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Revogação das medidas protetivas: Análise dos fatores e motivações presentes na solicitação da mulher

Revoking protective orders: Analysis of factors and motivation for women´s request

Resumo

A Lei Maria da Penha trouxe inovações ao ordenamento jurídico brasileiro, como as medidas protetivas de urgência (MPUs). Os processos de subjetivação de gênero influenciam a utilização desse instrumento jurídico. Nessa pesquisa exploratória, buscou-se compreender as variáveis sociodemográficas e motivações que podem influenciar a solicitação de revogação das medidas protetivas pelas mulheres, a partir da análise documental de 60 relatórios psicossociais e 60 questionários sociodemográficos. Foram elencadas quatro categorias de motivação para o pedido de revogação, criadas a partir da análise de conteúdo e dos dispositivos de gênero: cuidar, amar, dependência financeira e percepção do risco. As duas primeiras categorias se destacaram, corroborando a análise do favorecimento da formação identitária de mulheres nos dispositivos materno e amoroso e sua influência na solicitação de revogação das MPUs. Observou-se que a maioria das solicitações de revogação ocorreram no primeiro mês após a data do fato. Notou-se que nessas solicitações houve uma preponderância das categorias amar e dependência financeira; e de mulheres negras e de mulheres desempregadas. A compreensão dessas variáveis na manutenção das medidas protetivas e a influência de vulnerabilidades decorrentes do processo de subjetivação de gênero podem qualificar a atuação dos atores do sistema de justiça.

Palavras chaves:
Violência contra mulher; Lei Maria da Penha; Medidas protetivas de urgência; Motivação

Abstract

The Maria da Penha Law brought to the Brazilian legal system, such as the urgent protection measures (MPUs). Gender subjectivation process influences the usage of this legal instrument. This exploratory research aims to understand sociodemographic variables and motivations that may influence their revocation by women, based on the documental analysis of 60 psychosocial reports and 60 sociodemographic questionnaires. Four categories of motivation to revoke protective orders were listed, created using content analysis and gender devices revocation: care, love, financial dependence, and risk perception. The first two categories were more prominent in the reports analyzed, which favors the analysis of women identity formation by loving and maternal devices and their influence on the revocation of MPUs. It was observed that most revocation requests occurred in the first month after the violent episode occurred. In those requests there was a preponderance of the categories love and financial dependence and of black women and unemployed women. Understanding the variables that affect the maintenance of protective orders as well as the motivation and vulnerabilities arising from the process of subjectivation of women into those devices could better qualify the performance of those who work in the legal system.

Keywords:
Violence against women; Maria da Penha law; Protective orders; Motivation

1. Introdução

Nas últimas décadas, a violência contra a mulher começou a receber o devido reconhecimento como questão social e de violação de direitos humanos, sendo considerada não apenas passível de prejudicar a saúde física e mental, mas também de ameaçar a vida das mulheres ao redor do mundo (ELLSBERG; HEISE, 2005ELLSBERG, Mary; HEISE, Lori. Researching violence against women: A practical guide for researchers and activists. Washington DC, United States. World Health Organization, PATH, 2005.). A Declaração de Viena de 1993 reconhece, no âmbito da ONU, os direitos humanos como indivisíveis, inalienáveis e universais. Em seu art. 18, destaca expressamente a transgressão dos direitos das mulheres como forma de violação de direitos humanos e evidencia a necessidade de ações nacionais para a eliminação desse tipo de violência. Apesar de parecer redundante, a enunciação dos direitos das mulheres na declaração reconhece a invisibilidade e a especificidade das formas de violação desse grupo social, possuindo caráter político e pedagógico.

A criação da Lei Maria da Penha (LMP; Lei nº 11.340/2006) decorre de uma ampla articulação de movimentos de mulheres e de feministas, a fim de visibilizar a violência doméstica contra a mulher no Brasil. A LMP materializou procedimentos legais de defesa dos direitos das mulheres (PASINATO, 2016PASINATO, Wânia. Dez anos de Lei Maria da Penha: O que queremos comemorar? Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 13, n. 24, p. 155-163, 2016. ). A fim de possibilitar a efetividade desse dispositivo legal, era necessário adaptar a arquitetura institucional vigente, principalmente, com a especialização do sistema de segurança e justiça (SCIAMMARELLA; FRAGALE FILHO, 2015).

Uma das maiores inovações instituída pela LMP foi a possibilidade de aplicação de medidas protetivas de urgência (MPUs), as quais têm como objetivo garantir a proteção imediata à mulher em situação de violência doméstica (Lima, 2011). Esse instrumento possui funcionamento excepcional à regra processual do ordenamento jurídico brasileiro (LAVIGNE; PERLINGEIRO, 2011LAVIGNE, Rosane M. Reis; PERLINGEIRO, Cecília. Das medidas protetivas de urgência: Artigos 18 a 21. In: CAMPOS, C. H. DE (Ed.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. p. 289-306.). Em conformidade com os princípios da devida diligência do Estado e da proteção integral da mulher, a decisão acerca da concessão das medidas é realizada a priori pela/pelo magistrada/magistrado, no prazo de 48 horas, independente de audiência das partes (LAVIGNE; PERLINGEIRO, 2011).

A solicitação das MPUs pode ser feita em unidade policial pela mulher vítima de violência e prescinde de uma/um advogada/advogado ou defensora/defensor público para o ato. O rito diferenciado da solicitação das medidas protetivas subverte a “hermenêutica da suspeita” a que a palavra da mulher está submetida, sob a qual se questiona a moralidade da mulher, sua condição de vítima e a credibilidade de seu testemunho (ANDRADE, 2009ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Direito Público, v. 1, n. 17, p. 52-75, jul/set., 2009.).

A denúncia da violência sofrida pelo parceiro íntimo representa um movimento ativo da mulher de publicização da violação de seus direitos. Entretanto, esse comportamento é carregado de culpa, visto que as mulheres são interpeladas a manterem o silêncio e a passividade a fim de preservar o “bem-estar” da relação amorosa (ZANELLO, 2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.). Em geral, quando a mulher busca a intervenção do Estado, ela deseja estabelecer um limite ao comportamento violento do companheiro, ou seja, deseja o fim da violência (ANGELIM, 2009ANGELIM, Fábio Pereira. Mulheres vítimas de violência: dilemas entre a busca da intervenção do estado e a tomada de consciência. 2009. 233 f. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura)-Universidade de Brasília, Brasília, 2009.), mas não necessariamente o fim da relação. Dessa forma, a permanência em relacionamentos abusivos pode ser afetada pelos processos de subjetivação das mulheres.

