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Na pista com a Uber: uma etnografia

Resumo

O artigo tem por finalidade investigar as estratégias de gestão do trabalho empreendidas pela Uber em relação aos seus motoristas. Fazendo uso do método da participação observante, o pesquisador conduziu um automóvel realizando corridas mediadas pela plataforma por um intervalo de tempo de quatro meses na Região Metropolitana de Salvador, Bahia. A empresa atua com uma estratégia de gestão que estimula um falso empreendedorismo e, ao mesmo tempo, esconde uma relação de emprego: a ocultação. Para tanto, faz uso de táticas como incentivismo, tarefismo, pedagogismo, estelionato, compartilhamento de riscos e obscurantismo, como a etnografia conseguiu identificar.

Palavras-chave:
Uberização do trabalho; Relação de emprego; Etnografia

Abstract

The article aims to investigate the work management strategies undertaken by Uber in relation to its drivers. Using the observant participation method, the researcher drove a car performing races mediated by the platform for a period of four months in the Metropolitan Region of Salvador, Bahia. The company operates with a management strategy that encourages false entrepreneurship and, at the same time, hides an employment relationship: dissimulation. To do so, it makes use of tactics such as encouragement, task management, pedagogism, fraud, risk-sharing and obscurantism, as ethnography has managed to identify.

Keywords:
Uberization of work; Employment relationship; Ethnography

Introdução

No início, a rede digital foi celebrada como um médium (meio tecnológico) de liberdade ilimitada. Neste sentido, o primeiro slogan da Microsoft de 1994 perguntava “onde você quer ir hoje?”, sugerindo uma liberdade e uma mobilidade sem fronteiras na internet (HAN, 2020HAN, B. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. 7ª ed. Tradução : Maurício Liesen. Belo Horizonte : Editora Âiné, 2020., p. 18). Liberdade, inovação e tecnologia eram conceitos que caminhavam juntos, e a internet evoluiu associada a esses conceitos. Na Web 1.0, correspondente aos primórdios do surgimento da internet, o conteúdo era distribuído através da rede mundial de computadores; na era da Web 2.0, chamada de internet das pessoas, esse conteúdo passou a ser hospedado em uma única rede de computadores de propriedade de uma única organização, administrado pela organização proprietária de um software, chamado de “plataforma de software” (SLEE, 2020SLEE, T. Uberização : a nova onda do trabalho precarizado. Tradução : João Peres ; notas de edição Tadeu Breda, João Peres. São Paulo : Editora Elefante, 2020., p. 223). Finalmente, a Web 3.0 corresponde à internet das coisas e torna possível um registro total da vida (HAN, 2020).

Inovações em tecnologias digitais e big data - capacidade de troca rápida e com baixos custos de grandes quantidades de dados e informações entre indivíduos, empresas e dispositivos - lançaram as bases para a ascensão da economia digital (OIT, 2021), e também tornaram possível a elaboração de prognósticos sobre o comportamento humano (HAN, 2020HAN, B. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. 7ª ed. Tradução : Maurício Liesen. Belo Horizonte : Editora Âiné, 2020.).

A globalização cresceu exponencialmente com o processo de dataficação/big data, por exemplo, ao permitir à plataforma Uber1 1 A Uber nacional possui capital social de R$ 100.000,00 e tem como sócias a Uber International B.V. e a Uber International Holding B.V., ambas empresas registradas na Holanda (UBER, 2020a). A existência de uma empresa nacional - constituída por leis brasileiras e sediada em um escritório no Município de Osasco/SP - torna possível à multinacional receber valores e realizar operações no solo brasileiro. , situada nos Estados Unidos, recrutar e dirigir o trabalho de motoristas em muitos países, em uma sistemática mais ampla de trabalho on-demand por meio de aplicativos (STEFANO, 2016STEFANO, V. D. The rise of the “just-in-time workforce” : on-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig-economy”. Geneva: ILO, 2016.).

A uberização está inserida no contexto de um novo capitalismo. Shoshana Zuboff (2020ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução : George Schelesinger. 1ª edição. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.) enxerga um cenário intitulado de capitalismo de vigilância, consistente na extração de superávit comportamental: o comportamento humano em sua totalidade é quantificado e categorizado como forma de permitir predições e prognósticos como uma mercadoria vendável a corporações que, por sua vez, visam não apenas promover anúncios publicitários com alto grau de eficácia, mas também comercializar produtos e até mesmo modificar a conduta humana para o fim de lucro.

O objetivo deste artigo é investigar as estratégias de gestão utilizadas pela Uber em relação aos seus motoristas, neste processo que se intitula de uberização do trabalho. Apresenta-se um estudo etnográfico que explora, de maneira empírica, como funcionam os mecanismos atuais de disciplinarização da força de trabalho pela plataforma. As análises resultam de um trabalho de campo como motorista, com duração de 4 meses e 350 horas de utilização do aplicativo. Através do método da participação observante, esta abordagem buscou a experiência subjetiva e concreta de prestar serviço à empresa Uber enquanto condutor de um automóvel, no período de dezembro de 2021 a março de 2022, na região metropolitana de Salvador, Bahia, Brasil.

Além da participação observante, fez-se uso do walkthrough method (interação passo-a-passo com o aplicativo), análise de documentos empresariais, mensagens e vídeos da plataforma, prints de telas, redes sociais, mensagens de interlocutores em aplicativos, revisão bibliográfica e, finalmente, através de netnografia, em razão do ingresso em um grupo de WhatsApp composto por motoristas de aplicativo.

1. MEDO E RISCOS NO TRABALHO POR APLICATIVO

Puxo a maçaneta da porta de casa e vou em direção à garagem, onde há latas de tinta velhas misturadas com o sombreiro de praia. Vejo o Honda vermelho com o letreiro da Uber mal centralizado no para-brisa. Dou uma geral na lataria do carro, há pelos de gato e cocô de passarinho em cima do teto, além de muita poeira - os passageiros vão reclamar. São apenas sete dias sem rodar, por que está assim? Aperto o botão da chave que destrava o alarme e abro o carro. Pego a flanela amarela que está no bolsão da porta, em cima dos óculos escuros que costumo usar durante as corridas, pois a luz do sol é muito intensa, e com ele retiro sujeiras e manchas na carcaça do veículo. Faço isso apenas do lado do passageiro, não tenho condições de fazer no carro todo e no fim só preciso de uma boa nota do passageiro. O paralama vai continuar sujo, pois se eu fosse ao lava-jato, perderia meia hora sem rodar. Busco no interior do veículo algo que meus filhos possam ter esquecido. Retiro a poeira do tapete batendo-o na parede, e esfrego displicentemente a mesma flanela suja. Jogo fora o papel das pastilhas que tinha deixado para os passageiros da semana anterior, mas que só uma criança se aventurou. De resto tudo ok, mas ainda acho que vou ser mal avaliado, pois a película preta do vidro só realça a sujeira do carro. Vou começar a trabalhar com uma sensação ruim. Encho minha garrafinha com água do filtro de casa e passo um protetor solar que deixa meus braços sebosos. Agora entendo porque motoristas de aplicativo usam aqueles mangotes coloridos nos braços, muito melhor do que adquirir manchas de insolação, como tem acontecido comigo. Coloco o celular no suporte central. Estou pronto.

A mudança de linguagem, nesta seção, passando para a primeira pessoa, se impõe em razão de pressupostos da própria etnografia. Sua escrita, sem a linguagem adequada, além de difícil, é improdutiva do ponto de vista científico. Neste sentido, também reflete a impossibilidade deste relato estar desvinculado de minha trajetória de vida e lugar social. Reconhecendo minha condição de ser histórico, foi a forma encontrada para uma abordagem que associe dialeticamente a realização desta investigação e a minha própria existência.

