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O problema da “fundada suspeita” no Brasil: impasses metodológicos e possibilidades de pesquisa

The question of “reasonable suspicion” in Brazil: methodological challenges and research opportunities

Resumo

O objetivo do artigo é apresentar uma discussão sobre as dificuldades metodológicas enfrentadas para se realizar pesquisas sobre a identificação de suspeitos criminais no Brasil - prática conhecida como “fundada suspeita”, prevista no art. 244 do CPP - em especial aquelas voltadas a compreendê-la como racialmente discriminatória. Fazendo uma comparação em como esse debate surgiu nos Estados Unidos, questionamos os motivos pelos quais esse tema enfrentou impasses para formar uma agenda de pesquisa no país, além de apontar as estratégias utilizadas por pesquisadores brasileiros para abordar tais assuntos. Visando superar esses impasses, propomos no artigo novas possibilidades de utilização de metodologias para realização das pesquisas, voltadas a aprofundar a análise sobre como outros atores do sistema de justiça criminal - além da polícia - também reproduzem uma narrativa-padrão e discriminatória sobre esses casos.

Palavras-chave:
Identificação de suspeitos; Fundada suspeita; Polícia; Abordagem policial; Sistema de justiça criminal

Abstract

The objective of the article is to present a discussion about the methodological difficulties faced in carrying out research on the identification of criminal suspects in Brazil - a practice known as “founded suspicion”, provided for in art. 244 of the Criminal Procedure Code - especially studies aimed at understanding such identification as racially discriminatory. Comparing how this debate emerged in the United States, we question the reasons why this topic faced impasses in forming a research agenda in the country, in addition to pointing out the strategies used by Brazilian researchers to address such issues. Aiming to overcome these shortcomings, in the article we propose new possibilities for using methodologies to carry out these studies, deepening the analysis of how other actors in the criminal justice system - in addition to the police - also reproduce a discriminatory standard narrative about these cases.

Keywords:
Suspicion founded; Police approach; Racism; Criminal justice system

Introdução1 1 Este artigo é fruto da pesquisa “Segurança da população negra brasileira: como o sistema de justiça responde a episódios individuais e institucionais de violência racial”, realizada por pesquisadores do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Para acessar a pesquisa completa, acessar o endereço: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/32916.

O presente texto tem como objetivo apresentar uma breve revisão bibliográfica sobre o tema da identificação de suspeitos criminais na literatura sociojurídica produzida nos Estados Unidos e no Brasil. Fazendo uma comparação inicial entre os modos como esses temas foram construídos nos Estados Unidos - país com forte histórico escravista e segregacionista e local onde o debate se iniciou em meados da década de 1980 - e a forma como esse debate foi realizado no Brasil, buscamos compreender os motivos e as principais dificuldades que o estudo do tema enfrentou para se apresentar como um problema de pesquisa no campo da violência em nosso país, em especial aqueles que buscam compreender a prática da identificação de suspeitos como racialmente enviesada.

No Brasil, a prática de identificação de suspeitos é conhecida como “fundada suspeita”, em razão do disposto no art. 244 do Código de Processo Penal sobre os critérios para a realização de revistas pessoais e por ser uma categoria nativa utilizada constantemente pelos policiais para realizarem abordagens. Apesar disso, em nosso país, pesquisadores enfrentaram diversos obstáculos para realizar pesquisas sobre esse tema.

Por isso, neste artigo, apresentamos três argumentos que podem explicar os motivos de ordem epistemológica e metodológica que fizeram com que as pesquisas sobre identificação de suspeitos criminais enfrentassem dificuldades para formar uma agenda de pesquisa no país: 1) negação da importância da raça como categoria analítica pelos intelectuais que compunham o campo mais consolidado de estudos sobre violência no país; 2) pouca presença de intelectuais negros nas universidades e nos principais centros de pesquisa; 3) escassez de dados sobre a atividade policial, em especial sobre abordagens policiais, e de dados desagregados que trouxessem informações sobre raça das vítimas das ações policiais.

Em seguida, em função das dificuldades pontuadas, discorremos sobre as principais estratégias utilizadas por pesquisadores brasileiros para realizar estudos sobre identificação de suspeitos e sua concentração em estudos sobre a atividade policial. Além de apresentar uma sistematização sobre os principais estudos realizados até então, detalhamos seus objetivos e suas escolhas metodológicas, na tentativa de compreender como tais estudos foram realizados.

Por fim, apontamos para possibilidades de pesquisas que podem contribuir para o aprofundamento dos estudos na área, notadamente a partir da adoção da perspectiva racial e da inclusão, nos estudos sobre o tema, de análises de outros atores do sistema de justiça criminal, como juízes por exemplo, que além da polícia, também contribuem para a reprodução e legitimação de uma narrativa padrão sobre quem são os suspeitos criminais.

Principais impasses das pesquisas sobre identificação de suspeitos no Brasil

Não é novidade que o elemento raça historicamente estrutura, no Brasil e nos EUA, as formas pelas quais o poder policial é exercido nesses dois países. Racismo e forças de segurança possuem uma longa relação desde os tempos da patrulha de escravos nos EUA nos séculos 18 e 19 (DURR, 2015), ou da guarda imperial que precedeu as polícias modernas no Brasil no século 18 (BRETAS, 2013BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço e perspectivas. Topoi (Rio de Janeiro), v. 14, n. 26, p. 162-173, 2013.). Talvez por isso, o debate teórico em torno das práticas de reconhecimento de suspeitos criminais, que aponta forte vinculação a ações e atitudes discriminatórias por parte das forças policiais, tenha derivado de estudos produzidos na literatura sociojurídica norte-americana da década de 1980. Anteriormente, a questão do reconhecimento de perfis suspeitos estava ligada às políticas de combate ao tráfico de drogas, comumente ao policiamento em ambientes aeroportuários. A partir daquele período, ela se expande para compor campanhas governamentais direcionadas ao exercício de abordagens policiais em situações gerais (RUTEERE, 2015RUTEERE, M. Report of the Special Rapporteur on contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance. Relatório. Nova York:2015.).

