando e financiando redes de apoio a emigração dos seus conterrâneos menos favorecidos. Nessa primeira metade de Quinhentos foram lançadas as solidas raízes de uma estrutura alargada de base comercial, cultural e religiosa, assente em redes familiares, cujos membros se encontravam dispersos pelas grandes praças comerciais europeias. “ (Andrade, 2006:66).

Os Estados ibéricos têm peculiaridades, mas no caso do Estado Espanhol, que se constitui em 1492, sobre a base da conquista (a chamada “reconquista”, relato mítico já que o que conquistaram os árabes não foram territórios unificados no Estado português ou espanhol, que não existiam) que “expulsa” os mouros. Hoje sabe-se que essa expulsão teve um carácter não só de guerra, mas também de incorporação (Torres, 1992Torres, Cláudio (1992), "O Gharb al-Andaluz" in História de Portugal - (Vol. I), 1992 (direção de José Mattoso), , Lisboa, Círculo de Leitores.), como tem destacado nos seus estudos Cláudio Torres. O Império islâmico, quando se dá a conquista, estaria em completa decadência, fracassava em transformar-se (personagem central do mundo intelectual da altura, Ibn Kaldun (Fromherz, 2010Fromherz, Allen James (2010), Ibn Khaldun Life And Times, Edinburgh Scholarship Online.), pensador tunisino, considerado, segundo Coggiola algo como o primeiro pensador “materialista histórico“), aplica então categorias centrais na análise dos fatores dessa decadência - que tem a ver com produção, urbanização, etc. como bases para entender a história (Lacoste, 1984Lacoste, Yves (1984), Ibn Khaldun, The Birth of History and the Past of the Third World, New York, Verso Books.).

O Estado Espanhol é mais semelhante ao despotismo asiático do que ao Estado europeu absolutista de matriz europeia, cujo exemplo típico seria o Estado Absolutista francês. Os Estados ibéricos seriam, como explica o historiador Osvaldo Coggiola, na verdade uma forma intermediária entre o Estado Russo (despotismo asiático, que sobrevive até ao século XX) e o absolutismo francês2 2 No caso do Estado Espanhol assinala-se como característica especifica a mesta, criação de gado de carácter transumante que dá ao Estado Espanhol características particulares no por causa da base produtiva- não se pode assemelhar o feudalismo espanhol ao caso francês, ao feudalismo que abrange desde os Pireneus até à Europa oriental. A propriedade feudal da mesta não é comparável à propriedade como existia na França, Inglaterra etc. . Segundo Perry Anderson o fracasso de centralização (judicial, fiscal) da Espanha foi compensado pela descoberta do novo Mundo: “[...] isso significava que o absolutismo na Espanha poderia ainda, por muito tempo, prescindir da lenta unificação fiscal e administrativa que constituía uma condição prévia para o absolutismo de outros países: a obstinada recalcitrância de Aragão era compensada pela complacência do Peru” (Anderson, 1998:69). Dever-se-ia dizer antes da burguesia catalã, parte do Reino de Aragão. E Portugal, insere-se nesta conceptualização? Como Norte do Sul e Sul do Norte, mas também Leste/Oeste qual o lugar de Portugal nesta transição e como ela configurou Portugal?

O despotismo é um conceito ligado ao que Karl Marx chamou modo de produção asiático. O Estado constitui-se em tempos em que a produção mercantil ainda era escassa com o intuito de centralizar um conjunto de unidades produtivas que não praticam produção mercantil (casos típicos são a Índia e a China3 3 Na China há também um debate em relação a isto já que a China inventou o papel-moeda, sinónimo de uma produção mercantil mais avançada. ), é escassa essa produção. A ideia de Marx, polémica, é a ideia de unificação de unidades, marginalmente mercantis4 4 Entrevista da autora com o historiador Osvaldo Coggiola, Março de 2022 , para extrair excedente necessário às obras públicas de grande envergadura (Civilização do Nilo, Yang Tse), grandes obras realizadas em torno de grandes bacias hidrográficas. Unificam, compulsoriamente - o que Samir Amin chamou-lhe “Estado tributário”, um estado baseado nos tributos (Coggiola, 2017Coggiola, Osvaldo (2017), Uma História do Capitalismo, São Paulo, s/c, APGIQ; 1ª edição, 2017, Amin, 1973). A ideia central é que a sequência escravidão, feudalismo, capitalismo é exclusiva da Europa ocidental. O resto do planeta, e Portugal também, pelo menos em parte, teria passado por outro tipo de transições. A crítica ao eurocentrismo é aqui fundamental, bem como às visões nacionalistas da história que não incorporam o sistema-mundo.