Conforme proposto por Zanello (2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.), no Brasil, privilegia-se uma formação identitária das mulheres baseada no dispositivo amoroso e materno, desencadeando vulnerabilidades intrínsecas ao tornar-se mulher na sociedade, o que pode contribuir para a manutenção de relacionamentos abusivos. A construção dessa formação subjetiva é, ao mesmo tempo, produto e processo desencadeado pela representação sociocultural, mediada pelas tecnologias de gênero e pela autorrepresentação de gênero (LAURETIS, 1994LAURETIS, Teresa de. A Tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. DE (Ed.). Tendências e impasses - O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-241.).

O dispositivo amoroso pressupõe a subjetivação das mulheres a partir do olhar de um outro (homem, principalmente) que as escolha, delegando ao processo de ser amada/"escolhida" o poder de apropriação de grande parte de seu investimento afetivo-emocional (ZANELLO, 2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.). A metáfora criada pela autora para compreensão desse processo de subjetivação das mulheres é o da “prateleira do amor”, em que ser escolhida é um movimento marcado pela desigualdade e por um ideal estético.

A beleza feminina torna-se capital matrimonial, o que afeta o posicionamento dessa mulher na “prateleira do amor” e pode impactar sua autoestima a depender de quão distante está do ideal estético: branco, louro, magro e jovem (DEL PRIORE, 2000DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher - Pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: SENAC, 2000.; NOVAES, 2006NOVAES, Joana Vilhena. O intolerável peso da feiura - Sobre as mulheres e seus corpos. Rio de Janeiro: PUC/Garamond, 2006.). A estética associada ao racismo garante, assim, um privilégio da escolha como esposa da mulher branca e a objetificação da negra e da “mulata” para satisfação sexual (GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-243, 1984.).

Há, portanto, uma naturalização do casamento como destino que deve ser almejado pela mulher, pautado no medo do fracasso em não ter sido escolhida ou de se tornar a mulher solteira (“solteirona”, "encalhada"), o que influencia seu status social. Assim, segundo Zanello (2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.), se a avaliação de êxito da mulher está em estabelecer e manter o relacionamento amoroso, o fim dessa relação é sentido como uma falha de ordem identitária. Isso explica, em parte, a persistência de muitas mulheres em relações abusivas. O que se ensina a elas é que parte do seu valor, de mulheridade, está em conseguir transformar seu parceiro. Ou seja, há uma desresponsabilização dos homens não apenas em relação a seus comportamentos, mas até mesmo em relação a seus sentimentos (GUIMARÃES; ZANELLO, 2022GUIMARÃES, Maísa Campos; ZANELLO, Valeska. Enciumar(-se), experiência feminina? Dilemas narcísicos sob a ótica interseccional de gênero. Revista de Psicología (Lima), v.49, p. 1133-1174, 2022.; VALADARES; ZANELLO, 2022VALADARES, Victor; ZANELLO, Valeska. Autodesresponsabilização na violência contra as mulheres: interpretações, motivos e justificativas de homens agressores no DF. In: Adriano Beiras; Daniel Fauth Washington Martins; Salete Silva Sammariva; Michelle de S. Gomes Hugill. (Org.). Grupo para homens autores de violência contra as mulheres no Brasil: perspectivas e estudos teóricos. 1ed.Florianópolis: Academia Judicial, v. , p. 224-246, 2022.). Exalta-se, assim, o sacrifício da mulher por esse outro, seja parceiro, seja posteriormente o(s) filho(s), transformando a abnegação (nas mulheres) em virtude almejada.

O dispositivo materno advém da constituição da subjetividade das mulheres voltada ao heterocentramento, ou seja, à priorização das demandas dos outros, em detrimento das próprias necessidades (BELOTTI, 1983BELOTTI, Elena Gianini. Educar para a submissão: o descondicionamento da mulher. Petrópolis: Vozes, 1983.; ZANELLO, 2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.). Pelo fato de terem a capacidade de procriar (ter um útero), a capacidade de cuidar passou a ser pressuposto (e naturalizado) nas mulheres (GUILLAUMIN, 2014GUILLAUMIN, Colette. Prática do poder e ideia de natureza. In: FERREIRA, V.; ÁVILA, M.B.; FALQUET, J.; ABREU, M. O patriarcado desvendado. Teorias de três feministas materialistas: Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu. Trad. Jules Falquet; Maira Abreu. Recife: SOS Corpo, 2014.). O não cumprimento desse papel de cuidadora, de zelo pelo bem-estar dos outros, é desenvolvido de tal forma que a mulher corre o risco da perda do afeto que se confunde com a aprovação social. A cobrança por esse cuidado se traduz internamente nas mulheres como culpa, tão presente no momento de retirada das medidas protetivas, seja por não ter sido paciente o suficiente para não denunciar o companheiro, seja por estar fazendo os filhos sofrerem com o afastamento paterno.

A essencialização do cuidado como característica intrínseca ao ser mulher converte uma diferença biológica em desigualdade social, uma vez que as atividades relacionadas ao cuidar em geral (filhos, casa, enfermos, idosos, entre outros) são naturalizadas como de responsabilidade da mulher, bem como são invisibilizadas e desvalorizadas (FEDERICI, 2018FEDERICI, Silvia. O patriarcado do salário: Notas sobre Marx, gênero e feminismo. Trad: Heci Regina Candiani. 1ª ed., v. 1. São Paulo: Boitempo, 2018.). Ou seja, o cuidado é compreendido como um dom, uma vocação, um instinto e não um trabalho implicado de investimentos e sacrifícios (BADINTER, 1980BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1980.). O gerenciamento da estrutura e harmonia familiar passa, assim, pelo cuidado ofertado pela mulher.

Lélia Gonzalez (1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-243, 1984.) analisa a interação do sexismo e do racismo na constituição da mulher negra, em que o cuidado ofertado advém de sua posição em uma sociedade escravocrata. A herança escravocrata da “bá” ou da “mãe preta”, posição que se atualiza para empregada doméstica, potencializa o lugar de cuidado destinado à mulher negra, a qual presta esse serviço para sua própria família e para a dos outros (GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-243, 1984.). Assim, na distribuição da economia do cuidado, são as mulheres negras que ocupam o lugar de quem mais oferta cuidados e de quem menos o recebe (IPEA 2016).

Como esses dispositivos participam da decisão da mulher vítima de violência em revogar as medidas protetiva de urgência? E quais seriam as interseccionalidades existentes (raça, número de filhos etc.) na decisão de mantê-la ou suspendê-la? Essa pesquisa teve como objetivo investigar tanto as variáveis sociodemográficas que podem influenciar a manutenção das medidas protetivas, como também analisar as principais motivações elencadas pelas mulheres vítimas de violência doméstica para abdicarem de um recurso legal de proteção instituído pela LMP.

