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Os custos ocultos da tecnologia e a proteção do direito social ao trabalho

The hidden costs of technology and the protection of the social right to work

Resumo

Esta pesquisa situa-se no campo das interações entre Direito e Tecnologia, propondo-se a investigar como garantir o direito social ao trabalho frente às inserções tecnológicas que substituem a mão de obra humana? O objetivo é identificar formas de proteção jurídica ao direito social ao trabalho no atual contexto tecnológico. Emprega-se uma metodologia de abordagem fenomenológica-hermenêutica, método de procedimento monográfico e técnica de pesquisa por documentação indireta. Como resultado, constatou-se a necessidade de uma leitura jurídico-crítica acerca das consequências da tecnologia para as vidas humanas, para o que se impõe a contestação dos discursos de imunização a eventuais aspectos negativos advindos dessa dinâmica, os quais têm contribuído para a invisibilização de elementos centrais ao debate. Concluiu-se que as tecnologias de automação representam uma possibilidade concreta de eliminação de milhões de postos de trabalho humano nos próximos anos, mas que existem inúmeros desafios a serem considerados nesse percurso, já sendo possível perceber, no entanto, um grave quadro de precarização do trabalho estabelecido. Considera-se, todavia, que ordenamento jurídico brasileiro contempla dispositivos constitucionais aptos a conciliar a proteção do direito social ao trabalho e respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana com as transformações tecnológicas.

Palavras-chave:
Direito; Tecnologia; Direito social; Trabalho humano; Automação

Abstract

This research is located in the field of interactions between Law and Technology, proposing to investigate how to guarantee the social right to work in the face of technological insertions that replace human labor? The objective is to identify forms of legal protection of the social right to work in the current technological context. A phenomenological-hermeneutic approach, a monographic procedure method and a research technique using indirect documentation are used. As a result, it was found the need for a legal-critical reading about the consequences of technology for human lives, for which it is necessary to challenge the immunization discourses to possible negative aspects arising from this dynamic, which have contributed to the invisibility of central elements to the debate. It was concluded that automation technologies represent a concrete possibility of eliminating millions of human jobs in the coming years, but that there are numerous challenges to be considered in this path, it is already possible to perceive, however, a serious situation of precariousness of the established work. However, it is considered that the Brazilian legal system contemplates constitutional provisions capable of reconciling the protection of the social right to work and respect for the principle of human dignity with technological transformations.

Keywords:
Law; Technology; Social right; Human work; Automation

1. Introdução

O presente estudo situa-se no diálogo entre os campos do Direito e da Tecnologia, delimitando seu espaço de reflexão sobre os direitos sociais, com especial atenção às proteções jurídicas do direito ao trabalho, juntamente a uma leitura tecnológica de matriz crítica. Essa proposição tem como marca de sua contribuição a ruptura com o pensamento que impede a leitura objetiva dos efeitos causados pelos dispositivos tecnológicos sobre as sociedades humanas, definindo como base o abandono de mitos e romantizações que inviabilizam a real compreensão de fenômenos contemporâneos.

A partir desta delimitação apresenta-se como problema de pesquisa a seguinte indagação: como garantir o direito social ao trabalho frente às inserções tecnológicas que substituem a mão de obra humana? Com tal questionamento indica-se como objetivo da abordagem determinar formas de proteção jurídica ao direito social ao trabalho no atual contexto tecnológico, impondo-se assim uma leitura jurídico-crítica e que leve em consideração as consequências das transformações sociais para as vidas humanas.

Posto isso, elabora-se como transcurso de pesquisa a inserção inicial da tecnologia e seu papel na atualidade, tendo como principal objetivo refutar e afastar os discursos que cercam a área e impedem que as ponderações jurídico-sociais alcancem níveis mais profundos de crítica acerca dos efeitos resultantes de suas implementações. Considera-se assim que existe certo grau de imunização proposto por articulações de saber-poder, e que sem o seu desvelamento a definição contextual torna-se insuficiente.

Em um segundo momento adentra-se na proteção dos direitos sociais, com foco específico nas relações entre a garantia do direito ao trabalho e as alterações proporcionadas pelas novas tecnologias, envolvendo assim o conflito de interesses socialmente reconhecidos pelo texto constitucional, bem como as proposições necessárias para lidar com processos de automação e substituição da força de trabalho humano.

Sendo uma construção teórica que se estabelece entre as discussões sobre Direito e Tecnologia no presente, isso é, no âmbito de um sistema capitalista neoliberal, o ponto nevrálgico dessa investigação está na intersecção entre relações de poder e desigualdade, que historicamente caracterizam não apenas as tensões do mundo trabalho, como as próprias transformações do Estado de Direito. Por este motivo, as referências teóricas que suportam a pesquisa remontam a matrizes foucaultianas e marxistas.

Essa convergência teórica vem se mostrando viável na perspectiva de autores importantes, consolidando-se tanto por sua factibilidade quanto versatilidade na composição de explicações adequadas à complexidade e às contradições da contemporaneidade. Neste texto, seja a ideia de poder como conjunto de relações de forças assimétricas e, portanto, desiguais, que tem lugar no corpo social, seja a obrigação de trabalhar determinada “por uma série de intervenções que mobilizam fatores extraeconômicos e que atuam disciplinarmente na produção de subjetividades” (CHIGNOLA, 2020CHIGNOLA, Sandro. Foucault além de Foucault: uma política da filosofia. Porto Alegre: Criação Humana, 2020, p. 60-63), evidenciam-se as aberturas que justificam o diálogo das matrizes adotadas.

O transcurso de pesquisa proposto adota como base de abordagem metodológica a fenomenologia hermenêutica, já que conduz a observação do objeto de estudo pressupondo o “seu modo de ser no mundo”, sem a pretensão de isolá-lo em busca de uma suposta quididade que, em concreto, inexiste. Em complemento agrega-se o método de procedimento monográfico, pois distancia-se de propostas puramente conceituais, de cunho manualesco, e direciona-se à elaboração crítica específica. Por fim, adiciona-se a técnica de pesquisa da documentação indireta com ênfase bibliográfica, tendo em vista que, não obstante o texto se valha de informações estatísticas, as mesmas provêm de fontes secundárias. Trata-se, portanto, de pesquisa bibliográfica que propicia uma forma de abordagem própria sobre o objeto de investigação, em que os dados estatísticos secundários servem para exemplificar e reforçar as perspectivas teóricas apresentadas (mas não constituem o objeto de pesquisa em si).

2. Os discursos de imunização tecnológica e a inserção do pensamento crítico como necessidade social

A apreciação que se inicia parte dos traços da Tecnologia vista enquanto elemento sociotécnico, com especial destaque para os discursos (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso do Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008 (b).a, p. 54 - 55) que circundam a sua produção e papel social, e que permitem um certo grau de impermeabilização às críticas ou contestações acerca de suas proposições ou responsabilidades. Justifica-se tal aproximação pela compreensão da importância assumida por tais dispositivos (com instrumentos digitais, dados, algoritmos, IA’s, etc.) na atualidade, pois embora tecnologias sempre estivessem presentes no transcurso histórico humano, há a perspectiva de que sua relevância na arte de governar (governamentalidade) a vida das populações alcançou um novo patamar, configurando uma tecnopolítica (LAMA; SANCHEZ-LAULHE, 2020LAMA, José Pérez de; SANCHEZ-LAULHE, José. Consideraciones a favor de un uso más amplio del término tecnopolíticas. Sobre la necesidad de la crítica y las políticas del conocimiento y las tecnologías. In: SABARIEGO, Jesús; AMARAL, Augusto Jobim do; SALLES, Eduardo Baldiserra Carvalho. Algoritarismos. São Paulo: Tirant lo Blach, 2020., p. 20).

Isso conduz à necessidade de afastar as imunizações retóricas que impedem uma visão questionadora sobre a inserção tecnológica e seus efeitos, a fim de que as reflexões jurídicas encontrem um ambiente de interlocução, ao invés de um muro de poder determinista baseado em um futuro inescapável para a humanidade.

Salutar antes de avançar realizar ao menos dois apontamentos. Primeiramente, no contexto de exercício de poderes tecnopolíticos a produção de subjetividades não se restringe a nuances físicas ou sociais dos indivíduos (devidamente compartimentados em dados), de modo que chega a alcançar a produção de formas de comportamento e pensamento (BIGO; ISIN; RUPPERT, 2019BIGO, Didier; ISIN, Engin; RUPPERT, Evelyn. Data politics: Worlds, Subjects, Rights. Oxon/New York: Routledge, 2019., p. 6), algo de extrema valia quando se mensura o alcance dos mecanismos que operam segundo essas relações de força. O registro posterior retoma o ensinamento clássico de Foucault (2008FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso do Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008 (b).b, p. 127) acerca de que “a arte de governar é, precisamente, a arte de exercer o poder na forma e segundo o modelo da economia”, ou seja, a tecnopolítica se operacionaliza em prol do capitalismo tecnológico - seja ele visto como de plataforma conforme realiza Srnicek (2017SRNICEK, Nick. Plataform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.) ou de vigilância de dados como faz Zuboff (2019ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the new frontier of Power. New York: PublicAffair, 2019.).