Coggiola partilha desta visão - na Europa, através do império carolíngio (séc IX) - tentou-se construir um “Estado tributário” que fracassou e a expressão desse fracasso é a própria existência do feudalismo. E esta característica única na Europa - que consiste na pulverização de poder político e económico, manifestada na existência do feudo -, é que surge a particularidade europeia de unificar esses feudos, como não acontece nos impérios orientais5 5 Nem nos americanos, mas aqui a sua evolução foi interrompida pela conquista - foram destruídos. . Na Ásia e na África, no Oriente, e no Sul não há atomização do poder económico e político devido à existência de grandes impérios, o que impede (na verdade, torna muito mais lenta), a transição para uma economia mercantil. Por outro lado, isso é acelerado na Europa devido à existência de feudalismo, que a cerca altura sufoca as forças produtivas e se transforma num obstáculo. Porque a economia mercantil se desenvolvia, e para superar esse enforcamento, surge o Estado absolutista que é um Estado de transição - esse desenvolvimento é único na história. É a peculiaridade europeia segundo Amin.

Há um debate sobre se o Estado Absolutista é uma transição entre o feudalismo e o capitalismo. A questão pode-se resumir assim, o que é o Estado absolutista, é mais um Estado pós feudal ou protocapitalista? É um estado de um feudalismo em decomposição ou é um Estado que já prepara as bases do capitalismo? Não há uma resposta clara, há um debate que foi feito na década de 60 do século XX (Wood, 2001Wood, Ellen (2001), A Origem do Capitalismo, Rio de Janeiro, Zahar.)6 6 Ellen Wood “A origem agrária do capitalismo” In: A Origem do Capitalismo, Rio de Janeiro, Zahar, 2001 , suscitado por um livro de Robert Brenner sobre as origens agrárias do capitalismo inglês (Wood7 7 Figuras destacadas no debate: Brenner, Robert (1976), John Hatcher (1978). Le Roy Ladurie, Emmanuel (1978). Hilton, RH (1978); Cooper, JP (1978); Brenner; Robert (1982). ) - a revolução agrária como anterior à revolução industrial e pré-condição para a revolução industrial e para o capitalismo. O Estado inglês unifica mais de 60 000 feudos, nada semelhante aconteceu em Portugal ou Espanha - desde logo tal número de feudos não existia.

As características do caso espanhol e português são dadas pelo facto de que um Estado nacional surge como parte de um processo de conquista territorial por parte de uma monarquia centralizada contra os árabes. Muito distinto da França ou da Inglaterra, Alemanha. Dá um papel central na Península Ibérica ao que seria o próprio Estado Nacional, que adquire características derivadas dessa empresa guerreira, militar. A importância de ser um Estado de características militaristas é que o Estado absorve grande parte do excedente produtivo, que não é reinvestido na produção. Perry Anderson considera que isto é uma das características - não a única - do Estado islâmico, que impede a transição da civilização da área Islâmica para o capitalismo. A outra dimensão, segundo Coggiola, é exatamente esta para os estados ibéricos - a conquista, Não existia um Portugal pré reconquista. A transição poder-se-ia ter dado através de economias dominadas pelos islâmicos iniciando uma modernização capitalista, mas isso não acontece. Porque não acontece? (Anderson, 1966). É uma pergunta ainda sem uma resposta, um debate em aberto entre historiadores.

Para Ellen Wood, autora cimeira neste debate - o qual como veremos pode iluminar o debate sobre a transição em Portugal entre os séculos XVII e XVIII -, o capitalismo não resulta da explosão das forças produtivas, libertada das grilhetas feudais (forças produtivas que já lá estariam apenas à espera de ser libertadas, para autores que defendem que a existência de cidades, burgos, e comércio, só precisava do fim do feudalismo para se “libertar”) mas da revolução agrária na Inglaterra, que resultou numa vontade política de transformação. E que o capitalismo nos outros países seria realizado a partir da Inglaterra, depois desta transformação/reconversão económica. A partir do momento em que a Inglaterra se torna capitalista ela arrasta os outros países para o capitalismo (Wood, 2001).

Para Ellen Wood o capitalismo surge por indução externa, depois da revolução agrária inglesa, nos outros países - porque as condições para o mercado mundial são dadas antes pela expansão de Portugal, Espanha e Holanda. Aqui F. Braudell, G. Arrighi, I. Wallerstein e Magalhães Godinho - o representante cimeiro desta corrente historiográfica em Portugal (Godinho, 2019Godinho, Vitorino Magalhães (2019), Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, Lisboa, Edições 70.) - entram com uma tese distinta, a de que os centros da economia mundo aqui criam as condições para o mercado mundial. Para Ellen Wood as visões mercantilistas do capitalismo obliteram a sua especificidade histórica, falam da origem sem delimitar uma origem do capitalismo:

“Quase sem exceção, os relatos sobre a origem do capitalismo são fundamentalmente circulares: presumem a existência prévia do capitalismo para explicar o seu aparecimento. No intuito de explicar o impulso de maximização do lucro que é característico do capitalismo, pressupõem a existência de uma racionalidade universal maximizadora do lucro; para explicar o impulso capitalista de aumentar a produtividade do trabalho através de recursos técnicos, pressupõem um progresso contínuo e quase natural do aprimoramento tecnológico na produtividade do trabalho. Essas explicações paralogísticas têm sua origem na economia política clássica e nas concepções iluministas de progresso [...]. Na maioria das descrições do capitalismo e de sua origem, na verdade não há origem. O capitalismo parece estar sempre lá, em algum lugar, precisando apenas ser libertado de suas correntes - dos grilhões do feudalismo, por exemplo - para poder crescer e amadurecer. Caracteristicamente, esses grilhões são políticos: os poderes senhoriais parasitários ou as restrições de um Estado autocrático. Às vezes, são culturais ou ideológicos - a religião errada, quem sabe. Essas restrições limita[ria]m a livre movimentação dos agentes econômicos, a livre expressão da racionalidade econômica [...]. Esse pressuposto costuma ser tipicamente associado a um outro: o de que a história é um processo quase natural de desenvolvimento tecnológico. De um modo ou de outro, o capitalismo aparece, mais ou menos naturalmente, onde e quando os mercados em expansão e o desenvolvimento tecnológico atingem o nível certo [...]. O efeito dessas explicações é enfatizar a continuidade entre as sociedades não-capitalistas e capitalistas, e negar ou disfarçar a especificidade do capitalismo “ (Wood, 2011:13-14).

Wood destaca que para haver capitalismo não basta haver mercado, que existe noutras sociedades e de forma distinta; nem Estado; nem dinheiro (o papel-moeda já existia noutras sociedades), nem trabalho, que sempre existiu na história. Para haver capitalismo, que é um específico modo de produção - histórico, não sempre existente - é preciso que o mercado dite as regras ao conjunto da sociedade.

“O capitalismo é um sistema em que os bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidos para fins de troca lucrativa; em que até a capacidade humana de trabalho é uma mercadoria à venda no mercado; e em que, como todos os agentes económicos dependem do mercado, os requisitos da competição e da maximização do lucro são as regras fundamentais da vida. Por causa dessas regras, ele é um sistema singularmente voltado para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho através de recursos técnicos. Acima de tudo, é um sistema em que o grosso do trabalho da sociedade é feito por trabalhadores sem posses, obrigados a vender sua mão-de-obra por um salário, a fim de obter acesso aos meios de subsistência. No processo de atender às necessidades e desejos da sociedade, os trabalhadores também geram lucros para os que compram sua força de trabalho. Na verdade, a produção de bens e serviços está subordinada à produção do capital e do lucro capitalista. O objetivo básico do sistema capitalista, em outras palavras, é a produção e a auto-expansão do capital [por meio da exploração massiva dos trabalhadores]” (Wood, 2001Wood, Ellen (2001), A Origem do Capitalismo, Rio de Janeiro, Zahar.:12).

A questão é muito pertinente para a Alemanha, na Itália, na França: o capitalismo surge como consequência de uma indução externa, ou seja, a concorrência do capitalismo inglês, ou a partir das suas transformações internas?

Para a história de Portugal esta pergunta, que está em aberto, é fundamental, quais são as origens do capitalismo português, internas, externas ou uma combinação desigual de ambas? Quando estudamos o século XVIII respondemos a esta questão, parcialmente, isto é, ao lugar do mercantilismo, do comércio mundial, e de Portugal no sistema internacional de Estados.

Voltando ao debate de Samir Amin: teríamos de um lado os Estados Tributários, e do outro os Estados feudais europeus. O feudalismo é uma peculiaridade europeia, e que essa peculiaridade foi o que possibilitou (debate em aberto) o nascimento do estado absolutista. Que foi o marco político da transição para o mercado nacional (e depois para o mercado mundial), e, portanto, para o capitalismo. Onde ficaria a Península Ibérica, assumindo que podemos englobar ambos - Portugal e Espanha - na mesma análise? Se assumimos que são uma espécie de transição entre o modo de produção asiático e o absolutismo ocidental, ou seja, são Estados de transição entre o império islâmico (tributário) e a Europa ocidental que conseguiu evitar ser conquistada pelos islâmicos, temos uma combinação desigual oriental e ocidental, que vigoraria nestes Estados Ibéricos e que conformou o seu desenvolvimento contemporâneo.

Esmiucemos mais estes elementos. Nos estados despóticos a única forma de transição é a partir do Estado, não se espera uma transição por uma forma de revolução democrática e popular (como os modelos inglês, americano e francês), porque o despotismo cumpre uma função necessária, sem a qual a base económica desses Estados se decompõe. Da produção comunitária na mesta espanhola ou nas comunidades rurais na Índia não surgem forças capazes de questionar o Estado e o modo de produção existente, pelo contrário tendem a reproduzir essa base produtiva. É escassamente comercial. O caso ibérico - Pombal, no reinado de Dom José, ou Jovellanos, e as reformas iluministas bourbónicas - seria distinto da Índia, porque teria havido a criação de instituições, pré-capitalistas - em suma, uma modernização dentro do próprio Estado.

