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“Ainda dói tudo na minha memória”: a urgência do campo dos Direitos Raciais para o alvorecer da contracolonização

“Everything still hurts in my memory”: the urgency of the racial rights field for the dawn of counter-colonization

Resumo

Este artigo tem por objetivo evidenciar a necessidade do reconhecimento do campo dos Direitos Raciais, para reflexão e elucidação da complexidade das relações étnico-raciais no Brasil, com fito na superação das desigualdades e discriminações estruturais da sociedade e do direito, conformadas pela modernidade/colonialidade. Através da análise do discurso presente em narrativas que remetem a casos de suicídio, argumenta-se que a negação e silenciamento da diversidade étnica, cultural e epistêmica das identidades contracolonizadoras implicam em sua condenação ao sofrimento físico e psíquico como condição existencial e que, ao serem ignoradas pela episteme jurídica dominante, ratificam o Direito como instrumento de criação e manutenção de privilégios e exclusões. Conclui-se quanto à necessidade de ruptura da univocidade do direito, que performa ao mesmo tempo o racismo epistêmico e o racismo jurídico, por meio do campo dos Direitos Raciais, voltado às investigações atinentes às condições sócio-histórico-culturais que relegam individualidades fecundas à sub-humanidade jurídica, às investigações relativas às dimensões de humanidade que lhes são estruturalmente negadas, e à revisão e proposição normativa decolonial.

Palavras-chave:
Direito à memória; Decolonialidade; Saúde mental; Direitos humanos; Racismo jurídico

Abstract

This article aims to highlight the need for the structuring and recognition of the field of Racial Rights, which reflects for reflection and elucidation of the complexity of ethnic-racial relations in Brazil, with a view to overcoming the inequalities and structural discriminations of society and the law, conformed by modernity/coloniality. Through the analysis of narratives that refer to suicide cases, it is argued that the denial and silencing of the ethnic, cultural and epistemic diversity of subordinate identities condemns them to physical and psychological suffering as an existential condition and that, when ignored by the dominant legal episteme, enunciate the Law as an instrument for the creation and maintenance of privileges and exclusions. The conclusion is that there is a need to break the univocity of law that performs at the same time legal racism and epistemic racism, through the field of Racial Rights, aimed at investigations related to the conditions of re-culture of soricondais-historical humanity, to related investigations to the dimensions of humanity that are structurally denied to them, and to the revision and normative proposition of decolonialism.

Keywords:
Right to memory; Decoloniality; Mental health; Right human; Racism; Legal racism

1 INTRODUÇÃO

Há cerca de uma década iniciei a leitura mais angustiante que já experimentei1 1 A obra foi indicada pela Profa. Ivana Teixeira Figueiredo Gund, minha professora de Literatura durante o Ensino Médio, a quem manifesto minha admiração e profundo agradecimento por, tão cedo, ampliar meus horizontes e nutrir meus sonhos. . Essa Terra (TORRES, 2008TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.) me devorava a ponto tal que a lia em doses pequenas, páginas por vez para que fosse suportável. A narrativa literária remete à saga dos retirantes nordestinos que, em busca de melhores condições de vida, migravam - especialmente ao longo do Século XX - para o Sudeste brasileiro. O enredo tem como núcleo central o retorno e suicídio de Nelo, símbolo da esperança, que sucumbe ante à busca desatinada por caracteres inalcançáveis a “pessoas como ele”.

As palavras escritas por Antônio Torres, gravadas em mim, ressoam no repertório acadêmico apreendido ao longo dos anos e que aduzem acerca de uma modernidade que, a despeito de todas as transformações organizacionais, políticas e econômicas, massificou uma forma de existência antes não experienciada pela natureza humana. As percepções dos indivíduos e a sua relação com o meio e com os seus pares, determinadas pela colonização, pelo escravismo, pela razão do capital, pela expropriação da força de trabalho, pelo acúmulo de riquezas, implicaram em novas configurações da relação ser humano-natureza e na implementação de uma rede hierarquizada de violências e discriminações. Um fenômeno tão brutal quanto pandêmico, fundamentado e alimentado pelos sistemas de escravização e exploração dos corpos e controle identitário das populações originárias, criaria um ambiente favorável à destituição do sentido próprio da vida.

Essa Terra fere porque, de certo modo, fala sobre a minha existência particular, que existindo nesse mundo moderno, habito o Sul global - de muitas formas regionalizada e excluída. Ao prenunciar as subalternidades e as consequências cabais de um sofrimento crônico projetado em identidades duais, incompletas, que ao não se refletirem no ideal-padrão, caem no vazio, Nelo e Tontonhim falaram à adolescente sobre a sua própria (in)existência social. Hoje, aquele mesmo texto, ainda doloroso, ecoa em um cenário mais amplo que, lido pela perspectiva de autores como Grada Kilomba, Abdias Nascimento, W. E. B. Du Bois e outras/outros/outres, informa sobre a necessidade de romper-se com o silêncio do direito ante ao adoecimento individual e social causado pelas circunstâncias da vida moderna e que, portanto, atenta contra a concepção elementar dos Direitos Humanos.

O complexo debate desafia a dualidade e univocidade do pensamento ensinado nos bancos das academias, especialmente jurídicas, pelos eruditos e, exatamente por isso - exercício ainda incipiente na ciência do Direito - a busca dos sentidos de ser, é caminho decolonial escolhido para compreendê-lo, a partir da análise do discurso presente em narrativas referentes a suicídios reais e verossímeis. Trata-se de desnudar a face ignorada pela hegemonia2 2 Segundo a definição de Boaventura de Sousa Santos, “a hegemonia é um feixe de esquemas intelectuais e políticos que são vistos pela maioria das pessoas (mesmo por muitos dos que são negativamente afetados por ela) como fornecendo o entendimento natural ou único possível da vida social”, (SANTOS, 2014, p. 33). do Direito, que submete as existências de uma maioria pulsante e plural, às exigências de uma minoria que a domina - e oculta a origem do seu poder para manutenção dos seus próprios privilégios, ignorando os sofrimentos causados.

Este texto fala sobre a morte, real e simbólica, gradativa e paulatina que as condições modernas de vida - em seu variado espectro de exclusão - infligem às individualidades contracolonizadoras, subalternizadas na hierarquia social da modernidade. O desafio é elucidar à leitora e ao leitor, que a emergência de um campo jurídico voltado às idiossincrasias das relações étnico-raciais é urgente para a salvação das individualidades que são, figurativa e materialmente, diuturnamente assassinadas. Pois, dito isto, o aterrorizador silêncio do Direito ante ao etnocídio, epistemicídio, ecocídio, etc., não é, senão a legitimação das hegemonias que os alimentam; não é, senão o esvaziamento tácito dos Direitos Humanos e o reconhecimento dos direitos de um tipo de homem específico, identificado ao homem burguês.

A inquietude provocada pela obra literária Essa Terra, escrita pelo baiano Antônio Torres, será acompanhada pelos relatos Sobre o suicídio, de Karl Marx, A solidão trazida por Gabrielle Balazs na coleção organizada por Pierre Bourdieu sobre A miséria do mundo, e pela obra de W. E. B. Du Bois, As almas do povo negro, especialmente o Capítulo XIII que trata sobre O retorno de João. O que genericamente nos informam esses autores é que muitas são as maneiras de morrer, o que, anacronicamente, confirmam é sobre a realidade palpável do adoecimento causado e/alimentado pela sociabilidade moderna.

Seria este um ensaio realmente jurídico? - se esta pergunta surge, torna-se ela mesma o melhor argumento a ratificar a identidade jurídica aqui posta a serviço da revisitação das dores da memória. Afinal, por que não o seria? A narrativa mais que verossímil de Antônio Torres desafia: “Tu vai ser gente na vida, meu fio” (TORRES, 2008TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008., p. 37), o que se pergunta é de que estrato é feito esse ser “gente”? E, ainda, quem são aqueles que, na tentativa de ser, elucidam que não são? Seriam essas não-gentes acolhidas pelo mandatário jurídico que outrora declarou que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 1988, Art. 5º)? A fim de propiciar a melhor apresentação possível sobre as indagações levantadas, de maneira a evidenciar a necessidade do reconhecimento do campo dos Direitos Raciais, o texto parte da análise de discursos que retomam casos de suicídio, reais e fictos, por meio dos quais se apresenta, concretamente, os danos gerados às subjetividades insertas no contexto da modernidade/colonialidade.

A articulação das seções visa delinear, então, a relação entre a monoepisteme da modernidade jurídica e o desfazimento identitário - ou, dos sentidos do ser -especialmente, para os sujeitos que ocupam o lugar não hegemônico. Argumenta-se que há, para as identidades subalternizadas, a condenação a um sofrimento intrínseco que é legitimado pelo direito paripassu à sua omissão às condições estruturais da sociedade moderna. Isso fere, num ponto de vista mais amplo, a capacidade de autodeterminação dos sujeitos, bem como a realização da sua dignidade. Revelar estes argumentos aduz ao fracasso de um direito que ignore a sua colonialidade e não enfrente as condições estruturais da sua formação.