Esse último indicador, embora não seja o enfoque da parte inicial, funciona enquanto um vetor de leitura do texto, de maneira que o capitalismo e as influências sofridas por aspectos tecnológico-políticos acabam por atravessar o entendimento das formas recentes de governamentalidade (recebendo a alcunha de algorítmica segundo Rouvroy e Berns) (ROUVROY; BERNS, 2015ROUVROY, Antoinette; BERNS Thomas. Governamentalidade algorítmica e perspectivas de emancipação: o díspar como condição de individuação pela relação? Revista Eco Pós: Tecnopolíticas e Vigilância, v. 18, n. 2, 2015.), estando sempre no horizonte de sentido proposto. Em adendo, sobre as transformações recentes na forma como se gerenciam as sociedades por instrumentos tecnológicos, assume-se como correta a ilação de que o período pandêmico “acelerou em mais de uma década os processos de algoritmização da vida através da exigência que cada um de nós está tendo de se integrar num mundo digital, não mais como um mundo virtual, mas como o mundo real que suplanta a própria realidade física” (RUIZ, 2021RUIZ, Castor Bartolomé. Algoritmização da vida: a nova governamentalização das condutas. Revista IHU ideias, ano 19, n. 314, vol. 19, 2021., p. 4).

Com base nos pressupostos contextuais acima aludidos se permite que a verificação do campo discursivo da tecnologia tenha um embasamento mais sólido sobre a sua importância geopolítica e impacto social, já que “toda tecnologia (e saber) se imbrica no modo de viver dos sujeitos de tal modo que quanto mais complexa é a tecnologia, maior impacto produz sobre aqueles que a utilizam” (RUIZ, 2021RUIZ, Castor Bartolomé. Algoritmização da vida: a nova governamentalização das condutas. Revista IHU ideias, ano 19, n. 314, vol. 19, 2021., p. 6).

Essa exposição tecnológica que inclui o capitalismo aparece como primeiro tópico de desvelamento do romantismo tecnológico denunciado por Morozov (2018MOROZOV, Evgeny. Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 23), pois o autor alerta que as corporações ligadas à área se beneficiam de uma fala-imagem de que estariam produzindo em prol de um bem-estar coletivo, atuando com preços mais baixos, facilitando serviços e outras práticas que mascaram estratégias de lucratividade e alinhamento neoliberal. Prossegue o autor no demonstrativo por meio da Uber ao mencionar a sua redução de custos pelo não treinamento para os motoristas para o oferecimento de atendimento hábil a pessoas com deficiência.

Complementa ainda Rosenblat (2018ROSENBLAT, Alex. Uberland: how algorithms are rewriting the rules of work. Oakland: University of California Press, 2018., p. 12) ao explicar que a Uber (assim como diversas empresas e plataformas) realiza um discurso duplo (baseado na economia do compartilhamento) (OLIVEIRA; CARELLI; GRILLO, 2020OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; GRILLO, Sayonara. Conceito e crítica das plataformas digitais de trabalho. Revista Direito e Práxis, v. 11, p. 2609-2634, 2020., p. 2615), enfatizando-se em um primeiro sentido a autonomia dos motoristas ao afirmar o seu poder de decisão “livre” e flexibilidade, sendo seus próprios gestores/chefes, enquanto por outro lado, do ponto de vista jurídico, essa independência oculta a falta de vinculação empregatícia, garantias sociais e direitos trabalhistas1 1 Dada a sua forma de operação, que é replicada por inúmeras outras empresas que também atuam intermediando a relação entre consumidores e serviços por meio de tecnologias, deriva o termo “uberização”, que hoje corresponde às mais variadas práticas de desregulamentação e precarização do trabalho. O tema é de extrema relevância e atualidade, já que esse modelo de negócio tem ganhado cada vez mais espaço, gerando lucros astronômicos para os investidores, em contrapartida aos prejuízos para consumidores, trabalhadores e cidades (SLEE, 2017, p. 22). Embora se reconheça a imbricação direta entre as temáticas da precarização e da automação, o foco do presente texto é a eliminação de postos de trabalho por conta do emprego de tecnologias de automação, motivo pelo qual, inclusive considerando os limites de uma abordagem como esta, não serão aprofundadas as essenciais especificidades do tema “uberização”. . Não obstante, salutar registrar que começam a surgir decisões contrapostas ao desamparo jurídico contido nos termos da empresa citada na jurisprudência (internacional e) nacional, conforme noticiado recentemente na decisão da terceira turma do Tribunal Superior do Trabalho, de abril de 2022, reconhecendo o vínculo empregatício2 2 Dentre os fundamentos decisórios, os Ministros destacam que a ampla desregulamentação praticada por esses novos sistemas de organização do trabalho favorece a deterioração do trabalho humano e acentua a desigualdade no poder de negociação das partes, além de uma série de outros prejuízos ao trabalhador, que vão desde a ausência de regras de proteção à saúde e contra acidentes ou doenças profissionais até as exclusões de direitos trabalhistas e previdenciários. Impõe-se considerar, contudo, que a despeito do argumento empresarial de que suas sistemáticas são tão tecnológicas e disruptivas que não se enquadram na legislação, o Direito brasileiro presume (presunção relativa) o vínculo empregatício jurídico quando presentes determinadas condições. “Em consequência, possuem caráter manifestamente excetivo fórmulas alternativas de prestação de serviços a alguém, por pessoas naturais, como, ilustrativamente, contratos de estágio, vínculos autônomos ou eventuais, relações cooperativadas e as fórmulas intituladas de ‘pejotização’ e, mais recentemente, o trabalho de transporte de pessoas e coisas via arregimentação e organização realizadas por empresas de plataformas digitais. Em qualquer desses casos, estando presentes os elementos da relação de emprego, esta prepondera e deve ser reconhecida, uma vez que a verificação desses pressupostos, muitas vezes, demonstra que a adoção de tais práticas se dá, essencialmente, como meio de precarizar as relações empregatícias” (BRASIL, 2022). entre um motorista e a Uber e, consequentemente, os direitos trabalhistas devidos em decorrência deste vínculo (BRASIL, 2022).

A estratégia de imunização discursiva passa pela adoção de palavras e enunciados, já que “a escolha das palavras e das expressões não é anódina, pois as palavras empregadas propõem uma determinada leitura do mundo” (GUILBERT, 2020GUILBERT, Thierry. As evidências do discurso neoliberal na mídia. Campinas: Unicamp, 2020., p. 14). Logo, inexiste acaso na eleição de palavras e frases nos debates tecnológicos, de modo que ao implicarem sua atuação como diretamente conectada a elementos como “informação” ou a própria “tecnologia”, projeta-se a ideia do conhecimento e do progresso, algo que dificulta a oposição.

Colocar argumentos envoltos em tais termos ergue uma blindagem retórica contra aspectos jurídicos, políticos ou econômicos, os quais passam a ser ignorados em suas conexões. Portanto, alusões tipicamente financeiras de corporações como as Big Techs (Alphabet/Google, Amazon, Apple, Meta/Facebook, Amazon, IBM) (VÉLIZ, 2020VÉLIZ, Carissa. Privacy is power. Great Britain: Penguin Random House, 2020.), por exemplo, de que alguma espécie de regulamento ou legislação sobre direitos/proteções de dados de indivíduos “quebraria a internet”, acabam não expondo que o ato em si também afetaria essas grandes corporações em sua economia de acúmulo, armazenamento e comércio desses mesmos dados, e isso é retratado como um empecilho ao “progresso”, sem a devida contestação à manipulação discursiva que oculta outras camadas do debate coletivo (MOROZOV, 2018MOROZOV, Evgeny. Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 29).

Há na articulação dos termos e falas a indicação de que inúmeras destas tecnologias inovadoras (IA’s, algoritmos, machine learning, robôs/bots, automações) atribuídas aos Estados, Big Techs ou startups, em especial as baseadas em algoritmos, trariam benefícios por serem essencialmente neutras e objetivas, algo bastante recorrente na alegação da sua superioridade quando comparada à parcialidade dos seres humanos. Porém, novamente se recai na ilusão argumentativa da superação humana pelo componente tecnológico, quando, em realidade, apesar de sua alusão à neutralidade e imparcialidade desses dispositivos, já se encontra bem documentado por referências como O’Neil (2017, p. 14), Morozov (2013MOROZOV, Evgeny. To save everything, click here: The folly of technological solutionism. New York: Public Affairs, 2013., p. 184), Noble (2018NOBLE, Safiya Umoja. Algorithms of oppression: how search engines reinforce racism. NYU Press, 2018.), Amaral, Martins e Elesbão (2021AMARAL, Augusto Jobim do; MARTINS, Fernanda; ELESBÃO, Ana Clara. Racismo algorítmico: uma análise da branquitude nos bancos de imagens digitais. Pensar-Revista de Ciências Jurídicas, v. 26, n. 4, 2021.), Silva (2022SILVA, Tarcísio. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022.) que tais modelos algoritmos têm objetivos, vieses e ideologias contidos em suas propostas, tendo seus potenciais danosos significativos devidamente ignorados.

