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Território como instituto jurídico complexo: uma análise fundamentada nos sujeitos, nas subjetividades e nas territorialidades

Resumo

O território é um instituto jurídico central para o Direito Moderno. Na modernidade foi reduzido à terra, unidade física neutra e universal, um bem capaz de ser comercializado no mercado. A Geografia Humana - em especial com Milton Santos - tem agregado complexidade ao espaço, mostrando que ele é uma produção social, onde a vida se realiza. O território tem adquirido um status epistemológico de destaque não apenas para a Geografia, mas também para o Direito, sendo redescoberto como um instituto jurídico - objeto de diversas reformulações quanto ao seu conteúdo. O objetivo do artigo é fazer uma releitura da noção jurídica de território por meio de um mergulho epistemológico, com base nas contribuições da geografia humana e da teoria Histórico-Cultural da subjetividade como referenciais teóricos. Assim, o problema enfrentado é: quais aprofundamentos epistêmicos a teoria Histórico-Cultural da subjetividade e a geografia humana podem proporcionar para a compreensão do instituto jurídico do território? Espera-se, com este artigo, contribuir com as reflexões do território como um instituto jurídico complexo, indissociável de seus sujeitos e da defesa de múltiplas dignidades.

Palavras-chaves:
Território; Sujeito de Direito; Teoria Histórico Cultural da Subjetividade

Abstract

Territory is a legal institute central to Modern Law. In modernity it has been reduced to land, a neutral and universal physical unit, a good that can be traded on the market. Human Geography - especially with Milton Santos - has added complexity to space, showing that it is a social production, where life takes place. Territory has acquired a prominent epistemological status not only for Geography, but also for Law, becoming a central legal institute in the defense of different subjects and dignities. The objective of this article is to delve into the complex interdependence between subjects and territories, making an epistemological dive into this relationship, using the Cultural-Historical theory of subjectivity as a framework. Thus, the problem faced is: what epistemic deepening can the Cultural-Historical theory of subjectivity and human geography provide for the understanding of the legal institute of territory? It is hoped that the conclusions of this article might contribute to the effort to analyze territory as a complex legal institute, inseparable from its subjects and the defense of multiple dignities.

Keywords:
Territory; Subject of Law; Historical Cultural Theory of Subjectivity

Introdução

Este artigo1 1 Gostaríamos de agradecer ao Professor Douglas Antônio Rocha Pinheiro, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB, pela contribuição com as reflexões que auxiliaram na construção deste artigo. busca problematizar o instituto jurídico do território, aprofundando nas relações jurídico-epistêmicas estabelecidas entre sujeitos, subjetividades e territorialidades. Considerando que o território é um instituto jurídico complexo, que tem demandado diversas reformulações quanto ao seu conteúdo.Este texto partirá da hipótese de que a territorialidade tem sido reduzida à terra. Defenderá que o território subjetivado como terra é apenas uma forma de territorialização específica. Ela é hegemônica, mas não é exclusiva.

A Geografia Humana - em especial com Milton Santos (2006, 2021) - tem agregado complexidade ao espaço, mostrando que ele é uma produção social, onde a vida se realiza. Milton Santos muda o foco de uma territorialidade única (terra, localização) e aprofunda as bases teóricas daquilo que hoje é entendido como territorialidades (espaço geográfico, sob o qual os seres humanos sonham, vivem e simbolizam).

As contribuições da Geografia têm adquirido grande importância para o debate jurídico, pois o questionamento do espaço como uma categoria neutra conduz ao reconhecimento do território como um instituto jurídico complexo, ou seja, a territorialidade não se reduz à terra, bem físico, mas é plural, comportando múltiplos sujeitos.

A conexão entre o sujeito e seu território não se reduz a uma relação dicotômica entre um sujeito e um objeto físico. Há implicações recíprocas e a teorização contemporânea sobre o território tem ensinado isso. O espaço geográfico constitui e é constituído ativamente por seus sujeitos. Este artigo realizará um mergulho epistêmico no instituto jurídico do território, procurando aprofundar na relação entre sujeitos, suas subjetividades e suas territorializações (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

O problema do artigo é: quais aprofundamentos epistêmicos a teoria histórico-cultural da subjetividade e a geografia humana podem proporcionar para a compreensão das complexidades do instituto jurídico do território?