É nesse sentido que denunciar as dores do silêncio permite relacionar a monoepisteme da modernidade jurídica às lacunas identitárias que enuncia a incapacidade do sistema jurídico em reconhecer a humanidade das identidades subalternizadas conforme a cosmovisão destas. A mensagem transmitida pelo silêncio do direito é a afirmação da sua parcialidade, e da sua performance hegemônica. Na segunda seção, a abordagem sobre a desconfiguração da vida, em seu sentido teórico e prático, alcança, além da identidade negra, narrativas sobre o ser mulher e sobre a senilidade, evocando que o sofrimento como condição existencial - as dores do ser - é consolidado na medida em que a ciência jurídica nega as condições socioestruturais das identidades subalternizadas, aprofundando os complexos depressivos na medida em que a culpa pelo sentir recai sobre o indivíduo alijado de seu contexto. A morte gerada pela invisibilização corrobora à morte física que, em última instância, se transubstancia em performance de subjetivação.

Nas seções finais, ao se revelar as dores da memória, argumenta-se que, ao passo em que o silenciamento é ferramenta de subalternização, o lembrar pressupõe-se o elemento radical para ruptura do processo de apagamento das identidades contracolonizadoras, outrora subalternizadas. E é nesse alvorecer da contracolonização que se subverte a latência transformadora dos direitos humanos em enfrentamento real e simbólico à homogeneização social capitaneada pelo Direito. Superar a colonialidade jurídica exige o desbravamento das condições socioestruturais da sua gênese, reconhecendo-se o campo dos Direitos Raciais como precursor contracolonizador, na medida em que se constitui e privilegia processos e perspectivas contra-hegemônicas, pluriepistêmicas e interseccionais.

2 SOBRE AS DORES DO SILÊNCIO

Em 2019, o rapper brasileiro Emicida3 3 Emicida é o nome artístico do cantor, compositor e produtor Leandro Roque de Oliveira. lançou o clipe da canção AmarELO4 4 Clipe disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PTDgP3BDPIU. , iniciando-o com a reprodução de uma mensagem enviada a ele por um amigo, num relato que alcança tabus relacionados à vida e à morte cotidianas. Declarando “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro5 5 AmarELO conta com um sample, trechos, da canção Sujeito de Sorte, de autoria e na voz de Belchior. ”, a obra audiovisual desafia imagens de controle, desnuda o contexto social e histórico a partir do qual o enunciador fala e conduz expectadores a uma reflexão sobre as condições psicossociais das juventudes subalternizadas:

Eu não me sinto realizado, tá ligado, como ser humano, tá ligado, como filho, ainda não consigo me encaixar, tá ligado, nesse plano aqui, tio. Minha cobrança espiritual é muito louca dentro de mim, tá ligado. Às vezes eu me sinto muito mal, mano. Eu sinto medo, tipo de ter feito escolhas erradas ao ponto de não poder mudar mais, tá ligado. Mas às vezes eu fico pensando que essa porra tá na minha cabeça, tá ligado mano. E, tipo, é foda irmão, tipo uma doença essa porra. Parece que essas porra de remédio não adianta merda nenhuma, mais de um ano, quase dois ano, tomando essa porra. Sei lá, mano, só precisava falar alguma coisa pra alguém, mano. É isso, tio. (EMICIDA, AmarELO, 2021a)

O pedido de socorro compartilhado por Emicida denota um estado de sofrimento psíquico que, embora se trate de forma evidente de um relato individual, remete a um âmbito mais amplo: o orador expressa o sentimento de inadequação em relação ao contexto que o habita e afirma não se sentir realizado como “ser humano”. Tal percepção se consubstancia na reprodução sistêmica de práticas racistas que “está na organização política, econômica e jurídica da sociedade”, de maneira que “O racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e jurídica” (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., p. 33), afetando o ser de forma estrutural e multidimensional.

A crítica social proposta por Emicida é expressa em outros trechos da canção: “Sem o torro, nossa vida não vale/ A de um cachorro triste/ Hoje cedo não era um hit/ Era um pedido de socorro” (EMICIDA, AmarELO, 2021a). Ao ser transformada em hit, a fala do primeiro orador evidencia a plasticidade do silêncio, que pode se dar material e simbolicamente, como instrumento de violência ou, num continuísmo de violências, transubstanciado como ferramenta individual de proteção. Emicida se refere a “uma presença aérea/ Onde a última tendência é depressão/ Com aparência de férias”, uma performance do sujeito abstraído de si, cujas experiências socialmente silenciadas são reflexos do controle político instrumentalizado para ocultação dos fatos sociais e históricos (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., p. 35) a partir das experiências dos atores sociais oprimidos.

A antropóloga Veena Das, argumenta que o não-silêncio resulta em perigo “para a autoridade dos poderosos, da humilhação de não saber como controlar as palavras” (1999, p. 34). A verbosidade como ato de resistência ratifica, então, a face do silêncio como performance de violência política. O primeiro orador, ao falar sobre a sua experiência e dor, desafia o contexto que as sobrederterminam, pois as incertezas expressadas ultrapassam os limites do seu próprio repertório e a tomada da palavra alça o silenciado a um protagonismo que coloca em xeque o contexto que o minimiza e limita as potencialidades da sua existência. A narrativa, existindo no mundo das ideias e dos fatos, retira o seu autor da singularidade, tornando-o elementar numa coletividade plural que compartilha, de diferentes maneiras, desse contexto de opressão e se vê representada nas palavras que já são impassíveis de controle.

Por detrás do relato, assim como da narrativa de Essa Terra, está o sistema-mundo6 6 Utilizamos a expressão “sistema-mundo” em adesão à crítica esboçada por Ramón Grosfoguel: “O conceito de ‘sistema-mundo’ é uma alternativa ao conceito de ‘sociedade’. Ele é utilizado para romper com a ideia moderna que reduz ‘sociedade’ às fronteiras geográficas e jurídico-políticas de um ‘Estado-nação’. Em um sentido comum eurocêntrico moderno, o conceito de ‘sociedade’ é usado como um equivalente a ‘Estado-nação’ e, por conseguinte, existem tantas sociedades quanto Estados-nações no mundo. Esse olhar eurocêntrico moderno não somente reduz a noção de Estado a ‘Estado-nação’, como também reduz sociedade a essa forma de autoridade política muito particular no mundo moderno/colonial. Já sabemos que a pretensão de um Estado de que sua identidade corresponda à identidade da população dentro de suas fronteiras é uma ficção eurocêntrica do século XIX.” (GROSFÓGUEL, 2019, p. 55). moderno/colonial, fundado e orientado a partir da branquitude, do racismo e de uma série de discriminações que definem a sociedade moderna como patriarcalista, capitalista, hétero-cis-normativa, cristocêntrica, e que relega as individualidades dissonantes dos parâmetros eleitos de normalidade à marginalização e exclusão. Disso resulta um sistema institucional e estruturante que indiscutivelmente fere corpos, mas a face evidenciada em AmarELO refere-se a uma espécie de danos que são intangíveis, embora tão letais quanto oitenta tiros7 7 Ver mais em: GELEDÉS. 80 Tiros: Delegado diz que ‘tudo indica’ que Exército fuzilou carro de família por engano no Rio. Disponível em: https://www.geledes.org.br/80-tiros-delegado-diz-que-tudo-indica-que-exercito-fuzilou-carro-de-familia-por-engano-no-rio/. Acesso em: 30 mar. 2021a. .

A partir da memória dolorida e latente, cantada e visualmente representada, Emicida (2021a) corrobora a questão inicial sobre o caráter restritivo da concepção jurídica moderna, haja vista que a sua omissão quanto às condições materiais e psíquicas de desenvolvimento da vida eivam a própria doutrina dos Direitos Humanos do vício da seletividade dos sujeitos aos quais se destina. Dito de outro modo, “A hegemonia global dos Direitos Humanos como linguagem de dignidade humana convive com a perturbadora constatação de que a maioria da população mundial não é sujeito de Direitos Humanos, mas objeto dos seus discursos” (SANTOS, MARTINS, 2019SANTOS, Boaventura de Sousa, MARTINS, Bruno Sena. Introdução: o pluriverso dos Direitos Humanos. In: SANTOS, B. S.; MARTINS, B. S. (Org.). O pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. pp. 13-36., p. 16). Ainda,

Essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais têm gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo. (GROSFÓGUEL, 2016, p. 25)

Pode-se dizer, então, que os Direitos Humanos como linguagem hegemônica “define e delimita um espaço de verdadeira humanidade e o separa de formas menores dessa humanidade”, é, portanto, também, “linhas de condenação, o que significa que se trata de um erro categórico tentar combater a colonialidade com a inclusão” (MALDONADO-TORRES, 2019MALDONADO-TORRES, Nelson. Da colonialidade dos Direitos Humanos. In: SANTOS, B. S., MARTINS, B. S. (Org.). O pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 87-110., p. 93-96). A ruptura com esse sistema deletério não pode ser alcançado, portanto, por intermédio de mecanismos que visem aceitar, submeter as individualidades a novas performances de aceitabilidade da sua existência, mas da reestruturação do próprio sistema para que uma nova concepção de humanidade não seletiva seja possível. Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins consideram que