2. Método

2.1 Participantes/Fontes

A instituição consentiu com a realização da análise documental dos casos de violência doméstica para essa pesquisa. Os documentos analisados foram produzidos por uma equipe psicossocial do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Esses documentos eram compostos de questionário sociodemográfico e de relatórios produzidos pela equipe após intervenção psicossocial coletiva, desencadeada pelo pedido de revogação das medidas protetivas por parte das mulheres vítimas de violência doméstica. As informações obtidas durante esse procedimento foram estruturadas em relatórios pela equipe psicossocial, com o objetivo de assessorar diretamente a atuação das/dos promotoras/promotores de justiça e indiretamente a/o juíza/juiz.

As solicitações de revogação das mulheres ocorreram entre janeiro e setembro de 2019. Ao todo, foram encaminhadas à equipe psicossocial 103 mulheres que solicitaram revogação das MPUs no período analisado, na unidade do MPDFT da região administrativa do Distrito Federal (DF) em que a pesquisa foi realizada. Contudo, apenas 63 compareceram à intervenção psicossocial. Analisou-se os documentos produzidos a partir dessa intervenção em todos os 63 casos, minimizando o viés de seleção na pesquisa.

Utilizou-se o vínculo com o autor da violência como critério de inclusão na pesquisa, sendo incluídos apenas os casos em que o homem autor fosse marido/companheiro, namorado, ex-marido/ex-companheiro, ex-namorado. Com base nesse critério, foram excluídos dois relatórios da análise documental. Além disso, excluiu-se um relatório por não haver registro do preenchimento do questionário sociodemográfico. Ao fim, foram analisados os documentos referentes a 60 participantes: 60 questionários sociodemográficos e 60 relatórios produzidos pela equipe psicossocial.

Os relatórios produzidos constam nos autos das medidas protetivas de cada participante, sendo esses relatórios a base documental dessa pesquisa. No Distrito Federal, em geral, os pedidos de revogação são realizados pelas próprias mulheres na promotoria de justiça, seguem para análise das/os promotoras/res de justiça e, por fim, para decisão da juíza/do juiz sobre a revogação ou não da medida protetiva deferida. A figura 1 ilustra o fluxograma interno da solicitação de revogação das MPUs, do local em que foi realizada a pesquisa, e do momento de produção dos documentos que formaram a base documental de análise.

Figura 1

2.2 Procedimentos e Análise de Dados

Os dados sociodemográficos foram recolhidos a partir dos questionários aplicados rotineiramente pela equipe local. Preservou-se o sigilo das informações das mulheres vítimas de violência doméstica. Todos os cuidados foram tomados para evitar a identificação a partir das informações presentes nesse artigo, além de rigorosos procedimentos que evitassem expô-las a qualquer risco de retaliação ou de prejuízo em seu processo judicial em razão dessa pesquisa. Nos resultados, são usados nomes fictícios para garantir a não identificação e os excertos foram retirados dos relatórios.

Realizou-se pesquisa exploratória com análise mista quali-quanti, utilizando-se a técnica da análise de conteúdo (AC) proposta por Laurence Bardin (2009BARDIN, Laurence. Análises de conteúdo. Tradução: Luís Antero Reto; Tradução: Augusto Pinheiro. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009.). Segundo a autora, a AC constitui-se “como conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (BARDIN, 2009BARDIN, Laurence. Análises de conteúdo. Tradução: Luís Antero Reto; Tradução: Augusto Pinheiro. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009., pg.38). As inferências de conhecimento geradas a partir da AC estão relacionadas com as condições de produção da mensagem (significações que são contextualizadas socialmente) e recorrem a indicadores quantitativos ou não (BARDIN, 2009). A AC possui duas funções que podem coexistir: função heurística - tentativa exploratória -, e função de “administração da prova” - confirmação ou não de hipóteses em forma de questões ou afirmações provisórias (Bardin, 2009).

Conforme proposto por Bardin (2009BARDIN, Laurence. Análises de conteúdo. Tradução: Luís Antero Reto; Tradução: Augusto Pinheiro. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009.), os seguintes passos foram aplicados nessa pesquisa, a fim de realizar a análise de conteúdo: (1) pré-análise com escolha dos documentos, estabelecimento de objetivos e leitura “flutuante” do material; (2) exploração do material com a codificação de unidades de registro (frases), contabilização da frequência com que aparece determinado conteúdo ou unidade de registro (dados descritivos em forma de percentual); (3) tratamento dos resultados obtidos e a interpretação. Na terceira etapa, há a categorização, ou seja, classificação dos elementos presentes nos documentos analisados de modo que haja (a) homogeneidade de conteúdo entre as unidades de registro dentro da mesma categoria e (b) diferenciação entre o grupo de elementos que formam categorias diversas por meio da exclusividade de pertencimento da unidade de registro a uma única categoria.

Além disso, procedeu-se a distribuição da frequência (porcentagem) de cada categoria com base em um recorte temporal. A fim de realizar o recorte temporal mencionado, registrou-se o tempo decorrido entre a data do episódio de violência (data do fato) e a data da solicitação da mulher de revogação das medidas protetivas. Buscou-se verificar, nesse intervalo, se havia fatores que influenciavam o tempo de manutenção das MPUs por essas mulheres. Por fim, articulou-se a interpretação dos resultados com base na literatura apresentada na introdução acerca dos dispositivos de gênero, porém não limitando a existência de categorias a esse referencial teórico.

Importante situar que uma das pesquisadoras é nativa da instituição e atua nessa área. Sendo assim, a experiência prévia na produção de relatórios a partir dos acolhimentos influencia a interpretação e a distribuição nas categorias registradas nessa pesquisa. Ao manter-se ao longo da pesquisa ativo processo de reflexividade, por meio da autocrítica constante, a inserção como servidora na instituição pode propiciar o conhecimento aprofundado das dinâmicas e da produção de conteúdo das peças processuais.

3. Resultados e Discussão

Para fins comparativos em relação à amostra, segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios - PDAD 2018 (RELATÓRIO CODEPLAN, 2019), a população da região administrativa do DF contemplada nessa pesquisa é: em sua maioria negra (66,8%); com baixa escolaridade (pessoas sem escolaridade até conclusão do ensino fundamental totalizam cerca de 44%); grupo no DF considerado de média-baixa renda; em geral inserido no mercado informal de trabalho (autônomos e empregados sem carteira assinada totalizam cerca de 67%).

Na amostra dessa pesquisa, as mulheres possuíam idades entre 18 e 63 anos, sendo que 68% da amostra encontrava-se na faixa etária de 18 a 37. Em relação à cor/raça, 52% se autodeclararam parda, 28% brancas, 10% pretas e 10% deixaram essa informação em branco, ou seja, a maioria era não-branca (62%). Ao se referir à categoria cor/raça nessa pesquisa, utilizou-se mulheres negras para contemplar as mulheres que se autodeclararam pretas e pardas (não-brancas).