Para responder ao problema posto, adota-se como referencial teórico o pensamento de Milton Santos (2006, 2021), Beger e Luckmann (1985), Haesbaert (2009), Gonzalez Rey (2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.), entre outros. Percorreu-se a seguinte trajetória metodológica. Em um primeiro momento, foi defendido que o Estado moderno é territorial, mas reduz epistêmica e juridicamente o território à dimensão da terra, bem apropriável. Em seguida, a terra foi analisada como instituição socialmente e subjetivamente construída. Por fim, trabalha-se com a ideia de que o território é uma produção subjetiva, que constitui seus sujeitos ao mesmo tempo em que é um resultado deles, em uma influência não linear entre ambos.

Espera-se, assim, que as reflexões epistemológicas deste artigo permitam avanços teóricos no campo jurídico, geográfico e psicológico, oferecendo contribuições para o conhecimento e o reconhecimento jurídico dos profundos laços entre sujeitos e seus múltiplos territórios.

1) Estado e território

O Estado é uma organização política e social que surge e se consolida na Europa entre os séculos XVI e XVIII. É consequência da desestruturação da sociedade medieval, que tinha entre suas características o controle fragmentado da terra por diversos senhores guerreiros. Ele surge como uma força centrípeta monopolizadora, que concentra o domínio da terra, o poder militar, a arrecadação tributária e o Direito (ELIAS, 1993ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador 2: formação do Estado e civilização. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 1993.).

As origens do Estado moderno são complexas, contudo, a sua vinculação à ideia de território implicou na submissão dos antigos senhores da terra, guerreiros e latifundiários, os quais competiam livremente entre si e determinavam a organização social (ELIAS, 1993ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador 2: formação do Estado e civilização. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 1993.). O Estado se impôs como um poder hegemônico e constituinte de uma nova ordenação territorial, que traz consigo a pretensão de centralidade das relações políticas e jurídicas (SCHMITT, 2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014.).

O Estado moderno é territorial, pois institui fronteiras rígidas, estabelecendo uma ordenação no seu interior ao mesmo tempo em que se opõe aos demais Estados. Esse fenômeno costuma ser compreendido como uma simples possessão espacial, em que o Estado exerce seu poder sobre os cidadãos em uma espacialidade uniforme e neutra, noção que é fundante do Direito Administrativo.

Para Carl Schmitt (2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014.), contudo, a relação entre o Estado e o território não se reduz a uma mera possessão. Para ele há uma “tomada da terra”, a fundação de um novo nomos. O verbo tomar utilizado pelo autor é significativo, pois indica a captura do solo - ato que pressupõe uma violência estruturante da ordenação espacial, social e jurídica. O Estado moderno não apenas se desenvolve circunscrito em fronteiras, mas apossa-se da terra, induzindo novas relações sociais e uma nova configuração territorial. Nesse sentido, o Estado não apenas se apropria de um espaço, como também produz uma espacialidade própria, entendida aqui como grandeza física, política e humana.

O autor, ao desenvolver o conceito de tomada da terra, já problematizava a relação entre Estado e território, trazendo, mesmo que de forma incipiente, o espaço como resultado da produção humana, muito além de ser apenas uma medida física2 2 O conceito hegemônico de território para o Direito vincula a ideia de território àquela que circunda um específico limite sobre a superfície. O Direito Constitucional se utiliza constantemente da ideia de território enquanto porção física delimitadora da extensão política de um país - isso não quer dizer que essa seja a única dimensão de território trabalhada na Constituição Federal, cabe ressaltar. É o que se vê, por exemplo, quando dispõe sobre o direito de locomoção, como a delimitação da nacionalidade brasileira e sobre a organização político-administrativa do país, apenas para citar alguns exemplos. Nesses casos, vê-se uma adoção muito clara do território enquanto espaço físico e político. Como se mostrará, essa visão administrativista do território está fundada epistemicamente na dicotomia entre sujeito/objeto. Ela cumpre um duplo propósito, a uniformização dos sujeitos e dos territórios, permitindo o melhor exercício do poder soberano (ROCHA, 2013) . Ele assumiu a complexa relação entre o Estado e o território, compreendendo-a de forma mais profunda que a mera posse e limitação territorial. Nesse sentido, agrega complexidade ao instituto jurídico do território. Aponta de forma muito clara que há uma relação constitutiva, que não se reduz à dominação espacial física (SCHMITT, 2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014.).