Em sentido complementar, a explicação de Brayne (2021BRAYNE, Sarah. Predict and surveil: data, discretion, and the future of policing. New York: Oxford University Press, 2021., p. 16, tradução nossa) acerca da desigualdade de techwashing ajuda na refutação da neutralidade e objetividade, ao dizer que tal prática “significa aparentar substituir a subjetividade e o preconceito legalmente contestável por números ‘objetivos’, ‘neutros’ e ‘daltônicos’ produzidos por meio de quantificação, computação e automação”. Algo que segundo a pesquisa empírica desenvolvida pela autora ocorre com frequência na apreciação de dispositivos tecnológicos observados no campo do controle social e segurança pública.

Assim, pode-se inferir que o conjunto de discursos se projeta sobre as incompletudes e problemas sociais, alegando que as alternativas baseadas na tecnologia seriam mais confiáveis por retirarem o componente humano da equação. Tal concepção se aproxima de uma espécie de solucionismo tecnológico (MOROZOV, 2013MOROZOV, Evgeny. To save everything, click here: The folly of technological solutionism. New York: Public Affairs, 2013., p. 5), de modo que toda e qualquer demanda social pudesse ser reduzida ao algoritmo correto ou a dados computáveis para solucionar as questões mais complexas, enquanto se ignoram os custos e efeitos inesperados (ou não) advindos das implementações desses instrumentos, por vezes, gerando mais prejuízos do que as situações que originalmente buscavam sanar.

Todavia, o apelo retórico à população ampara-se em elementos do próprio Big Data3 3 “[...] em especial, se caracteriza pela composição de três aspectos, a saber: 1) a exponencialização do volume de dados produzidos e disponibilizados; 2) a sofisticação das técnicas de estocagem destes mesmos dados; e 3) a capacidade de tratamento destes dados, gerando dados sobre dados (os metadados), tudo isso transformado e quantificado (big data), produzindo um conhecimento algorítmico funcional-utilitarista, como nomeia É. Sadin”. (MORAIS, 2018.p. 891-892). , como a celeridade, velocidade, disponibilidade (lendo-se como “gratuidade” operações que evidentemente comercializam dados e produzem efeitos de rede) (LOVELUCK, 2018LOVELUCK, Benjamin. Redes, liberdades e controle: uma genealogia política da internet. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 224 - 225) e a liberdade ligada ao campo das comunicações e navegações digitais, a fim de que não se perceba a condução funcional da viagem online. Isso explicaria o porquê as barganhas atuais propostas por governos e corporações, mesmo não sendo nem remotamente boas aos usuários/sujeitos acabam por ser aceitas sem grandes oposições. De forma simples, tais negócios tendem a beneficiar excessivamente os propositores e enclausurar as opções dos indivíduos em modelos de controle/vigilância massiva, denotando que as regras jurídicas estabelecidas para proteção social são insuficientes (SCHNEIER, 2015SCHNEIER, Bruce. Data and Goliath: the hidden battles to collect your data and control your world. New York: WW Norton & Company, 2015., p. 9), apesar da visão coletiva de liberdade e facilitação da vida mundana produzir o anestesiamento necessário.

O aparato discursivo ainda possui conteúdos míticos, os quais foram aceitos no decurso do tempo e tomados como verdades imutáveis ou dogmáticas e, por conseguinte, compõem o quadro narrativo quase que idílico a respeito da tecnologia. Observa-se isso nos tratamentos idealizados do espaço da internet ou de redes sociais, como se fossem ambientes sem sombra de dúvidas democráticos, igualitários e impulsionadores da livre circulação de ideias/expressões, ao passo que, segundo clarifica Loveluck (2018LOVELUCK, Benjamin. Redes, liberdades e controle: uma genealogia política da internet. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 206), “a web não é uma rede aleatória e, de acordo com Barabási, essas propriedades nos obrigam a reavaliar a ideia geral segundo a qual a web seria intrinsecamente um espaço de liberdade de expressão, de justiça e de ‘democracia’”. Complementa o autor dizendo que “mesmo que todas as opiniões pudessem ser publicadas”, a forma como a rede mundial de computadores se organiza apenas permitiria ver uma pequena parte dos conteúdos dentre os bilhões de documentos existentes.

Essas observações reafirmam a centralidade da atenção no interior da economia-rede. As contribuições dessas teorias mostram que a web não seria fundamentalmente igualitária, mas em vez disso, é dominada por um reduzido número de hubs que desempenham um papel decisivo [...] e por formas de distribuição bastante desiguais (LOVELUCK, 2018LOVELUCK, Benjamin. Redes, liberdades e controle: uma genealogia política da internet. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 206).

Inegável que o conteúdo fantasioso se soma à narrativa articulada em defesa da seara tecnológica, atribuindo características incontestáveis como a priorização da liberdade dos usuários, a racionalidade fruto da sua imparcialidade, neutralidade e objetividade, ou ainda a geração de progresso e desenvolvimento humano-social pela via tecnológica para superação das adversidades enfrentadas.

Os devaneios ainda se fortalecem pela associação entre tecnologia e palavras-imagens etéreas, conforme se constata na ideia do armazenamento em nuvens (cloud storage). “A imagem das nuvens computacionais é, aliás, estratégica para o sucesso do capitalismo de vigilância que estruturam” (BEIGUELMAN, 2021BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu, 2021., p. 69), haja vista que de forma metafórica as nuvens alimentam um imaginário transparente, desprovido de pesos ou amarras, o que naturaliza “as redes de poder a ela associadas e ocultando toda a gigantesca gama de infraestrutura física que existe para realizá-la e mantê-la em funcionamento 24 horas por dia” (WISNIK, 2018WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro. São Paulo: Ubu, 2018., p. 101), com seus enormes custos ao meio ambiente.

Embora a aparência e o discurso das nuvens pareçam intangíveis e sem consequências, a realidade devidamente invisibilizada conta com data centers responsáveis por armazenar uma quantidade imensurável de conteúdos digitais, chegando a consumir em meados de 2015 cerca de 3% da energia mundial, algo similar à pegada de carbono das empresas de tráfego aéreo. Posto isso, enquanto se produz uma retórica alienante ambientada em relações de poder tecnopolíticas e de um capitalismo inconsequente, os custos humanos e ambientais não se reduzem, ao contrário, se ampliam:

A projeção é de que esse consumo se amplie muito, resultando tanto do crescimento da infraestrutura digital quanto do feedback positivo das temperaturas globais em alta. Em relação aos vastos incrementos em armazenamento digital e capacidade computacional na última década, a quantidade energia que os data centers usam duplica a cada quatro anos, e se espera que triplique nos próximos dez. Um estudo no Japão sugeriu que, em 2030, as exigências de energia só para serviços digitais vão superar a capacidade de geração atual de todo o país. Nem as tecnologias que afirmam explicitamente que promoverão transformações radicais na sociedade estão isentas. A criptomoeda Bitcoin, projetada para derrubar sistemas financeiros hierárquicos e centralizados, exige a energia de nove lares norte-americanos para executar uma só transação; se continuar crescendo, em 2019 ela exigirá a produção energética anual de todos os Estados Unidos para se sustentar (BRIDLE, 2019BRIDLE, James. A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro. São Paulo: Todavia, 2019., p. 75 - 76).

A título de observação, é bastante questionável a aceitação passiva por intermédios discursivos da visão de mundo em que a tecnologia seria o único campo de produção científica ainda neutro (algo refutado há bastante tempo no campo jurídico, vide os estudos de hermenêutica de linhas filosóficas, apenas para mencionar um exemplo) e, com base nas implicações citadas, não produtor de qualquer efeito de suas práticas, visto que qualquer pesquisa envolve riscos e benefícios e, por isso, custos (humanos, sociais, políticos, econômicos, etc.) aos envolvidos. Ademais, a intencional ignorância da tecnoética (VIVAS, 2018VIVAS, Willy Jharinton. Uso seguro y responsable de las TIC: una aproximación desde la tecnoética. Ciencia, docencia y tecnología, v. 29, n. 57 nov-abr, p. 235-255, 2018., p. 240) explica a desatenção completa com o atendimento de finalidades sociais ou a falta de preocupação com os danos causados às populações e ao meio ambiente. Somente um pensamento compartimentado e simplificado ao melhor estilo cartesiano seria capaz de ignorar a pluralidade de dimensões envolvidas, ou seja, adotar como viáveis as falas-imagens defendidas por essa argumentação seria ignorar as bases do pensamento complexo (MORIN; LE MOIGNE, 1999MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean-Louis. L’intelligence de la complexité. L’Harmattan: Montreal, 1999.), o qual traz os contributos iniciais de superação dos processos simplificadores e hiperespecializados que levaram aos problemas modernos.

Entretanto, os discursos que circundam os espaços tecnológicos ofertando certa proteção revelam outro elemento, bastante conectado às perspectivas neoliberais e de incrementos econômicos do capitalismo digital, mais precisamente a aceitação de uma espécie de caráter natural e inevitável das transformações impostas. Tal estratégia se alia ao mantra (enquanto princípio de realidade) de que “não há alternativa”, tipicamente encontrado nas bases neoliberais, conforme preleciona Brown (2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Filosófica Politeia, 2019., p. 78 - 79), e se soma à ideia da tecnologia como parte do imparável “trem do progresso”.