Experimento muito tempo parado, com o carro desligado, esperando corridas em janeiro. Nesse período do ano, a despeito de alguns turistas estarem indo para laboratórios e farmácias para testagem de covid-19, e adolescentes indo para casas de amigos, o movimento está muito fraco, com poucos motoristas na praça e poucos passageiros solicitando viagens, pois as férias escolares e profissionais estão impactando negativamente na demanda, de forma que passo muito tempo solitário e ocioso.

Ficar parado é uma forma de economizar e ter menos despesas, não é um exercício de autonomia. Tenho ficado cada vez mais em regime de sobreaviso, aguardando o chamado da plataforma para o trabalho, ocasião em que fico dentro do carro. Também não se pode dizer que estou descansando, pois além da atenção necessária para evitar assaltos, eu preciso ficar sempre alerta para locais com tarifas dinâmicas ou novas solicitações. Sem pontos de apoio, tem-se uma sensação de desconforto e insegurança, pois o motorista precisa ficar atento para que não seja vítima de furtos ou roubos, do celular ou do veículo: - Você precisa pegar a visão! - me ensinam. O medo é um sentimento muito presente nesta profissão.

Minha primeira experiência de corrida em local perigoso se deu no bairro de Portão, em Lauro de Freitas, município contíguo a Salvador, pela manhã, ocasião em que o passageiro solicitou que eu abaixasse os vidros para que os traficantes locais me visualizassem. Ele se sentou ao meu lado - e não no banco traseiro, como é exigência da plataforma - para que não soubessem que eu era motorista de aplicativo. Havia dois adolescentes sentados na calçada que, segundo ele, estavam armados e funcionam como olheiros (observadores) para os chefes da facção: “Não pegue nunca passageiros depois do Galpão Malibu”, onde eu o deixei, pois depois dali o tráfico domina, face a uma guerra entre facções rivais. Eu sabia que não deveria usar adesivos/dísticos de identificação da Uber por este motivo e tinha conhecimento dos altos índices de criminalidade baiana, mas quando se vivencia uma experiência real é mais assustador. Aos poucos, mais relatos de passageiros começam a fazer referência a brigas de bar e tiros dados para cima em festas do tipo paredão (festas populares que ocorrem nas ruas, com grande contingente de pessoas e aparelhos de som móveis, de alta estatura, adaptados em carros).

Quando começo a rodar por muitas horas de carro na cidade, presencio muitos acidentes de trânsito, assim como pessoas dependuradas em ônibus que caem, motociclistas ou ciclistas com corpos estendidos nas ruas, ou atropelamentos que geram cadáveres recobertos por plástico preto. A brutalidade vai sendo banalizada.

Outra situação de risco ocorreu no bairro de Cosme de Farias, periferia de Salvador, conhecido por suas estatísticas de violência, quando o desembarque do passageiro se deu em uma ladeira estreita - que abrigava uma roda de samba no topo, como em uma cena de novela - cuja saída somente pôde ser feita de ré, um carro por vez, mas o passageiro me ajudou a manobrar na retirada, me perguntando se estava tudo bem por duas vezes (desconfiei se não seria uma emboscada). Ao final, me deu uma gorjeta de R$ 10,00 em espécie.

As ruas da periferia da capital baiana são um festival de meios de transporte e personagens: bicicletas, pedestres, motos, vans, topics, ônibus, carretas, caminhões de lixo e automóveis, tudo isso misturado com crianças voltando da escola, senhoras comprando o pão cacetinho, trabalhadores retornando para casa, adolescentes jogando bola no meio da rua, varredores de rua e vendedores ambulantes, com suas múltiplas cores, fazendo questão de afirmar a negritude da capital baiana.

Na sexta-feira anterior, houve o assassinato de um motorista de aplicativo em Salvador, no bairro de Itapuã, onde já embarquei e desembarquei passageiros várias vezes, o que me deixou muito abalado com a notícia (CORREIO24HORAS, 2022), cujo vídeo de uma câmera de segurança, do momento exato do crime, corria livremente nas redes sociais de motoristas de app. Aparentemente, houve uma cilada para roubar seu carro e, diante da tentativa de fuga do motorista, um dos assaltantes da quadrilha deu-lhe um tiro na cabeça. Nos anos anteriores, pelo menos sete motoristas de aplicativo foram assassinados na cidade (SOCIEDADE ONLINE, 2019, IBAHIA, 2020, BAIANO, 2021, UOL, 2019), mas parece não haver uma estatística oficial voltada para essa categoria de trabalhadores.

Um grupo foi ao enterro do motorista no domingo no Cemitério Campo Santo e houve dois protestos, com a finalidade de pressionar as autoridades, um na delegacia onde os bandidos estavam detidos e outro no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, na capital, onde os acusados fariam o exame de corpo de delito. Eu participei do protesto no IML e conversei com motoristas, todos indignados com a torpeza do crime e sem esperança na Justiça, pois provavelmente, após a audiência de custódia, alguns dos réus primários responderiam ao processo em liberdade. Palavras de ordem, como “assassinos”, foram ditas quando o camburão desembarcou os suspeitos e alguns motoristas escreveram dizeres de “luto” no vidro traseiro dos seus carros neste dia. Alguns questionavam, ainda, se a postura mais correta da vítima foi mesmo tentar fugir. Comentou-se sobre a pequena adesão dos colegas ao protesto, o que seria indicativo de falta de solidariedade. Discutia-se sobre os rumos da categoria, diante do surgimento de novas lideranças (cooperativa concorrente) que estavam “jogando uns contra os outros” e prejudicando o atual Sindicato dos Motoristas de Aplicativo, Condutores de Cooperativas e Trabalhadores Terceirizados em Geral (SIMACTTER), que liderava o protesto.

O protesto e a mobilização, entretanto, devem ser vistos como um ato de solidariedade que precisa ser sopesado com a luta diária por sobrevivência que a plataforma impõe, através de um pagamento exclusivamente por corridas: ficar uma hora parado sem receber solicitações, para participar de um movimento político, prejudica a vida financeira dos motoristas e a Uber não parece preocupada com a rotina de assaltos, sequestros e homicídios que se testemunha no cotidiano.

Em um dia, percorre-se, em média, 200 km ou mais em deslocamentos. A viagem mais curta por mim realizada durante todo o trabalho de campo foi de 500 metros, enquanto a mais longa percorreu 48,4 km, com uma duração de 51 minutos e faturamento de R$ 69,01. Por serem extremamente raras, é praticamente impossível um motorista realizar 10 corridas desse tipo em um dia de trabalho, com uma projeção ilusória de faturamento de R$ 700,00/dia. Cada corrida teve um trajeto médio de 7,48 km, durante toda a pesquisa.

Meu tempo máximo ao volante em um só dia foram 12 horas e o maior tempo online foram 16h 42m. Cada corrida teve em média 13 minutos de duração. Considerando que há ainda tempo de espera e tempo de deslocamento até o embarque do passageiro (não se trata de horas in itinere do parágrafo 2º do artigo 58 da CLT, pois, ao adentrar no veículo, o motorista já está trabalhando), verifica-se que é muito difícil a realização de mais de 3 viagens em uma hora. Ganhar mais de R$ 30,00 por hora de trabalho é um rendimento para privilegiados.

Entre todas as 350 corridas realizadas, houve apenas 2 elogios: “Carro confortável, limpo, moço super educado” foi um deles. Em apenas 3 ocasiões me perguntaram porque eu estava rodando Uber. Houve 218 avaliações com 5 estrelas e apenas uma com 1 estrela. Na experiência que durou 4 meses, apenas 4 usuários solicitaram corridas não mediadas pelo aplicativo, o que sugere que a confiança dos usuários está na relação com a empresa Uber e não com seus motoristas, o que impede a formação, na prática, de qualquer clientela fixa estável.