O grau de escolaridade das mulheres se distribuiu da seguinte forma: 35% delas declararam possuir ensino fundamental completo, 25% com ensino médio completo, 18% ensino médio incompleto, cerca de 12% eram analfabetas ou possuíam ensino fundamental incompleto e 10% possuíam ensino superior incompleto ou qualificação maior. Destaca-se que 10% das mulheres negras possuíam ensino superior incompleto ou qualificação maior, em contraposição a 5% das que se autodeclararam brancas, sendo essa uma especificidade dessa amostra que não condiz com as estatísticas gerais da população brasileira1 1 Segundo dados do IBGE/PNAD, em 2015, a proporção no centro-oeste de mulheres brancas acima de 25 anos com 12 anos ou mais de estudo foi de 31,9%, em contraposição à 20% das mulheres negras. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/. Acessado em 9/3/2021. .

A maior parte das participantes, 42%, indicaram que trabalham no mercado informal, seguido de 23% que trabalham no mercado formal, 22% assinalaram que estavam desempregadas, 10% não preencheram essa informação, e 3% informaram estar afastadas por motivo de saúde e o restante não preencheu esse dado, ou seja 62% possuíam vínculo empregatício instável ou nenhum. O trabalho informal é caracterizado pela incerteza da situação de trabalho e a ausência de proteção da legislação trabalhista, sendo este mercado uma das formas de discriminação do trabalho feminino na América Latina (OIT, 2018). No estudo realizado por Ludermir (2000, 2005), foi verificada uma maior associação entre trabalho informal e a presença de transtornos mentais comuns em mulheres.

Da população de mulheres negras, 48% informaram que possuem trabalho no mercado informal, 24%, trabalho formal, e 21% estavam desempregadas. Das mulheres brancas, 41% trabalhavam no mercado formal, 29% indicaram estarem no trabalho informal e 17% estavam desempregadas. Ou seja, 69% das mulheres negras estavam em condições econômicas precárias ou instáveis, ao passo que, entre as mulheres brancas, 46% estavam nas mesmas condições. Nascimento (2019) ressalta a perpetuação de um critério racial na hierarquia laboral, o que coloca pessoas negras em empregos mais precários.

No momento da solicitação da retirada das medidas protetivas, 65% das participantes declararam no questionário que ainda mantinham um relacionamento (marido/união estável ou namorado) com o homem autor da violência, 30% informaram que estavam separadas e 5% deixaram essa informação em branco. A duração dos relacionamentos variou de 3 meses a 33 anos, destacando-se as faixas de 2 a 5 anos e acima de 10 anos, ambas com cerca de 36% cada um. Um total de 70% declarou possuir pelo menos um filho em comum com o homem autor de violência.

3.1 Categorização das motivações para a solicitação de revogação das medidas protetivas

A partir da leitura e análise dos relatórios produzidos pela equipe psicossocial, que constavam nos autos de medidas protetivas, foram elencadas quatro categorias sobre as motivações para o pedido de revogação das medidas protetivas de urgência (MPUs): Cuidar, Amar, Dependência financeira e Percepção do risco. Algumas vezes, o relatório apresentou mais de uma motivação para o pedido de retirada das medidas protetivas. Nesses casos, o relatório foi contabilizado em mais de uma categoria. Apenas três relatórios apresentaram conteúdos em que não foi possível enquadrá-los em uma categoria específica.

3.1.1 Cuidar

Foram considerados motivos na categoria cuidar descrições relacionadas à necessidade da mulher em cuidar do outro, seja da relação do pai/parceiro com os próprios filhos e na gestão da vida cotidiana dos familiares, seja da saúde do próprio homem agressor.

Em 32 relatórios (53% dos documentos analisados), foram identificados temas relacionados à categoria cuidar para a solicitação das mulheres de retirada de suas medidas protetivas. A potencialização do cuidado a partir da análise de características interseccionais é verificada na porcentagem relativa de mulheres negras, 59% dessas mulheres tiveram as motivações para a retirada das medidas protetivas enquadradas nessa categoria. Em contraposição, entre as mulheres brancas, 47% apresentaram temáticas ligadas a essa categoria. Quando se analisa a interação do sexismo e do racismo, na distribuição da economia do cuidado, são as mulheres negras que ocupam o lugar de quem mais oferta cuidados e de quem menos os recebem (GONZALEZ, 1984GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-243, 1984.).

Ainda em relação aos dados sociodemográficos das mulheres cujas motivações enquadraram-se nessa categoria, verificou-se que houve pouca diferença na informação acerca do vínculo atual com o autor, se estavam juntos (marido/união estável/namorado, 53%) ou separados (ex-marido/ex-namorado, 47%). Nessa categoria, 90% possuíam filho em comum com o autor, reforçando a ideia do cuidado a ser ofertado; 53% trabalhavam no mercado informal, 18% estavam desempregadas, 15% no mercado formal. Ou seja, nessa categoria, 71% estavam em situação precária ou instável de emprego.

Dois temas apareceram na categoria cuidar: Mediação entre pai e filho/filha e Cuidar do (ex)parceiro. O tema mediação entre pai e filho/filha (n=24) abarcou falas nas quais as mulheres problematizaram tanto a tentativa de não prejudicar a relação do genitor com os filhos, quanto a dificuldade de manejar as visitas do pai, com a intermediação de outras pessoas (por causa da medida protetiva).

A título de exemplo, seguem trechos dos relatórios da equipe psicossocial que traduziram as falas das mulheres que solicitaram a revogação das medidas protetivas: Nilse “manifestou o desejo de manter o vínculo do filho com o genitor” (3R). Júlia, por seu turno, destacou que havia “necessidade de auxílio de Y com o filho” (56R). Felipa também ressaltou que havia “necessidade de debater questões parentais e viabilizar os dias de convivência” (84R). Lúcia destacou, nesse sentido, que “não deseja(va) sobrecarregar a vó paterna” (29R). Fernanda ressaltou que “falta(va) rede de suporte que possa intermediar os dias de visita” (62R). Ou seja, precisar de outras pessoas para manejar as visitas paternas era um empecilho à manutenção das medidas protetivas, seja pela falta de rede, seja para não sobrecarregar ainda mais outras pessoas (geralmente mulheres).

Em frequência menor, também apareceu o tema “cuidar do (ex)parceiro” (n=8). Esse tema abarcou os excertos dos relatórios que indicavam que as mulheres se sentiam responsáveis pelo bem-estar dos parceiros ou ex-parceiros, ou não queriam lhes prejudicar. Destaca-se que essa decisão (de retirar a medida protetiva por esta razão) colocava em primeiro lugar o bem-estar deles, em detrimento da própria ameaça que as mulheres poderiam sofrer. Antônia, por exemplo, destacou a “necessidade de cuidar da saúde de Y, que recentemente passou por um processo cirúrgico” (4R). Geralda relatou: “Ele é uma pessoa muito doente, precisa de ajuda para tudo” (98R). Por fim, Patrícia: “Apesar de temer pelo seu bem-estar, (...) o pedido de retirada (...) foi motivado pelo desejo de sua filha não querer que o genitor seja prejudicado” (45R).