Contemporaneamente, em especial, com base nas contribuições de Milton Santos (2006), há o renascimento das discussões em torno do território. Por meio de Milton Santos (2006, 2021) foi possível compreender, indo além de Carl Schmitt (2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014.), que o território estatal é apenas uma entre diversas formas de territorialização, sendo que cada uma delas possui seus sujeitos. Nos tópicos seguintes, aprofundar-se-á na relação entre sujeitos, territórios e subjetividades.

2) O conceito de território

Importa lembrar, em tempo, que definição de território não é consensual. É um instituto jurídico, mas também um conceito acadêmico que adquiriu grande força para a luta política por direitos ao afirmar a relação de pertencimento entre sujeitos e territorialidades específicas. Como alerta Mançano Fernandes (2009FERNANDES, Bernardo Mançano. Sobre a Tipologia de Territórios. In: Saquet, Marco Aurélio e Sposito, Eliseu Sáverio (ORGs), Territórios e Territorialidades. Teoria, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 197-215.), há uma apropriação desse conceito por diversos atores, havendo uma disputa em torno da sua significação. O importante, então, não é explicar o que é o território como se fosse uma categoria pura e universal, mas sim, admitir que há disputas conceituais e jurídicas em torno dele.

Arturo Escobar (2015ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 35, p. 89-100, dez. 2015., p.98), apoiando-se em autores brasileiros como Rogério Haesbaert (2004HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. ) e Mançano Fernandes (2009FERNANDES, Bernardo Mançano. Sobre a Tipologia de Territórios. In: Saquet, Marco Aurélio e Sposito, Eliseu Sáverio (ORGs), Territórios e Territorialidades. Teoria, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 197-215.), possui uma definição muito elucidativa:

El ‘territorio’ es el espacio -biofísico y epistémico al mismo tiempo- donde la vida se enactúa de acuerdo a una ontología particular, donde la vida se hace ‘mundo’. En las ontologías relacionales, humanos y no-humanos (lo orgánico, lo no-orgánico, y lo sobrenatural o espiritual) forman parte integral de estos mundos en sus múltiples interrelaciones.

Segundo Arturo Escobar, o território é relacional, é a conjunção entre o humano e o não-humano, entre o físico e o espiritual, entre o simbólico e o orgânico. Essa é uma concepção oposta ao território como terra, espaço neutro, epistemologicamente baseado na dicotomia entre o sujeito e o objeto (HONNETH, 2020HONNETH, Axel. Reificação: um estudo de teoria do reconhecimento. Editora Unesp, 2020.; SANTOS, 2006).

Problematizar a neutralidade do espaço é assumir uma epistemologia complexa, em que se afirma a relação entre os sujeitos e o mundo. É essa mudança epistêmica que se tem visto hoje com as novas lutas territoriais, em especial, a indígena, a quilombola e a camponesa. Esse giro político e epistêmico deve ter repercussões ao se pensar o instituto jurídico do território, abandonando a dicotomia sujeito/espaço neutro e reafirmado a inter-relação entre sujeito, corpo, símbolo e espacialidade.

Falar sobre território é dizer sobre sujeitos individuais ou coletivos, constituídos e constituintes de territorialidades plurais, que não são neutras. Como expõe Rogério Haesbaert (2004HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.), grupos, comunidades, indivíduos ou a sociedade somente podem ser definidos em um contexto geográfico e territorial específico. Os sujeitos são produções e produtores de territórios, sendo que a destruição destes significa o fim dos próprios sujeitos.