Véliz exemplifica as consequências desse tipo de fundamentação ao averiguar aspectos jurídicos insertos nos termos de uso de grandes empresas tecnológicas, averiguando que tais termos são formatados para serem abusivos e violadores de direitos, de modo que caso ocorram discordâncias entre as corporações e o usuário, este último não consiga acessar os seus dados ou serviços. Por isso afirma a autora que “não há espaço para negociação dos termos e condições, e estes podem ser alterados a qualquer momento sem que você seja notificado. Você está sendo intimidado” (VÉLIZ, 2020VÉLIZ, Carissa. Privacy is power. Great Britain: Penguin Random House, 2020., p. 15, tradução nossa).

Com base nisso objetiva-se que a população identifique escolhas voltadas a interesses econômicos de grandes empresas tecnológicas não como uma decisão, e sim como um efeito não elegido, ou seja, mascara-se que armazenar indefinidamente quantidades enormes de dados ou fornecê-los a governos, algo já realizado por empresas como Amazon, Alphabet/Google ou Meta/Facebook, se tratam de decisões corporativas e não imposições naturais da tecnologia (ZUBOFF, 2019ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the new frontier of Power. New York: PublicAffair, 2019., p. 21).

Destarte, há um apelo retórico a um ideal naturalista da tecnologia, como se fosse uma espécie de nova força de Gaia (LOVELUCK, 2020), mas que também acaba, por acaso, sendo bastante lucrativa. Embora se possa entender como resposta aparentemente lógica a um indivíduo que, por exemplo, não paga o aluguel, a mensagem direta do computador que indica o seu desalojamento, é importante dizer que tal resposta não é algo natural, mas sim é dada a partir de relações automatizadas de vontade e de relações sociais de força. “O capitalismo financeiro está ligado a implicações tecnolinguísticas que pretendem passar por naturais e lógicas. Não são”, são em realidade reduções artificiais das possibilidades a apenas uma “estreita série de probabilidades” (BERARDI, 2019BERARDI, Franco “Bifo”. Futurabilidad: la era de la impotencia y el horizonte de posibilidad. Buenos Aires: Caja Negra, 2019., p. 28).

Diante desse contexto discursivo, com suas palavras, metáforas e conjunto de estratégias argumentativas, percebe-se o caráter impermeabilizador associado à produção tecnológica contemporânea e a sua impostergável superação como condição para elaboração de debates verdadeiramente críticos a respeito das suas ligações com o universo jurídico-social. Portanto, a próxima etapa do estudo parte desse processo de desvelamento como base, a fim de que o romantismo retórico não seja mais capaz de nublar as reflexões mais relevantes aos direitos fundamentais da população.

3. O direito social ao trabalho e o custo das tecnologias de automação

Ancorada na premissa de Spivak (1993SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Outside in the teaching machine. New York: Routledge, 1993., p. 41 - 51), que em sua crítica feminista pós-colonial marxista derridiana “caracteriza o liberalismo (e outras formações emancipatórias modernas) como ‘aquilo que não podemos não querer’”, Brown se propõe a mapear os dilemas trazidos pelos direitos como paradoxos na perspectiva da desigualdade, exploração e subordinação das mulheres nos regimes constitucionais liberais. Diante dessas condições, pontua a autora, “os direitos parecem ser aquilo que não podemos não querer”, ainda que costumem servir antes como uma mitigação do que como uma resolução dos problemas (2021, p. 459 - 461).

Apesar do recorte temático específico, o texto provoca uma reflexão tão profunda sobre questões estruturais do contexto em que se inserem as disputas em torno dos direitos que a sua indagação quanto ao sofrimento dos direitos como paradoxos serve perfeitamente como ponto de partida para as interrogações que aqui se pretendem perscrutar: o que se perde com o que se ganha?

Argumentos decisivos que soem aparecer em enaltecimento dos benefícios da tecnologia e que contribuem para uma visão parcial e acrítica quanto ao seu todo já foram devidamente deslindados no tópico anterior. Conforme visto, não faltam enunciações que apontem para “o que se ganha” com os avanços tecnológicos das últimas décadas. Aqui se trata de descortinar, enfim, “o que se perde”.

Importante ressalvar, contudo, que a crítica pretendida não deve ser confundida com uma moção de regresso ao passado analógico. Não é o caso de abolir a comunicação eletrônica e retornar às cartas, em exemplificação de que não se trata, em geral, de abrir mão dos avanços que efetivamente representam uma otimização de determinadas atividades e até mesmo condições de vida. A questão é que com relação às vantagens da tecnologia não faltam propagadores, mas faltam, em muitos domínios, os críticos, indispensáveis para uma compreensão ampla e adequada dos cenários. Este é o espaço que se quer ocupar com o presente texto.

Considerando que os avanços tecnológicos estão amparados numa retórica argumentativa tão eficaz em propalar “o que se ganha” que tem sido capaz de camuflar, muitas vezes, “o que se perde”, bem como as múltiplas perspectivas que poderiam nortear este contraponto, reitera-se a delimitação da abordagem quanto às repercussões ao direito social ao trabalho frente às inserções tecnológicas que substituem a mão de obra humana.

Nesse sentido, notícias recentes baseadas em relatórios do Fórum Econômico Mundial apontam que a automação deve causar a eliminação de 85 milhões de empregos nos próximos 5 anos (com a expectativa, em contrapartida, de geração de outros 97 milhões de empregos em áreas como saúde e tecnologia), abrangendo diversos segmentos e economias. A pandemia da Covid-19 certamente acelerou esse processo, e há estimativas de que até 2025 os empregadores irão dividir igualmente o trabalho com as máquinas (CAVALLINI, 2020).

Aliás, há experiências em curso dessa interação entre trabalho humano e máquina que são sintomáticas do que se anuncia: “reduzir operários a algoritmos de carne, úteis apenas devido à sua capacidade de se mexer e seguir ordens, facilita na hora de contratar, demitir e abusar deles”. Dispositivos tecnológicos de rastreio impõem aos trabalhadores o ritmo da máquina, eliminando o desperdício do tempo produtivo com as necessidades humanas de ir ao banheiro, por exemplo, ou momentos de confraternização, o que também contribui para impedir a organização trabalhista (BRIDLE, 2019BRIDLE, James. A nova idade das trevas: a tecnologia e o fim do futuro. São Paulo: Todavia, 2019., p. 135).

Essas projeções, contudo, precisam ser contrabalanças com a própria realidade, visto que a busca por automação total é um sonho de longa data, mas cuja concretização vem se mostrando mais fácil no discurso do que na prática. Ao expor os mitos da automação, Munn apresenta vários exemplos ao longo de décadas em que os resultados dessas iniciativas geraram caos e decepções. Um dos mais recentes e talvez conhecidos episódios é o da Tesla, tendo havido grande repercussão tanto o anúncio de Elon Musk, CEO da empresa, quanto aos planos de implementar uma fábrica totalmente automatizada, quanto a admissão pública, cerca de um ano depois, de que a excessiva automação da Tesla foi um erro e que humanos são subestimados (MUNN, 2022MUNN, Luke. Automation is a myth. Stanford, California: Stanford University Press, 2022., p. 16 - 17).

Sistemas robóticos mostraram-se incapazes de se adaptar às inconsistências de algumas tarefas de montagem, o que levou a resultados de produção muito aquém das metas esperadas. Considerada um fracasso, a estratégia foi repensada e remodelada para integrar o trabalho humano de uma forma mais tradicional. De fato, várias experiências têm demonstrado as dificuldades concretas da automação em razão do contraste entre a necessidade de regularidade e uniformidade para o funcionamento das máquinas com a alta complexidade, diferenciação e necessidade de improvisação das tarefas a serem executadas e decisões a serem tomadas, sobretudo diante de crises - habilidades estas nas quais os humanos superam as máquinas (MUNN, 2022MUNN, Luke. Automation is a myth. Stanford, California: Stanford University Press, 2022., p. 17).

Em outros termos, substituir um trabalhador por uma máquina ou mesmo um robô pode não ser economicamente atrativo para algumas empresas, pois a operacionalidade desses itens ainda é bastante inflexível, já que uma vez que tenham sido programados (ou mesmo treinados, como no caso de algoritmos de machine learning) para uma tarefa específica, pode ser bastante difícil alterá-la. Além, é claro, do alto custo de manutenção que podem demandar esses equipamentos e a escassez de sua oferta no mercado (tendo em vista que robôs e máquinas são demorados e dispendiosos para serem construídos) (ABELIANSKY, et al., 2020ABELIANSKY, Ana; ALGUR, Eda; BLOOM, David E.; PRETTNER, Klaus. The future of work: challenges for job creation due to global demographic change and automation. Bonn: IZA Institute of Labor Economics, 2020. Disponível em: https://docs.iza.org/dp12962.pdf. Acesso em: 24 de setembro de 2022.
https://docs.iza.org/dp12962.pdf...
, p. 18).