Levando em consideração os temas presentes nessa categoria, pode-se apontar o funcionamento do dispositivo materno nessas mulheres. Evidencia-se que a naturalização da capacidade de cuidar no sexo feminino, a partir de um atributo biológico, desdobra-se na generalização da oferta desses cuidados a todos, incluindo parceiros e ex-parceiros.

Como apontamos, o processo de subjetivação da mulher a predispõe ao heterocentramento, havendo para a manutenção desse funcionamento a punição de comportamentos percebidos como egoístas ou autocentrados (ZANELLO, 2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.). O sentimento de realização da mulher é, então, deslocado para o oferecimento de conforto e bem-estar ao outro, o que pode ser percebido quando, nessa categoria, as mulheres retiraram as medidas protetivas a fim de não prejudicar a relação do genitor com o filho, de não sobrecarregar o familiar, de oferecer cuidados à saúde do próprio homem autor de violência ou de não o prejudicar com o processo judicial.

O dispositivo materno funciona, assim, como um cuidado ao outro de forma generalizada. Além das menções aos familiares e à saúde do autor, faz-se mister destacar que, nessa categoria, 10% das mulheres não possuíam filhos em comum com os autores, evidenciando que a maternidade é apenas o cume desse cuidado destinado ao outro, em detrimento de seu próprio bem-estar. Abdicar das medidas protetivas, pode contribuir, então, para a redução do sentimento de culpa. Sentimento comum nas mulheres e que pode decorrer da contraposição entre ter realizado a denúncia e não ter agido de modo condizente com as “qualidades femininas” interpeladas pelo dispositivo materno: doação, altruísmo, abnegação de si mesma, silêncio (ZANELLO, 2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.). Essa análise dialoga com a presença de relatos das mulheres, nos relatórios, acerca da falta de apoio familiar e social para dar continuidade à denúncia contra parceiro.

A ideia do cuidado se estende para as atividades de gestão da vida doméstica e cotidiana, percebidas como secundárias, porém necessárias para oferecer o suporte aos outros. Sendo assim, a gestão dos dias de convivência entre pai e filho, normalmente, são realizadas pelas mulheres, o que justifica a retirada das medidas protetivas como uma forma de facilitar a execução dessa função. O cuidado sendo entendido como intrínseco ao sexo feminino acarreta ainda a função social de ensinar os homens a serem pais e de ser responsável pelo êxito de uma boa relação paterno-filial (LOBÃO; LEAL; ZANELLO, 2020LOBÃO, Marília; LEAL, Daniele; ZANELLO, Valeska. Guarda compartilhada a despeito do desejo da mãe: Violência institucional contra as mulheres. In: BIRCHAL, A. DE S.; BERNARDES, B. P. (Eds.). Pontes para a paz em casa: práticas e reflexões. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2020. p. 41-58.).

Dois relatórios se destacam porquanto há a menção ao pedido do homem autor de violência para que a mulher retire as medidas protetivas. Avalia-se que esse comportamento possa estar pautado em uma suposição de que a revogação das medidas protetivas influenciaria o desenrolar da ação penal vinculada ao episódio de violência. Essa suposição pode ser resquício da anterior possibilidade de a mulher retirar a queixa na delegacia, o que é vedado atualmente pela LMP.

Esse comportamento do homem autor evidencia a perpetuação da violência psicológica contra a mulher após a denúncia, seja por meio de coação, seja por chantagem emocional. Além disso, reforça o papel dessa mulher como responsável pelas consequências sofridas pelo companheiro na esfera judicial.

3.1.2 Amar

Nessa categoria foram abarcados tanto os excertos que desresponsabilizavam os agressores, minimizando as violências, quanto os que afirmavam uma crença na transformação futura do (ex) parceiro. Em 28 relatórios (aproximadamente 47%), foram identificados temas relacionados a essa categoria como motivação para o pedido de retirada das medidas protetivas. Apenas quatro relatórios possuíram temas que se enquadravam tanto nessa categoria quanto na categoria cuidar.

Em relação aos dados sociodemográficos dos casos que foram enquadrados nessa categoria, 93% marcaram possuir vínculo atual com o homem autor de violência, seja como marido ou namorado, o que indica a continuidade da relação, independentemente do episódio de violência; 57% das mulheres nessa categoria possuíam filhos em comum com o autor; 35% trabalhavam no mercado informal, 29% no mercado formal e 29% estavam desempregadas; 7% não preencheram essa informação. Isto é, 64% possuíam relações de trabalho precárias ou instáveis. Em relação à cor/raça nessa categoria, dentre as mulheres negras, 46% se enquadraram nessa categoria, enquanto entre as brancas foram 47%.

Dois temas compuseram a categoria amar: Minimização da violência e desresponsabilização do (ex) parceiro e Expectativa de mudança do companheiro.

No tema Minimização da violência e desresponsabilização do (ex) parceiro (n=19), as mulheres tentavam ou apontar qualidades positivas (laborais/paternas) dos homens agressores, a fim de destacar que a violência seria um defeito menor (não tão sério) ou se auto(co)responsabilizavam pela agressão ocorrida. No relatório de Márcia, por exemplo, indica-se a “Minimização da violência junto ao discurso de qualificação do parceiro”, pois ela afirma que ‘ele é ótimo pai e trabalhador’” (8R). Ely, por seu turno, “alega que foi o primeiro episódio de violência” (30R). No relatório de Flávia, aponta-se que “houve autorresponsabilização por não ter se mobilizado em provar que não o tinha traído (...) ‘eu estava de cabeça quente quando pedi as medidas protetivas’” (63R). Jussara “destacou que as violências são mútuas” (79R) e Juliana “minimizou as violências”, alegando “acho que ele teve um surto” (94R).

No tema Expectativa de mudança do companheiro (n=9), apareceram nos relatórios indicações de crença na mudança do (ex)parceiro, seja por fazer tratamento iniciado após o registro da denúncia, seja por acreditar que, apesar de tudo, eles as amavam. Débora ressaltou, nesse sentido, que “o companheiro está fazendo tratamento” (25R). Catarina disse que o parceiro “se arrependeu do ato praticado” e, por isso, “dará ‘uma segunda chance’ ao companheiro” (36R). O relatório de Andressa indicava a “crença na mudança de comportamento” do parceiro, pois ela informou que “ele tem medo de me perder” (71R). Por fim, Isabel “confia na recuperação do companheiro” (93R).