Ora, se o território está associado aos seus sujeitos, ele é material, simbólico, emocional, uma produção subjetiva. É múltiplo, pois sobre uma mesma espacialidade podem se configurar territorialidades distintas, com diferentes escalas e sujeitos. Por exemplo, o território nacional dos Estados é perpassado por territórios de comunidades tradicionais campesinas, de determinados grupos urbanos ou pelos territórios transnacionais das corporações (FERNANDES, 2009FERNANDES, Bernardo Mançano. Sobre a Tipologia de Territórios. In: Saquet, Marco Aurélio e Sposito, Eliseu Sáverio (ORGs), Territórios e Territorialidades. Teoria, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 197-215.).

A territorialidade estatal, administrativista, é hegemônica, mas não é exclusiva. Há outras territorialidades não hegemônicas, com seus sujeitos e subjetivações. A redescoberta acadêmica da categoria território logo foi apropriada politicamente por múltiplos sujeitos, como os campesinos e comunidades urbanas periféricas, que também começaram a reivindicar politicamente seus territórios (HAESBAERT, 2007_____. Território e multiterritorialidade um debate. In: GEOgrafia, ano IX, n. 17, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 19-45.). A consequência tem sido a luta pelo reconhecimento jurídico de territorialidades diversas. O território adquire, assim, um novo status epistêmico, mas também redefine sua relevância e complexidade como instituto jurídico.

A categoria território traz à luz a dimensão política do espaço e do tempo, denunciando os silenciamentos que conferem sustentação à noção de terra como espaço neutro. Como coloca Arturo Escobar (2015ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 35, p. 89-100, dez. 2015.), a reivindicação do território anuncia outra ontologia, a relacional, abrindo caminho para entender que mesmo na territorialização moderno-estatal não há a ruptura entre o sujeito e a terra, mas somente a pretensão epistemológica e subjetiva da separação. O território está ali presente - como pertencimento, como vida que se faz mundo, espaço de indução de sentidos - mesmo quando negado.

3) Sujeito, subjetividade e a produção complexa do real

Não é fácil compreender a complexidade da categoria território. Para torná-la mais clara, opta-se, metodologicamente, por fazer um mergulho na teoria da Cultural-histórica da subjetividade (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.). Por meio dela será apresentada a realidade como um sistema complexo de sentidos e não como uma dicotomia entre sujeito e objeto. Esse giro permitirá anunciar apagamentos que simplificam a noção de espaço ao reduzi-lo à terra. A consequência jurídica será agregar complexidade ao instituto do território, deslocando-o de uma simples porção fronteiriça e evidenciando suas implicações mais profundas com seus sujeitos, seu nomos (SCHMITT, 2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014.).

A realidade tal qual vivenciada é resultado do processo de cristalização simbólica compartilhado intersubjetivamente3 3 Há múltiplos sistemas simbólicos, sendo a linguagem um deles (BENVENISTE, 2006). Como se tem claro desde Saussure (1999), a linguagem e os demais sistemas semióticos (BENVENISTE, 2006; TODOROV, 2001) são criações intersubjetivas de uma comunidade específica. Se, por um lado, são produtos da ação humana; por outro, a própria ação humana necessita desses sistemas como um terreno estável para se desenvolver (ROLNIK, 2011). Eles existem por serem criações coletivas de uma determinada comunidade, mas, ao mesmo tempo, são condição de possibilidade da própria existência da coletividade, estruturando seu horizonte de significação. Além da linguagem há, ainda, outros sistemas que permitem que o mundo adquira significação. As pinturas, as músicas, as placas são formas de simbolização que não são linguísticas e contribuem para a produção coletiva de significados intersubjetivamente apreendidos. A linguagem possui uma função especial, pois é um meio para se interpretar outras formas de simbolização. Utiliza-se dela, por exemplo, para tentar entender uma música ou uma pintura, traduzindo-as em palavras. Sistemas significativos de bases distintas, todavia, não podem ser reduzidos uns aos outros. Por mais que se use a linguagem para tentar entender outras simbolizações não linguísticas, elas jamais se reduzirão a ela. É o que Benveniste (2006) denomina como princípio da não redundância entre sistemas semióticos de bases distintas. (BEGER E LUCKMANN, 1985). A existência de instituições compartilhadas é fruto de simbolizações comuns, que permitem aos sujeitos dividirem uma mesma cotidianidade.