Marx estudou este caso para a Índia, a base da produção comunitária era a centralização do Estado para realizar grandes obras que permitiam essa mesma produção, por isso Marx via como um factor revolucionário o investimento inglês porque este investimento inglês iria produzir um mercado nacional - comboios, indústria, etc. E, esse mercado nacional criado pela Inglaterra involuntariamente - porque se tratava de criar condições para exportar algodão para Inglaterra -, esse mercado criaria as bases para um mercado nacional indiano e uma revolução burguesa na Índia. Qual o paralelo, na comparação (diferenças e semelhanças) que podemos fazer para Portugal? A monarquia absolutista espanhola apareceria como uma delegação de poderes dos senhores regionais, delegação voluntária por parte dos senhores (criadores de gado). Se na Espanha a mesta teve esse papel, qual a base social - produção, forma de propriedade - de apoio à coroa portuguesa na forma que tomou? Não foi o investimento português, sob o reinado de Dom José e direção de Marquês de Pombal, um investimento que, assumindo um discurso de modernidade apostado nas manufaturas e no protecionismo nacional, como assinala Kenneth Maxwell ao lembrar que Pombal criticava a “perniciosa transferência de ouro do país para a Grã-Bretanha” (Maxwell, 2001:22), dava monopólio de facto a capitais estrangeiros, com privilégios, subsídios e a criação, por Alvará Régio, como referimos, das Reais Fábricas?

Pombal seria, para usar uma expressão da historiografia inglesa, uma tentativa vinda de cima de transformação. O seu traço mais distintivo teria sido a tentativa de criar um Estado moderno, com instituições fiscais (Erário Régio), policiais (Intendência Geral da Polícia da Corte e do Reino) que centralizassem o poder no Estado, abafando a pulverização de poderes, garantindo domínio económico. Que se dá ao mesmo tempo que persegue os jesuítas, que fugiam ao controlo do Estado, a Inquisição - um “Estado” paralelo -, daí também a abolição cristãos-novos cristãos-velhos (dava uma machadada no poder da Igreja, enquanto libertava mercadores de origem judaica para incentivar a formação comercial). Segundo Borges Coelho, a criação de companhias monopolistas prejudicava o pequeno comércio e ameaçava o lucro das companhias religiosas que estavam no Brasil: “No Brasil colonial os jesuítas não queriam abdicar do poder civil, do comércio e da produção de matérias-primas para o mercado”. Além disso era a “milícia do papa”, “um dos seus pecados capitais consistia na subordinação direta ao papal cujo poder temporal os governos, mesmo mal iluminados, contestavam” (Coelho, 2022:202-204). De salientar aqui também a perspetiva da área de estudo da história global - a criação de companhias monopolistas e a luta contra o papado são movimentos internacionais, e Pombal vai fazê-lo num quadro de acirrada disputa colonial, nomeadamente dos holandeses no Brasil.

A Expansão Ibérica não é, porém, idêntica, Portugal chegará ao mundo inteiro, Ásia, África, América, enquanto Espanha está no norte de África e na América. O mito de “vocação marítima” do país - um país tão pequeno para se desenvolver tinha que ir para o mar, destemido - é idealista. Na verdade, a expansão marítima resulta de um empreendimento global, e isto vai ser determinante para explicar o desenvolvimento da burguesia portuguesa na modernidade. Esta explicação é também de certa forma dada para o caso holandês, estabelecendo um paralelo - são dois países, de reduzidas dimensões, que se expandem mundialmente (em colónias e enclaves comerciais), como se o carácter territorial de reduzidas dimensões de ambos os países tivessem impulsionado a sua expansão mundial (Schneider, 2017Schneider, Alberto Luiz (2017) , “O Brasil e o Atlântico Sul na historiografia de Charles Boxer”, In Ler História, 71, p. 181-203). Não se pode ignorar que a guerra pelo nordeste açucareiro, foi combatida entre portugueses e holandeses, mas era, pelo peso do açúcar no mercado mundial, uma guerra de alcance internacional8 8 Entrevista da autora com o historiador Osvaldo Coggiola, Março de 2022. .

Fica, porém, uma questão: Estes países são escolhidos por causa de serem unificados ou são unificados por causa disso?

Um facto que sem dúvida contribui é a localização geográfica e ausência de rivalidades. Portugal e Espanha, em primeiro lugar, em relação à Inglaterra, França, Alemanha, Itália têm desde logo a peculiaridade do seu carácter peninsular, e separado pela muralha, quase inexpugnável, dos Pirenéus. Que os protegia, relativamente, dos grandes conflitos europeus. Com um carácter bi-oceânico - Mediterrâneo e Atlântico. A ideia de se instalar rotas de amplo percurso para a China e a Índia driblando o domínio sarraceno/árabe do Mediterrâneo foi fundamental. Este facto é de uma enorme relevância - as línguas ibéricas são as primeiras com uma gramática codificada, e Camões e Cervantes seriam os primeiros autores de literatura universal.