Em alguma medida, diante dessas informações, a automação total talvez nem seja uma realidade tão iminente como discursivamente aparenta ser. Ainda assim, tem sido suficiente para gerar (e não sem razão) insegurança4 4 Insegurança que é propositalmente produzida para o governo das condutas no contexto neoliberal, ao que, baseado em Deleuze e Guattari, pode-se nomear de micropolítica da insegurança. “A insegurança do desempregado e do precário certamente não é a mesma do empregado de uma multinacional [...], porém existe um diferencial de medos que corre de um extremo ao outro do continuum. Como explicar, de outra forma, esse sentimento de insegurança generalizado (não só econômico) que reina em uma sociedade que, no entanto, nunca foi tão ‘protegida’? Da gestão diferencial dessas desigualdades se destacam medos diferencias que atingem todos os segmentos da sociedade, sem distinção, e que constituem o fundamento ‘afetivo’ desse governo das condutas pela desigualdade” (LAZZARATO, 2011, p. 28). .

Mesmo sem sopesar a automação, estudos apontam que mais de 300 milhões de novos empregos precisarão serão criados em todo o globo entre os anos de 2020 e 2030, baseando-se nos seguintes fatores: aumento de 8,9% da população em idade ativa (assim entendida a faixa entre 15 e 64 anos); mudanças na participação da força de trabalho; melhorias nas taxas de desemprego de jovens e adultos para 8% e 4%, respectivamente. Quando os efeitos da automação são inseridos na avaliação, a necessidade de criação de novos postos de trabalho aumenta para mais de 340 milhões (ABELIANSKY, et al., 2020ABELIANSKY, Ana; ALGUR, Eda; BLOOM, David E.; PRETTNER, Klaus. The future of work: challenges for job creation due to global demographic change and automation. Bonn: IZA Institute of Labor Economics, 2020. Disponível em: https://docs.iza.org/dp12962.pdf. Acesso em: 24 de setembro de 2022.
https://docs.iza.org/dp12962.pdf...
, p. 3). Percebe-se, com efeito, que a complexidade dos fatores envolvidos exigirá uma conjugação de esforços em frentes diversas para uma adequada proteção do direito ao trabalho num futuro imediato.

Em 2017 foi publicado um estudo dos pesquisadores Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne que impactou profundamente os debates acerca das repercussões da tecnologia sobre os empregos. Para responder “quão suscetíveis são os empregos à informatização” os autores implementaram uma metodologia capaz de estimar as probabilidades de automação. Foram consideradas 702 ocupações nos Estados Unidos, agrupadas por alto, médio e baixo risco de automação, chegando os autores à estimativa de que 47% do total de empregos nos Estados Unidos situa-se na categoria de alto risco, isso é, com grandes chances de substituição do trabalho humano por tecnologia nas próximas duas décadas (2017, p. 15, tradução nossa).

Essa metodologia específica foi adaptada para que se replicasse o estudo em vários países do mundo, sendo o trabalho de Frey e Osborne referenciado milhares de vezes por diversos outros pesquisadores. No Brasil, foram localizados três estudos nesse sentido, que adotam a mesma metodologia de cálculo desenvolvida pelos pesquisadores da Universidade de Oxford.

Um desses estudos para estimar as probabilidades de automação das ocupações foi desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que conduziram uma investigação intitulada “Na era das máquinas, o emprego é de quem? Estimação da probabilidade de automação de ocupações no Brasil”, cujos resultados merecem acurada atenção.

A base de dados utilizada para a pesquisa foi a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), um painel que cobre 97% dos trabalhadores formais do Brasil entre 1986 e 2017 e concentra diversos dados, como renda, escolaridade, CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), entre outros. Importante ressalvar, contudo, que a RAIS não cobre os trabalhadores informais, autônomos ou que não possuem carteira assinada (ALBUQUERQUE et al., 2019ALBUQUERQUE, Pedro Henrique Melo; SAAVEDRA, Cayan Atreio Portela Bárcena; MORAIS, Rafael Lima de; ALVES, Patrick Franco; YAOHAO, Peng. Na era das máquinas, o emprego é de quem? Estimação da probabilidade de automação de ocupações no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea, 2019., p. 14), com destaque para o fato de que taxa de informalidade no trimestre encerrado em maio de 2022 engloba 39,1 milhões de trabalhadores, o que corresponde a 40,1% da população ocupada (IBGE, 2022).

Conjugando-se dados e metodologias detalhadas no relatório completo, são classificadas as ocupações quanto ao seu nível de preparo, resultando na seguinte categorização: zona de trabalho 1, refere-se a ocupações que requerem pouca preparação; zona de trabalho 2, abrange ocupações que demandam alguma preparação; zona de trabalho 3, diz respeito a ocupações que precisam de um nível intermediário de preparo; zona de trabalho 4, ocupações que necessitam considerável preparação; por fim, zona de trabalho 5, cujas ocupações exigem um alto nível de preparo. A partir disso, uma primeira conclusão do estudo chama atenção: “quanto mais complexa é uma ocupação em termos de nível de preparo, menor é a probabilidade de automação dessa ocupação” (ALBUQUERQUE et al., 2019ALBUQUERQUE, Pedro Henrique Melo; SAAVEDRA, Cayan Atreio Portela Bárcena; MORAIS, Rafael Lima de; ALVES, Patrick Franco; YAOHAO, Peng. Na era das máquinas, o emprego é de quem? Estimação da probabilidade de automação de ocupações no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea, 2019., p. 14).

Pode-se inferir, como corolário, que as vulnerabilidades e desigualdades sociais que hoje comprometem o acesso igualitário à educação e à formação profissional repercutirão de modo decisivo quanto à inserção no mundo do trabalho automatizado e dominado por novas tecnologias. Para além do indesejável quadro de exclusão digital existente, agrava as preocupações quanto a essas projeções a constatação de que os mais diretamente impactados por esses processos tendem a ser justamente aqueles que já são prejudicados pela pobreza estrutural e pela marginalização.

Portanto, os aspectos excludentes da tecnologia precisam ser considerados com urgência e seriedade para que se resolva o abismo que separa aqueles que são oprimidos como meros consumidores de tecnologia e aqueles que são agentes empoderados por ela. “Essa tensão entre opressão e empoderamento transforma as tecnologias digitais - como qualquer outro aspecto da vida dos oprimidos - em um campo de batalha”. Há uma dimensão de violência estrutural da Era da Informação que emerge na experiência cotidiana dos excluídos (NEMER, 2021NEMER, David. Tecnologia do oprimido: desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil. Vitória: Milfontes, 2021., p. 20) e que, conforme se percebe, na falta de estratégias e esforços específicos, tende a se intensificar.

Sobre esse ponto repousa outro mito da automação denunciado por Munn, que diz respeito a como tais tecnologias impactarão as pessoas. Segundo o autor, “ao longo do último século a retórica da automação evocou consistentemente uma humanidade genérica como alvo de seus impactos” (MUNN, 2022MUNN, Luke. Automation is a myth. Stanford, California: Stanford University Press, 2022., p. 83, tradução nossa), todavia, esse humano universal simplesmente não existe. Ao contrário, já que as relações de trabalho, especialmente, sempre foram marcadas por diferenciações sociais: “a história do trabalho é uma história da estratificação racial, cultural e sexual” (MUNN, 2022, p. 85, tradução nossa).

Munindo-se dessas ponderações e retornando ao relatório do IPEA, há outro dado digno de nota: das cinco zonas de trabalho definidas a partir do nível de preparo exigido, a zona 1, isso é, a que requer pouca preparação e cujos postos de trabalho estão mais suscetíveis à extinção devido à automação, não só é a que concentra o maior número de trabalhadores nos últimos anos, como também é a que mais cresceu. Uma das explicações apontadas como mais plausíveis pelos autores “é a possibilidade dos trabalhadores das zonas de trabalho 2, 3, 4 e até mesmo 5 terem perdido seus empregos nos últimos anos devido à automação e às questões macroeconômicas, sendo assim realocados no mercado de trabalho em zonas inferiores à sua original” (ALBUQUERQUE et al., 2019ALBUQUERQUE, Pedro Henrique Melo; SAAVEDRA, Cayan Atreio Portela Bárcena; MORAIS, Rafael Lima de; ALVES, Patrick Franco; YAOHAO, Peng. Na era das máquinas, o emprego é de quem? Estimação da probabilidade de automação de ocupações no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea, 2019., p. 18). Sendo a zona 1, reitera-se, a com maior probabilidade de automação nos próximos anos, fica incontestável a gravidade do problema social que desponta no ocaso.

Em cálculo da probabilidade média de automação que levou em conta 45.859.149 empregados, “agregando os níveis de probabilidade de automação alta e muito alta, o número de funcionários que pertencem a essas categorias em 2017 foi igual a 24.970.587, representando 54,45%” do número total analisado, o que foi considerado pelos autores do estudo uma porcentagem alarmante de profissões em risco no futuro próximo (com a ressalva de que há também outros fatores e transformações em curso que podem viabilizar o advento de novas necessidades e, consequentemente, a criação de novas profissões relacionadas à supervisão das tecnologias introduzidas) (ALBUQUERQUE et al., 2019ALBUQUERQUE, Pedro Henrique Melo; SAAVEDRA, Cayan Atreio Portela Bárcena; MORAIS, Rafael Lima de; ALVES, Patrick Franco; YAOHAO, Peng. Na era das máquinas, o emprego é de quem? Estimação da probabilidade de automação de ocupações no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea, 2019., p. 23 - 26).