Imaginar os direitos humanos como parte de um encontro de linguagens de dignidade implicaria partir de um profundo conhecimento das vozes (gritos e murmúrios), das lutas (resistências e levantes), das memórias (traumáticas e exaltantes) e dos corpos (feridos e insubmissos) daqueles e daquelas que foram subalternizados pelas hierarquias modernas baseadas no capitalismo, no colonialismo e no patriarcado. (SANTOS, MARTINS, 2019SANTOS, Boaventura de Sousa, MARTINS, Bruno Sena. Introdução: o pluriverso dos Direitos Humanos. In: SANTOS, B. S.; MARTINS, B. S. (Org.). O pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. pp. 13-36., p. 15)

Entretanto, reiteramos a necessidade de ruptura com esse sistema de condenação - que só então poderá ser decolonizado - o que perpassa pela reestruturação da concepção jurídica desde o sujeito. “A existência de diversidade epistêmica garante o potencial para os esforços de decolonização e de ‘despatrialização’ que não mais estão centrados nas epistemologias e visões de mundo eurocêntricas” (GROSFÓGUEL, 2016, p. 44), então a questão defendida é que tal investigação só encontraria meios e viabilidade para desenvolver-se em um campo cuja vocação fosse atenta e sensível à percepção dos mundos paralelos que se desenvolvem à sombra da modernidade/colonialidade, um campo pluriepistêmico por natureza. Falamos do reconhecimento da emergência do campo dos Direitos Raciais, cujo escopo deve ir de encontro, portanto, à lógica hegemônica dos Direitos Humanos que normaliza que “Tanto a identificação da violência como a determinação do sofrimento são seletivas e desempenham o seu papel na manutenção da ordem” (MALDONADO-TORRES, 2019MALDONADO-TORRES, Nelson. Da colonialidade dos Direitos Humanos. In: SANTOS, B. S., MARTINS, B. S. (Org.). O pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 87-110., p. 107), minimizando o sofrimento dos colonizados, em vista do que parece ser sempre mais angustiante e urgente sofrimento dos colonizadores. Nas palavras de Abdias Nascimento:

De uma perspectiva do negro, entretanto, esses scholars ou cientistas sociais representam um ponto de vista exógeno ou, quando não estranhos à nossa realidade sociocultural, colocam-se como devotos de uma posição estática e imobilista, cuja verbalização acadêmica somente agencia interesses eurocentristas. (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019., p. 71)

A condenação a que o sistema-mundo da modernidade/colonialidade - onde está a gênese dos Direitos Humanos - submete as identidades subalternizadas dá-se com a imposição do olhar do outro sobre existências que sequer é capaz de compreender, limitando as possibilidades do ser. W.E.B. Du Bois descreve como “Uma sensação peculiar, essa dupla-consciência, esse sentido de sempre olhar a si próprio através dos olhos de outros, de medir um sentimento através da métrica de um mundo que o contempla com divertido desprezo e pena” (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 39). Sendo negro e americano, Du Bois se refere a uma divisão identitária permanente, pois as duas identidades parecem ser inconciliáveis, sem que seja possível ser ambos sem frustrar a um e ser subalternizado a outro. Emicida ratifica esta mesma condenação:

Vovó diz, odiar o diabo é boi (Mó boi)
Difícil é viver no inferno, e vem à tona
Que o mesmo império canalha que não te leva a sério
Interfere pra te levar à lona
Revide!
(EMICIDA, AmarELO, 2021a)

O império é polimorfo e opera omissiva e comissivamente: silencia e exclui, mas também instaura uma normativa social que persegue, fere e mata os silenciados e excluídos, as identidades contracolonizadoras. O Mestre Antônio Bispo explica que:

Por colonização, compreendemos todos os processos etnocêntricos de invasão, expropriação, etnocídio, subjugação e até de substituição de uma cultura pela outra, independentemente do território geográfico. E chamamos contracolonização todos os processos de resistência e luta em defesa dos territórios dos povos contracolonizadores, seus símbolos, significações e modos de vida. Tanto os povos que vieram da África como os originários das Américas estão assim sob as mesmas condições, isto é, independentemente de suas especificidades no processo de escravização, podem ser considerados contracolonizadores. Em contrapartida, os povos que vieram da Europa, independentemente de serem senhores ou colonos, são colonizadores. (SANTOS, 2022, on-line)

A contracolonização trata-se, portanto, da oposição a uma espécie de exclusão que não está lá fora, mas se constitui como condição existencial, seja nas relações interpessoais, no trabalho ou na Academia. Sobre a realidade em observação, Du Bois relata que “Não existe ponto de encontro da vida comunal e intelectual entre brancos e negros: não compartilham seus sentimentos” (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 167). O silêncio imposto não apenas impede ou dificulta a alçada de pessoas negras às posições hierárquicas superiores ou de educadores e educandos, mas nega-lhes a sua episteme, nega a pluralidade das formas de ver, pensar e sentir o mundo. De maneira que a sua potência contracolonizadora e, portanto, hábil à decolonizar, está na sua (r)existência.

Ser condenado e estar no inferno é a situação das identidades contra-hegemônicas apartadas do deus uno e personificado no monarca, que foi superado por uma ontologia hábil a atender aos anseios da classe social moderna por excelência, a burguesia, que não se torna o próprio deus, mas o elege se curvando à política capitalista. Nesse cenário, o estado real de não se sentir realizado, não conseguir se encaixar, advém da ficção criada pelo sistema-mundo moderno/colonial para dominar, pois - não importa o quanto se tente - “vencer na vida” é um paradigma inalcançável, haja vista a incompletude das identidades contra-hegemônicas conforme a perspectiva dominante.

A opressão é o que alimenta e sustém a dominação, (NASCIMENTO, 1978NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., pp. 93-94). Du Bois desenvolve seu questionamento sobre como ser negro e ser americano, “é a história desse embate, o desejo de conseguir amadurecida autoconsciência, amalgamar sua dualidade em um melhor de mais verdadeiro ser” (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 39), uma busca paradigmática e inalcançável, de ser melhor, tornar-se gente, vencer na vida - não porque lhe careceria capacidade para alcançar esse status, mas porque se trata de uma linha ficcional que separa sujeitos de Direitos Humanos e os objetos de Direitos Humanos.

Não à toa, o pedido de socorro com o qual Emicida inicia a sua canção ecoa sonoramente: “Eu sinto medo, tipo de ter feito escolhas erradas ao ponto de não poder mudar mais, tá ligado. Mas às vezes eu fico pensando que essa porra tá na minha cabeça, tá ligado mano. E, tipo, é foda irmão, tipo uma doença essa porra” (EMICIDA, AmarELO, 2021a). A denúncia da contemplativa hermenêutica moderna do sofrimento manipula a empatia, condenando-a a mero produto de consumo de massas, quando limitada à perspectiva hegemônica. Mas a arte é capaz de levar além, desconstruir o cenário falsamente harmonizado e incomodar às/os expectadores mais atentas/os: o que dizer para aquele interlocutor que teme ter feito escolhas erradas na vida a ponto de não poder mudar mais? Se é que essas escolhas, de fato, algum dia lhes foram, estruturalmente, possíveis. A questão que se levanta é que ao negar as idiossincrasias da sua existência determinadas pelo sistema, o instituto dos Direitos Humanos se esconde atrás da linha de cor que o protege (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.), argumentando soluções reativas sem questionar a sua própria gênese que, por ser racista, capitalista e patriarcal, retroalimenta a modernidade/colonialidade.

O processo contínuo de (auto)culpabilização dos oprimidos não apenas funciona como uma distorção das causas reais do sofrimento - físico e psíquico - como também instala a necessidade latente de buscar-se um algo-além que aliena o sujeito da sua própria história. “Ser gente na vida” (TORRES, 2008TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008., p. 37) e “vencer na vida” (EMICIDA, 2021a) são narrativas de cunho utópico paralelas ao que o discurso jurídico prolata em “alcançar-se a dignidade humana”, menosprezando a problematização das condições histórico-culturais coletivas que sobredeterminam as trajetórias individuais. Para os habitantes do Junco (TORRES, 2008), buscar vencer na vida significava o esforço hercúleo de abdicar de suas raízes no interior da Bahia e aventurar-se em São Paulo, em busca de emprego, de melhores condições materiais de vida. O que alimentava a pequena cidade de esperança, diante das condições ambientais e político-institucionais de desamparo, era saber que um dos seus havia sido capaz, teve coragem, de habitar uma terra estranha e que certamente - acreditavam - retornaria com dinheiro, seria gente na vida.