Segundo Harris (2006______. U.S. experiences with racial and ethnic profiling: History, current issues, and the future. Critical Criminology, v. 14, n. 3, p. 213-239, 2006.), embora as regras para o exercício de abordagens policiais não mencionassem explicitamente elementos raciais, os materiais de treinamento dos agentes policiais recorriam a símbolos e marcas de diferenciação racial para orientar o reconhecimento de suspeitos - tais como, a presença de tranças rastafaris e a menção a “gangues hispânicas”. Além disso, a avaliação subjetiva dos policiais, suas crenças e preconceitos sobre o que seria uma pessoa suspeita já pareciam bastante relevantes neste debate e incidiam desde já como um elemento importante para a construção da suspeição.

Apesar de antes desse período já existirem estudos que apontavam para um tratamento diferencial de negros pelas forças policiais nos quadros do sistema de justiça norte-americano (ADORNO, 1995ADORNO, S. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos CEBRAP, v. 43, p. 45-63, 1995.), é somente a partir dos anos 1980 que o debate sobre seleção diferencial de suspeitos começa a se consolidar no meio acadêmico nos Estados Unidos, ficando conhecido como racial profiling, ou em português, filtragem racial.

Segundo Byfiel, as razões para a formação desse tema de pesquisa nos Estados Unidos devem-se a existência do forte histórico escravista do país e do período segregacionista pós-abolição, fortemente marcado por divisões raciais que deixaram marcas intensas em diversos níveis da vida social, afetando negativamente a experiência dos negros norte-americanos. Uma das expressões mais fortes desse processo, para a autora, é o policiamento ostensivo direcionado preferencialmente para as comunidades negras em áreas urbanas, como notado em episódios históricos de violência policial, como nos casos de Rodney King e Malice Green, dois homens negros espancados pelas polícias de Los Angeles e Detroid no início da década de 1990 (BYFIEL, 2018).

A recepção dessa bibliografia pelos estudos realizados no Brasil - também um país com histórico escravocrata e fortes desigualdades entre negros e brancos - , aconteceu somente a partir dos anos 2000. Apesar de estar previsto no art. 244 do Código de Processo Penal Brasileiro como um requisito formal para a realização de revistas pessoais e buscas domiciliares e ser o principal motivo pelo qual os policiais militares realizam abordagens, até o início de 2000 a produção teórica sobre o tema era limitada e pouco concebida como uma prática racialmente discriminatória.

A nosso ver, isto se deve primeiramente pela negação da importância da raça como categoria analítica pelos intelectuais que compunham o campo mais consolidado de estudos sobre violência no país: a sociologia da violência e do crime. Apesar de haver, antes disso, importantes estudos sobre raça e violência - como o de (ADORNO, 1995ADORNO, S. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos CEBRAP, v. 43, p. 45-63, 1995.) e (COSTA RIBEIRO, 1995COSTA-RIBEIRO, C. A. Cor e criminalidade: Estudo e análise da Justiça no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.), apontado evidente tratamento diferencial de negros e brancos nos sistemas de justiça paulista e carioca respectivamente - eram exceção no período e o tema não compunha espaço relevante na agenda de pesquisa da sociologia da violência2 2 Segundo Barreira e Adorno, 2010, em revisão integrativa de literatura da área, os temas privilegiados pelo campo da sociologia da violência no Brasil concentram-se em estudos sobre as causas da criminalidade e violência, a relação existente entre criminalidade e pobreza e estudos sobre crianças, adolescentes e jovens. Não houve, assim, a incorporação da questão racial nos quadros analíticos desse campo, sendo muitas vezes relegado a um mero atributo demográfico das vítimas ou a um simples adjetivo das classes populares ou “classes perigosas”. Simões Gomes, 2018, p. 40. . Não à toa, a questão do racismo e das relações raciais foi tratada como tema central em estudos da violência apenas em 7% de um total de 373 estudos identificados em levantamento relativo ao período de 1987 e 2017 (FREITAS, 2020FREITAS, Felipe da Silva. Racismo e polícia: uma discussão sobre mandato policial. 2020. 264 f. Tese (Doutorado em Direito)- Universidade de Brasília, Brasília, 2020.).

É possível, portanto, que o argumento da “democracia racial” esteja associado à ausência do elemento raça como categoria analítica dos estudos da violência. Recorrente em especial a partir dos anos 1940-50 no Brasil, o argumento insistia em que as relações sociais no país eram igualitárias e harmoniosas e que raça e cor não eram um elemento definidor dessas relações (GUIMARÃES, 2002GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Democracia racial: el ideal, el pacto y el mito. Estudios Sociológicos, p. 305-333, 2002.; FERNANDES, 2021FERNANDES, Florestan. “O mito da democracia racial”, In: A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Editora Contracorrente, 6ª edição. 2021, pp. 270-287.). Embora este tipo de pensamento não tenha feito sentido prático aos negros, como fica evidente nas manifestações públicas levados a cabo pelo Movimento Negro Unificado a partir da década de 1970, ele moldou, por outro lado, os discursos e políticas estatais e formas de pensamento sobre as relações raciais no Brasil.

De acordo com Guimarães (2002GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Democracia racial: el ideal, el pacto y el mito. Estudios Sociológicos, p. 305-333, 2002.), esta noção tem sua origem no pensamento de Gilberto Freyre, que concebia a sociedade brasileira como uma “democracia étnica”, onde as relações sociais ocorriam de forma mais igualitária e democrática do que nos países de origem anglo-saxões. Esta ideia, muito difundida entre os anos 1930 e 1960 no Brasil, compôs um importante quadro de mudanças políticas e institucionais do país, que tinha como objetivo construir a imagem de “povo brasileiro” e uma emergente massa de trabalhadores em um Brasil que começava se urbanizar e industrializar.