Para fechar o estudo, o cenário mais preocupante mapeado é de que se as empresas decidirem efetivamente automatizar as profissões com alta chance de automação, “então aproximadamente 30 milhões de empregos estariam em risco até 2026”. Para os pesquisadores, este é o cenário mais fidedigno identificado, “uma vez que a automação das tarefas para as firmas produziria um aumento na eficiência de seus processos, redução de custos, além da possibilidade de certas atividades serem executadas 24 horas, sete dias por semana” (ALBUQUERQUE et al., 2019ALBUQUERQUE, Pedro Henrique Melo; SAAVEDRA, Cayan Atreio Portela Bárcena; MORAIS, Rafael Lima de; ALVES, Patrick Franco; YAOHAO, Peng. Na era das máquinas, o emprego é de quem? Estimação da probabilidade de automação de ocupações no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília/Rio de Janeiro: Ipea, 2019., p. 26). Registre-se que o desejo de transpor os limites humanos à exploração do trabalho sempre foi uma pretensão capitalista, em especial na lógica de 24/7, a qual denota como “plausível, até normal, a ideia do trabalho sem pausa, sem limites” (CRARY, 2016CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu, 2016., p. 19), algo viabilizado em parte pelo ideal da automação.

O segundo estudo que adapta e replica a metodologia de Frey e Osborne para o contexto brasileiro é o relatório técnico “O futuro do emprego no Brasil: estimando o impacto da automação”, elaborado por um conjunto de pesquisadores vinculados ao Laboratório do Futuro da Universidade Federal do Rio de Janeiro e publicado em 20195 5 Um diferencial deste estudo em relação aos demais são as estimativas feitas quanto ao impacto da automação nas especificidades dos municípios e também quanto a grupos sociais mais vulneráveis. O detalhamento dessas particularidades, contudo, a despeito da sua importância, desborda dos parâmetros metodológicos que circunscrevem esta investigação. . Tal como o relatório do IPEA, neste estudo também são utilizadas como base de dados a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) e a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS).

Quanto aos resultados, constatam-se probabilidades bastante similares. Para os pesquisadores do Laboratório do Futuro, nas próximas décadas 60% dos trabalhadores brasileiros encontram-se em ocupações com alto risco de automação (o que significa uma probabilidade de automação maior que 70%, segundos os autores). Há um risco médio (entre 30% e 70% de probabilidade) para 18% dos trabalhadores, e um baixo risco (probabilidade menor que 30%) para 22% dos trabalhadores (LIMA, et al., 2019LIMA, Yuri de Oliveira; et al. O futuro do emprego no Brasil: estimando o impacto da automação. Rio de Janeiro, BRA: UFRJ, Laboratório do Futuro, 2019. Disponível em: https://www.cos.ufrj.br/uploadfile/publicacao/2961.pdf. Acesso em: 21 de novembro de 2022.
https://www.cos.ufrj.br/uploadfile/publi...
, p. 13).

Se aplicado um recorte de gênero ao cálculo, os índices apontam que o impacto da automação será ainda mais prejudicial às mulheres (probabilidade de automação de 69,7%), que se encontram mais vulneráveis à automação dos que os homens (probabilidade de automação de 62,5%) (LIMA, et al., 2019LIMA, Yuri de Oliveira; et al. O futuro do emprego no Brasil: estimando o impacto da automação. Rio de Janeiro, BRA: UFRJ, Laboratório do Futuro, 2019. Disponível em: https://www.cos.ufrj.br/uploadfile/publicacao/2961.pdf. Acesso em: 21 de novembro de 2022.
https://www.cos.ufrj.br/uploadfile/publi...
, p. 21). Esse dado vai ao encontro das críticas de Munn (2022MUNN, Luke. Automation is a myth. Stanford, California: Stanford University Press, 2022., p. 101 - 102, tradução nossa) quanto ao modo com que a automação afetará diferentemente as pessoas, considerando, por exemplo, que as mulheres já partem de uma condição mais precarizada e desigual no mercado de trabalho e, assim, tendem a sofrer esses efeitos de modo acentuado.

As preocupações externadas nesse segundo estudo podem ser compendiadas em duas frentes: (i) a automação terá um alto impacto sobre os grupos sociais com maiores dificuldades em migrar para novos empregos, como mulheres, jovens, pessoas com baixos salários e, principalmente, pessoas com baixa escolaridade; (ii) o sistema brasileiro de proteção social baseado em relações formais de emprego que já repercute negativamente sobre os trabalhadores informais tende a agravar e ampliar essa exclusão e desamparo (LIMA, et al., 2019LIMA, Yuri de Oliveira; et al. O futuro do emprego no Brasil: estimando o impacto da automação. Rio de Janeiro, BRA: UFRJ, Laboratório do Futuro, 2019. Disponível em: https://www.cos.ufrj.br/uploadfile/publicacao/2961.pdf. Acesso em: 21 de novembro de 2022.
https://www.cos.ufrj.br/uploadfile/publi...
, p. 31), o que reforça a urgência de se pensarem alternativas.

Aliás, a incorporação do setor informal é o elemento que distingue o último estudo dentre os mencionados que partem da metodologia paradigmática de Frey e Osborne para a análise do contexto brasileiro. Intitulado “Automation and job loss: the Brazilian case”, o estudo publicado no ano de 2022 foi desenvolvido por um grupo de pesquisadores de diversas instituições de ensino e de pesquisa.

De antemão, os autores esclarecem que a inclusão do setor informal pode influenciar os resultados finais, tornando as respostas menos claras. Nesta pesquisa, como a RAIS (utilizada como referência nos dois relatórios anteriormente citados) não abrange o setor informal, foi adotada como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), que contempla toda a população ocupada. As estimativas encontradas apontam que as máquinas podem substituir 58,1 % dos empregos brasileiros dentro de 10 a 20 anos. Considerando apenas o setor formal, a probabilidade de automação é de 55,1%. Para o setor informal o risco de automação estimado é ligeiramente maior, chegando a 62% no mesmo período de tempo. Por fim, os autores ressalvam que esses números representam as perdas de empregos que podem ser ocasionadas diante daquilo em que as máquinas são tecnicamente capazes de substituir os trabalhadores humanos, mas que a efetiva eliminação desses postos de trabalho depende também de outras variantes, como condições econômicas e decisões políticas (OTTONI, et al., 2022OTTONI, Bruno, et al. Automation and job loss: the Brazilian case. Nova Economia, v. 32, p. 157-180, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/neco/a/tHdrWS8KqNWZHJJq9LMPKyN/?utm_source=newsletter&utm_id=thebizness&utm_content=referral. Acesso em: 21 de novembro de 2022.
https://www.scielo.br/j/neco/a/tHdrWS8Kq...
, p. 178, tradução nossa).

Confrontando-se os dados das três publicações analisadas, percebe-se que não há uma variação expressiva entre os resultados obtidos (que estimam, na respectiva ordem em que foram apresentados no texto, 55,3 %, 60% e 55,1% de probabilidade de automação do trabalho no setor formal). Assim, uma das questões emergentes dessa conjuntura é “a quem interessa a automação e o emprego de tecnologias supressoras de postos de trabalho humano”? A pergunta é retórica, evidentemente, pois está claro quem são os beneficiados e quem são os prejudicados por essa dinâmica6 6 Os próprios consumidores são afetados diretamente por essa dinâmica, já que ferramentas tecnológicas também são estrategicamente empregadas para lhes transferir, de forma não remunerada, o trabalho que antes era desempenhado por um trabalhador assalariado, bastando, para tanto, observar caixas de autoatendimento, serviços de compra online, emissão de bilhetes aéreos, entre outras inúmeras possibilidades que ao mesmo tempo que eliminam postos de trabalho, atribuem a atividade ao consumidor (ANTUNES, 2020, p. 51 - 52). .

Sensível destacar, no entanto, que na perspectiva constitucional o trabalho é um valor social que constitui fundamento da República Federativa do Brasil, previsto expressamente como tal no art. 1o, IV, da Constituição de 1988, além de estar previsto como o direito fundamental social, no art. 6o. Adiante, o art. 170 da Constituição institui a valorização do trabalho humano como fundamento da própria ordem econômica, cujos princípios orientadores também contemplam a busca pelo pleno emprego. A finalidade da ordem econômica, aliás, tal como estruturada pelo texto constitucional, é “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Ao tratar sobre a ordem social, no art. 193, novamente a Constituição enfatiza o primado do trabalho como base, ao lado do bem-estar e da justiça social como objetivos, impondo ao Estado a função de planejamento das políticas sociais nesse sentido (BRASIL, 1988).