O desfecho da história, com o suicídio da personagem, num sentimento indescritível de desolação, pois perdera a família, perdera as raízes, trabalhara sendo explorado e voltara sem dinheiro, afeta o seu seio social de origem, para o qual retornou para morrer. O Junco se vê obrigado, mediante a cena do enforcamento, a se despedir das próprias utopias, e nestas estava a sua dignidade não experenciada, mas ansiada, realizada de forma mediata quando, acreditou-se, um dos seus superara as condições estruturais a que estavam condenados. O ciclo de culpabilização, contudo, não se encerra aí, pois necessário é explicar de forma viável que a dignidade seria ainda possível... Então, entrecortando os capítulos não cronológicos, o sexto, composto por apenas uma frase como se levasse abruptamente a termo a própria angústia de Nelo e da/do leitora/leitor que o acompanha, explica: “- Foi feitiço - disse mamãe.” (TORRES, 2008TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008., p. 35). E uma nova narrativa se sobrepõe em continuidade à estrutura, silenciando-se a sua razão de ser.

Com Du Bois aprendemos e concordamos: “A questão do século vinte é o problema da linha da cor, a relação entre as raças de homens mais escuros e os mais claros” (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 47). E, ainda, acrescentamos, quando a ciência jurídica se silencia diante da violência psíquica que sofrem as identidades subalternizadas em função do contexto da modernidade/colonialidade que a sua omissão legitima, o direito se cria a partir da linha de cor que atende aos interesses da branquitude racista patriarcal capitalista cristocêntrica hetero-cis-normativa. A decolonização do direito implica, portanto, em ruptura, na cisão dos processos estruturantes que protraem e ignoram o sofrimento físico e psíquico dos silenciados (MALDONADO-TORRES, 2019MALDONADO-TORRES, Nelson. Da colonialidade dos Direitos Humanos. In: SANTOS, B. S., MARTINS, B. S. (Org.). O pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 87-110.. p. 105).

A realização da dignidade humana para as identidades contracolonizadoras somente poderá ser factível mediante um direito que se posicione frente ao processo de desconstituição identitária, de inviabilização do ser, contra o qual lutam diuturnamente as populações oprimidas pelo sistema moderno/colonial. No contexto do Junco, a personagem Pedro Infante se pergunta “Uma coisa eu não consigo entender. Por que aqui dá tanto enforcado?” (TORRES, 2008TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008., p. 43). De igual forma carece de compreensão o sentimento de orfandade, de sentir-se errado e culpado pelo estado atual de sofrimento, mediante a incompreensão do seu status quo determinado pela colonialidade. Em contraposição à legitimação do limbo socioidentitário, o reconhecimento e estruturação do campo dos Direitos Raciais, surge como esforço - ou reforço? - de “uma luta ético-política, epistémica e simbólica que pretende criar uma realidade de inter-relações humanas para além da palavra e do ‘Homem’” (MALDONADO-TORRES, 2019MALDONADO-TORRES, Nelson. Da colonialidade dos Direitos Humanos. In: SANTOS, B. S., MARTINS, B. S. (Org.). O pluriverso dos Direitos Humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 87-110., p. 98), que pretende romper com o silêncio que permeia a legitimação da ordem social da modernidade/colonialidade pelo Direito.

3 SOBRE AS DORES DO SER

Racismo, patriarcalismo, capitalismo, hétero-cis-normativismo, cristocentrismo são alguns dos paradigmas organizacionais da sociedade atual, impostos bélica e culturalmente às coletividades incluídas no contexto da modernidade/colonialidade. Em ensaio publicado originalmente em 1846, Karl Marx dialoga com o trabalho de Jacques Peuchet, ex-arquivista policial, e, ao analisar as relações e comportamentos humanos enraizados na sociedade da época a partir de inúmeros casos de suicídio (MARX, 2006MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006., p. 9-10), conclui que o suicídio é um dos sintomas da luta social geral (MARX, 2006, p. 29). As tragédias da vida humana estão, em consonância à observação do filósofo, imbrincadas às tragédias sociais geradas pela modernidade.

Os casos Sobre o suicídio (MARX, 2006MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006.) são apresentados a partir do caráter deletério com que as instituições modernas operam sobre a vida social na Europa do século XIX, especialmente no que tange às relações privadas de propriedade e às relações familiares. A crítica marxiana alcança a sociedade burguesa e como esta se autoflagela. Ao longo das narrativas, atenção especial é dedicada às histórias de três mulheres que são levadas ao suicídio em função da opressão patriarcal e causada pelos padrões morais/religiosos organizadores da sociedade à época. Aos olhos de Marx, a morte parece tratar-se de exemplo típico do

poder patriarcal absoluto dos homens sobre suas esposas e de sua atitude de possuidores zelosos de uma propriedade privada. Nas observações indignadas de Marx, o marido tirânico é comparado a um senhor de escravos. Graças às condições sociais que ignoram o amor verdadeiro e livre, e à natureza patriarcal tanto do Código Civil como das leis de propriedade, o macho opressor pode tratar sua mulher como um avarento trata o cofre de ouro a sete chaves: como uma coisa, “uma parte do seu inventário”. (LÖWY, 2006LÖWY, Michael. Um Marx insólito. In: MARX, K. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 13-19., p. 18-19.)

A crítica ao direito é exposta na medida em que este é instrumentalizado para a criação e manutenção dos privilégios do Homem como espécime dominante da natureza e, como parte dela, das relações sociais na sociedade burguesa. Para definir o ambiente adoecedor daquelas vítimas, Marx cita a leviandade das instituições que “dispõem do sangue e da vida dos povos, a forma como distribuem a justiça civilizada com um rico material de prisões, de castigos e de instrumentos de suplício para a sanção de seus desígnios incertos” (MARX, 2006MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006., p. 26-27), trata-se da seletividade intrínseca à modernidade que instala paradigmas discriminatórios para a dignidade humana.

A vinculação sobreposta das opressões propicia que esse mesmo sistema-mundo opere ainda em outros âmbitos de destruição dos sujeitos, cujo valor passa a ser condicionado, no contexto capitalista, à sua capacidade produtiva. Ecléa Bosi elucida que “cada sociedade vive de forma diferente o declínio biológico do homem” e que “a sociedade industrial é maléfica para a velhice” prematuramente iniciada “com a degradação da pessoa que trabalha” (BOSI, 1994BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994., p. 77-80). A velhice, analisada enquanto uma categoria social, denuncia que a modernidade/colonialidade extrai do senil a possibilidade de sua realização etária de maneira digna, noutra demonstração da seletividade imposta à dignidade humana.

A noção que temos de velhice decorre mais da luta de classes que do conflito de gerações. É preciso mudar a vida, recriar tudo, refazer as relações humanas doentes para que os velhos trabalhadores não sejam uma espécie estrangeira. Para que nenhuma forma de humanidade seja excluída da humanidade é que as minorias têm lutado, que os grupos discriminados têm reagido. (BOSI, 1994BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994., p. 81)

A senilidade como uma identidade excluída é exemplificada no relato de Louise B. (BALAZS, 1997BALAZS, Gabrielle. A solidão. In: BOURDIEU, P. (Org.) A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. p. 683-691.) que fala sobre a sua solidão. Com oitenta anos, Louise, se viu na condição de abandono pelas limitações trazidas pela idade, depois de gozar de uma vida profissional ativa como assistente social. É de tal forma significativa a sua identidade profissional na composição do seu eu que, mesmo inativa, a sua existência e a sua dignidade parecem ser irrealizáveis sem aquela: “Ela fala sem cessar desse trabalho para reafirmar uma identidade profissional e social que todo mundo esqueceu, não apenas no hospital, onde ela se sente como um trambolho atravancando o espaço, mas também no seu apartamento e para sua própria família” (BALAZS, 1997, p. 684). Enaltecendo aqueles que ainda a visitam, o que Louise deixa escapar nas entrelinhas é que o fim da sua vida já está determinado por sua improdutividade e impossibilidade do autocuidado - aspectos que, do ponto de vista afetivo, nem mesmo pelo capital poderiam ser superados.

Essas trajetórias exemplificam milhões de outras onde a vida e a dignidade são determinantemente afetadas pelos termos da modernidade/colonialidade. Os indivíduos, mesmo os que se instalam do outro lado da linha colonial, que habitam o Norte global, sofrem com os influxos do seu próprio contexto, apesar de estarem representados e protegidos, paradoxalmente, por aquela mesma concepção de vida. O Sul está presente e se instala, também, no Norte. Esses relatos demonstram que esse sistema-mundo implica em sofrimento psíquico condicionado pela modernidade/colonialidade que afeta a todas, todos e todes inclusos no seu espectro de poder, inclusive os sujeitos lidos à primeira vista como privilegiados, mas que se enquadrem nas identidades expurgadas pela colonialidade.

No entanto, os sujeitos do lado de cá da linha colonial/de cor, os que habitam o Sul, os invadidos e assassinados, são atingidos pela modernidade/colonialidade numa catálise provocada pela sua desconstituição identitária. Não são apenas sujeitos que sofrem em função do contexto, são sujeitos que sofrem porque lhes é impedido o exercício de ser, porque assimilam as consequências causadas pelas violências históricas que os desumanizam do ponto de vista intrínseco e extrínseco. Nesse ensejo, para as identidades subalternizadas pelos paradigmas da modernidade/colonialidade, o sofrimento não é uma consequência circunstancial, mas um fator constitutivo da sua existência.