Nos séculos XV e XVI Portugal (e Espanha) são pioneiros numa fase nova de expansão do comércio mundial. Comércio pressupõe troca entre o produtor o consumidor. O comerciante não visa o consumo em si, mas a aquisição de valores de troca (dinheiro) que o comércio permite. A Península Ibérica, que na orla do Mediterrâneo é constituída em geral por terras montanhosas e pobres, em que as chuvas fortes de inverno levam o solo, deixando a nu a “rocha dura e estéril”, os longos verões quentes, o paludismo e os conflitos que nascem da escassez levam a que a “fertilidade destas regiões é uma frágil obra do homem e não um dom permanente da Natureza” (Ribeiro, 2011Ribeiro, Orlando (2011), Portugal, o Atlântico e o Mediterrâneo, Lisboa, Letra Livre, 2021.:47-49) - vive agora o esgotamento da florescente civilização árabe. Aqui dá-se a re (conquista) cristã.

“A colonização europeia das Américas, realizada inicialmente pelos países ibéricos, esteve precedida neles por uma crise de grande envergadura. Em 1348, a Peste Negra dizimara as populações urbanas e rurais portuguesas. Em 1375, dom Fernando regulamentou através da Lei das Sesmarias a distribuição de terras abandonadas entre os privilegiados do Reino. As concessões eram livres de ônus, fora a obrigação de explorá-las em prazo determinado. Derrotados e expulsos os árabes da península, no final do século XV, as potencias ibéricas organizaram ou financiaram as expedições e viagens interoceânicas, realizadas por marinheiros ibéricos ou por marinheiros estrangeiros a serviço dos Estados peninsulares (como o genovês Cristóvão Colombo). “ (Coggiola, 2017Coggiola, Osvaldo (2017), Uma História do Capitalismo, São Paulo, s/c, APGIQ; 1ª edição, 2017: 207).

Estima-se que a “pestelença grande” tenha diminuído a população de 1 milhão e meio de habitantes para 1 milhão. Muitos na perspetiva da morte doavam, para “salvação” os bens à igreja (Coelho, 2022Coelho, António Borges (2022), Portugal na Europa das Luzes, História de Portugal, volo VII, Caminho, Lisboa.: 274-275). Peste, fomes, alta mortalidade e mobilidade levam à redução da população e mobilidade desta, com os trabalhadores assoldados a exigir salários mais altos, o que origina da parte da Coroa legislação disciplinadora dos trabalhadores. À semelhança do que aconteceu em Inglaterra com as Ordinance Labourers de Eduardo II. Em Portugal D. Afonso IV estabeleceu que novos proprietários de terras, herdeiros dos mortos da peste sobretudo, fossem obrigados ao trabalho e tabelou os salários (Coelho, 2022: 274-275). Porém, a crise demográfica e o aumento dos salários vieram para ficar com a escassez de trabalhadores. Como recorda o escritor modernista John dos Passos, filho de emigrantes portugueses da Madeira nos EUA, “A área cultivada em Portugal era pequena e comprimida entre o mar e as montanhas, mas a população também era pouca. Visto que o apelo da vida de marinheiro atrai um número cada vez maior de jovens das zonas rurais, a Coroa começava a empenhar-se no que viria a ser uma batalha interminável e infrutífera para que fossem produzidos alimentos suficientes para alimentar a população”(dos Passos, 2017). O mar foi a saída. Nasce aqui o primeiro império global da história (Page, 2002Page, Martin (2002), The First Global Village. How Portugal changed the world, Lisboa, Casa das Letras.), o português, com possessões na África, América do Sul, Ásia e Oceânia.

Orlando Ribeiro, geógrafo português, recorda que o Mediterrâneo teve uma unificação política que foi feita sobre base continental e não marítima, o império romano repousa nas estradas e cidades interiores. Portugal foge a esta regra, mas só depois, escreve o geógrafo, de ter resolvido, de forma sustentada a questão da posição da terra e do conhecimento das rotas (Ribeiro, 2011). Para isso foi fundamental o investimento privado (das colónias italianas, de sefarditas ou cristãos-novos), e a revolução de 1383 como acontecimento cimeiro do ponto de vista da unidade territorial. É aqui que a batalha de Aljubarrota (1385) contra Espanha é parte essencial da construção da nação como “comunidade imaginada” (Anderson, 2008Anderson, Benedic (2008), Comunidades imaginada: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo (tradução Denise Bottman, São Paulo, Companhia das Letras.), um fenómeno - a nação portuguesa - que será de facto edificado só no século XIX e XX, a contrario dos mitos fundadores que ainda hoje perduram (“uma nação com 900 anos”). A terra domina, o mar liga, o poder é territorial (Ribeiro, 2011:50-51).

Do Ouro do Brasil à “Viradeira”

A monarquia hispânica, no quadro de disputas interimperialistas, sente-se acossada pela Inglaterra e a Holanda. O reflexo disso em Portugal é o aumento da carga fiscal, o ataque da Holanda e da Inglaterra às possessões ultramarinas, e que Portugal considerava suas, agora sob domínio filipino, a intensificação do recrutamento português para as guerras espanholas, tudo isto leva a que alguns sectores questionem no território português a União Ibérica. Como assinala Borges Coelho, “De 1580 a 1640 Portugal viveu atrelado ao carro dos Filipes e ao seu projeto de domínio europeu que passava pelo restabelecimento da autoridade católica apostólica romana” (2022:24).