Após o convívio com cerca de 400 passageiros durante a experiência etnográfica, não fiz amizade com nenhum deles. A propaganda da plataforma de que esse trabalho permite conhecer novas pessoas mostrou-se enganosa. Desde a minha desativação após a pesquisa de campo, a Uber continua enviando mensagens, como a recebida em junho de 2022, solicitando que eu volte a dirigir, oferecendo promoções que pagam R$ 100,00 para 10 viagens realizadas.

2. ACHADOS DA PESQUISA

O método da participação observante buscou atualizar o conceito de subordinação para trabalhadores de plataformas digitais, na perspectiva do empregador (poder patronal).

A Uber trabalha com dois eixos básicos de gestão de mão de obra. O primeiro eixo intitula-se ocultação, ao passo que o segundo eixo denomina-se despotismo, este subdividindo-se em um ciclo de comando, monitoramento e punição. Este artigo pretende discutir principalmente o eixo da ocultação.

Aliado às necessidades de obtenção de renda, ínsitas ao mercado de trabalho (trabalha-se para comer, e come-se para trabalhar) que impedem que qualquer trabalho seja verdadeiramente livre, a Uber atua com uma estratégia de gestão estimulando um falso empreendedorismo que esconde uma relação de emprego - ocultação - que, por sua vez, subdivide-se em seis outras táticas: incentivismo, tarefismo, pedagogismo, estelionato, compartilhamento de riscos e obscurantismo.

Estes métodos de gestão têm uma dupla finalidade: camuflar a relação de emprego e, ao mesmo tempo, promover um simulacro de autonomia na figura do trabalhador. Como subprodutos: busca introjetar uma mentalidade competitiva de “mais trabalho mais lucro” no motorista; estimula a adesão a uma modalidade salarial que remunera exclusivamente pela tarefa realizada; promove a aprendizagem dos trabalhadores para os moldes desejados pela empresa; fomenta a radicalidade do lucro em todas as oportunidades possíveis, ainda que se valha para tanto de meios ilícitos; incentiva o compartilhamento de bens e propriedades dos trabalhadores em benefício da plataforma e, ainda; omite informações para impedir qualquer fragmento de autonomia ou de resistência coletiva aos interesses corporativos da plataforma. Tudo isso em um cenário de racionalidade neoliberal estimulada proativamente pelo Estado e que tem como parâmetros a competitividade interpessoal e a forma-empresa como preponderante (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal : tradução Mariana Echalar. 1ª edição. São Paulo: Boitempo, 2016.).

O eixo despotismo, por sua vez, cria um quadro normativo dentro do poder regulamentar da plataforma que promove uma enxurrada de comandos e imperativos patronais que visam exercer o poder de mando, sob os eufemismos de orientações, instruções, dicas e o aperfeiçoamento de condutas que a plataforma reputa vantajosas; exerce um intenso monitoramento de todas as atitudes dos motoristas - inclusive diálogos com passageiros - para, finalmente, atuar cirurgicamente para punir condutas desviantes.

A Uber promove esse convencimento ideológico a todo o tempo, de forma diária e insistente, e essa tática começa antes mesmo do cadastro com a oferta de remunerações vultosas e enganosas aos motoristas recrutados. É fundamental compreender essas técnicas de gestão.

2.1. Incentivismo

O incentivismo forjado pela Uber tem a finalidade de gerar comprometimento ideológico em larga escala dos seus motoristas. Essa categoria conceitual não decorre de um incentivo perpetrado por um agente independente e desinteressado na conduta do motorista. É uma dissuasão-persuasão cujos benefícios financeiros serão extraídos diretamente pela plataforma. Esse engajamento integra um pano de fundo maior, estimulado pela empresa, consistente na prévia aquisição de veículos, declaração à família acerca da intenção de ser um motorista de app, cadastro no aplicativo e no pressuposto da vinculação a outros contratos comerciais, como planos de telefonia, dispositivos de pedágios ou bancos digitais, que transcendem a própria relação direta com esse trabalhador.

Dentro da ideia de mesclar o produtor com o consumidor (prosumidor), o cadastro do motorista aprovado na Uber abre portas para uma suave servidão por dívida, pois a triagem feita pela plataforma funciona como uma garantia creditícia para outras empresas de consumo e exploração do trabalhador, todas querendo uma fatia desse mercado2 2 A Uber recomenda aos motoristas, por exemplo, por meio de mensagens no aplicativo ou através de correio eletrônico, que higienizem frequentemente os principais pontos de contato do veículo com desinfetantes Lysoform. Abastecer nos Postos Ipiranga garante 4% de retorno financeiro para próximos gastos (cash back). O carro sugerido para locação é o da Zarp Localiza. Para compra de veículos, a empresa possui parceria com a JAC Motors e com a Renault. São oferecidos descontos na compra de cervejas especiais, vinhos, produtos de higiene, beleza, chocolate e flores do Grupo Pão de Açúcar/Extra ou BIG, bem como na compra de produtos em geral no Sams Clube, ou remédios na Drogasil e Droga Raia. A Uber sugere a abertura de conta digital para repasse de ganhos na Digio. Descontos de 20% por meio de cupons são fornecidos na compra em restaurantes cadastrados no Uber Eats, e o melhor plano de saúde é com a Vale Saúde Sempre, que tem qualidade e preços baixos. .

Além dessa dupla exploração, essa tática acaba também por gerar um comprometimento do trabalhador com a plataforma, impedindo-o de exercer sua plena liberdade. Empresas conveniadas abocanham esse público-alvo, absorvendo motoristas como adquirentes de outros produtos e serviços. Segundo Zuboff (2020ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução : George Schelesinger. 1ª edição. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.), como é possível antecipar o comportamento desse grupo social - todo seu histórico comportamental está em cache - esses usuários são vistos como fontes de matéria prima para um processo de produção da era digital que mira a um novo cliente de negócios nas operações dos capitalistas de vigilância.

Quanto ao aspecto do motorista como produtor de lucros, a plataforma incentiva premiações através da gamificacão no estilo sticks and carrots3 3 Em tradução literal “cenoura e vara”, significando metaforicamente uma forma de estímulo condicionado em que se faz uso de recompensas e punições para que alguém tenha um comportamento desejado. . Segundo Schmidt (2017SCHMIDT, F. A. Digital Labour Markets in the Platform Economy. Division for Economic and Social Policy, n. January, p. 1-30, 2017.), gamificação é uma técnica que permite que os provedores de plataforma protejam o comportamento favorável do usuário, concedendo crédito virtual e/ou pontos, e classificando o desempenho dos usuários na liderança pública. Os pontos atribuídos muitas vezes servem como uma pseudo ocorrência dentro da economia de reputação de uma plataforma, mas eles não podem ser transferidos para outras pessoas. A gamificação transforma o trabalho assalariado em um jogo, de uma forma frequentemente manipuladora e comportamental.

O aplicativo da Uber faz uso de palavras e símbolos (emojis) que estimulam emoções positivas (bom humor, alegria e satisfação diante da diversidade humana e dos ganhos) ou negativas (medo de desligamento). Suas funcionalidades, cores e sons assemelham-se a jogos que podem ser executados em aparelhos celulares, abusando de imagens e gráficos que lembram desenhos animados infantis. Isso não dispensa, no entanto, a emissão de ordens que são comunicadas de formas variadas, afinal, o homem é uma máquina que obedece a comandos de voz (WEIL, 1996, p. 171)4 4 A autora francesa utiliza a expressão “homem” para representar homens e mulheres, uma vez que seus diários de campo relatam, enquanto mulher, sua pesquisa de participação observante ocorrida na fábrica da Renault na década de 1930, em Paris. A pesquisa etnográfica aqui realizada também analisou a questão de gênero e verificou que as dificuldades enfrentadas por mulheres motoristas de aplicativo são muito mais acentuadas em face da violência urbana, ausência de sanitários, ou episódios de assédio sexual. , mas estimular o máximo de trabalho pela promessa de ganhos é parte integrante do incentivismo e da gamificação.