O que não se pode ignorar - como historicamente se tem ignorado, especialmente pela ciência jurídica - é que as condições sociais estruturantes das identidades subalternizadas aprofundam os complexos depressivos, alimentados pelos sentimentos de inadequação, afetados pelas estratégias de dominação dos corpos e das subjetividades. Tais sentimentos, constitutivos da identidade dos sujeitos contracolonizadores, agravados pelas condições sociais e materiais de vida, levam ao extremo as próprias possibilidades de existência subjetiva, logo, pensar na consecução de uma dignidade humana, nesse contexto, não pode prescindir do debate sobre o racismo.

A intelectual Grada Kilomba explica:

Essa é uma associação poderosa, isto é, a conexão entre o racismo e a morte, já que o racismo pode efetivamente ser retratado como o assassinato racista do eu. Dentro do racismo, o suicídio é quase a visualização, a performance da condição do sujeito negro em uma sociedade branca: na qual o sujeito negro é invisível. Essa invisibilidade é performada através da realização do suicídio. (...) O suicídio pode assim, de fato, ser visto como um ato performático da própria existência imperceptível. (...) Nesse sentido, o suicídio pode também emergir como um ato de tornar-se sujeito. (...) O suicídio é, em última instância, uma performance da autonomia, pois somente um sujeito pode decidir sobre a sua própria vida ou determinar a sua existência. (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 187-189)

Ao definir o termo da sua vida, o corpo negro como uma agência para revolução político-epistemológica (BERNARDINO-COSTA, 2018BERNARDINO-COSTA, Joaze. Convergências entre intelectuais do Atlântico Negro: Guerreiro Ramos, Frantz Fanon e Du Bois. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e pensamento diaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 247-268., p. 19) entra numa apoteose libertária que enfrenta o projeto de extermínio da população negra fundamentado no racismo, indo além das promessas vazias da modernidade (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiz Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Brasília: DF, 2006. Originalmente apresentação como dissertação de programa, Universidade de Brasília: 2006., p. 100). O sofrimento psíquico das juventudes subalternizadas, como cantado por Emicida, não é, portanto, um mero efeito do sistema-mundo, mas a modernidade/colonialidade é constituída de, tem por substrato basilar o sofrimento dos povos subalternizados. O artista reafirma:

Eu sonho mais alto que drones
Combustível do meu tipo? A fome
Pra arregaçar como um ciclone (Entendeu?)
Pra que amanhã não seja só um ontem
Com um novo nome
(...)
Na trama tudo os drama turvo
Eu sou um dramaturgo
Conclama a se afastar da lama
Enquanto inflama o mundo
(EMICIDA, AmarELO, 2021a)

O tom e ritmo da poesia cantada colocam o mundo em movimento, uma corrida denunciada na composição, necessária à sobrevivência real e simbólica da juventude negra silenciada. Trata-se da resistência que possibilita a continuidade das vozes e vidas que o sistema tenta ocultar e das subjetividades e das memórias que o sistema tenta apagar. O grito lançado por Emicida vai de encontro à cultura desenvolvida no país e denunciada por Abdias, “uma cultura baseada em valores racistas, institucionalizando uma situação de características patológicas, a patologia da brancura, e uma forma de interação racial que se caracteriza como genocídio na forma e na prática” (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019., p. 93).

As dores de ser, no contexto da modernidade, são explicadas por Abdias: “Os brancos têm sido os únicos a ditar o sentido do Cristianismo, da Justiça, da Beleza, da Cultura, da Civilização, da Democracia, desde os inícios da colonização do país até os dias presentes” (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019., p. 94), a univocidade imposta para a vida implica em exclusão da diversidade social, intelectual, epistêmica, religiosa que permeia as identidades contracolonizadoras, as identidades dos povos e comunidades tradicionais, da negritude, dos não-brancos, dos não-homens, dos não-cristãos, dos não-hetero-cis-normativos. O exercício do ser, para essas identidades, dói na medida em que implica em ruptura, na contraposição diuturna à ordem dominante - que é a ordem do racismo e das discriminações.

Ser dói porque o racismo “inclui a dimensão do poder e é revelado através das diferenças globais na partilha e no acesso a recursos valorizados, tais como representação política, ações políticas, mídia, emprego, educação, habitação, saúde, etc.” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 76). Ser dói porque o racismo viola todas as dimensões do sujeito, o político, o social e o individual, e as dores de ser afetam a sua subjetividade - e opor-se a isso é uma questão de sobrevivência. E, não sendo possível o exercício da decolonização - leia-se superação dessas amarras - pela estratégia discursiva da inclusão, é preciso falar-se em ruptura, na recomposição social e das condições de formação do sujeito político, do sujeito social e do sujeito individual para além da branquitude e dos paradigmas que sustentam a modernidade/colonialidade. Necessário se faz, então, revisitar a memória, evocar as ancestralidades, inflamar o mundo, perquirir o que foi silenciado, subjetivar-se a partir de um sentir profundo, para superação das disciplinas e instituições autoritárias.

4 SOBRE AS DORES DA MEMÓRIA

“Ainda dói tudo na minha memória. Nelo, meu filho. Ainda dói” (TORRES, 2008TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008., p. 121) o lamento materno arrasta consigo as dores das filhas, as dores dos filhos, as dores do companheiro, as dores do passado e as dores do presente - o futuro segue anestesiado, em suspenso. Tontonhim tenta consolar a mãe que rememora sua história com pesar.

Você não sabe o que é passar vergonha, porque você não é mulher e não sabe - as lágrimas descem-lhe pelo rosto carunchado. Rosto de cupim. O cupim do tempo. - Paciência, minha mãe. A gente precisa ter paciência - chega uma hora que as palavras são inúteis, eu sei. Mas tenho de dizer-lhe alguma coisa. (TORRES, 2008TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008., p. 129)

A irremediável dor da memória imobiliza o ser que se localiza num ponto de interseccão das violências da modernidade/colonialdiade. A dor e a inefetividade de qualquer tentativa de consolo escancara as feridas abertas e assim preservadas pela invisibilidade. A nordestina, a mãe, a mulher, a companheira, a trabalhadora - todas identidades possíveis olvidadas em função de um padrão social irrealizável, que lhe custou não apenas o transcorrer da vida e um filho, mas a felicidade e a possibilidade de ser. O suicídio de Nelo obrigou a percepção da memória e das dores que a compunham, pois a dignidade utópica, ora projetada, fora derrubada. O peso da realidade, do mundo, das relações e dos sentimentos monetarizados, o reconhecimento do irremediável insucesso de quem está do lado de cá da linha, afastavam a dignidade de ser, e que agora já não se podia mais ignorar - mesmo para uma super-mulher, a quem até mesmo a manifestação das dores da memória é negada (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 92).

A desilusão que permeia Essa Terra toca personagens e leitoras/leitores que, analogicamente, compreendem o lugar a partir do qual Nelo, Tontonhim, sua mãe e o seu pai falam, como fato representativo da sua própria existência. A divisão abissal é evidenciada na expectativa coletiva de que o sucesso individual seria suficiente para dignificar a coletividade - pois, para esta, o status quo é naturalizado pelas condições psicossociais. Assim, esperava-se que Nelo voltasse, “e quando ele voltar...” - quebra, ruptura, Nelo se enforca, mas um novo ator surge não necessariamente para alcançar, mas para buscar o lugar épico do “vencer na vida”, para alimentar de esperanças as existências subalternas espezinhadas de si próprias.

Semelhantemente, Du Bois narra a história de João que parte da cidade natal para estudar, permanecendo para os que ficaram “daí em diante uma e sempre recorrente frase: “Quando João voltar” (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 202). A frase materializa a dualidade entre o ser negro e ser americano, pois aplica-se a dois Joões, um negro e um branco, e suas trajetórias ao mesmo tempo tão semelhantes e tão desiguais, assim como as expectativas das suas comunidades quanto ao respectivo retorno. O João negro qualificado pelos brancos como um “bom menino” foi por eles desestimulado a frequentar o ginásio. Ao passo em que na casa do juiz, a sua irmã, empregada, ouvia sobre a expectativa da volta do João filho do magistrado que, estudando em Princenton, voltaria “um homem”. A narrativa traz a indagação do juiz, “à tímida empregada: Pois, Jennie, como está o teu João? Para acrescentar refletivamente: Que ruim, que ruim, tua mãe mandá-lo estudar fora, isto vai arruiná-lo” (DU BOIS, 1999, p. 202), e a sua reação de espanto - e despertamento (?).