Ainda que em alguns desses dispositivos a valorização do trabalho esteja ladeada da livre iniciativa (art. 1o, IV e art. 170, caput, da Constituição), não se pode afirmar o triunfo do individualismo econômico justamente pelo conjunto das previsões constitucionais que amparam o trabalho humano, a dignidade e a justiça social, de modo que a livre iniciativa só é fundamento da ordem econômica constitucional naquilo que expressa de socialmente valioso, não podendo ser reduzida à liberdade econômica plena ou à liberdade de empresa, “sob pena de uma interpretação parcial e equivocada do texto constitucional”. De maneira bastante assertiva, Bercovici (2009BERCOVICI, Gilberto. Os princípios estruturantes e o papel do Estado. In: CARDOSO JR., José Celso (Org.). A Constituição brasileira de 1988 revisitada: recuperação histórica e desafios atuais das políticas públicas nas áreas econômica e social. Brasília: Ipea, 2009., p. 258 - 259) chega a afirmar que “sob a Constituição de 1988, liberdade de empresa e livre iniciativa não são direitos fundamentais”.

Concernente ao sistema constitucional, também é válido mencionar as próprias limitações estabelecidas com relação à propriedade. Não obstante o seu inequívoco caráter de direito fundamental (art. 5o, XXII, Constituição de 1988), as condições impostas para o seu exercício incluem uma importante previsão, qual seja, a de que a propriedade atenderá a sua função social (art. 5o, XXIII, Constituição de 1988), que representa, de modo amplo, o chamado fenômeno da constitucionalização do Direito, a indicar, em apertada síntese, a exigência de que toda ordem jurídica, o que inclui, notadamente, os institutos de direito privado, devem ser interpretados e ressignificados à luz dos ditames constitucionais.

Isso permite que se reflita, sem dúvida, acerca de uma função social da tecnologia, já que os seus desenvolvimentos e aplicações não operam num vácuo jurídico, e sim sob a égide constitucional vigente. Mesmo porque a Constituição e os direitos fundamentais não vinculam apenas os poderes públicos, mas igualmente os particulares. “Naturalmente que as noções de liberdade, igualdade, solidariedade, centralidade da pessoa humana, bem-estar e justiça social não abrangem apenas o mundo do trabalho”, tampouco se limitam à esfera pública, tais ideias civilizatórias invadem as esferas da sociedade política e, igualmente, da sociedade civil (DELGADO; PORTO, 2019, p. 16).

Desde o reconhecimento da Constituição como ordem objetiva de valores a partir do pós-segunda guerra e do desvelamento de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais expressa em julgamento paradigmático do Tribunal Constitucional Federal Alemão (Caso Lüth, de 1958) (SCHWABE; MARTINS, 2005SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevideo: Fundação Konrad Adenauer, 2005., p. 381), em teses que influenciaram toda a construção teórica ocidental, não há mais qualquer embasamento lógico para negar-se a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e demais preceitos constitucionais.

Interseccionando todos esses pontos relativos à sistemática constitucional, reafirma-se a centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República e componente nuclear dos direitos fundamentais. A despeito da inexistência de uma definição jurídica fixada pelos próprios textos legais ao princípio, sua matriz kantiana amplamente reconhecida pela doutrina não deixa dúvidas quanto ao seu sentido.

Para a compreensão desse aporte, imprescindível referenciar o central conceito kantiano do imperativo categórico, cuja complexa formulação pode ser representada por um duplo preceito: a) “age sempre segundo a máxima cuja universalidade como lei possas querer ao mesmo tempo” (trata-se de condição única sob a qual uma vontade jamais poderá estar em contradição consigo mesma, destacando-se que “é absolutamente boa a vontade que não pode ser má e, portanto, quando a sua máxima, ao ser transformada em lei universal, não pode nuca se contradizer”); b) “age com respeito a todo o ser racional (a ti mesmo e aos demais) de tal modo que ele em tua máxima valha ao mesmo tempo como um fim em si”. (KANT, 2011KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 2a. reimpressão. São Paulo: Martin Claret, 2011., p. 67 - 68).

Tem-se, então, que sendo o ser racional (o ser humano) o sujeito dos fins, este “não deve jamais ser posto como fundamento de todas as máximas das ações como simples meio, mas como condição suprema restritiva no uso dos meios, isto é, sempre ao mesmo tempo como fim” (KANT, 2011KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 2a. reimpressão. São Paulo: Martin Claret, 2011., p. 68).

Dado o escopo do presente trabalho, é importante contextualizar que a doutrina kantiana afirma, com clareza, que o ser humano não deverá “jamais ser tratado como objeto, isto é, como mero instrumento para realização de fins alheios”, contudo, em uma relação de prestação de serviço, por exemplo, ainda que presente essa instrumentalização, se tal prestação é livre e espontânea e ocorre de modo que não haja degradação da condição humana daquela que a executa, não há uma contradição com os preceitos elencados (SARLET, 2008SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008., p. 53). É preciso ter presente, conforme elucida Sarlet,

[...] o fato de que o desempenho das funções sociais em geral encontra-se vinculado a uma recíproca sujeição, de tal sorte que a dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoística disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que o critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade passa a ser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro (SARLET, 2008SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008., p. 53 - 54).

Isso coloca em evidência a forma contraditória do trabalho, que mesmo quando é marcado por traços de alienação e estranhamento, expressa, também, em alguma medida, coágulos de sociabilidade e solidariedade. “Se por um lado necessitamos do trabalho humano e seu potencial emancipador e transformador, por outro devemos recusar o trabalho que explora, aliena e infelicita o ser social”. O trabalho pode ser fonte de autonomia e dignidade, mas quando a sociedade capitalista neoliberal reduz a vida humana exclusivamente ao trabalho (seja pela necessidade de sobrevivência, seja pela assimilação da lógica concorrencial), suprime-se o sentido da existência para tudo o que não é economicamente produtivo, convertendo-se o trabalho numa atividade penosa, alienante e aprisionadora (ANTUNES, 2020ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 27 - 28).

Com o avanço de tecnologias, chegou-se a imaginar a eliminação do trabalho mutilador, com a otimização de tarefas repetitivas e desgastantes que pudessem reverter em maior tempo livre para tarefas criativas e até mesmo atividades não vinculadas ao trabalho em si. “Terá sido um sonho eurocêntrico?”, questiona Antunes (2020ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 25), diante do fato de que o “labor humano tem sido, predominantemente, espaço de sujeição, sofrimento, desumanização e precarização, numa era em que muitos imaginavam uma proximidade celestial”. O que se vislumbra desse contexto tecnológico, num plano global, inclusive, é o advento e a expansão de um novo proletariado da era digital, cuja forma de exploração culmina numa espécie de escravidão digital em pleno século XXI (ANTUNES, 2020ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 32).

Diante de todos esses argumentos, considerando o que foi abordado acerca das probabilidades de automação com as previsões constitucionais, ainda assim é possível identificar alternativas viáveis para que sejam conciliados esses dispositivos tecnológicos com a proteção do trabalho humano dignificante. Na década de 1970, trabalhadores da Lucas Aerospace enfrentavam o desemprego estrutural devido à implementação de tecnologias de automação. Foi quando Mike Cooley reuniu-se com colegas de trabalho e outros grupos interessados e, em conjunto, traçaram um plano alternativo, que pudesse acomodar a tecnologia e os empregos. Moldando os usos e valores da tecnologia ao invés de serem moldados por ela, os trabalhadores fizeram seus conhecimentos práticos protagonistas no desenvolvimento de tecnologias que efetivamente melhorassem o ambiente de trabalho sem que os tornassem dispensáveis (MUNN, 2022MUNN, Luke. Automation is a myth. Stanford, California: Stanford University Press, 2022., p. 126, tradução nossa).

Recentemente, Munn condensou e atualizou os princípios da lista de Cooley, chegando a dez princípios-chave para uma automação socialmente útil:

1. Trabalho automatizado, desde a produção até o uso e reparo de um produto deve ser não-alienante. 2. Deve ser defendido um design simples, seguro e robusto ao invés de sistemas frágeis e complexos. 3. Tecnologias automatizadas devem ser visíveis e compreensíveis para os trabalhadores, com sistemas controlados por seres humanos ao invés do contrário. 4. A automação deve ter como objetivo minimizar o desperdício e economizar energia e materiais. 5. A automação deve apoiar processos e produtos ecologicamente desejáveis e sustentáveis, desde a fabricação até o uso final, reparo e descarte. 6. A automação deve ajudar e libertar os seres humanos ao invés de forçá-los, controlá-los ou danificá-los física ou mentalmente. 7. A automação deve ajudar as minorias, grupos desfavorecidos e aqueles materialmente e de outra forma carentes. 8. A automação deve fomentar a cooperação entre produtores e consumidores, forjar conexões entre estados-nação e permitir relações não exploratórias entre o mundo desenvolvido e o em desenvolvimento. 9. Processos e produção automatizados devem ser considerados como parte da cultura, refletindo os traços culturais, históricos, entre outros de quem os emprega. 10. A automação não deve se preocupar apenas com a produção, mas com a reprodução de conhecimento e competência (2022, p. 127 - 128, tradução nossa).