A plataforma digital vende a ideia de que a sua remuneração somente depende de você (CASTRO, 2019, p. 60), o que representa um radicalismo quanto ao mito da meritocracia.

Nesse sentido, dispositivos de recompensas e punições, sistemas de estímulo e desestimulo, substituem e complementam as sanções para guiar as escolhas e as condutas dos indivíduos quando as situações punitivas não são inteiramente realizáveis ou desejáveis: essas coerções forçam os indivíduos a se adaptarem, colocando-os em situações que os obrigam à “liberdade de escolher”, isto é, a manifestar na prática sua capacidade de cálculo e governar a si próprios como indivíduos “responsáveis”, como exige o modelo (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal : tradução Mariana Echalar. 1ª edição. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 217-218). Para os motoristas de aplicativo, há essa obrigação de escolher dentro de um referido quadro normativo antecedente, para que o fluxo de oferta de serviços da Uber não seja interrompido.

O incentivismo opera da seguinte forma: ao mesmo tempo em que a plataforma convoca o motorista para ser um parceiro, oferecendo-lhe prêmios por missões, convênios com empresas credenciadas, e criando categorias lúdicas de promoção na carreira, por outro lado o ameaça com advertências, bloqueios, cortes de salário e desativações. São meios grosseiros, usando como estimulante, ao mesmo tempo, a sujeição e a “isca” da gratificação, por um método de domesticação (WEIL, 1996, p. 152).

Se, por um lado, as missões cumpridas representam prêmios de natureza salarial em espécie, as missões que não conseguem ser atingidas - sempre há uma nova missão - impulsionam o motorista de aplicativo a estar constantemente aceitando corridas, acarretando um trabalho com uma remuneração rebaixada pelos preços ordinários que pratica, mas que são deixadas em prol da plataforma quando não alcançadas: são promessas de pagamento salarial cujo pagamento não se dá de forma proporcional às metas alcançadas.

O pagamento de supostos prêmios materializados nas missões deixa claro que o discurso da empresa de que apenas está conectando passageiros a motoristas não é verdadeiro. Como a Uber remunera diretamente o trabalhador, independentemente do trajeto ou da corrida específica, o caráter salarial da contraprestação fica evidente, tendo em vista que essa remuneração não está sendo paga ao motorista (oferta) pelo passageiro (demanda), mas sim pela empresa.

Neste jogo, em qualquer cenário, a plataforma tem vantagens. Em verdade, para a empresa, tão bom quanto observar que os motoristas estão cumprindo as missões definidas é constatar que esses trabalhadores não conseguiram cumprir as metas, porque dessa maneira viagens realizadas sem o pagamento de qualquer prêmio funcionam como um “espólio de guerra” para motoristas derrotados que se esforçaram muito, mas não lograram completar os objetivos e metas.

Essas missões têm não apenas o objetivo de premiar os motoristas que completam o volume de corridas especificado, mas também a função de quebrar a resistência dos motoristas que estão recusando muitas chamadas e forçá-los a trabalhar de uma maneira constante, com aceitações sucessivas, horários definidos e um grande quantitativo de corridas, visando minar esse estilo de trabalhador, aparentemente autônomo.

Como a etnografia constatou, não há uma base igualitária e imparcial para a oferta desses incentivos. Os preços dinâmicos dependem de cada motorista, de quanto ele ganhou nas últimas semanas, de quanto ele ganhou naquele dia e das suas taxas históricas de aceitação/cancelamento. Como a plataforma conhece toda a experiência comportamental do trabalhador, pode oferecer o incentivo certo, na medida certa e na hora certa, pois consegue predizer com boa margem de certeza qual será a sua conduta “livre”. Para que a Uber extraia esses dados do habitus do motorista, ele sequer precisa digitar informações na tela do aplicativo, pois toda a sua história laboral, tendência comportamental, ganhos e dívidas, estão disponíveis para dataficação.

Em larga medida, a Uber requisita motoristas para trabalharem em determinados períodos ou em determinados locais, através de incentivos financeiros positivos e negativos que forçam os trabalhadores a se manterem online ou a se deslocarem para locais com preços dinâmicos. Tudo isto somado ao fato de que a perspectiva de ganhos razoáveis, necessários para subsistência e pagamento das dívidas decorrentes do investimento inicial para ingressar na atividade, é fruto da precificação inerente ao poder regulamentar da plataforma, o que também exige longas horas de trabalho diário dos motoristas (OLIVEIRA, 2021OLIVEIRA, M. C. S. Dependência econômica e plataformas digitais de trabalho : desvendando as estruturas da precificação e assalariamento por meios digitais. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Vol. 31, n. 1, p. 33-76, Jan-Jun 2021.).

Esses aspectos de um condicionamento comportamental tornam-se viciantes, como pude experimentar em meu trabalho de campo. Natasha Schüll (2012SCHÜLL, N. D. Addiction by design. Princeton University Press, 2012. Disponível em http://assets.press.princeton.edu/chapters/i9156.pdf acesso em 16.03.2022.
http://assets.press.princeton.edu/chapte...
, p. 507) estudou a relação entre jogadores adictos e dispositivos de caça-níquel típicos de cassinos nos Estados Unidos. A autora chama esse momento de “zona da máquina”, que nada mais é do que um estado de esquecimento de si mesmo, no qual a pessoa é arrastada por um irresistível impulso em que ela parece “estar sendo jogada pela máquina” e não o contrário. Essa “zona da máquina” alcança uma sensação de imersão completa que é associada a uma perda de autoconsciência, ao comportamento automático e a uma total absorção rítmica que ocorre junto a uma onda de compulsão. Para motoristas de aplicativo, a localização do celular no suporte, o conforto do banco do seu carro, as mãos bem-postas ao volante, a alternância visual das paisagens da cidade e a rotatividade dos passageiros, projetam um dispositivo muito bem encaixado, cuja arquitetura é muito estimulante e geradora de uma sensação prazerosa, semelhante ao consumo de uma droga.

Esse incentivismo, portanto, se estende para outros momentos e dimensões, além do momento no interior da execução do contrato: está presente nas formas de recrutamento dos trabalhadores, na sistemática de um cadastramento prático e rápido no aplicativo, na propaganda publicitária empolgante para a cooptação de motoristas e, inclusive, nas estratégias tecnológicas para que haja maior produtividade dos trabalhadores (promessas de vantagens e esquemas piramidais). Ele tenta capturar por completo a subjetividade do trabalhador e transforma-lo no motorista ideal, aquele que trabalha aos domingos, nos horários com preços dinâmicos, com carros severamente limpos, que oferecem um atendimento cortês, aceitando corridas tresloucadas e que, além disso, convença outros colegas a fazerem o mesmo.

2.2. Tarefismo

Emprega-se a expressão tarefismo como sinônimo da tática de gestão da plataforma Uber para obter um maior consentimento ideológico dos trabalhadores na construção de sua meta através da imposição do tradicional salário por peça.

O salário da Uber não leva em conta o mês, a semana ou os dias trabalhados pelo motorista. O salário não é pago pelas horas em que o motorista está online, nem a partir do momento em que ele aceita a corrida. Tampouco há remuneração de acordo com a quantidade de corridas realizadas. Ele é pago exclusivamente pela quilometragem percorrida com passageiros na cabine do veículo, representando a mais completa liofilização salarial (ANTUNES, 2018ANTUNES, R.. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.). Esse método pressiona os trabalhadores a aceitarem corridas para que mais usuários estejam no carro em deslocamento.