A linha de cor/colonial estabelece os limites de desenvolvimento e fruição das populações subalternizadas, e, por isso, a mera expectativa de inserção do lado de lá da linha figura como a realização ficcional da dignidade à coletividade de origem, subalternizada. Contudo, cruzar a fronteira é apenas o primeiro desafio a ser superado, porque, em verdade, não existe lugar para as identidades subalternizadas do lado de lá da linha. No caso do João negro, o seu eu, o seu repertório sociocultural, foi rejeitado, o processo de aceitação para apreensão dos caracteres que o fariam tornar-se gente implicou na transformação, neocolonização, do seu ser, que precisou ser escarificado para amoldar-se aos termos necessários para a sua inclusão/aceitação. Assim, foi exigido que o João “Cumprido, amulatado, cabelos duros, diferente, parece que está permanentemente crescendo para fora das suas roupas, caminhando com movimentos meio que se desculpando”, que transbordava um ar jovial e genuína satisfação com o mundo (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 201), passasse ao homem alto e sério, de cumprimento reverente.

O racismo marca não apenas a formação de João, mas a trajetória do seu retorno, como um homem frio e silencioso. A escarificação a que fora submetido fê-lo assumir caracteres exógenos e permanecer à margem dos brancos, abrindo-lhe, no entanto, a consciência deste fato, de maneira que já não era possível identificar-se com os seus como antes, fazendo-o experimentar um novo espectro de solidão. Esta, alimentada pela incompreensão dos seus sobre o estado de subserviência a que estavam submetidos. Ao tentar elucidar e romper com esse lugar, João que animado estava em ensinar, foi tolhido pelo juiz, segundo o qual as ideias vãs de ascensão e igualdade tornariam os negros descontentes e infelizes. João viu-se sem-lugar. Especialmente depois que o João filho do magistrado tentou tomar sua irmã Jennie à força, e de João tê-lo golpeado.

O jovem negro completaria a tragédia de sua vida e morte, descaracterizado, duplamente desumanizado, performando a última possibilidade de subjetivação de que dispunha: “Mamãe, vou-me embora; vou ser livre!” (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 213). A liberdade de João deu-se com a ruptura do seu eu com o mundo, o mesmo no qual se inserira, porém não participara e nem o faria haja vista as condições estruturais que sua luta individual não seria capaz de superar, afetado que estava pela consciência do não-ser. Completando a sua sina, “Oh, como teve pena de si, e conjecturou se ele trazia consigo a corda com o laço. Então, na medida em que a tempestade desabou sobre si, ele ergueu-se devagar, sobre suas pernas, e voltou seus olhos fechados na direção do mar. E o mundo zuniu nos seus ouvidos” (DU BOIS, 1999, p. 213). A narrativa lembra a epígrafe da dissertação da teórica Ana Luiza Pinheiro Flauzina, onde cita Stive Biko:

A gente ou está vivo e orgulhoso, ou está morto. E quando se está morto, a gente não liga mesmo. E o modo como se morre pode ser, por si mesmo, uma coisa que cria consciência política. Assim, a gente morre nos tumultos. Para um número muito grande, na verdade, não há realmente muito o que perder quase − que literalmente, dado o tipo de situações de que provêm. E assim, se a gente puder superar o medo pessoal da morte, que é uma coisa altamente irracional, sabe, então a gente está caminhando. Steve Biko (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiz Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Brasília: DF, 2006. Originalmente apresentação como dissertação de programa, Universidade de Brasília: 2006., p. 7)

É nesse mesmo contexto que Nelo e João vivenciam processos distintos, porém complementares na compreensão da modernidade/colonialidade e como os seus influxos resultam na destruição do ser que tenta ser. O silenciamento irreversível de ambos testemunha as dores da memória, ao tempo em que também elucida o controle da memória pelas condições da sociabilidade moderna como grilhões para os corpos e mentes. O vazio experimentado se dá, para um, pela frustração de não ter alcançado o outro lado da linha, para o outro, por já não ser reconhecido pelos seus pares, tampouco ser aceito pelos outros. Defrontar-se com o vazio do seu ser negado, impedido, demonizado, priva o sujeito da força imanente da vida que já não cabe em servir e já não esperança a transformação. A linha de cor, os limites da modernidade/colonialidade impedem a realização do ser. E é em meio ao silêncio e às dores dessas memórias elucidadas, que Emicida irrompe:

Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência
É roubar um pouco de bom que vivi
Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóiz sumir
(EMICIDA, AmarELO, 2021a)

É reivindicando a voz que a narrativa provoca a ruptura. O exercício mnemônico, que assume o lugar da morte, do choro, do sangue, da subalternização, do racismo, resulta no deslocamento da letargia para a ação: “Revide!” (EMICIDA, 2021a) - a fala é condição de vida, é a oposição ao sumir, e Emicida vindica esse lugar de fala do eu, e não das marcas escarificadas, causadas pela modernidade/colonialidade. A composição imagética da sua obra audiovisual retoma elementos característicos das elites e desafia as imagens de controle: a dança clássica que se mistura à dança de rua, praticadas por pessoas negras; bailarinas trabalhando em uma construção; uma pessoa com deficiência que é não apenas atleta, mas apresenta uma coleção de medalhas; um homem negro, com sobrepeso aparente, morador de uma favela, conquistando o diploma do curso superior em Direito. O chamado é enunciado de forma imperativa:

É um mundo cão
Pra nóiz perder não é opção, certo?
De onde o vento faz a curva
Brota o papo reto
'Num deixo quieto
Não tem como deixar quieto
A meta é deixar sem chão quem
Riu de nóiz sem teto (Vai!)
(EMICIDA, AmarELO, 2021a)

A aproximação e conquista dos elementos associados ao lado de lá da linha de cor/colonial, entretanto, não desconfigura as identidades no contexto apresentado, mas marca o processo de subjetivação próprio das identidades ali representadas - trata-se, portanto, não de inclusão, mas da reconfiguração da ordem social. Isso porque tais processos se dão dentro do espectro valorativo e performativo do repertório sócio-étnico-cultural das identidades contracolonizadoras.

É elementar o uso da memória nesse processo de subjetivação, num movimento circular, em que o passado e o presente se interconectam e ressignificam a existência. Compreender-se como continuidade de outrem eleva a potência transformadora da individualidade que já não é mais singular, a episteme afroperspectiva informa sobre isso e se coloca em disputa com a modernidade capitalista que conduz o ser humano à finitude e ao imediatismo, arrefecendo o seu potencial no tempo e espaço.

Tais experimentações intelectuais exigem o alargamento da concepção da memória como direito fundamental assegurado pela cláusula de abertura do artigo quinto da Constituição Federal (BRASIL, 1988, Art. 5º). Pois, o direito à memória e à verdade - inobstante a sua inegável importância e necessidade quanto à recomposição dos fatos históricos, especialmente daqueles relativos ao Golpe Militar de 1964 - alcança, também, o direito à mnemônica intelectual, ao reconhecimento das ancestralidades como fonte de ciência e saber, à pluralidade epistêmica. Nesse contexto, as dores da memória serão sempre latentes, uma tradução sensorial da ruína de um sistema que a nega às individualidades manipuladas com fito na sua subalternização, pois as dores da memória são, também, sintomáticas da resistência.

5 SOBRE O ALVOCERECER DA CONTRACOLONIZAÇÃO

Os Direitos Humanos, enquanto linguagem hegemônica, são insuficientes para abarcar as existências idiossincráticas das identidades contracolonizadoras. Isso se dá porque a matriz epistêmica da qual os Direitos Humanos erigem não conhece ou reconhece as experiências existentes abaixo da linha. Conforme Antônio Bispo dos Santos,

As populações afropindorâmicas continuam sendo taxadas como inferiores, religiosamente tidas como sem almas, intelectualmente tidas como menos capazes, esteticamente tida como feias, sexualmente tidas como objeto de prazer, socialmente tidas como sem costumes e culturalmente tidas como selvagens. Se a identidade coletiva se constitui em diálogo com as identidades individuais e respectivamente pelos seus valores, não é preciso muita genialidade para compreender como as identidades coletivas desses povos foram historicamente atacadas. (BISPO, 2015, p. 38)

O advento da ascensão burguesa com a imposição dos seus valores como constitutivos do Estado moderno/colonial, culminou na cisão entre o homem e o cidadão, relegando àquele uma vivência abstrata e limitada a uma compreensão egoísta, classista e individualista da sociedade. A homogeneização social conduzida pelo direito vocaliza os interesses da hegemonia, que faz do Estado um instrumento para anulação das diferenças sociais e históricas da sociedade, tornando-as apolíticas (MARX, 2010MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 39-40). A emancipação política torna-se um obstáculo/empecilho à emancipação humana, o homem é reduzido a indivíduo homogêneo membro da sociedade burguesa, atomizado e apolítico. O conceito desse homem privado compromete a realização do seu direito, condenando-o à excludência estrutural, por um lado, e opondo-o à noção do homem cidadão - o que é apenas em abstrato, sob o controle do Estado - por outro.