Levando em consideração os temas presentes nessa categoria, pode-se apontar o funcionamento do dispositivo amoroso nessas mulheres, pelo qual o processo de ser escolhida na “prateleira do amor” é acompanhado pela necessidade de ser exitosa na manutenção dessa relação. Ao ser delegada às mulheres a responsabilidade pela manutenção do relacionamento amoroso, o fim da relação tem maior impacto na saúde mental da mulher do que na do homem, sendo percebido como uma falha da própria mulher, que não foi competente em realizar sua função (SIMON; LIVELY, 2010SIMON, Robin. W.; LIVELY, Kathryn. Sex, Anger and Depression. Social Forces, v. 88, n. 4, p. 1-26, 2010.; ZANELLO, 2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.).

Os resultados sugerem que a retirada das medidas protetivas é, então, condizente com essa vulnerabilidade subjetiva desencadeada pelo processo de subjetivação no dispositivo amoroso. A minimização da violência presente nos relatórios pode configurar-se como um processo de deslegitimação interna e externa da denúncia realizada, de modo que se justifique o pedido de retirada das medidas protetivas e a nova tentativa de manter esse relacionamento.

Além da responsabilidade pelo casamento, a crença de que a mulher é capaz, com dedicação e paciência, de transformar o comportamento desse homem é constantemente reforçada pelas tecnologias de gênero (ZANELLO, 2018ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.). Outros relacionamentos, muitas vezes, servem de exemplos, nos quais as mulheres, em geral familiares dela ou do parceiro, sofreram anos de violência, mas atualmente o relacionamento é mencionado como exemplar, sem, contudo, ser abordado o custo à mulher que vivenciou o relacionamento abusivo.

Essa dinâmica é aprofundada pela ideia do amor romântico, em que se exige o sacrifício e a renúncia para atingir o amor verdadeiro (DIAS et al., 2012DIAS, Ana Rita; MACHADO, Carla; GONÇALVES, Abrunhosa Rui; MANITA, Celina. Repertórios interpretativos sobre o amor e as relações de intimidade de mulheres vítimas de violência: Amar e ser amado violentamente? Análise Psicológica, v. XXX, n. 1-2, p. 143-159, 2012.; NASCIMENTO; CORDEIRO, 2011NASCIMENTO, Fernanda Sardelish; CORDEIRO, Rosimeide de Lourdes Meira. Violência no namoro para jovens moradores de Recife. Psicologia & Sociedade, v. 23, n. 3, p. 516-525, 2011.; PORTO; BUCHER-MALUSCHKE, 2014PORTO, Madge; BUCHER-MALUSCHKE, Julia S. N. A Permanência de Mulheres em Situações de Violência: Considerações de Psicólogas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 30, n. 3, p. 267-276, 2014.). O amor romântico permanece como uma experiência sonhada, desejada e esperada como parte ordenadora da biografia de mulheres, alcançando, assim, o estatuto de prioridade porquanto balizador do êxito ou fracasso dessa mulher (ACTIS; CREMONA; GARIGLIO, 2018ACTIS, María Florencia; CREMONA, María Florencia; GARIGLIO, Rocio. Entre el deseo y los sacrifícios. El dispositivo del amor romántico en el relato de las mujeres. De prácticas y discursos, n. 10, p. 237-260, 2018.). A esperança de que o tratamento ou o próprio boletim de ocorrência cesse as violências sem que haja o rompimento da relação pode influenciar também a retirada da medida protetiva à luz desse dispositivo. Apesar de a mudança não ter ocorrido de forma privada, a ação externa sobre o comportamento desse homem ainda se enquadra na expectativa de mudança do companheiro. Ser um casal transforma-se em bem simbólico e material, o que demanda trabalho, abnegação e sacrifício, sendo necessária a constante negociação do contrato conjugal (ACTIS; CREMONA; GARIGLIO, 2018). A renegociação que advém da revogação da medida protetiva se inscreve em processos distintos de formação da subjetividade e que contribuem para que a mulher seja mais suscetível a violências de gênero, mediante a pacificação e acomodação de dinâmicas abusivas.

3.1.3 Dependência financeira

Conforme indicado anteriormente, 13 participantes (21%) preencheram que estavam desempregadas, porém a dependência financeira manifestada como justificativa do pedido de retirada das medidas protetivas foi relatada em apenas 6 dos relatórios analisados, o que configura 10% da amostra. As duas variáveis coincidiram em quatro casos, isto é, a participante declarou estar desempregada e ser a dependência financeira um dos motivos para revogar as medidas protetivas. Estudos indicam a dependência financeira como um dos fatores de risco que favorece a vivência de uma situação de violência intrafamiliar pela mulher (GUIMARÃES, 2009GUIMARÃES, Fabrício Lemos. “Mas ele diz que me ama...”: Impacto da história de uma vítima na vivência de violência conjugal de outras mulheres. Brasília: Universidade de Brasília, 2009.; KRUG et al., 2002).

O questionário possuía um espaço com questão aberta para fins de preenchimento com a renda mensal, contudo, essa parte foi amplamente deixada em branco. Acredita-se que apresentar opções fechadas com faixas salariais de renda poderiam ter maior adesão no momento de preenchimento. Sendo assim, não é possível indicar se a sensação de dependência financeira está relacionada à renda auferida nos casos em que não foi manifestada a vivência da situação de desemprego.

3.1.4 Percepção do risco

Em 11 relatórios (cerca de 18%), houve a menção expressa de o motivo da solicitação de retirada das medidas protetivas ser “não se sentir mais em risco”. Apenas em dois relatórios, a não percepção de haver risco foi mencionada, de forma isolada, como motivação. Em relação aos dados sociodemográficos relevantes, 72% das mulheres, nessa categoria, possuíam filhos em comum com o homem autor de violência e 54% informaram o vínculo atual com o autor como marido, dados esses que contribuem para a concorrência das motivações para o pedido de retirada das medidas protetivas nas categorias cuidar e amar.

Apesar de se poder analisar a motivação pela presença nas categorias mencionadas anteriormente, observa-se que, no sistema de justiça, o principal questionamento relacionado à revogação das medidas protetivas refere-se ao risco percebido. Essa visão decorre da redação do dispositivo legal, em que a medida protetiva de urgência cabe nos casos de risco iminente à integridade física e psicológica da mulher. Há, assim, a possibilidade de que, durante o pedido de retirada das medidas protetivas pela mulher, ela seja induzida a expressar que não se sente em risco. Esse fato pode ser problemático quando a retirada está próxima à data do fato, visto que a denúncia pode ser interpretada pelo homem autor de violência como uma tentativa da mulher de separar-se, fator de risco para a reincidência de violência e de feminicídio (CAMPBELL et al., 2003CAMPBELL, Jacquelyn C.; WEBSTER, Daniel; KOZIOL-MCLAIN, Jane; BLOCK, Carolyn; CAMPBELL, Doris; CURRY, Mary Ann; et al. Risk factors for femicide in abusive relationships: Results from a multisite case control study femicide cases. American Journal of Public Health Public Health, v. 93, n. 7, p. 1089-1097, 2003.; MEDEIROS, 2015MEDEIROS, Marcela Novais. Avaliação de risco em casos de violência contra a mulher perpetrada por parceiro íntimo. [s.l.] Universidade de Brasília, 2015.).