Nesse contexto, os negros não são, de modo algum, apagados completamente do cenário de invenção de um Estado-Nação brasileiro, mas antes tem suas características e elementos absorvidos pelo discurso estatal da “identidade nacional brasileira”3 3 Para Schwarcz (2012), vale lembrar que os elementos típicos da cultura negra (e também da indígena e caipira) sofrem nesse momento um processo de absorção em favor da “identidade nacional”: a capoeira, a feijoada, o samba, são transformados em símbolos nacionais, por exemplo. . Segundo Fernandes (2021FERNANDES, Florestan. “O mito da democracia racial”, In: A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Editora Contracorrente, 6ª edição. 2021, pp. 270-287.), essa dissolução do negro na categoria do “trabalho” fez com que ser negro e ser trabalhador se tornassem elementos praticamente indissociáveis, o que teve como consequência imediata o impedimento da mobilidade social dos negros nas estruturas dessa nova sociedade.

Longe de ser uma categoria irrelevante como afirmado por autores ligados à ideia de democracia racial, raça é um elemento definidor das relações sociais no Brasil. De acordo com a intelectual negra Beatriz Nascimento (1977), em ensaio intitulado “Nossa Democracia Racial”, o apagamento da raça das análises sociais sobre o Brasil foi responsável por criar o modo não manifesto com que a discriminação racial e o preconceito se apresentam no Brasil.

Por outro lado, o apagamento da questão racial de estudos sociojurídicos em geral pode também estar associado à ausência quase absoluta de intelectuais negros nas universidades e nos principais centros de pesquisa do país. Muito antes da questão racial entrar na pauta dos estudos da sociologia da violência - a “virada antirracista”, como denominou uma de suas principais expoentes (SINHORETTO, 2017) -, intelectuais e ativistas negros já falavam sobre o problema da violência contra negros no Brasil, descrevendo-as em aspectos e formas diversas. Em tese recente, Paulo César Ramos (2021) aprofunda a análise do histórico de formulações sobre violência policial pelas organizações negras, identificando que a pauta está presente pelo menos desde 1978 e se apresenta sob diferentes formas e bandeiras de luta: discriminação racial (1978-1988), violência racial (1989-2006) e genocídio negro (2007-2018).

A perspectiva antirracista nos debate sobre violência policial não é atual. Há décadas, intelectuais negros como Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Beatriz Nascimento articulavam a relação entre racismo e violência antinegros. O que aparenta ser uma virada é a penetração destes discursos em círculos acadêmicos majoritariamente brancos sobre violência, com atraso.

Paralelamente, um outro fator de ordem estrutural que parece ter contribuído para o apagamento do fator racial nos estudos da violência foi a escassez de dados a respeito das práticas de atividade policial no país, em especial sobre as abordagens de suspeitos, somada à impossibilidade de desagregar os dados existentes pela variável “raça”. Diferentemente do ocorrido nos Estados Unidos, onde o debate se deu a partir dos dados disponíveis sobre abordagens e buscas policiais, no Brasil, a ausência desses dados impediu a análise do fenômeno com clareza necessária.

Conforme constantemente apontado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, importante organização que se dedica a sistematizar os dados da segurança pública a nível nacional, a falta de sistematização de dados nas secretarias estaduais de segurança pública sobre questões relativas à atividade policial e a deficiência na coleta e registro de informações sobre raça são um dos principais motivos de não conhecermos tão bem essa problemática. Embora em menor grau, essa invisibilidade persiste até hoje, uma vez que a raça da vítima de letalidade policial não é informada em mais de 1/3 dos casos - segundo dados do Monitor da Violência de abril de 20214 4 Informação disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2021/04/22/estados-nao-sabem-raca-de-mais-de-13-dos-mortos-pela-policia-em-2020-dados-disponiveis-mostram-que-78percent-das-vitimas-sao-negras.ghtml . Invisibilidade essa que, por si só, reflete de forma translúcida o apagamento da questão racial no debate sobre violência, ou ao menos seu sufocamento.

Aliado a isso, a indefinição jurídica em torno do conceito jurídico de “fundada suspeita” e seus critérios de definição deixaram muitas margens para se pensar o que constituiria um suspeito no Brasil. Segundo Ramos e Musumesci (2005RAMOS, S.; MUSUMECI, L. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.), não existem critérios claros na lei que estabeleçam ou mesmo limitem o que seria ou em que estaria embasado a “fundada suspeita” de que alguém cometeu um crime. Em função disso, o grande espaço vazio deixado pela legislação é ocupado pelas percepções individuais de cada policial. Assim, embora não admitam explicitamente, grande parte dos critérios eleitos para reconhecer um suspeito fica a cargo das opiniões pessoais dos policiais, como destacado pelos autores:

As entrevistas com praças e oficiais da PM revelaram que não só é negativa a resposta para todas as perguntas acima, como sequer existe um discurso minimamente articulado sobre critérios de construção da suspeita, que explique com nitidez o que leva um policial a abordar e revistar alguém num ônibus ou na rua. Falas quase sempre evasivas, defensivas, sugerem a prevalência de critérios individualizados, “subjetivos”, “intuitivos”, não regulados institucionalmente - vale dizer, a ausência de parâmetros, até mesmo conceituais, que norteiem as decisões num espaço tão aberto ao exercício da discricionariedade policial. Mais do que uma orientação deliberadamente discriminatória, o que se percebe, assim, é a delegação dessas decisões à cultura informal dos agentes, a renúncia a impor-lhes balizas institucionais e, em consequência, um bloqueio de qualquer discussão interna ou externa sobre estereótipos raciais e sociais intervenientes no exercício cotidiano da suspeição (SILVA, 2005).