Subverter a perspectiva de observação dos Direitos Humanos para a vida em sua materialidade (des)constituída é a provocação que surge com a estruturação autônoma e independente do campo dos Direitos Raciais, intersectada com todos os ramos do Direito. Julio César de Sá da Rocha, em 2015ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito, grupos étnicos e etnicidade: reflexões sobre o conceito normativo de povos e comunidades tradicionais. In: ROCHA, J. C. S.; SERRA, O. (Org). Direito ambiental, conflitos socioambientais e comunidades tradicionais. Salvador: EDUFBA, 2015. p. 13-29., enunciou que a emergência do campo autônomo de investigação das relações étnico-raciais justifica-se para ruptura da invisibilidade institucional da diversidade das identidades contracolonizadoras (ROCHA, 2015ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito, grupos étnicos e etnicidade: reflexões sobre o conceito normativo de povos e comunidades tradicionais. In: ROCHA, J. C. S.; SERRA, O. (Org). Direito ambiental, conflitos socioambientais e comunidades tradicionais. Salvador: EDUFBA, 2015. p. 13-29., p. 25). A decolonização do Direito perpassa pela ruptura com as suas bases epistemológicas, determinações institucionais e limitações cognitivas, propiciada pela abordagem científica, normativa e pela construção plural e representativa dos espaços sociais e decisórios.

Diz-se, ainda acerca do reconhecimento do campo dos Direitos Raciais porque se trata de um tema cuja notável discussão vem sendo desenvolvida por diversas/os estudiosas/os há tempo considerável. Por seu turno, ignorar esse movimento é sintomático do mesmo sistema que se combate, como evidencia a tardia publicação da dissertação de mestrado da Professora Dora Lúcia de Lima Bertúlio no ano de 2019BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019., sob o título “Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo”, que fora realizada em 1989, (BERTÚLIO, 2019BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.), no qual declara:

A apreensão e discussão do Direito, do Estado e da Sociedade nas relações entre os homens permite o fortalecimento das teorias e ideologias racistas, na medida em que não incluem no debate as relações raicais, dado concreto da sociedade brasileira. Além disso, são inúmeras as ações concretas em que o Direito é chamado a regular e reprimir indivíduos e coletividade com base exclusiva na caracterização racial dos mesmos. (BERTÚLIO, 2019BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019., p. 101)

É, na mesma medida elucidativa a firmeza com que considera: “Entretanto, essas críticas não ultrapassam a discussão do Estado e do Direito no plano formal, ou seja, não introduzem no estudo a apreensão do Estado e do Direito, o real papel destes dois institutos na sociedade”. (BERTÚLIO, 2019BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019., p. 113), reforçando que a ruptura da colonialidade do direito exige que o alvorecer contracolonizador componha-se de processos e perspectivas complementares, pluriepistêmicas e interseccionais, a fim de propiciar uma reestruturação desde a base. É nesse sentido que vêm sendo desenvolvidas perspectivas como o Quilombismo (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.), o Direito Antidiscriminatório (MOREIRA, 2020MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.), ou até o Direito insurgente negro (OLIVEIRA, PAZELLO, 2022OLIVEIRA, Eduardo Maurente, PAZELLO, Ricardo Prestes. Introdução ao direito insurgente negro: antecedentes teóricos, bases epistêmicas e usos políticos táticos. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 13, N.3, 2022, p.1951-1981.), dentre outras teorias decoloniais e contracolonizadoras natas em outros campos do saber. Decolonizar o Direito trata-se de mobilizar a compreensão dos Direitos Humanos a partir da “práxis histórica da libertação, na defesa por necessidades do sujeito, porém não do sujeito individual e abstrato da modernidade hegemônica, senão do sujeito intersubjetivo que se constitui pela vontade de libertação das vítimas reunidas e organizadas em comunidade” (WOLMER, 2015, p. 264). Trata-se da prolação do Direito a partir das perspectivas das identidades subalternizadas - da sua práxis, história, cosmologia - concebendo-o num “processo de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contracolonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses territórios” (BISPO, 2015, p. 48). Antônio Wolkmer corrobora essa estratégia:

Uma teoria ou pensamento de perspectiva crítica opera na busca de libertar o sujeito de sua condição histórica de um ser negado e de um ser excluído do mundo da vida com dignidade. (...) O pensamento crítico tem a função de despertar a autoconsciência de subjetividades oprimidas que são vítimas dos segmentos sociais opressores, dos corpos dirigentes hegemônicos e das formas institucionalizadas de violência e de poder (local e global). Certamente a “crítica”, como dimensão epistemológica e sociopolítica, tem um papel pedagógico transgressor, à medida que torna instrumental operante correto para conscientização, resistência e libertação, incorporando as esperanças, intentos e carências de sociabilidades que sofrem qualquer forma de discriminação, exploração e exclusão. (WOLKMER, 2015WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva, 2015., p. 246)

A partir do chamamento à criticidade decolonizadora dos Direitos Humanos, reitera-se, então, o reconhecimento do campo dos Direitos Raciais, que se estrutura com fito na superação dos

Direitos positivados engendrados por circunstâncias valorativas específicas como a emergência do sistema produtivo capitalista, a formação os Estados-Nacionais, as crescentes demandas políticas de novos segmentos sociais (a burguesia) por liberdade, igualdade e segurança e a defesa pelo direito natural à propriedade privada. (WOLKMER, 2015WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva, 2015., p. 259)

A superação necessária alcança também a dubiedade do Direito vigente, como denunciado por Antônio Bispo, que elucida a distorção causada pela aparente atenção do Direito hegemônico às populações subalternizadas:

AGORA É LEI
Dá cadeia para quem me chamar de negro analfabeto.
Só não dá cadeia para quem me chamar de negro burro
Só não dá cadeia pra quem me chamar de “moreno”
Mesmo sabendo que com isso querem me transformar
em um híbrido
E assim como aos burros negar as condições de
reprodução da minha raça
(BISPO, 2015, p. 23)

A crítica é lúcida e precisa: o Direito hegemônico transformado em Lei, ao conferir sanções a posturas atentatórias à existência negra, inda que aparentemente tenha caráter protetivo, torna-se ineficaz por não deflagrar e não combater as condições sócio-históricas que sobredeterminam a postura dos sujeitos que as executam “na ponta” - quando ambos deveriam ser combatidos, as causas e os agentes opressores. A dominação paradoxal transforma o direito protetivo em instrumento de neocolonização na medida em que é utilizado para amoldar as exigências das insurgências sociais a uma nova gramática inclusiva que, entretanto, não implica na ruptura do sistema racista. Abdias Nascimento corrobora que:

(...) como projeto coletivo a ereção de uma sociedade fundada na liberdade, na justiça, na igualdade e no respeito a todos os seres humanos; uma sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível a exploração econômica e o racismo; uma democracia autêntica, fundada pelos destituídos e deserdados deste país, aos quais não interessa a simples restauração de tipos e formas caducas de instituições políticas, sociais e econômicas as quais serviriam unicamente para procrastinar o advento de nossa emancipação total e definitiva, que somente pode vir com a transformação radical das estruturas vigentes. Cabe mais uma vez insistir: não nos interessa a proposta de uma adaptação aos moldes da sociedade capitalista e de classes. (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019., p. 288)

A visibilização a ser propiciada por meio da decolonização do Direito e do aprofundamento das relações étnico-raciais como fatores estruturantes da sociedade moderna, prima por desconstruir o não-lugar do retirante nordestino, das pessoas negras, das mulheres, das mulheres negras, da população LGBTQIA+, permitindo-lhes desbravar e exercer os sentidos de ser, sentir e estar no mundo que lhes sejam próprios, que advenham das suas raízes e falem sobre as suas divindades espirituais, que componham o seu eu. E, por isso, defende-se que o processo de ensino e superação da colonialidade se dará com o reconhecimento do campo do Direito que se desenvolva paralelamente aos Direitos Humanos norteando-lhe, ao reconhecer o seu caráter emancipatório e também as suas limitações políticas. Fazendo-lhe referenciar-se nas cosmovisões negadas pela monoepisteme da modernidade jurídica, as percepções e perspectivas dos sujeitos negros e demais identidades subalternizadas. Assim, o campo dos Direitos Raciais será fortalecido como ponto de partida para a decolonização do Direito em si, da episteme jurídica, e da vida em sociedade, tratar-se-á do instrumento necessário para superação das dores do ser, dos silêncios e das memórias impedidas, com vistas ao alvorecer da vida e liberdade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao compartilhar suas memórias e sentimentos - “E, tipo, é foda irmão, tipo uma doença essa porra.” (EMICIDA, AmarELO, 2021a) -, o primeiro orador conversa com Emicida, mas não apenas com ele. Ao permitir a reprodução do seu desabafo, ele se colocou em diálogo com um número incontável de ouvintes e, a partir daí, a identificação e o embargo na voz também se multiplicaram. A palavra é vida porque é movimento, e o movimento é o espectro da essência. A linguagem executada, verbal e não verbal, é resistência porque mobiliza, e mobiliza porque aproxima, reúne, coletiviza as individualidades que se veem representadas no que é expressado. Por outro lado, o silêncio atomiza e desvincula o presente e o passado, o ser e a coletividade. Quando se silencia a voz, faz-se o isolamento. Quando a fé é silenciada, condena-se. Quando o sentir é silenciado, promove-se a objetificação. Quando se silencia o pensar, legitima-se todos os silenciamentos.