Inicialmente, deve ser dito que a alteração da modalidade de remuneração em sua forma clássica (salário por tempo) para o salário por peça ou tarefa é algo que, em geral, confunde a hermenêutica jurídica. As plataformas, ao optarem por uma remuneração que não leva em conta o tempo de trabalho, mas exclusivamente a tarefa, estrategicamente abrem caminho para o sedutor discurso do empreendedor-de-si-mesmo (ABÍLIO, 2019ABÍLIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, nov. 2019. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/pdf/psicop/v18n3/0718-6924-psicop-18-03-41.pdf. Acesso em: 21 jan. 2021.
https://scielo.conicyt.cl/pdf/psicop/v18...
).

No caso da uberização, a confusão conceitual entre autonomia e salário por peça é proposital e estimulada pela Uber: “Quando ele quer dirigir, tudo o que ele precisa fazer é ligar o app. Não existe tempo mínimo diário, semanal ou mensal para que o motorista parceiro use a plataforma” (UBER, 2020b).

Vale lembrar que a palavra “parceiro” remete a alguém que não apresenta diferença em relação ao outro, é um igual ou semelhante, mas a relação entre um motorista de aplicativo e a plataforma pode ser tudo, menos uma parceria.

A própria OIT (2020) assumiu a premissa uberiana: “O trabalho nas plataformas digitais oferece aos trabalhadores a oportunidade de trabalhar em qualquer lugar, em qualquer momento e de assumir as tarefas que lhes convierem”, como se se tratasse de uma oportunidade dadivosa e não de uma demanda empresarial, e sem observar que qualquer lugar, momento e tarefa, na prática, tem significado em todo lugar, a todo momento, e para qualquer tarefa.

O pagamento por produção não é uma prática nova de intensificação do trabalho (CANT, 2020). No cenário brasileiro, o salário por peça tem previsão legal no art. 78 da CLT desde 1943, determinando que, quando o salário for ajustado nessa modalidade de tarefa ou peça, seja garantido ao trabalhador uma remuneração diária não inferior à do salário-mínimo, regra que sequer tem sido observada pela plataforma.

Diante do salário por peça, é natural que o interesse pessoal do trabalhador seja o de empregar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista a elevação do grau normal de intensidade: “o salário por peça é a forma de salário mais adequada ao modo de produção capitalista” (MARX, 2015MARX, K.. O Capital-Livro 1: Crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. Boitempo Editorial, 2015., p. 762-764). O próprio Friedrick Taylor já anunciava no começo do século XX que a organização científica do trabalho aliada à premiação do salário por peça poria fim à luta de classes porque seus sistemas se baseiam num interesse comum do patrão e do operário, além do próprio público consumidor (WEIL, 1996, p. 148).

O salário por produtividade costuma vir associado com o sistema sticks and carrots, pois esse sistema salarial empurra o obreiro para trabalhar quando a remuneração por tarefa/corrida é muito baixa e incapaz de satisfazer as suas necessidades de sobrevivência. Outro efeito pouco visível do salário é o seu uso como instrumento do poder diretivo, quando realiza essa pequena mágica, acelerando o ritmo, agitando o corpo, aumentando a atenção e quase sempre produzindo o stress: para o empregador, embora o salário pareça apenas um custo, na verdade pode ser também uma renda (VIANA, 1997VIANA, M. T.. Salário. Curso de Direito do Trabalho: Estudos em Memória de Célio Goyatá. coord. Alice Monteiro de Barros. v. 2. 3a ed. São Paulo: LTr, 1997.).

O salário acaba sendo, também ele, um instrumento do poder diretivo quando se está diante do salário por peça ou de um salário que promete prêmios e gratificações, pois, nesse caso, até na prestação do empregador pode estar embutida uma nova prestação do empregado, ou mais exatamente, um comando implícito para a intensificação do seu trabalho.

A forma como é definido o salário por peça consiste em: a) uma remuneração individualizada por tarefa/produto determinando o salário a ser recebido; b) um repasse controlado/ilimitado da demanda de trabalho, com o estabelecimento de metas de produtividade, e; c) uma quantidade máxima fisicamente possível para cada trabalhador definindo a jornada limite (COLLI, 1998). Esses requisitos é que irão engendrar, por consequência, a limitada autonomia do empregado quanto ao tempo e modo de execução do serviço.

O salário por produtividade é imposto exclusivamente pelo empregador, dentro de seu poder regulamentar. Quando o sistema de remuneração é definido pelo empregador desta forma, entretanto, obtém-se um falso querer do empregado que se obriga a produzir mais para ganhar mais.

Obedecer às regras de controle impostas nessa sistemática de tarefismo e incentivismo cobra um preço alto dos motoristas de aplicativo. Os motoristas entrevistados demonstram desesperança e contrariedade diante das constantes mudanças na dinâmica do salário por peça. “O novo trabalho é imposto de repente, sem preparação, sob a forma de uma ordem à qual é preciso obedecer imediatamente e sem réplica” (WEIL, 1996, p. 159). Infelizes, os trabalhadores digitais da Uber se queixam e relembram uma época - “logo no começo” - em que faziam muito dinheiro.

O trabalho do motorista de app impõe três sistemas colocados simultaneamente em prática: um sistema de salário por peça, um sistema de avaliações ou ranqueamento, e um sistema de bônus e incentivos. É um salário por produtividade dependente da avaliação do passageiro que pode repercutir em maiores ou menores ganhos futuros (categorias superiores ou níveis de promoção, nos prêmios pagos pelas missões, ou ainda diretamente, através de gorjetas), que é ainda uma variável do cumprimento de metas de incentivo ofertadas abertamente pela plataforma. Por sua vez, tais sistemas remetem sempre a uma avaliação individualizada dos resultados e vinculada à produção do obreiro (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal : tradução Mariana Echalar. 1ª edição. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 227).

Além da individualização da valoração social do trabalhador, há uma exacerbada individualização do seu salário. A especificidade da modalidade de assalariamento que leva em conta exclusivamente o pagamento por produtividade, ao invés de levar em conta a tradicional unidade de tempo mensal, implica maior competição entre trabalhadores e maior transferência dos poderes diretivos aos próprios algoritmos do aplicativo, gerenciados pelo empregador. E onde há poder diretivo, há subordinação do empregado. Os motoristas de aplicativo somente têm uma quimera quanto a essa independência, por força do tarefismo, pois sempre e necessariamente, precisam vender sua mão de obra a alguma plataforma, seja ela a Uber, a 99 Pop ou a Indriver.

Somente se paga salário a quem é assalariado. Se a plataforma fosse gratuita, sem o desconto abusivo da taxa da Uber, por óbvio que não se discutiria a existência da relação de emprego, mas, além da subordinação, há também onerosidade, e esta não está associada exclusivamente ao tarefismo. O fato de a Uber pagar remunerações por missões cumpridas aos motoristas reforça o caráter salarial dos repasses que ela faz aos seus trabalhadores.

2.3. Pedagogismo

Misturado ao incentivismo e ao tarefismo, há também muito pedagogismo fomentado pela plataforma por meio de capacitações profissionais materializadas em conteúdos digitais com instruções sobre todas as características da atividade do motorista de aplicativo. No capitalismo de plataforma, em parte, os trabalhadores são capacitados de antemão para estas profissões e a qualificação prévia é aferível pelo próprio empregador, ao exigir contratualmente documentos que comprovem habilidades como saber dirigir, entregar comidas e lidar com tecnologia móvel. No entanto, muito mais é aprendido após a vinculação a essas empresas, como a pesquisa empírica evidenciou.

Essas mensagens e comunicados têm a natureza de aprendizado profissional, pois fixam diretrizes sobre quais são os recursos do aplicativo, qual o comportamento esperado do motorista, fornecem conselhos e dicas de outros colegas de trabalho, previnem prejuízos à empresa como possíveis indenizações por assédio, discriminação ou condutas criminosas praticadas por motoristas, e, ainda, educam sobre como manusear a plataforma para obter melhores resultados. O pedagogismo prepara o terreno para a execução do poder diretivo hierárquico.