Em função dessas dificuldades metodológicas, os pesquisadores brasileiros recorrem a estratégias diversas para abordar tais assuntos, ora optando por analisar essa questão a partir das fontes estatísticas disponíveis, como taxas de prisões em flagrantes e índices de letalidade policial, ora recorrendo a opções de caráter mais qualitativo, analisando o problema da fundada suspeita a partir de entrevistas realizadas junto a atores-chaves do sistema de justiça criminais, em especial os policiais, e análises de documentos oficiais.

Metodologias utilizadas em pesquisas nacionais sobre identificação de suspeitos

Diante das dificuldades metodológicas que se apresentaram no cenário brasileiro para realização de pesquisas sobre identificação de suspeitos criminais, a literatura sociojurídica nacional produzida sobre o tema utilizou estratégias metodológicas próprias para abordar esse assunto.

Segundo Simões Gomes (2018), em revisão de literatura realizada no âmbito de um trabalho desenvolvido sobre a relação entre polícia e racismo, os pesquisadores brasileiros recorreram a duas formas de abordagem do problema: 1) a primeira mais voltada à análise do perfil das vítimas das ações policiais, a partir das taxas de prisões em flagrantes e dos dados sobre vítimas de letalidade policial, de natureza mais quantitativa; 2) a segunda, de caráter mais qualitativo, voltada à compreensão e interpretação do conceito de “fundada suspeita”, tanto a partir do ponto de vista jurídico quanto uma categoria nativa utilizada pelos policiais em sua prática de policiamento ostensivo.

Para analisar a metodologia abordada pelos estudos desenvolvidos na área, realizamos um levantamento bibliográfico sobre o tema a partir de consultas por meio de palavras-chave a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, a Revista Brasileira de Segurança Pública, a Revista Dilemas (UNESP/Marília), a Revista Sistema Penal e Violência e a Revista Brasileira de Ciências Criminais. Além disso, foram consultadas as principais revisões de bibliografia em ciências sociais sobre crime, violência e direitos humanos presentes nas publicações da Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB/Anpocs)5 5 As revisões bibliográficas consultadas foram as realizadas por Alba Zaluar (1999a, 1999b), Kant de Lima, Michel Misse e Ana Paula Miranda (2000), Sérgio Adorno (2001), César Barreira e Sérgio Adorno (2010), Marcelo Campos e Marcos Alvarez (2017) e, mais recentemente, Caruso, Freitas e Muniz (2018) .

Os trabalhos mapeados por nós e apresentados a seguir neste artigo foram conduzidos majoritariamente por intelectuais que compõem o campo da sociologia da violência, que em razão de manterem forte relação com as instituições de gestão de políticas de segurança pública e terem um escopo de atuação de intervenção junto a esses setores (CARUSO, FREITAS, MUNIZ, 2018), tiveram mais facilidade em obter dados e informações para trabalhar o assunto. Em consequência, os principais estudos sobre suspeição foram desenvolvidos por intelectuais brancos, o que reforça nosso argumento sobre o atraso na formação de uma agenda de pesquisa que articulasse o tema da identificação de suspeitos criminais a intenções racialmente discriminatórias.

No primeiro grupo, de caráter mais quantitativo, as pesquisas apontam em geral que existe uma grande disparidade racial entre as vítimas de ações das polícias. Destacou-se, nesse contexto, estudo conduzido por Sinhoretto et al (2014SINHORETTO, J; SILVESTRE, G.; SCHLITTLER, M. C. Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante. São Carlos: GEVAC/UFSCar, 2014.), em parceria com uma série de pesquisadores de quatro unidades federativas (a saber, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia). Este estudo buscou atestar a existência de filtragem racial nas abordagens policiais a partir de dados de letalidade policial e taxas de prisões em flagrante. Foi identificado que negros tem mais chances de morrer e de serem presos do que brancos, além de constatar que elementos raciais são constantemente mobilizados pelos policiais, em especial o território em que se vive e os modos de vestir, falar e andar, muito relacionados aos signos da cultura negra.

Um outro estudo de grande importância, mais voltado ao perfil das vítimas de intervenções policiais, é o de (CANO, 2014). Dando continuidade a trabalhos anteriores sobre letalidade policial no Rio de Janeiro (1997), o autor se debruça a investigar se existe um viés racial no uso da força das polícias do Rio de Janeiro e São Paulo através da análise de autos de resistência. No caso de São Paulo, a precariedade dos dados disponíveis fez com que não fosse possível afirmar se existia ou não uma seletividade racial entre as vítimas da letalidade policial. Por outro lado, no caso do Rio de Janeiro, ele avaliou que mesmo que os negros representassem apenas 45% da população carioca, eles compunham 72% das vítimas das ações letais da polícia, afirmando que há uma grande disparidade racial entre as vítimas de intervenção policial.

No segundo grupo, as pesquisas têm em geral se dedicado a analisar os critérios que são mobilizados pelos policiais para o reconhecimento de suspeitos (REIS, 2001, DUARTE ET AL, 2014DUARTE, Evandro C. Piza et al. Quem é o suspeito do crime de tráfico de drogas? Anotações sobre a dinâmica de preconceitos raciais e sociais na definição de condutas de usuários e traficantes pelos policiais militares das cidades de Brasília, Curitiba e Salvador. In: LIMA, Cristiane; BAPTISTA, Gustavo; FIGUEIREDO, Isabel (Eds.). Segurança Pública e Direitos Humanos: temas transversais. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. p. 81-118., SIMÕES GOMES, 2018SIMÕES-GOMES, Letícia Pereira. A (in) visibilidade da questão racial na formação de soldados da Polícia Militar. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.). Outras, além de analisar os policiais, buscaram entender também a percepção da população sobre a atividade policial, com destaque aqui para os estudos de (RAMOS E MUSUMESCI, 2005RAMOS, S.; MUSUMECI, L. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.), um dos primeiros trabalhos sobre o tema realizados no país. Estes se dedicaram a analisar tanto os critérios que são mobilizados pelos policiais para o reconhecimento de suspeitos, quanto como a população carioca, em especial a população negra, experimenta a discriminação racial a partir das práticas policiais, a partir de métodos quantitativos e qualitativos.