Neste quadro, uma conspiração levada a cabo em Portugal contra o domínio do império espanhol levanta-se e proclama D. João IV como rei, a 1 de Dezembro de 1640. Portugal recupera a independência política, e autonomia fiscal, mas a Espanha vai enfrentar a dinastia dos Bragança numa série de batalhas da Guerra da Restauração. E Portugal, para consolidar a independência política face a Espanha aproximar-se-á mais da Inglaterra, de quem se torna paulatinamente mais dependente. O nacionalismo que cria o país também imagina eufemismos para a política de Estados - a “mais velha aliança” entre Portugal e Inglaterra é estruturalmente uma relação de dependência, que na segunda metade do século XVII resulta de facto na cedência de Bombaim, encetando assim o domínio inglês na Índia.

Em 1668 assina-se o Tratado de Lisboa, pondo fim à guerra entre Portugal e a monarquia hispânica. Mas nas colónias, o enfrentamento durará mais duas décadas. Neste conflito Portugal consegue consolidar o seu domínio no Brasil e África, mas perde-o no Oriente, onde os holandeses e ingleses tornar-se-ão dominantes. Juntar-se-á a este período, de grave crise económica e financeira por estas razões, ainda a concorrência das plantações de açúcar do Caribe e os ataques de piratas e corsários.

Neste contexto - em que as finanças da coroa são abaladas pela perda das taxas (cobradas no comércio colonial) - a crise instala-se. Surgem então uma série de propostas de cunho mercantilista e a tentativa de instalar manufaturas no território nacional. Destacar-se-á neste processo figuras como Duarte Ribeiro de Macedo e o 3º Conde da Ericeira, D. Luís de Meneses, que desenham um projeto assente na introdução de métodos de fabrico com formação/importações de artesãos estrangeiros: reorganizar sectores como o vidro, têxtil, com carácter monopolista (por alvarás reais, aprovam-se leis de incentivo ao mercado nacional (leis pragmáticas) e atribuíram-se taxas alfandegárias a produtos concorrentes.

Isto vai gerar descontentamento da parte da Inglaterra, que já antes do Tratado de Methuen tinha no Tratado de Westminster de 1654 condições privilegiadas no mercado para os têxteis ingleses e muitos portugueses estariam contra estas medidas porque foram incapazes de inverter a balança comercial, que continuou negativa, muitos ficaram excluídos dos monopólios (a Covilhã e Portalegre serão algumas das regiões que terão ganho com estas políticas que fixaram população).

Todo este quadro vai ser invertido por duas razões fundamentais: a descoberta de ouro e diamantes no Brasil, a partir do final do século XVII (1695) e pelo Tratado de Methuen (1703).

O Tratado de Methuen foi assinado entre Ana de Inglaterra e D. Pedro II. E permitia a introdução em Portugal, com condições de taxação favoráveis a Inglaterra, dos têxteis ingleses - o que terá como consequência um abrandamento e diminuição do incentivo às manufaturas portuguesas. A contrapartida - que deixa Portugal numa situação de fragilidade económica, que decorria como vimos da fragilidade político-militar - era que os vinhos portugueses entravam em Inglaterra pagando apenas 1/3 do imposto pago pelos franceses, o que vai ter como consequência um aumento do poder dos proprietários ligados a produção de vinho no Douro e Madeira, e à diminuição da produção de trigo e cereais, aumentando assim a importação de trigo - tudo isto vai agravar a balança comercial portuguesa.

A “febre do ouro” do Brasil começa com as minas de ouro, primeiro em Minas Gerais, pela mão dos bandeirantes, depois para Goiás e Mato Grosso, e acaba em pouco tempo com o défice da balança comercial; o ouro permite uma maior centralização do poder no reinado joanino (1707-1750), visível também em grandes obras, como o aqueduto das águas livres, o Convento de Mafra, nas obras de arte sacra - repousa aqui esse simbolismo de poder imenso, ao mesmo tempo que a dependência aumentava as compras a Inglaterra e reforçava a libra estrelinha. O ouro vai pagar o esforço militar na defesa contra as disputas coloniais - será o Conde de Lippe já no reinado de Dom José a reorganizar o exército na metrópole e no império (deixando, por exemplo, forte da Graça em Elvas, como uma das mais notáveis fortalezas abaluartadas do mundo).

Não estando a riqueza assente no desenvolvimento de indústrias, a febre do ouro tornava Portugal mais independente, ao mesmo que tempo que a dependência se adensava. Se na Europa Portugal procura o reconhecimento anterior a 1580:

“A grande prioridade, porém, foi sempre o Brasil, a defesa das suas rotas e a definição e proteção das suas fronteiras. Embora os feitos no Oriente fossem celebrados com inultrapassáveis encómios (...) a verdade é que desde 1736 (...) que a presença portuguesa na India entrara numa fase de irreversível declínio. Pelo contrário, o Brasil registava um momento de grande prosperidade económica e apreciável crescimento demográfico e nele se ancorando em larga medida, o equilíbrio financeiro da monarquia. Como afirmava o velho Duque de Cadaval em 1715, “do Brasil depende hoje absolutamente muita parte da conservação de Portugal”” (Monteiro, 1998Monteiro, Nuno Gonçalo (1998), In António Manuel Hespanha (coord), O Antigo Regime (In História de Portugal, José Mattoso), Lisboa, Editorial Estampa:414).