A subordinação é um controle de comportamento, logo, quem controla o comportamento, subordina. Não é coincidência que esse pedagogismo incentive a subordinação, assim como não é coincidência que a palavra disciplina signifique tanto um conjunto de conhecimentos a ser repassado, como também representa o poder disciplinar.

No conteúdo pedagógico, a Uber é seletiva e não aborda ou qualifica os motoristas sobre os custos reais da atividade do motorista, nem muito menos sobre a possibilidade jurídica de reconhecimento da relação de emprego desse profissional, o que constitui uma prática deliberada de impedir que informações relevantes se tornem conhecidas e fruto de futuras pautas sindicais. O pedagogismo seletivo trabalha lado a lado com o obscurantismo.

Além dessas mensagens, comunicações e instruções, há vídeos disponíveis no aplicativo e muitos outros postados no YouTube, além da própria sucessão de telas e de um menu exploratório que fazem parte dessas técnicas de ensino.

Duarte e Guerra (2019DUARTE, F. C. P.; GUERRA, A. Plataformização e trabalho algorítmico: contribuições dos estudos de plataforma para o fenômeno da uberização. Revista Eptic, Aracaju, v. 22, n. 2, p. 38-55, maio/ago. 2019. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/ 12129/1. Acesso em: 17 maio 2021.
https://seer.ufs.br/index.php/eptic/arti...
, p. 44) apontam que até mesmo “a cronologia sucessiva de passagem de telas no aplicativo”, o preço dinâmico, as taxas de aceite e cancelamento e o sistema de reputação integram uma arquitetura deliberada pela intervenção humana, com vistas a gerar um engajamento direto e uma tentativa de guiar e incentivar os motoristas e usuários. Exemplo disso são os mapas de calor em locais com preços dinâmicos. A tela do aplicativo funciona como um coaching didático em tempo integral para o motorista que ainda está em dúvida sobre o que fazer.

Parte do aprendizado do ofício de motorista de app é feito através do método da “tentativa e erro” que a execução do aplicativo impõe cotidianamente, como o trabalho de campo retratou. A própria forma de comunicação utilizada pela plataforma também já contempla esse pedagogismo despótico, com mensagens automatizadas que servem de resposta quando se faz um contato com o “Suporte ao Usuário”, e com a funcionalidade “Ajuda” que apenas reforça a conduta desejada pela Uber ao tirar dúvidas dos motoristas. Com uma comunicação voltada aos trabalhadores com um padrão standardizado, unilateral e autoritário - típico de teleatendimentos robotizados de callcenter - acaba por infantilizar os trabalhadores, considerando-os meros consumidores que não sabem exatamente quais são suas reais demandas, uma vez que todas as dimensões de reclamações já foram supostamente previstas com eficácia pelo algoritmo: se não há um botão com uma resposta automática, é porque não se trata de uma demanda significativa.

2.4. Estelionato

Com uma lógica de extração radical de lucros, a plataforma faz uso da desonestidade para incrementar seus ganhos em detrimento de trabalhadores e consumidores. A prática do estelionato na esfera legal consiste em obter para si vantagem indevida em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício ou ardil, ou qualquer outro meio fraudulento, estando tipificada no artigo 171 do Código Penal brasileiro.

Promover essa ilusão é algo que contribui para o eixo ocultação, gerador de mais engajamento do motorista. Pode-se questionar se as vantagens ilegais que a plataforma obtém para si em detrimento dos motoristas estão sendo obtidas de forma dolosa ou são motivadas por falhas técnicas do aplicativo, como muitos sinalizaram durante a etnografia. No entanto, o sigilo total imposto quanto ao funcionamento do código-fonte do algoritmo impede uma certeza absoluta quanto a essa conduta.

O que não se questiona é que a Uber formaliza contratos com os motoristas (sem assinaturas e sem versões impressas), mas outorga-se o poder de alterá-los de forma unilateral. Além disso, como estratégia empresarial, promete vantagens que não cumpre e não indeniza os prejudicados por conta dessa conduta antijurídica.

Pude observar essa estratégia durante a participação observante, quando a plataforma prometia pagar tarifas dinâmicas que não eram repassadas em sua integralidade, quando mantinha indicadores de preços dinâmicos diferentes para motoristas em uma mesma região ou quando anunciava preços dinâmicos em determinadas localidades apenas para o fim de promover o deslocamento do motorista, mas sem a real intenção de remunerá-lo.

A tarifa dinâmica tem a aparência de ser benéfica, representando um plus arbitrariamente fixado pela plataforma sobre o salário, mas apresenta desvantagens a longo prazo. Quanto mais motoristas se organizam para trabalhar em horários de pico, mais aumenta essa oferta de serviços e, com isso, há uma tendência na redução dos preços dinâmicos ao longo do tempo, de forma que essa não pode ser uma política consistente. Ademais, quanto mais arriscado e perigoso o serviço, mais benefícios as plataformas oferecem (CANT, 2021CANT, C. Delivery Fight! A luta contra os patrões sem rosto. Tradução de Alexandre Boide, Prefácio de Leo Vinicius Liberato. São Paulo: Veneta, 2021.), pois a empresa não é obrigada a substituir um veículo quebrado, por causa das chuvas ou por acidentes comuns em horários de rush ou pelo automóvel furtado em bairros perigosos.

Os episódios de desonestidade, confirmados por todos os motoristas da experiência etnográfica, consistem ainda em alterar a cada corrida os valores das taxas cobradas, conceder descontos a passageiros que acabam sendo custeados pelos motoristas, não repassar valores devidos por reembolsos em pedágios, bem como simplesmente não remunerar determinadas corridas em dinheiro fazendo uso da funcionalidade “pagar na próxima”. Essas atitudes fragilizam o motorista de aplicativo, que se sente vulnerável e impotente para contestar tais decisões, algo que somente reforça o poder da plataforma. Como forma de suplantar estes pequenos desfalques cotidianos, o motorista precisa trabalhar com mais afinco.

Os incidentes de fraude têm a aparência de bugs do aplicativo e obrigam motoristas a aceitarem corridas em dinheiro ou fora das regiões indicadas no aplicativo, isto sem falar na funcionalidade do “Destino Definido”, que permite que o motorista receba solicitações de uma área determinada, mas que na prática não o permite chegar ao destino planejado, pois às vezes o direcionamento não funciona muito bem (CASTRO, 2019, p. 96).

Esse aspecto ardiloso tem suas primeiras manifestações na tentativa de reinvenção de palavras e conceitos que a plataforma pretende disseminar. Essa trapaça consiste em conferir uma nova gramática a relações jurídicas tradicionais e a conceitos caros ao Direito. Há uma forte carga ideológica contida nas expressões utilizadas pela plataforma em seus documentos e mensagens porquanto não se trata, realmente, de motorista parceiro, externalização do trabalho, nem de terceirização de mão de obra. Deve-se considerar que a Uber mantém motoristas laborando como seus empregados: trata-se de verdadeira fraude à relação de emprego, e não de parceria, externalização ou terceirização.

Este poder diretivo tem uma peculiaridade em relação a outros empreendimentos capitalistas tradicionais: ele tenta não ser reconhecível, sempre dissimulando a sua forma aparente, tentando a priori e de forma intencional não ser identificado nem identificável. Para tanto, substitui a nomenclatura de ordem por instruções, a despedida pelo bloqueio, a tarefa pela solicitação, a jornada de trabalho pelo tempo online. A empresa não fala em salário em seus normativos, mas em renda e ganhos; não fala em trabalho, mas em atividades divertidas; fala em revolução e inovação com flexibilidade de horários, quando se está diante de um serviço tradicional que substitui a frota de taxistas através de jornadas exaustivas. Comandos hierárquicos relacionados à forma de trabalho ao volante são chamados eufemisticamente de informes “sobre práticas de direção mais seguras” e seus contratos de trabalho são intitulados de “termos”. A uberização tenta subordinar, assim, a linguagem e, consequentemente, o pensamento dos trabalhadores, em tática semelhante ao duplipensar de George Orwell, em seu livro “1984”.