3.2 Manutenção das medidas protetivas de urgência

A permanência ao longo do tempo das medidas protetivas é um dos instrumentos legais previsto pela LMP para evitar novos episódios de violência. Na promotoria de justiça em que os relatórios psicossociais foram analisados, cadastraram-se 215 novas medidas protetivas de urgência, no período de janeiro a setembro de 2019. Nesse mesmo período, 103 pedidos de revogação das medidas protetivas foram encaminhados à equipe psicossocial para intervenção, o que nesse universo equivale a cerca de 47%.

Os documentos analisados foram divididos em quatro grupos de acordo com a variação de tempo entre a data do episódio de violência (data do fato [DF]) e a data de solicitação da revogação das medidas protetivas (DR) pelas mulheres vítimas de violência doméstica no MPDFT. Os grupos correspondem a pedidos de retirada que ocorreram: (1) até 30 dias da data do fato, aproximadamente no primeiro mês após o registro da ocorrência; (2) de 31 a 60 dias da data do fato, isto é, os pedidos de retirada ocorreram durante o segundo mês após o registro da ocorrência; (3) de 61 a 90 dias, as solicitações de retirada ocorreram no terceiro mês após o fato; (4) e de 91 dias em diante.

No primeiro período foram contabilizadas 30 solicitações, o que representa 50% da amostra. No segundo mês a partir da data do fato, foram contabilizadas 11 solicitações, o que representa cerca de 18%. No terceiro, houve 5 pedidos, cerca de 8%. Por fim, após 91 dias, somaram 14 solicitações de retirada das medidas protetivas, cerca de 23% (Tabela 1). Destaca-se que, no último período, apenas 4 pedidos de retirada ocorreram após seis meses da data do episódio de violência registrado pela mulher.

Tabela 1
Frequência dos pedidos de revogação das medidas protetivas

A tendência geral das variáveis sociodemográficas e das categorias analisadas anteriormente foram similares, cerca de 50% das solicitações de retirada das medidas protetivas ocorreram nos primeiros 30 dias após a data do fato, havendo uma redução progressiva até 90 dias da data do fato com aumento dos pedidos após os 91 dias. As análises dos pedidos de revogação das medidas protetivas possuem destaques no primeiro período de 1 a 30 dias após a data do fato e no último período, ocorrendo após 91 dias da data do fato, o que corresponde a um tempo maior de manutenção das medidas protetivas por parte das mulheres vítimas de violência doméstica.

Ao se analisar os pedidos de retirada nos primeiros 30 dias, observou-se que as motivações referentes à categoria amar se sobressaíram em relação aos outros períodos, com 57% dos pedidos de retirada. Esse dado pode ser analisado conjuntamente com o vínculo declarado com o homem autor de violência, em que 62% dos pedidos de retirada ocorreram no primeiro mês quando indicavam a manutenção do relacionamento, ao marcarem as opções casada, união estável ou namorado com o homem autor da violência.

A presença da categoria dependência financeira também se destacou nesse período de análise, em que 50% dos pedidos de retirada das medidas protetivas ocorreram nos primeiros 30 dias, mantendo-se a quantidade de pedido estável nos períodos seguintes. Ressalta-se que quando se realizou o recorte temporal com base na situação ocupacional das mulheres, 62% das mulheres que declararam estar desempregadas solicitaram a revogação das medidas protetivas no primeiro mês após o fato. Isso corrobora as pesquisas que indicam a dependência financeira como um fator de risco para a manutenção do relacionamento abusivo (GUIMARÃES, 2009GUIMARÃES, Fabrício Lemos. “Mas ele diz que me ama...”: Impacto da história de uma vítima na vivência de violência conjugal de outras mulheres. Brasília: Universidade de Brasília, 2009.; KRUG et al., 2002; PORTO; BUCHER-MALUSCHKE, 2014PORTO, Madge; BUCHER-MALUSCHKE, Julia S. N. A Permanência de Mulheres em Situações de Violência: Considerações de Psicólogas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 30, n. 3, p. 267-276, 2014.).

Ao se analisar a duração do relacionamento na manutenção das medidas protetivas, verificou-se que, em relacionamentos de até dois anos, 60% das solicitações de retirada das medidas protetivas ocorreram no primeiro mês após a data do fato, o que pode ter sido influenciado pela expectativa de mudança do companheiro e tentativa de não prejudicar o companheiro ou ex-companheiro, temáticas abarcadas pelas categorias amar e cuidar respectivamente.

Em relacionamentos com mais de dois anos, cerca de 49% solicitaram a retirada no primeiro mês após a data do fato, o que pode estar associado à função de manter a união relacionada ao dispositivo amoroso. Além disso, a vivência de longos períodos de situações de violência pode configurar fator de risco para a permanência no relacionamento abusivo, em razão da influência desse contexto na saúde mental das mulheres e no aumento de seu nível de tolerância por meio da naturalização das violências sofridas e da acomodação das estruturas de poder (DINIZ, 2017DINIZ, Glaucia Ribeiro Starling. Trajetórias conjugais e a construção das violências. Psicologia Clínica, v. 29, n. 1, p. 31-41, 2017.; GUIMARÃES, 2009GUIMARÃES, Fabrício Lemos. “Mas ele diz que me ama...”: Impacto da história de uma vítima na vivência de violência conjugal de outras mulheres. Brasília: Universidade de Brasília, 2009.).

Esperava-se que a presença de filhos aumentasse a quantidade de solicitações de retirada das medidas protetivas no primeiro mês em comparação com mulheres sem filhos em comum, uma vez que estaria de acordo com a ideia de manutenção da união familiar e de cuidado do outro, a despeito do seu bem-estar (GUIMARÃES; DINIZ; ANGELIM, 2017GUIMARÃES, Fabrício Lemos; DINIZ, Glaucia Ribeiro Starling; ANGELIM, Fábio Pereira. “Mas Ele Diz que me Ama...”: Duplo-vínculo e nomeação da violência conjugal. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 33, n. 1, p. 1-10, 29 ago. 2017.). Entretanto, cerca de 50% de ambos os grupos - das mulheres com filhos e das mulheres sem filhos - realizaram solicitação de retirada das MPUs nos primeiros 30 dias após o fato.