Entre os grupos de controle eleitos pelos autores, eles constataram através das entrevistas e grupos focais realizados com jovens negros e por meio de um survey aplicado junto a um amplo grupo de jovens cariocas, que negros sofrem mais ameaças e intimidações quando abordados, além de um maior número de revistas corporais. De acordo com a pesquisa, 55% de negros parados pela polícia passaram por revista, enquanto brancos totalizaram 33% (SILVA, 2005).

Quanto aos critérios mobilizados pelos agentes na sua prática profissional, os autores identificaram que não existem critérios que estabeleçam ou mesmo limitem o que seria a “fundada suspeita”. Em função disso, um grande espaço vazio deixado pela legislação e pela instituição policial é ocupado pelas percepções individuais de cada policial. Embora nas entrevistas realizadas com muitos deles, policiais não assumam que critérios raciais são mobilizados para aferição dos suspeitos, quando comparamos com as respostas obtidas pelos autores através do survey aplicado junto à população carioca, vemos que por volta de 60% acreditam que a polícia escolhe quem aborda a partir das características físicas, em especial a cor da pele e a forma de se vestir (SILVA, 2005)

Além disso, nesse segundo caso de pesquisas, alguns estudos também têm se dedicado a analisar, de forma mais aprofundada, como as escolas de formação da polícia tratam a questão racial (DUARTE ET AL, 2014DUARTE, Evandro C. Piza et al. Quem é o suspeito do crime de tráfico de drogas? Anotações sobre a dinâmica de preconceitos raciais e sociais na definição de condutas de usuários e traficantes pelos policiais militares das cidades de Brasília, Curitiba e Salvador. In: LIMA, Cristiane; BAPTISTA, Gustavo; FIGUEIREDO, Isabel (Eds.). Segurança Pública e Direitos Humanos: temas transversais. Brasília: Ministério da Justiça, 2014. p. 81-118., SINHORETTO ET AL, 2008; SILVA, 2009SILVA, Gilvan Gomes da. A lógica da polícia militar do Distrito Federal na construção do suspeito. 2009. 187 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia)-Universidade de Brasília, Brasília, 2009., SIMÕES GOMES, 2018SIMÕES-GOMES, Letícia Pereira. A (in) visibilidade da questão racial na formação de soldados da Polícia Militar. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.), analisando as ementas e conteúdo das aulas, manuais e livros utilizados. Uma das conclusões em comum entre esses estudos é que a instituição policial se ausenta em tratar temas sobre discriminação racial e, em razão disso, transmitem noções abstratas sobre categorias que posteriormente vão ser preenchidas pelo juízo pessoal dos policiais.

Fora do campo da sociologia, uma importante intelectual negra, Ana Luiza Flauzina, também havia se debruçado a pensar o processo de construção de suspeitos criminais, mas a partir de uma análise histórica e comparativa no campo da criminologia crítica. A autora identificou que existe uma forte associação entre a figura do criminoso e a população negra em diversos períodos históricos do Brasil e que a produção da desigualdade racial é operada especialmente pelo sistema de justiça criminal, onde as características raciais assumem importantes contornos para caracterizar o suspeito da ação policial (FLAUZINA, 2006).

Leitura semelhante foi realizada por Maria Carolina Schlitler, que ao analisar a associação entre sujeitos criminosos e população negra realizada pelas forças de segurança paulista, identificou que mesmo não havendo evidências práticas de contribuição dos negros para a criminalidade urbana, eles são constantemente concebidos como as principais ameaças da ordem social e constituem o alvo privilegiado das investigações policiais. Para a autora, a ligação entre a imagem e signos da cultura negra à criminalidade é um dos principais fatores que contribuem para a reprodução da discriminação racial na atividade policial (SCHLITLER, 2016).

Na tabela abaixo, apresentamos, portanto, um detalhamento dos trabalhos mapeados por nós, seus objetivos e metodologia aplicada, na tentativa de demonstrar como a bibliografia trabalhou o tema no Brasil.

Detalhamento de Artigos sobre Identificação de Suspeitos Criminais produzidos no Brasil

Título do trabalho Autores do Trabalho Ano do Trabalho Objetivo do Trabalho Metodologia Aplicada O Racismo na Determinação da Suspeição REIS, D. B. 2001 Buscava analisar como é construída a imagem do tipo suspeito na concepção policial e em que medida essa construção é influenciada pelo treinamento militar. Realização de 30 entrevistas com policiais militares em duas companhias da PM-BA, em Salvador. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro RAMOS, S.; MUSUMESCI, L 2005 O objetivo da pesquisa consistia em identificar a percepção da população carioca sobre o trabalho policial, em especial nos contextos de abordagens, e quais os mecanismos e critérios são utilizados pelos policiais militares para definir o que é um suspeito. Aplicação de questionários com 79 perguntas para diferentes segmentos da população (diferentes classes, idade) e realização de entrevistas e grupos focais com policiais militares, jovens negros e ativistas de movimentos negros. A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e relações raciais. SINHORETTO, J. et al 2008 Investigar quais mecanismos baseiam a existência de filtragem racial nas abordagens policiais e analisar quais são as respostas institucionais dadas a esses casos pela polícia. Análise dos indicadores de letalidade policial e das taxas de prisões em flagrante com base no critério raça/cor; Realização de entrevistas e observação participante junto a policiais militares em operação nas ruas e em escolas de formação; A lógica da polícia militar do Distrito Federal na construção do suspeito SILVA, Gilvan Gomes da. 2009 Identificar quais os conhecimentos “oficiais”, isto é, aqueles que são transmitidos nas escolas e academias de formação e de especialização da PMDF referente às abordagens policiais militares no Distrito Federal Observação participante das atividades policiais realizada em duas unidades policiais da PMDF em um período de dois anos, com a participação de cursos de formação e especialização policial; Análise de manuais, portarias e diretrizes policiais; e análise de dados disponibilizados pela Secretaria de Estado de Segurança do Distrito Federal. Quem é o suspeito do crime de tráfico de drogas? anotações sobre a dinâmica de preconceitos raciais e sociais na definição das condutas de usuário e traficante pelos policiais militares nas cidades de Brasília, Curitiba e Salvador DUARTE, E. et al 2014 Compreender como opera a dinâmica institucional de construção da condição de suspeito e como ela se relaciona com preconceitos sociais contra os abordados nas ações da polícia militar sobre tráfico e uso de drogas ilícitas Análise de processos em que inquéritos policiais iniciaram com prisões em flagrante posteriores à entrada em vigor da Nova Lei de Drogas e que tivessem transitado em julgado até o fim de 2012; Análise dos principais documentos que constituem os Cursos de Formações de Praças e Oficiais; Realização de Grupos Focais com policiais militares e jovens negros; A (in) visibilidade da questão racial na formação dos soldados da Polícia Militar de São Paulo Simões Gomes, Letícia. 2018 Compreender como a polícia militar do Estado de São Paulo trata institucionalmente questões relativas à discriminação racial. Levantamento da literatura internacional sobre filtragem racial e sua recepção no Brasil e Análise dos cursos de formação da PM-SP (currículo, ementas), para compreender como a instituição lida com questões relativas à discriminação racial Fonte: Elaboração dos autores