No final do reinado de D. João V fica visível o início do esgotamento do ouro, pelo declínio das jazidas. Por outro lado, a concorrência no mercado mundial, mercado agora plenamente criado, era irreversível, mesmo com as cíclicas medidas protecionistas. Marquês de Pombal vai, em resposta, encetar uma série de políticas de teor mercantilista e protecionista, e centralizadoras do Estado. Cria as companhias monopolistas, protegendo o comércio colonial, concedendo privilégios nobiliárquicos à alta burguesia, procurando assim captar investimento; numa política de coerção e consenso controla a nobreza com repressão (Távoras) ou distribuindo de tenças, mas sobretudo questiona o pequeno feudo e o pequeno comércio; cria a Junta do Comércio e a Aula de Comércio, procurando formar e apoiar o desenvolvimento comercial; e impõe e regula as companhias de caráter monopolista, que eliminam em consequência os concorrentes mais frágeis, no caso: a vinha no Alto Douro, pesca no Algarve, e pesca da baleia. O Erário Régio (reserva de moedas), de 1761, vai tornar mais eficiente a coleta de impostos; e a atuação de Pina Manique como superintendente geral dos contrabandos - com o alegado objetivo de controlar os burlões e trapaceiros - garante a eliminação da concorrência dos pequenos produtores/pescadores autónomos. A partir de 1770 cria um plano da indústria manufatureira em que cria fábricas, e importa trabalhadores de fora, especializados, (Carvalho, 1992) e concede privilégios, subsídios e incentivos fiscais aos capitais estrangeiros ou nacionais que queiram nelas investir, além de alvarás de cunho monopolista que referimos, como é o caso famoso da Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande. Paralelamente atua no campo educativo, com a perseguição aos jesuítas e constituir mote para uma reforma do ensino, e sobretudo para lhes retirar o controlo económico no Brasil; extingue a distinção entre cristãos-novos e cristãos velhos e impõe a abolição da escavadura na metrópole. Ao mesmo tempo Marquês de Pombal incentivou a criação de pequenas fábricas em Lisboa e Porto de chapéus, algodão, papel, loiças, metalurgia, refinação de açúcar. Entre as grandes destacam-se a Real Fábrica de Lanifícios de Portalegre, que, pensa-se, empregava já 1348 pessoas em 1779; a Real Fábrica de Louças no Rato, que se tornou num espaço central de formação técnica. A Real Fábrica de Sedas (fundada ainda no período joanino) tinha 3500 trabalhadores. Com o Marquês chegaram, recorda Cândida Proença, máquinas e engenheiros mecânicos (Proença, 2021Proença, Maria Cândida (2021), Uma História Concisa de Portugal, Lisboa, Ciclos e Debates.:464-465).

“Em 1751 (cronologicamente o primeiro caso relacionado com o assunto em causa) chega a Lisboa o francês Pierre Dangé, tintureiro, que andara pelas índias em busca do segredo de certa tintura carmesim, que afirmava ter descoberto. Pro põe-se, se o seu trabalho agradar, mandar vir um grupo de ope rários de França e instalar entre nós uma fábrica de fiação e tecelagem de algodão (®). Em 1752 Diogo de Mendonça Cor te-Real escreve, de Lisboa, a Galvão de Lacerda, em Paris: «SMg.d* he servido que vs* busque em Leaõ hum bom dese nhador e hum bom Tintureiro p* a Fabrica de Lisboa, e que achando-os capazes os ajuste». E termina: «SMg.d* manda recomendar a vs. m.t° esta deligencia». Oito meses decorri dos, e referindo-se ao tintureiro que ainda não se conseguira contratar, oficiava-se de Lisboa: «estamos esperando com bas tante impaciência, porque a Fábrica não tem nenhum». Só em Outubro de 53 o tintureiro procurado chegou a Lisboa e dese jou que se construísse uma Casa da Tinturaria, segundo dese nho seu, após o que mostraria as suas capacidades. O desejo foi imediatamente satisfeito. O mestre tintureiro chamava-se Louis La Chapelle e, devido às excelentes informações que se obtiveram a seu respeito, fez-se-lhe o contrato por dezasseis anos, o que cumpriu com pleno agrado, acabando por ser um dos directores da Real Fábrica das Sedas. Morreu em Lisboa em 1770 (*). “ (Carvalho, 1992:97).