Entre os pedidos de retirada das medidas protetivas após o quarto mês da data do episódio de violência (acima de 91 dias), destaca-se a presença da categoria cuidar, o que pode estar relacionado à sobrecarga da rede de apoio dessa mulher e/ou do desgaste da mulher em articular a mediação do contato do pai com o filho. Essa avaliação decorre da análise por meio do dispositivo materno, em que essa mulher fica responsável pela manutenção e qualidade do vínculo paterno-filial (LOBÃO; LEAL; ZANELLO, 2020LOBÃO, Marília; LEAL, Daniele; ZANELLO, Valeska. Guarda compartilhada a despeito do desejo da mãe: Violência institucional contra as mulheres. In: BIRCHAL, A. DE S.; BERNARDES, B. P. (Eds.). Pontes para a paz em casa: práticas e reflexões. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2020. p. 41-58.).

Quando era indicado o rompimento da relação amorosa (ex-namorado/ex-companheiro), 33% dos pedidos de retirada das medidas protetivas ocorreram após os 91 dias da data do fato. Em contraposição a 13% dos pedidos de revogação ocorridos após os 91 dias da data do fato, em que era indicada a manutenção da relação amorosa. Dessa forma, os resultados sugerem que o fim do relacionamento possa contribuir para a percepção da necessidade de manter vigente a medida protetiva por um período maior, a fim de garantir a sua segurança até que haja a aceitação do término por parte do homem autor de violência. A tentativa de separação e a separação de fato do homem autor de violências pode ser um agravante no risco de sofrer feminicídio por parte de mulheres (ÁVILA et al., 2020ÁVILA, Thiago Pierobom de; MEDEIROS, Marcela Novais; CHAGAS, Cátia Betânia; VIERA, Elaine Novaes; MAGALHÃES, Thais Quezado Soares; PASSETO, Andrea Simoni de Zappa. Políticas públicas de prevenção ao feminicídio e interseccionalidades. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 2, p. 384-414, 2020.; CAMPBELL et al., 2003CAMPBELL, Jacquelyn C.; WEBSTER, Daniel; KOZIOL-MCLAIN, Jane; BLOCK, Carolyn; CAMPBELL, Doris; CURRY, Mary Ann; et al. Risk factors for femicide in abusive relationships: Results from a multisite case control study femicide cases. American Journal of Public Health Public Health, v. 93, n. 7, p. 1089-1097, 2003.; MEDEIROS, 2015MEDEIROS, Marcela Novais. Avaliação de risco em casos de violência contra a mulher perpetrada por parceiro íntimo. [s.l.] Universidade de Brasília, 2015.; SOARES, 2005SOARES, Bárbara M. Enfrentando a violência contra a Mulher: orientações práticas para profissionais e voluntários. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005.).

A categoria percepção do risco também se destaca nesse recorte temporal com 45% dos pedidos de retirada após os 91 dias da data do fato, o que pode estar relacionado à dessensibilização com o passar do tempo, do estado de alerta após um evento traumático. Caso a mobilização emocional permaneça por um período considerável, sem que haja novos episódios de violência, pode ser evidência de um possível adoecimento mental, como o transtorno de estresse pós-traumático (KNAPP; CAMINHA, 2003KNAPP, Paulo; CAMINHA, Renato Maiato. Terapia cognitiva do transtorno de estresse pós-traumático. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 25, n. Supl. I, p. 31-36, 2003.).

Em relação à cor/raça, observou-se que 51% das mulheres negras solicitaram a retirada das MPUs no primeiro mês da data do fato em comparação com 41% das mulheres que se autodeclararam brancas (tabela 2). Essa diferença pode estar associada à diferença na situação ocupacional entre elas, visto que há uma prevalência das primeiras em situação de desemprego ou alocadas em trabalhos informais com maior precariedade nas relações de trabalho.

Tabela 2
Distribuição em porcentagem de cor/raça autodeclarada nos grupos de variação de tempo entre DR e DF

A manutenção por mais de 91 dias das medidas protetivas por 35% das mulheres brancas em comparação à 18% das mulheres negras pode ser afetada por seu posicionamento na “prateleira do amor”. Ao considerar o papel do ideal estético na autoestima das mulheres, há a possibilidade de que as mulheres brancas tenham mais segurança em manter por mais tempo as medidas protetivas. Em coerência com o debate da solidão da mulher negra, o temor pelo fim do relacionamento pode oferecer um peso maior às mulheres negras, influenciando o tempo de duração das MPUs. Soma-se a essa análise, as imagens da mulher negra associadas à força, dedicação e autossacrifício (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação - Episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.), que podem contribuir para uma presença maior de pedidos de revogação nos primeiros meses após o registro do boletim de ocorrência por mulheres negras: “É a capacidade de sobreviver sob condições adversas do racismo genderizado” (KILOMBA, 2019, p. 193).

4. Considerações Finais

A Lei Maria da Penha propõe uma mudança paradigmática não apenas na visibilização da violência doméstica contra a mulher ao reconhecer a questão de gênero atrelada a esse fenômeno, mas também na operacionalização de um sistema protetivo e preventivo. Verificou-se que a cor, a duração do relacionamento, a dependência financeira e o vínculo mantido com o autor de violência estão relacionados com a manutenção das medidas protetivas ao longo do tempo. Sugere-se que futuras pesquisas realizem análises correlacionais entre as variáveis estudadas.

Além disso, pode-se verificar a forma de utilização das medidas protetivas pelas mulheres, uma vez que a maioria dos pedidos de revogação das medidas protetivas ocorreu no primeiro mês. Esses dados podem contribuir para as adaptações das posturas profissionais em relação a esse instrumento jurídico, a fim de que os dispositivos legais sejam mais bem aproveitados pelas mulheres a quem o legislador desejou proteger.

O momento processual de retirada das medidas protetivas se insere nas determinações estruturais do fenômeno da violência doméstica contra a mulher e é influenciado pelos valores, estereótipos e concepções de gênero, os quais contribuem para a formação da subjetividade tanto das mulheres (nos dispositivos), quanto dos sujeitos implicados nas etapas concernentes a esse procedimento (operadores do direito, mas também equipe psicossocial).

Acredita-se que compreender o pedido de revogação das medidas protetivas pelas mulheres vítimas de violência na perspectiva do dispositivo amoroso e materno contribui para o aprofundamento do olhar dos profissionais que atuam nessa área. Observar as vulnerabilidades identitárias desencadeadas pelo processo de subjetivação das mulheres nesses dispositivos pode evitar que, ao longo do processo de denúncia das violências sofridas, elas sejam submetidas a violências institucionais. Dessa forma, os objetivos da pesquisa foram atingidos e contribuem para aplicação da teoria à prática profissional com o intuito de aprimorar a política de promoção dos direitos das mulheres. Sugere-se que novas pesquisas analisem novas ocorrências de situações de violência a partir do tempo de retirada das MPUs.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2022
  • Aceito
    07 Nov 2022
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