A relação entre fundada suspeita e atividade policial nas pesquisas realizadas

Diante do quadro apresentado no tópico anterior, percebe-se que embora os trabalhos realizados sobre o tema tenham desenvolvido suas análises a partir dos dados e recursos disponíveis e de mais fácil acesso junto às instituições, a maior parte deles se refere majoritariamente à atividade policial e sobre o papel desempenhado pelos policiais na construção da suspeição.

Isto se deu porque a polícia, em especial a polícia militar, consegue se apresentar como o ator estatal protagonista da política criminal, sendo também a instituição que preenche o conteúdo prático das definições de ordem pública, definindo a seleção dos públicos e práticas criminais que sofrem o controle criminal (LIMA, SINHORETTO, BUENO, 2015LIMA, Renato Sérgio de; SINHORETTO, Jacqueline; BUENO, Samira. A gestão da vida e da segurança pública no Brasil. Revista Sociedade e Estado, vol. 30, n. 1, Janeiro/Abril, 2015.). Essa definição realizada, em suma, por meio da abordagem policial embasada no que se convencionou chamar de tirocínio policial, seleciona o público preferencial das ações policiais: jovens negros e pobres.

O depoimento policial prestado na maior parte dos casos em que atuam são, de modo geral, ratificadas pelas demais instituições judiciais, seja no caso das prisões em flagrantes por tráfico de drogas (JESUS, 2016JESUS, Maria Gorete Marques de. “O que está no mundo não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas”. Tese apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2016), seja nas situações de homicídios praticados por policiais, em que na falta de testemunhas civis, os policiais militares figuram como testemunhas quase exclusivas, fazendo prevalecer as suas versões (MISSE et al, 2015_________; GRILLO, Carolina; NERI, Natasha. Letalidade Policial e Indiferença Legal: A apuração judiciária dos “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Edição Especial, n. 1, pp. 43-71, 2015.).

A transformação da verdade policial em verdade judicial é chancelada, inclusive, por meio de súmulas do poder judiciário, sendo a Súmula no. 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a mais translúcida e perniciosa: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação"6 6 A Súmula supracitada pode ser acessada no seguinte endereço: http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/sumulas-70. .

Na maioria desses casos, o inquérito policial é uma cópia do auto de prisão em flagrante e/ou do auto de resistência, levando ao prevalecimento da “verdade policial militar” durante todo o processo investigatório e processual. Nos processos que acompanham suas funções, a polícia militar é a principal gatekeeper do sistema de justiça criminal e influencia todo o seu processo decisório, seja porque é a autoridade legal que realiza os flagrantes e abordagens policiais em geral ou porque figuram quase que exclusivamente como as únicas testemunhas dos processos, especialmente nos casos de tráfico de drogas, em que a narrativa desenvolvida pelos atores judiciais é uma reprodução quase que integral da palavra dos policiais, raramente posta em dúvida pelos juízes ou reavaliada no curso do processamento do caso (JESUS, 2016JESUS, Maria Gorete Marques de. “O que está no mundo não está nos autos”: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas”. Tese apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2016).

Assim, embora a polícia seja a instituição que realiza primordialmente a seleção dos principais delitos e sujeitos a serem alvos da política criminal, ela não é a única instituição responsável pela reprodução da seleção diferencial de suspeitos. Pelo contrário, conforme já identificado pela literatura supracitada, tal questão é ratificada por outros atores que compõem o sistema de justiça criminal, que não somente reproduzem uma narrativa-padrão sobre os casos de suspeição, mas que tem também o poder de legitimá-las, transmutando a verdade policial em judicial e deixando de controlar a atividade policial, seus protocolos, se existentes, e sua legalidade.

Em razão disso, conduzimos atualmente uma pesquisa sobre viés racial em abordagens policiais, buscando compreender a importância de outros atores do sistema de justiça na reprodução e legitimação de uma narrativa-padrão sobre os casos que envolvem a construção de suspeitos, notadamente os juízes a partir da análise das decisões judiciais proferidas por eles. Ao analisar a questão da violência racial a partir da perspectiva do judiciário, defendemos que uma perspectiva epistemologicamente privilegiada se abre aos pesquisadores, no sentido de jogar luz não no policial que atira, mas em quem com a caneta referenda com o poder da lei tal tiro.