Outra hipótese que tem sido debatida diz respeito a uma nova sistemática de seguridade social que, baseada em uma renda básica universal custeada por uma tributação específica pelo uso de ferramentas de automação, poderia substituir os sistemas ancorados predominantemente em relações formais de emprego (FORNASIER, 2021FORNASIER, Mateus de Oliveira. Artificial intelligence and labor: ethical, legal and socioeconomic issues. Revista da Faculdade Mineira de Direito. v. 24, n. 47, Belo Horizonte, jun/2021. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/23491. Acesso em: 23 de setembro de 2022.
http://periodicos.pucminas.br/index.php/...
, p. 396).

O fato de outros caminhos existirem, contudo, nem de longe significa que serão percorridos, já que não se vislumbra um interesse das classes dominantes nesse sentido, o que não desqualifica, antes pelo contrário, a oposição, as críticas e, sobretudo, a resistência a esses processos. Ainda que extremamente difíceis de serem alcançadas, existem alternativas e, por este motivo, o futuro da automação não pode ser encarado como uma predeterminação fatalística paralisante.

Conclusão

Tem sido lugar-comum aludir os novos desafios que os avanços tecnológicos apresentam desde as últimas décadas. As potencialidades e o alcance dessas transformações já não causam surpresa, e talvez por isso mesmo a própria incerteza que geram tenha sido normalizada. Sabe-se das perturbações que esses processos implicam aos mais diversos domínios, como o social, o econômico, o político e o jurídico, abrangendo, na verdade, a totalidade da existência humana.

Uma das dinâmicas tecnológicas que coaduna múltiplas dessas áreas é a automação, cuja intensificação é justificada pelo progresso econômico em contrapartida ao prejuízo social da eliminação de postos de trabalho humano. Diante disso, o presente texto propôs-se a investigar como garantir o direito social ao trabalho frente às inserções tecnológicas que substituem a mão de obra humana?

Para tanto, num primeiro momento, perquiriu-se os discursos de imunização tecnológica, analisando algumas formas de inserção da tecnologia e seu papel na atualidade para contrapor os discursos amplamente disseminados que lhe blindam de oposições, seja por enaltecerem inadvertidamente apenas os benefícios dessa inserção ou por criarem uma falsa ideia de neutralidade quanto aos seus instrumentos e estratégias. Daí a urgência da articulação de um pensamento crítico com relação a esses elementos que é destacada desde a primeira seção do texto.

Identificou-se uma retórica discursiva impermeabilizadora quanto aos avanços tecnológicos que lhes atrela a uma perspectiva unilateralmente positiva de progresso e ampliação de possibilidades para todos, mas que desconsidera, por exemplo, as desigualdades, exclusões e violações de direitos fundamentais que a tecnologia também tem o potencial de expandir e sofisticar.

Na contramão dessa via acrítica, buscou-se, a partir de um recorte específico quanto à automação e consequentes impactos ao direito social ao trabalho, elaborar um conjunto de argumentos e reflexões que pudessem desvelar os aspectos deliberadamente ocultados disso que se chama de avanço. Nesse sentido, o segundo tópico do artigo debruçou-se sobre a proteção constitucional ao direito social ao trabalho e o custo das tecnologias de automação.

Existe uma expectativa de automação atrelada a diversos mitos que foram sendo descontruídos ao longo do texto. Ainda que a automação total possa estar distante de se concretizar, já é possível constatar a supressão de postos de trabalho, não sendo exagerado estimar milhões de empregos extintos nos próximos anos. Além disso, os processos em curso também têm acentuado a precarização, convertendo o labor humano em uma prática opressiva e alienante, contrária a todas as previsões constitucionais.

Aliás, os fundamentos constitucionais parecem estar sendo sistematicamente ignorados nessas projeções de futuro, como se as atividades empresariais e o desenvolvimento e aplicação de tecnologias operassem em uma ordem jurídica à parte. A própria Constituição aponta caminhos para a conciliação possível entre a tecnologia e a proteção da dignidade da pessoa humana que se vê encurralada pela privação de condições adequadas de exercício do direito ao trabalho.

Com tudo isso conclui-se que os custos da tecnologia, sobretudo aplicada à automação, embora encobertos por uma potente retórica discursiva neoliberal, não são exatamente ocultos, são palpáveis, visíveis em carne e osso porquanto se materializam nas vidas dos trabalhadores e das trabalhadoras, em indivíduos que não são sujeitos universais abstratos, são homens, mulheres, imigrantes, pessoas negras, pobres, reais, aos quais é assegurada uma proteção constitucional igualmente concreta, e cujo desprezo não pode ser jamais admitido.

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  • 1
    Dada a sua forma de operação, que é replicada por inúmeras outras empresas que também atuam intermediando a relação entre consumidores e serviços por meio de tecnologias, deriva o termo “uberização”, que hoje corresponde às mais variadas práticas de desregulamentação e precarização do trabalho. O tema é de extrema relevância e atualidade, já que esse modelo de negócio tem ganhado cada vez mais espaço, gerando lucros astronômicos para os investidores, em contrapartida aos prejuízos para consumidores, trabalhadores e cidades (SLEE, 2017SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017., p. 22). Embora se reconheça a imbricação direta entre as temáticas da precarização e da automação, o foco do presente texto é a eliminação de postos de trabalho por conta do emprego de tecnologias de automação, motivo pelo qual, inclusive considerando os limites de uma abordagem como esta, não serão aprofundadas as essenciais especificidades do tema “uberização”.
  • 2
    Dentre os fundamentos decisórios, os Ministros destacam que a ampla desregulamentação praticada por esses novos sistemas de organização do trabalho favorece a deterioração do trabalho humano e acentua a desigualdade no poder de negociação das partes, além de uma série de outros prejuízos ao trabalhador, que vão desde a ausência de regras de proteção à saúde e contra acidentes ou doenças profissionais até as exclusões de direitos trabalhistas e previdenciários. Impõe-se considerar, contudo, que a despeito do argumento empresarial de que suas sistemáticas são tão tecnológicas e disruptivas que não se enquadram na legislação, o Direito brasileiro presume (presunção relativa) o vínculo empregatício jurídico quando presentes determinadas condições. “Em consequência, possuem caráter manifestamente excetivo fórmulas alternativas de prestação de serviços a alguém, por pessoas naturais, como, ilustrativamente, contratos de estágio, vínculos autônomos ou eventuais, relações cooperativadas e as fórmulas intituladas de ‘pejotização’ e, mais recentemente, o trabalho de transporte de pessoas e coisas via arregimentação e organização realizadas por empresas de plataformas digitais. Em qualquer desses casos, estando presentes os elementos da relação de emprego, esta prepondera e deve ser reconhecida, uma vez que a verificação desses pressupostos, muitas vezes, demonstra que a adoção de tais práticas se dá, essencialmente, como meio de precarizar as relações empregatícias” (BRASIL, 2022).
  • 3
    “[...] em especial, se caracteriza pela composição de três aspectos, a saber: 1) a exponencialização do volume de dados produzidos e disponibilizados; 2) a sofisticação das técnicas de estocagem destes mesmos dados; e 3) a capacidade de tratamento destes dados, gerando dados sobre dados (os metadados), tudo isso transformado e quantificado (big data), produzindo um conhecimento algorítmico funcional-utilitarista, como nomeia É. Sadin”. (MORAIS, 2018MORAIS, José Luis Bolzan de. O Estado de Direito “confrontado” pela “revolução da internet”! Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 13, n. 3, 2018..p. 891-892).
  • 4
    Insegurança que é propositalmente produzida para o governo das condutas no contexto neoliberal, ao que, baseado em Deleuze e Guattari, pode-se nomear de micropolítica da insegurança. “A insegurança do desempregado e do precário certamente não é a mesma do empregado de uma multinacional [...], porém existe um diferencial de medos que corre de um extremo ao outro do continuum. Como explicar, de outra forma, esse sentimento de insegurança generalizado (não só econômico) que reina em uma sociedade que, no entanto, nunca foi tão ‘protegida’? Da gestão diferencial dessas desigualdades se destacam medos diferencias que atingem todos os segmentos da sociedade, sem distinção, e que constituem o fundamento ‘afetivo’ desse governo das condutas pela desigualdade” (LAZZARATO, 2011LAZZARATO, Maurizio. O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal. São Carlos: EdUFSCar, 2011., p. 28).
  • 5
    Um diferencial deste estudo em relação aos demais são as estimativas feitas quanto ao impacto da automação nas especificidades dos municípios e também quanto a grupos sociais mais vulneráveis. O detalhamento dessas particularidades, contudo, a despeito da sua importância, desborda dos parâmetros metodológicos que circunscrevem esta investigação.
  • 6
    Os próprios consumidores são afetados diretamente por essa dinâmica, já que ferramentas tecnológicas também são estrategicamente empregadas para lhes transferir, de forma não remunerada, o trabalho que antes era desempenhado por um trabalhador assalariado, bastando, para tanto, observar caixas de autoatendimento, serviços de compra online, emissão de bilhetes aéreos, entre outras inúmeras possibilidades que ao mesmo tempo que eliminam postos de trabalho, atribuem a atividade ao consumidor (ANTUNES, 2020ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 51 - 52).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2022
  • Aceito
    08 Dez 2022
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