Nestes tempos ganhavam o nome de indústrias ou “artes fabris” todas as actividades produtivas não agrícolas, atividade dominante. As manufaturas eram na sua maioria de pequena dimensão, ou mesmo domiciliares e por vezes na fábrica dá-se apenas o acabamento final - parte deste processo manter-se-á mesmo no século XIX e século XX (Varela, 2015Varela, Raquel et al, História das Relações laborais no Mundo Lusófono, Lisboa, Colibri, 2015.). Artes era o nome das manufaturas, de onde deriva a palavra artesão e artífice.

A Viradeira é o período de reação anti pombalina que se dá quando D. Maria I é acalmada em 1777. No fim da vida o Marquês foi condenado ao exílio interno, rejeitado pelos seus pares. Mas a sua política, do qual grande parte das elites dirigentes foram entusiastas (desde logo porque favorecia a concentração de riqueza), tivera desde cedo forte resistência popular, que adquiriu um carácter de revolta. E a sua repressão de uma brutalidade implacável. Os taberneiros, acusados de adulterar o vinho, eram as vítimas do monopólio e revoltaram-se no Porto, assaltando a casa do provedor da Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Alto Douro, que tinha o privilégio da venda a retalho exclusivo na cidade do Porto:

“Este, alvoroçado, veio para a rua no dia 23 de Fevereiro de 1757, gritando “Morra a Companhia!”, invadindo a sede da companhia do Porto e destruindo-lhe a documentação (...) Pombal desabou sobre os amotinados com uma diligência e um fervor até então desconhecidos - enforcamentos, prisões, degredos, chicotadas públicas, confiscações, palmatoadas públicas a rapazes que acompanhavam as manifestações, multas” (Real, 2006Real, Miguel (2006), O Marquês de Pombal e a Cultura Portuguesa, Lisboa, Quidnovi.:65).

Para o filósofo Miguel Real, Pombal representa a política vanguardista e absolutista, uma ruptura que vai dramatizar e encenar um país isolado da cultura e educação europeias e com manufaturas insipientes, que contribuíam para uma crónica dependência. Pombal é por isso o homem que vai tornar a imagem da decadência no “operador mental mais constante e mais influente da cultura portuguesa contemporânea!” (Real, 2006:9). A consequência mais importante terá sido, para o filósofo e ensaísta, o super domínio do Estado sobre a sociedade portuguesa, deixando marcas até à ditadura e à adesão à CEE (Real, 2006, 13). Se Borges de Macedo considera que a política centralizadora já vinha de D. João V, Real vê aqui um salto de qualidade - “de fortemente interveniente, tornou-se totalmente interveniente”. (Real, 2006:75).

“O marquês de Pombal não pretendia acabar com a nobreza, mas educá-la e submetê-la às leis do Estado absoluto. E sentiu-se muito honrada em ser elevado a conde e depois a marquês. Pelo seu lado, os homens de negócio e a nobreza de toga também não enjeitavam os títulos e as velhas rendas. Mas no casamento de conveniência entre a nobreza e os homens do capital, a política seguida inclinava fortemente a balança para os homens do negócio. Aproximavam-se dias de grande confronto” (Coelho, 2022Coelho, António Borges (2022), Portugal na Europa das Luzes, História de Portugal, volo VII, Caminho, Lisboa.:18).

Referências Bibliográficas

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  • Wood, Ellen (2001), A Origem do Capitalismo, Rio de Janeiro, Zahar.
  • 1
    Devo um agradecimento especial, no debate sobre os Estados Ibéricos e a transição à longa entrevista/conversa (março de 2022), que aqui transcrevo (nem sempre literalmente, por isso abdiquei das aspas) e com autorização do entrevistado, ao meu colega e amigo Osvaldo Coggiola. Não sendo eu uma estudiosa do período moderno as suas reflexões permitiram a síntese que aqui é feita. Este artigo é parte da tese de mestrado de Raquel Varela em didática da história.
  • 2
    No caso do Estado Espanhol assinala-se como característica especifica a mesta, criação de gado de carácter transumante que dá ao Estado Espanhol características particulares no por causa da base produtiva- não se pode assemelhar o feudalismo espanhol ao caso francês, ao feudalismo que abrange desde os Pireneus até à Europa oriental. A propriedade feudal da mesta não é comparável à propriedade como existia na França, Inglaterra etc.
  • 3
    Na China há também um debate em relação a isto já que a China inventou o papel-moeda, sinónimo de uma produção mercantil mais avançada.
  • 4
    Entrevista da autora com o historiador Osvaldo Coggiola, Março de 2022
  • 5
    Nem nos americanos, mas aqui a sua evolução foi interrompida pela conquista - foram destruídos.
  • 6
    Ellen Wood “A origem agrária do capitalismo” In: A Origem do Capitalismo, Rio de Janeiro, Zahar, 2001
  • 7
    Figuras destacadas no debate: Brenner, Robert (1976), John Hatcher (1978). Le Roy Ladurie, Emmanuel (1978). Hilton, RH (1978); Cooper, JP (1978); Brenner; Robert (1982).
  • 8
    Entrevista da autora com o historiador Osvaldo Coggiola, Março de 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2022
  • Aceito
    28 Out 2022
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