Outras possibilidades de pesquisa sobre fundada suspeita

Preocupados em refletir como o direito tem exercido um papel central na reprodução das desigualdades raciais em diversas esferas, em especial nas ações policiais que reproduzem a seletividade racial, realizamos uma pesquisa entre 2021 e 2022 que se dedicou a analisar como os juízes brasileiros avaliam as ações policiais desenvolvidas no curso das prisões em flagrantes por tráfico de drogas ocorridas em residências no país e como julgam as alegações sobre ilicitude de provas e práticas violentas ocorridas durante a investigação de tais casos.

Por meio de um extenso levantamento jurisprudencial, que abrange sete tribunais de justiça do país, buscamos compreender de que modo ações judiciais criminais sobre tráfico de drogas mobilizam o conceito de “fundada suspeita” ou noções sobre construção social da suspeição a partir de uma leitura racializada dos indivíduos e territórios sobre os quais essas ações ocorrem mais frequentemente.

A escolha por pensar mais essa questão a partir das decisões proferidas por juízes se justifica pela necessidade de analisarmos como a construção da suspeição é realizada não apenas por policiais, mas também por outros atores do sistema de justiça, que contribuem igualmente para a reprodução de uma narrativa-padrão sobre esses casos, sendo os policiais apenas a parte mais visível de um modelo de justiça criminal centrado no flagrante e que produz seletividade racial.

Nesse sentido, é importante mencionar o trabalho de Gilvan Gomes da Silva, para quem existe uma tipologia das suspeições criminais, que se inicia com a identificação por parte das polícias militares de “indivíduos suspeitos”, “ações suspeitas” e “situações suspeitas”, encontradas em geral durante o policiamento ostensivo, e que posteriormente se transformam em outros tipos de suspeitos: o suspeito judicial e o suspeito criminal (SILVA, 2009SILVA, Gilvan Gomes da. A lógica da polícia militar do Distrito Federal na construção do suspeito. 2009. 187 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia)-Universidade de Brasília, Brasília, 2009.).

Enquanto o último tem este vínculo percebido após os ritos judiciais, geralmente após a decisão judicial proferida sobre o caso, o suspeito judicial é construído durante o procedimento investigatório e processual e depende essencialmente de informações e aparatos do mundo jurídico que moldam e orientam a conduta policial, como buscas e apreensões permitidas pela legislação e entradas em domicílios sem a necessidade de mandado judicial.

Assim, para o autor, não podemos falar apenas em uma única forma de suspeição, como por exemplo o indivíduo suspeito, em geral identificado pelos policiais militares, mas em várias formas de suspeição, que não dependem apenas da atuação policial, mas também e principalmente de uma validação de outras autoridades legais, como os juízes e o Ministério Público.

Um policial na rua, em sua atividade de policiamento ostensivo, não aborda indiscriminadamente todos os grupos e pessoas. Na prática, o policial desconfia daquele que lhe parece mais próximo do seu aprendizado social sobre o que é suspeito e desenvolve essa avaliação baseado nas representações sociais, nas lógicas de poder e, sobretudo, na ideia da aceitação - por parte da autoridade judicial - do resultado do trabalho da polícia.

Dessa forma, embora as polícias mobilizem e iniciem a construção de uma narrativa sobre quem é o suspeito, esse processo não termina sozinho e nem é legitimado de forma isolada. Pelo contrário, a legitimação desse processo se origina em instâncias superiores do sistema de justiça criminal, que tem não apenas mais poder e recurso para impor uma interpretação sobre os casos, mas possuem igualmente a autoridade legal para legitimar tais ações.

Vários foram os exemplos encontrados em nossa pesquisa em que o judiciário brasileiro convalida uma atuação policial baseada em viés racial no contexto das abordagens policiais e de prisões em flagrantes por tráfico de drogas. No que se referem as decisões judiciais proferidas sobre esses casos, vimos que em geral, os juízes proferem dois tipos de decisões: uma sobre as nulidades que são suscitadas pela defesa dos acusados (que giram em torno de acusações sobre violação ao domicílio dos réus, práticas de flagrante forjado e de violência e tortura durante a abordagem dos réus) e outra sobre o pedido de mérito das partes, que em geral são pedidos de absolvição.

No que se referem as nulidades suscitadas pela defesa, a resposta judicial é majoritariamente negativa, afastando as alegações de violação ao domicílio, de violência e tortura na abordagem policial e de flagrantes forjados. Em 98% dos casos que analisamos, os juízes rejeitaram as preliminares de nulidade da defesa, o que leva em geral à manutenção da condenação. Em apenas 2% dos casos as nulidades são acolhidas, levando de modo geral a absolvição dos acusados.

Gráfico 1:
Decisão Judicial sobre as nulidades suscitadas pela defesa

Já no que se referem a decisões sobre os pedidos de mérito, vimos que em 1° grau, 96% das decisões proferidas foram condenações e apenas 4% foram absolvições. Em 2° grau, 94% das decisões foram condenações e 6% foram absolvições, o que indica que tanto magistrados de 1° grau, quanto os de 2° grau proferem decisões majoritariamente condenatórias, sendo as absolvições uma exceção.

Gráfico 2:
Decisão Judicial sobre os pedidos de mérito

De modo geral, os juízes se embasam suas decisões em uma ampla jurisprudência do tema que se formou nos tribunais brasileiros, que não apenas permite que abordagens policiais em ruas e residências sejam realizadas quando existam “fundadas suspeitas” da ocorrência de crime ou quando hajam denúncias anônimas indicando a suspeita do crime, como também não interroga quais são os elementos concretos ligados a uma ilícito penal que chancelaria a atuação policial em tais casos, conforme se pode ver em trecho de decisão proferida abaixo.

No que tange ao pleito de nulidade da prova produzida durante a fase policial, há de ser afastada a irresignação da Defesa, uma vez que em se tratando de flagrante em crimes de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes - infração penal de natureza permanente -, as buscas e apreensões domiciliares prescindem de autorização judicial (Trecho de decisão do Tribunal de Justiça de Goiás)

Em tais casos, os juízes majoritariamente confirmam e legitimam os depoimentos policiais prestados nos autos, que constituem a maior parte do conjunto de provas mobilizadas nos processos analisados - aproximadamente 70%, segundo nosso banco de dados.