A experiência do primeiro orador é compartilhada, noutras performances, com Nelo, Tontohim, sua mãe e seu pai - que sequer são nomeados -, retirantes de si próprios, pelas mulheres que sucumbem ao patriarcado, por João... “Ah, quando João voltar...”. São sentimentos compartilhados por uma massa pulsante, plural, histórica e multiplamente silenciada, vitimada pela modernidade que se consolidou oprimindo, caçando e matando, colonizando corpos, mentes e subjetividades. E é de tal forma brutal esse processo que, ao olhar para si e perceberem-se incompatíveis com o contexto, esses sujeitos - nós - compreendem a sua existência como errática e, na extrema tentativa de romper com o silêncio e provarem duma liberdade há tanto impedida, o paradoxo se conforma e a morte se transubstancia em existência.

Ante ao preconceito, desrespeito, humilhação, o desdém a tudo que é negro, surge um doentio desânimo que desarmaria e desencorajaria qualquer nação, menos este povo negro para quem ‘desencorajamento’ é uma palavra inexistente. Mas o defrontar-se com tão imenso preconceito não poderia trazer senão autoindagação, automenosprezo e o arrefecimento da busca de ideias que sempre acompanham a repressão e se reproduzem numa atmosfera de contempto e ódio. (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 34)

As narrativas analisadas apontam para o argumento de que as condições de sociabilidade da vida moderna adoecem e matam, porque não há modernidade sem colonialidade. Colonialidade lida como aforismo para representar o racismo, sexismo, patriarcalismo, lgbtfobia, para representar a escarificação, destituição da identidade de individualidades que são incompatíveis com os paradigmas hegemonizados. Emicida se posiciona: “Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus” (EMICIDA, 2021b), esta é a lógica capitalista intrínseca à modernidade/colonialidade. Silenciar-se sobre essa verdade que remonta à escravização de africanas e africanos, ao genocídio dos povos pindorâmicos, ao estupro e assassínio de mulheres, à invasão de territórios habitados e sustentáveis, é concordar com a continuidade dessas violências:

Não sei o que é mais comovente, se antigas casas vazias, ou a casa dos filhos de antigos senhores. Tristes e amargas histórias se escondem por detrás dessas portas brancas, contos de pobreza, de disputas, de desilusões. (...) Veem, adiante, uma casa colorida e triste, com seus casebres, cercas e plantações felizes? Não é feliz dentro de si, no mês passado, o filho pródigo do esforçado pai escreveu-lhe desde a cidade pedindo dinheiro. Dinheiro! Onde arranjariam esse dinheiro? Assim, o filho irrompeu à noite e matou seu nenê, matou sua mulher e suicidou-se. A vida continua. (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999., p. 133)

Du Bois fala sobre uma ausência permanentemente sentida na continuidade da vida - que é organizada, coordenada, harmonizada por sistemas sociais tacitamente aceitos. E, se o silenciamento do pensar legitima todas as demais modalidades de apagamento, opressão e morte, o que dizer sobre a Ciência, sobre a Academia, sobre o Direito? A radicalização do raciocínio é necessária para que seja passível de compreensão que mesmo os Direitos Humanos em sua faceta emancipatória, se se nega a sua colonialidade, aprofunda desigualdades, fere e mata.

Refletir a liberdade, a igualdade, ou quaisquer direitos negando a episteme e experiências afropindorâmicas, contracolonizadoras, é pensá-las de forma unívoca, limitada e excludente. Basta refletir que os sujeitos do universo do “todos são iguais perante a lei”, acriticamente reproduzido e socialmente assimilado, legitima que os sistemas social e jurídico racistas, formado em sua extensa maioria por homens racistas economicamente privilegiados ocupando os espaços de poder, não se identifique com o jovem negro tomado como suspeito exclusivamente por sua condição fenotípica8 8 Veja mais em: Jovem negro denuncia casal branco por racismo, no Leblon, após precisar provar ser o dono de bicicleta elétrica. Disponível em: geledes.org.br/jovem-negro-denuncia-casal-branco-por-racismo-no-leblon-apos-precisar-provar-ser-o-dono-de-bicicleta-eletrica/. Acesso em: 30 jun. 2021b. . De maneira que “A violência parece definir os contornos dentro dos quais ocorre a experiência de uma forma de vida enquanto forma de vida humana” (DAS, 1999DAS, Veena. Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, n. 40, p. 31-42, 1999., p. 36). O silêncio do Direito, ao encobrir a sua colonialidade institucional, estrutural e epistêmica, vulnerabiliza as pessoas negras ao racismo, mesmo dentro de uma perspectiva discursivamente protetiva.

“Ainda dói tudo na minha memória” porque o lembrar vivifica cicatrizes e privilégios, e o exercício intelectual sobre o direito em perspectiva emancipatória impõe a estruturação e reconhecimento, como campo autônomo de ensino, pesquisa e investigação, dos Direitos Raciais. A superação das amarras intangíveis do Direito a serviço da hegemonia, só pode ser alcançada por um campo que vise independência política ou, no mínimo, uma vocação contracolonizadora. É nesse ínterim que o campo dos Direitos Raciais urge, imbuído das investigações atinentes às condições sócio-histórico-culturais que relegam individualidades fecundas à sub-humanidade jurídica, às investigações relativas às dimensões de humanidade que lhes são estruturalmente negadas, à revisão e proposição normativa decolonial. Sua emergência, para além da proteção das vidas em sua corporeidade, se dá pela urgente necessidade de proteção aos caracteres intangíveis e que conformam a psique humana - silenciosamente oprimida e dominada.

Ao participar desse diálogo e propô-lo coletivamente, no exercício da afetividade como instrumento decolonial, “Do mais profundo canto em meu interior/ Pro mundo em decomposição/ Escrevo como quem manda cartas de amor” (EMICIDA, 2021c)... As quais seguem, também, como convite permanente ao diálogo em prol de um horizonte emancipatório e do cultivo de um Direito aberto e sensível à ciranda e pluralidade da vida.

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  • TORRES, Antônio. Essa Terra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.
  • WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva, 2015.
  • 1
    A obra foi indicada pela Profa. Ivana Teixeira Figueiredo Gund, minha professora de Literatura durante o Ensino Médio, a quem manifesto minha admiração e profundo agradecimento por, tão cedo, ampliar meus horizontes e nutrir meus sonhos.
  • 2
    Segundo a definição de Boaventura de Sousa Santos, “a hegemonia é um feixe de esquemas intelectuais e políticos que são vistos pela maioria das pessoas (mesmo por muitos dos que são negativamente afetados por ela) como fornecendo o entendimento natural ou único possível da vida social”, (SANTOS, 2014SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2014., p. 33).
  • 3
    Emicida é o nome artístico do cantor, compositor e produtor Leandro Roque de Oliveira.
  • 4
  • 5
    AmarELO conta com um sample, trechos, da canção Sujeito de Sorte, de autoria e na voz de Belchior.
  • 6
    Utilizamos a expressão “sistema-mundo” em adesão à crítica esboçada por Ramón Grosfoguel: “O conceito de ‘sistema-mundo’ é uma alternativa ao conceito de ‘sociedade’. Ele é utilizado para romper com a ideia moderna que reduz ‘sociedade’ às fronteiras geográficas e jurídico-políticas de um ‘Estado-nação’. Em um sentido comum eurocêntrico moderno, o conceito de ‘sociedade’ é usado como um equivalente a ‘Estado-nação’ e, por conseguinte, existem tantas sociedades quanto Estados-nações no mundo. Esse olhar eurocêntrico moderno não somente reduz a noção de Estado a ‘Estado-nação’, como também reduz sociedade a essa forma de autoridade política muito particular no mundo moderno/colonial. Já sabemos que a pretensão de um Estado de que sua identidade corresponda à identidade da população dentro de suas fronteiras é uma ficção eurocêntrica do século XIX.” (GROSFÓGUEL, 2019, p. 55).
  • 7
    Ver mais em: GELEDÉS. 80 Tiros: Delegado diz que ‘tudo indica’ que Exército fuzilou carro de família por engano no Rio. Disponível em: https://www.geledes.org.br/80-tiros-delegado-diz-que-tudo-indica-que-exercito-fuzilou-carro-de-familia-por-engano-no-rio/. Acesso em: 30 mar. 2021a.
  • 8
    Veja mais em: Jovem negro denuncia casal branco por racismo, no Leblon, após precisar provar ser o dono de bicicleta elétrica. Disponível em: geledes.org.br/jovem-negro-denuncia-casal-branco-por-racismo-no-leblon-apos-precisar-provar-ser-o-dono-de-bicicleta-eletrica/. Acesso em: 30 jun. 2021b.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2022
  • Aceito
    08 Nov 2022
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