A cristalização simbólica do real assegura a estruturação da vida. Vive-se e compartilha-se o dia-a-dia, porque há simbolizações relativamente estáveis que são divididas pelas pessoas de uma determinada comunidade. Pode-se experienciar a habitualidade, lançar-se nas disputas políticas, imiscuir-se nos jogos de poder, entrar em conflito, pois há uma arena instituída que proporciona que o agir ganhe significado (BEGER E LUCKMANN, 1985).

A realidade é uma produção simbólica intersubjetivamente compartilhada. Sua relação com seus sujeitos, todavia, não é linear, mas circular, sendo um sistema permanente em que símbolos são cristalizados e sentidos são enunciados. Explicando melhor: a produção dos sentidos dos sujeitos parte de um universo simbólico estabilizado, territorializado. Simultaneamente, os sujeitos não apenas reproduzem ou se limitam às possibilidades significativas previamente instituídas; são agentes criativos, construtores de novos sentidos e de fragmentos de novas realidades. Ou seja, o real se territorializa, parece fixo, mas está em um constante movimento molecular em razão da atividade criativa dos seus sujeitos (ROLNIK, 2011ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulinas; Editora da UFRGS, 2011.).

3.1) A subjetividade e o sentido subjetivo: a interação entre o simbólico e o emocional

A descoberta dos sistemas simbólicos, em especial da linguagem, teve grande impacto para os estudos das Ciências Sociais. Compreendeu-se, como já dito, que a realidade é um produto de significações intersubjetivamente compartilhadas4 4 Isso lançou enormes desafios para as Ciências Humanas, entre eles a seguinte indagação: a realidade reduz-se ao simbólico? Outra inquietação era qual o papel do humano diante de estruturas semióticas que lhe eram prévias e que possibilitavam suas ações. Perguntava-se: se o agir humano desenvolve-se com base em estruturas simbólicas intersubjetivas, pode ele modificar a própria estrutura ou apenas jogar o jogo instituído por ela? (DOSSE, 2007). Inicialmente importa estabelecer que as análises partirão, sobretudo, dos estudos de François Dosse sobre o estruturalismo. Em resposta à primeira indagação, as percepções iniciais foram radicais no sentido de que o real se reduzia ao simbólico, com alguns autores chegando a constatar que tudo era linguagem. As respostas dadas à segunda inquietação caminhavam no mesmo sentido, afirmando a morte do sujeito (aquele que cria) em favor do ator/agente, aquele que age sob uma estrutura previamente estabelecida (DOSSE, 2007; REY, 2003). O raciocínio era: se o agir humano é possibilitado e desenvolve-se por meio de uma estrutura simbólica previamente estabelecida, cabe ao agente integrar um jogo anteriormente definido. A metáfora do xadrez era bastante utilizada. O agir humano é criativo e pode ser múltiplo, podem existir infinitas partidas de xadrez, cada uma com sua singularidade, mas sempre submetida ao mesmo conjunto de regras que devem ser obedecidas por todas as peças, sob pena de não existir o jogo. Dessa forma, o humano sempre podia ser o ator, aquele que move e realiza, mas não podia ser o sujeito, aquele que altera as próprias estruturas simbólicas intersubjetivamente compartilhadas. Segundo Dosse (2007), então, foi declarada a morte do sujeito pelo estruturalismo. Trazer essa breve síntese é importante para afirmar que, se no tópico passado foi dito que a realidade é uma produção simbólica, este texto filia-se a uma corrente epistemológica que não vai reduzi-la a isso. . Segundo a Teoria Histórico-Cultural, a realidade é uma criação simbólica, mas também emocional, uma vez que toda simbolização é perpassada por emocionalidades, em um processo gerador dos sentidos (VIGOTSKI, 2008VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica José Cipolla Neto. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.; REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

A realidade, então, é uma teia simbólica complexa, composta por diversos sistemas semióticos, intersubjetivamente compartilhados, o que favorece o entendimento e o viver conjunto.