2.5. Compartilhamento de riscos

Um aspecto que pode ser considerado como genuíno na intitulada economia de compartilhamento é a ideia de compartilhamento de riscos das empresas capitalistas com seus trabalhadores.

O quinto aspecto que sustenta o modelo de negócios da Uber em relação à sua gestão de pessoal é, assim, essa transferência dos riscos do negócio, outro fator responsável por interferir no eixo ocultação. Diferentemente da relação de emprego clássica, em que os riscos da atividade empresarial pertencem ao empregador, no capitalismo de plataforma o compartilhamento dos riscos com motoristas de aplicativo é fator que recrudesce o disfarce do contrato de trabalho e faz os trabalhadores acreditarem que são donos do seu empreendimento.

Como sabido, a titularidade do automóvel e dos instrumentos de trabalho da atividade exercida pelos motoristas de aplicativo pertence aos mesmos, o que implica transferência dos riscos do negócio aos trabalhadores, mas esse mecanismo de gestão exige algumas ponderações. Se a concepção de trabalho autônomo fosse verdadeira, essa modalidade de labor jamais exigiria a presença de um terceiro, que se apresenta como um aplicativo (e não como uma empresa) mediando a relação entre passageiro e motorista. Uma relação de trabalho autônomo não precisa de intermediários e, muito menos, que essa plataforma intermediária seja plenipotenciária, com o abuso de direito sendo reconhecido como uma prerrogativa válida. A partir do momento em que legislações federais e municipais permitem essa intermediação onerosa da atividade do motorista de app, fica mais evidente a falta de autonomia desses trabalhadores.

Além do mais, a titularidade individual de automóveis cedidos em prol da plataforma não é indício de autonomia, pois, no conjunto da atividade empresarial, a cessão gratuita do uso de 3,5 milhões de veículos utilizados pela Uber ao redor do planeta (UBER, 2020b) é unicamente o fator que efetivamente permite a execução de suas operações. Ainda que o motorista, em uma perspectiva atomizada, realmente seja o dono do seu carro, em uma perspectiva holística, esse único automóvel termina por se assemelhar muito mais a um instrumento de trabalho, diante da posse do conjunto dos meios de produção que a plataforma detém. Ser dono de um automóvel permite a realização de uma viagem em particular, mas não autoriza que a Uber exerça sua atividade finalística em uma perspectiva global.

A multidão que vive do trabalho serve de alavanca para o funcionamento regular dos negócios da Uber que pode, se assim achar conveniente, alterar o preço da corrida para o limite do necessário à satisfação do consumidor e dos seus interesses empresariais, mas é fundamental relativizar-se a importância da propriedade do automóvel, pois, se a fixação do preço da corrida não compete ao motorista, isso é indicativo de que a mercadoria oferecida (serviço de transporte) não pertence ao trabalhador, mas sim à plataforma.

Desta forma, somente a força de trabalho do motorista está sendo comercializada, pois se o motorista fosse autônomo, ele seria proprietário do resultado do seu trabalho (a corrida) e não apenas do seu automóvel, e, como tal, livremente a venderia pelo preço que bem quisesse. Vê-se, portanto, que focalizar a autonomia na titularidade do automóvel do trabalhador é uma discussão míope, ainda que esteja profundamente entranhada na mentalidade da sociedade brasileira e dos próprios trabalhadores, como a pesquisa empírica constatou.

Só o desemprego experimentado nas últimas décadas ao redor do mundo proporciona tais níveis de aceitação ideológica, juntamente com políticas de governo que endossam, a todo custo, o livre mercado. Para quem realiza o investimento de adquirir um automóvel de forma financiada, o endividamento pressiona o motorista a trabalhar e permanecer trabalhando para a Uber.

Os requisitos para configuração do vínculo de emprego no caso de motoristas de app são trazidos pela Recomendação 198 da OIT. A recomendação internacional chama a atenção para o fato de que o fornecimento de ferramentas, materiais e máquinas deve ser feito por quem requer o trabalho, e não pelo trabalhador (OIT, 2006)5 5 O documento recentemente produzido pela OIT (2020), anteriormente citado, parece colidir com o conteúdo da referida Recomendação. Essa discrepância, possivelmente, decorre do fato de que tais instrumentos foram elaborados em épocas distintas (antes e depois do surgimento das plataformas digitais), têm um caráter normativo diferenciado (relatório versus regra) e, de certa forma, não entram no ponto central da discussão, que vem a ser o expresso reconhecimento do vínculo de emprego de trabalhadores de aplicativo, mas apenas apontam diretrizes. Ou seja, também a posição da OIT parece estar em disputa. . A inversão dessa lógica não autoriza a caracterização de legítimos empregados como autônomos, pois continua sendo um dever do empregador oferecer esses meios de produção ou, ao menos, pagar por eles, algo que sequer a Uber faz.

Da mesma forma, o Tribunal Superior do Trabalho entende que trabalhadores, proprietários dos veículos que conduzem, não são, apenas por esta condição, impedidos do reconhecimento do vínculo empregatício, desde que presentes os demais requisitos, como a não-eventualidade e a subordinação (TST, 2008).

Em síntese, quando um motorista paga uma parcela do financiamento do seu carro, está fazendo isso em benefício da plataforma, a principal beneficiária de um automóvel que fica à sua disposição por 12 horas/dia em média. A etnografia evidenciou que o motorista é um fator de produção para a plataforma não apenas pela extração de sua força de trabalho ou por ser um potencial consumidor para outras empresas conveniadas, mas também por ser um fornecedor de insumos básicos e essenciais para a operação da atividade da Uber, como automóveis, aparelhos de telefone, combustível, ou pela quitação de impostos sobre propriedade. Essa tática promove, ainda mais, o barateamento dos custos da plataforma perto do limite zero.

Ainda há muita incompreensão sobre o alcance da assunção dos riscos do negócio. Na atualidade, se o trabalhador sempre recebe pelo valor da corrida realizada, para ele não há assunção dos riscos empresariais. Esse risco da Uber como um todo jamais pode se confundir com o risco de cada passageiro e cada corrida (DE BURUAGA AZCARGORTA, 2019DE BURUAGA AZCARGORTA, Maria Saenz. Implicaciones de la «gig-economy» en las relaciones laborales: el caso de la plataforma Uber. Estudios de Deusto, v. 67, n. 1, p. 385-414, 2019.). Se o autônomo não pode anunciar a sua marca, mas somente a empresa, e se a única forma do parceiro expandir seus negócios é trabalhando mais horas para Uber, não há autonomia verdadeira.

2.6. Obscurantismo

A falta de informação é a estratégia da plataforma para ludibriar os motoristas e obriga-los a trabalhar mais e aceitarem todo tipo de solicitação. Isso gera mais engajamento e também contribui para o eixo ocultação. O conhecimento deve ser omitido para facilitar a aderência do motorista a uma lógica empresarial, mas também para que se diminuam as chances de reconhecimento da relação de emprego.

Dentro do capitalismo de vigilância, Zuboff (2020ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução : George Schelesinger. 1ª edição. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020., p. 109) nomeia tal estratégia como “cultura de sigilo”, uma vez que é institucionalizado nas políticas e práticas que governam todos os aspectos do comportamento dos capitalistas de vigilância. Porque alguém que sabe tudo sobre você não permite que você saiba nada sobre ele?