No estudo, identificamos que eles não reavaliam os fatos que fundamentaram as prisões em flagrante por tráfico, sejam as denúncias anônimas ou as "fundadas suspeitas" de que o indivíduo acusado está cometendo um crime. A maior parte dos juízes não requer que sejam realizadas diligências que confirmem o conteúdo da denúncia anônima e nos casos em que a fundamentação principal da prisão é baseada em “atitudes suspeitas”, raramente algum elemento de natureza objetiva relacionado a algum ilícito penal é requerido para confirmar a legitimidade da ação policial.

Além disso, as alegações das defesas dos acusados sobre violência, coação e implantação de provas e flagrantes forjados raramente são avaliadas positivamente pelos juízes, mesmo diante de narrativas imprecisas prestadas pelos policiais nos autos dos processos. Baseando suas decisões quase exclusivamente nos depoimentos policiais, os juízes transformam a “verdade policial” em “verdade judicial”, como fica claro em vários trechos das decisões que reafirmam a valorização da palavra do policial, chancelando, portanto, ações discriminatórias racialmente que compõem a fundada suspeita.

Desse modo, apesar dos inúmeros esforços que organizações da sociedade civil e movimentos negros organizados tem empreendido nos últimos anos junto a moradores de favelas e periferias - os principais acusados nos casos de tráfico de drogas - a práxis judiciária prova que ainda estamos muito longe de desmembrar a atuação policial e judicial de noções e preconceitos com fortes viés racial, que fundamentam o sistema de justiça criminal brasileiro.

Com isso, queremos afirmar que o perfilhamento racial do policial não é resultado apenas de sua percepção pessoal (tirocínio), do referendo de seus colegas (subcultura policial), mas também é produto das construções judiciais do que é permitido em termos de atuação policial. Quando estas construções são vagas demais, como parece ser o caso do conceito de “fundada suspeita” assim entendido pelo judiciário, o que era para ser controle judicial torna-se permissibilidade.

Conclusão

As pesquisas sobre identificação de suspeitos criminais realizadas no Brasil enfrentaram obstáculos de ordem epistemológica e metodológica para formar uma agenda de pesquisa no país, especialmente aquelas voltadas a compreender essa prática como racialmente discriminatória.

De um lado, a negação da importância da raça como categoria analítica pelos pesquisadores ligados aos estudos sobre violência e a pouca presença de intelectuais negros nas universidades e nos principais centros de pesquisa fez com que os estudos produzidos na área apagassem ou minimizassem a utilização de perspectivas raciais. Por outro lado, a escassez de dados sobre a atividade policial, em especial sobre abordagens policiais e de dados desagregados que trouxessem informações sobre raça das vítimas das ações policiais, também contribuiu decisivamente para o atraso na realização de pesquisas sobre o tema.

Em razão desses obstáculos epistemológicos e metodológicos, os pesquisadores brasileiros escolheram abordar o tema a partir de dados disponíveis sobre prisões em flagrante e letalidade policial e a partir da realização de estudos qualitativos sobre a construção social da suspeição pela polícia.

Uma das principais consequências da realização dessas pesquisas foi a concentração em análises que se referem majoritariamente à atividade policial e sobre o papel desempenhado pelos policiais na construção da suspeição. Apesar de a polícia, em especial a polícia militar, desempenhar um papel relevante na construção da narrativa sobre quem são os suspeitos de cometimento de crimes no país, existem outros atores que também contribuem para a reprodução desse processo.

Na pesquisa apresentada neste artigo, apontamos para novas possibilidades de pesquisas que podem contribuir para o aprofundamento dos estudos na área, notadamente a partir da adoção da perspectiva racial e da inclusão de abordagem que busquem analisar como outros atores do sistema de justiça criminal, como juízes por exemplo, também contribuem para a reprodução e legitimação de uma narrativa padrão sobre quem são os suspeitos criminais.

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  • 1
    Este artigo é fruto da pesquisa “Segurança da população negra brasileira: como o sistema de justiça responde a episódios individuais e institucionais de violência racial”, realizada por pesquisadores do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Para acessar a pesquisa completa, acessar o endereço: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/32916.
  • 2
    Segundo Barreira e Adorno, 2010ADORNO, S; BARREIRA, C. A violência na sociedade brasileira. In: MARTINS, C. B. & MARTINS, H. H. T. S. (orgs.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Sociologia. São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2010., em revisão integrativa de literatura da área, os temas privilegiados pelo campo da sociologia da violência no Brasil concentram-se em estudos sobre as causas da criminalidade e violência, a relação existente entre criminalidade e pobreza e estudos sobre crianças, adolescentes e jovens. Não houve, assim, a incorporação da questão racial nos quadros analíticos desse campo, sendo muitas vezes relegado a um mero atributo demográfico das vítimas ou a um simples adjetivo das classes populares ou “classes perigosas”. Simões Gomes, 2018, p. 40.
  • 3
    Para Schwarcz (2012), vale lembrar que os elementos típicos da cultura negra (e também da indígena e caipira) sofrem nesse momento um processo de absorção em favor da “identidade nacional”: a capoeira, a feijoada, o samba, são transformados em símbolos nacionais, por exemplo.
  • 4
  • 5
    As revisões bibliográficas consultadas foram as realizadas por Alba Zaluar (1999a, 1999b), Kant de Lima, Michel Misse e Ana Paula Miranda (2000), Sérgio Adorno (2001), César Barreira e Sérgio Adorno (2010), Marcelo Campos e Marcos Alvarez (2017) e, mais recentemente, Caruso, Freitas e Muniz (2018)
  • 6
    A Súmula supracitada pode ser acessada no seguinte endereço: http://portaltj.tjrj.jus.br/web/guest/sumulas-70.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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