Não se trata apenas de assimetria de informações entre contratantes de boa-fé, em igualdade de condições, onde um deles detém mais dados sobre o conjunto do negócio a ser realizado, prática comum, e esperada, na seara do Direito Civil. A técnica de gestão da plataforma consiste em verdadeiro obscurantismo porque significa uma estratégia deliberada para impedir que fatos ou informações se tornem conhecidos por parte da categoria dos motoristas de app.

Os dados de motoristas, usuários, corridas e trajetos da plataforma Uber do Brasil são transferidos para a sede americana que, por sua vez, irá tratá-los e analisá-los. Trata-se de uma “transferência de dados transfronteiriça”, um verdadeiro extrativismo digital não sujeito a amarras e sem possibilidade de repatriação (SCASSERRA, 2021SCASSERRA, S. La desigualdad automatizada. Nueva Sociedad, v. lix, n. 294, p. 49-60, 2021., p. 53). No entanto, mesmo diante de uma dataficação tão completa, pouco ou quase nada se sabe sobre o funcionamento da plataforma e seu algoritmo.

A Uber omite informações essenciais para os motoristas quando se recusa a indicar, durante uma breve solicitação, o valor da corrida, da taxa ou do desconto aplicado e, principalmente, o local exato de destino. Também não informa a quantidade de passageiros a embarcar ou se a viagem será feita em nome de terceiros, o que coloca em risco a integridade física do motorista.

Não há qualquer esclarecimento seguro sobre qual a regra aplicável para a priorização de corridas. O representante legal da Uber, em depoimento, prestou a informação de que a distribuição de corridas é feita por proximidade e de forma automática (MPT, 2021). Porém, a etnografia evidenciou que, em muitas hipóteses, essa regra é excepcionada, como solicitações feitas em aeroportos ou direcionadas para motoristas bem classificados. O critério da proximidade é relativizado, também, por vários outros motivos, tais como identidade de gênero do(a) motorista com o(a) passageiro, prioridade para quem fala a língua do passageiro, escolha de preferências de viagem (Comfort/X ou pagamento cartão/dinheiro), sentido ou direção da pista, e, principalmente, por automóveis em operação de desembarque. São tantas as relativizações possíveis que o critério deixa de ser uma regra e passa a ser uma sugestão.

Por outro lado, essa proximidade espacial é geradora de competição entre motoristas que disputam as melhores corridas atendendo às regras do algoritmo. O obscurantismo serve perfeitamente para incrementar a concorrência entre os trabalhadores. Punições também são aplicadas, como bloqueios ou desativações, sem que os motoristas saibam o motivo.

O motorista pouco sabe sobre o passageiro (e vice-versa), não pode se comunicar com o mesmo para obter informações após a corrida, não pode interagir com outros colegas por meio do aplicativo para uma organização coletiva do trabalho e, por fim, ainda, desconhece quase todas as regras de funcionamento do algoritmo. O trabalho autônomo não se harmoniza com a quase total desinformação sobre o serviço a ser executado, revelando-se uma autonomia binária que não admite gradações, no estilo “pegar ou largar” com um aspecto precário.

A Uber age com intensa assimetria de informações e com visível má-fé, pois as mais básicas informações são sonegadas dos motoristas, tudo com a finalidade de manter o sistema de transporte de passageiros funcionando. Diante da recusa deliberada e do caráter fundamental de omissão de dados pela plataforma, o conceito de obscurantismo mostra-se mais apropriado.

Conclusão

Ao ingressar na plataforma, enquanto pesquisador, para exercer esse ofício, tentei impedir que a Uber escondesse, aos olhos do público, o que pretendia ocultar. A ideia da etnografia sempre foi a de uma antropologia do trabalho subordinado - e não antropologia do trabalho autônomo - ainda que as renomeações e classificações nas empresas procurem atingir a identidade e a face pública dos trabalhadores (LOPES, 2013LOPES, J. S. L. Entrevista com Moacir Palmeira. Horizontes Antropológicos, v. 19, n. 39, p. 435-457, 2013.).

O eixo ocultação aqui discutido diz respeito, assim, a todas as estratégias que visam esconder o contrato de trabalho e gerar engajamento e comprometimento do motorista. Essa estratégia obtém sucesso quando o motorista incorpora a necessidade de fixação de metas salariais individualizadas e, de forma irrefletida, passa a reproduzir a própria ideologia da plataforma, assumindo-se um motorista parceiro.

Essas características da gestão de trabalho da Uber (incentivismo, tarefismo, pedagogismo, estelionato, compartilhamento de riscos e obscurantismo) são essenciais para permitir que a relação de emprego seja fraudada, repercutindo, ainda, na baixa taxa de judicialização em reclamações trabalhistas que postulem o reconhecimento desse vínculo.

As características do poder diretivo da plataforma, ora analisadas, correspondem a esferas de influência e condicionamento sobre o comportamento do motorista. No entanto, não se teve a pretensão de tratar o tema de forma exaustiva, de forma que mais pesquisas podem ser empreendidas com a finalidade de desvendar como a hierarquia direta se impõe sobre estes trabalhadores digitais.

Referências bibliográficas

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  • ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução : George Schelesinger. 1ª edição. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
  • 1
    A Uber nacional possui capital social de R$ 100.000,00 e tem como sócias a Uber International B.V. e a Uber International Holding B.V., ambas empresas registradas na Holanda (UBER, 2020a). A existência de uma empresa nacional - constituída por leis brasileiras e sediada em um escritório no Município de Osasco/SP - torna possível à multinacional receber valores e realizar operações no solo brasileiro.
  • 2
    A Uber recomenda aos motoristas, por exemplo, por meio de mensagens no aplicativo ou através de correio eletrônico, que higienizem frequentemente os principais pontos de contato do veículo com desinfetantes Lysoform. Abastecer nos Postos Ipiranga garante 4% de retorno financeiro para próximos gastos (cash back). O carro sugerido para locação é o da Zarp Localiza. Para compra de veículos, a empresa possui parceria com a JAC Motors e com a Renault. São oferecidos descontos na compra de cervejas especiais, vinhos, produtos de higiene, beleza, chocolate e flores do Grupo Pão de Açúcar/Extra ou BIG, bem como na compra de produtos em geral no Sams Clube, ou remédios na Drogasil e Droga Raia. A Uber sugere a abertura de conta digital para repasse de ganhos na Digio. Descontos de 20% por meio de cupons são fornecidos na compra em restaurantes cadastrados no Uber Eats, e o melhor plano de saúde é com a Vale Saúde Sempre, que tem qualidade e preços baixos.
  • 3
    Em tradução literal “cenoura e vara”, significando metaforicamente uma forma de estímulo condicionado em que se faz uso de recompensas e punições para que alguém tenha um comportamento desejado.
  • 4
    A autora francesa utiliza a expressão “homem” para representar homens e mulheres, uma vez que seus diários de campo relatam, enquanto mulher, sua pesquisa de participação observante ocorrida na fábrica da Renault na década de 1930, em Paris. A pesquisa etnográfica aqui realizada também analisou a questão de gênero e verificou que as dificuldades enfrentadas por mulheres motoristas de aplicativo são muito mais acentuadas em face da violência urbana, ausência de sanitários, ou episódios de assédio sexual.
  • 5
    O documento recentemente produzido pela OIT (2020), anteriormente citado, parece colidir com o conteúdo da referida Recomendação. Essa discrepância, possivelmente, decorre do fato de que tais instrumentos foram elaborados em épocas distintas (antes e depois do surgimento das plataformas digitais), têm um caráter normativo diferenciado (relatório versus regra) e, de certa forma, não entram no ponto central da discussão, que vem a ser o expresso reconhecimento do vínculo de emprego de trabalhadores de aplicativo, mas apenas apontam diretrizes. Ou seja, também a posição da OIT parece estar em disputa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2022
  • Aceito
    23 Nov 2022
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