Todo símbolo é processado por sujeitos que possuem biografias únicas, com experiências físicas e psicológicas próprias. Eles compartilham um mesmo significado, que reverbera, todavia, sentidos distintos5 5 Com Vigotski (2008) foi possível compreender que os significados são uma construção intersubjetiva, mas são acompanhados por sensações e percepções distintas ao serem experienciados por sujeitos diversos. Por exemplo, quando se diz “mãe”, certamente, dois interlocutores entenderão o mesmo significado, no entanto, os sentidos produzidos serão distintos. Um que sempre teve uma relação de cuidado e outro que foi permanentemente abusado física e psicologicamente pela sua mãe estabelecerão diferentes relações com a significação. O significado é a parte mais estável do símbolo, mas não o esgota. Todo significado é acompanhado por diferentes registros emocionais, o que Vigotski (2008) denominou de sentido. . Assim, a corporalidade e a emocionalidade ganham destaque: “as emoções representam uma forma de registro sobre acontecimentos da realidade que se desdobram em processos simbólicos [...]” (REY, 2009_____. Questões teóricas e metodológicas nas pesquisas sobre a aprendizagem: a aprendizagem no nível superior. In: MARTINEZ, A. M. e TACCA, M. C. V. A complexidade da aprendizagem: destaque ao ensino superior. Campinas, São Paulo: Editora Alínea, 2009. p. 119-147., p. 128). O simbólico é indissociável do emocional e a junção dos dois produz o que Gonzalez Rey (2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.) definiu por sentido subjetivo.

As emoções são formas de registro, que possuem um fundo fisiológico, mas também social, pois o “emocionalizar-se” também é fruto de um processo biográfico. Há uma relação recursiva entre o simbólico e o emocional que é constitutiva da realidade. Ela se estabiliza por meio de significados intersubjetivamente compartilhados, mas é emocionalmente registrada de diferentes formas pelos sujeitos, produzindo sentidos subjetivos6 6 Para aprofundar no conceito de subjetividade e de sentido subjetivo, consultar REY (2003). .

Assim, por mais que o sujeito (individual ou coletivo) esteja imerso em uma realidade social - que compartilha simbolizações e induz emoções comuns - nunca receberá essa influência de forma linear, sendo um agente gerador de sentidos, de transformações e de rupturas. O sentido subjetivo, por mais que seja reflexo de uma realidade intersubjetivamente compartilhada, sempre traz um elemento novo para a realidade, visto que é emocionalmente perpassado (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

O social exerce influência sobre o individual, mas não se impõe de forma determinista sobre ele. Pode-se igualmente afirmar que as experiências individualmente processadas também têm um impacto na realidade compartilhada. Há uma complexa interdependência entre o individual e o social que é constitutiva da realidade, a qual a Teoria Cultural-histórica procura explicar por meio da categoria subjetividade (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

Voltando ao território, a relação do sujeito com o espaço não se reduz à dicotomia sujeito/objeto, em que não há implicações recíprocas. O espaço é simbolicamente estruturado e somente assim pode ser vivenciado. Ao mesmo tempo, toda simbolização é atravessada por emocionalidades. O espaço existe para a realidade como espaço simbolicamente territorializado, experienciado por sujeitos produtores de sentidos.

O território é fonte de produção de sentidos para uma determinada pessoa ou grupo, ao mesmo tempo em que é resultado dessa própria produção de sentido. O território e seus sujeitos estabelecem uma relação dinâmica e de reciprocidade em que os sujeitos necessitam do território, como espaço simbólico e emocional, que darão sentido às suas próprias existências; ao passo que o território só existe em razão daqueles sujeitos.

Com base no que foi posto, pode-se concluir que ao se falar que o Estado moderno é territorial, significa algo muito além de ele dominar determinadas fronteiras e impor sua lei em uma espacialidade neutra, como se faz acreditar a visão administrativista. Dando razão a Carl Schmitt (2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014.), há uma “tomada da terra”, a criação de um novo nomos. Contudo, também é necessário ir além de Carl Schmitt e com base na teoria Cultural-histórica e nas proposições geográficas de Milton Santos, afirmar que o espaço somente pode ser vivenciado como simbolicamente territorializado, que constitui e dá sentido existencial aos seus sujeitos. Com Milton Santos (2006, 2021) foi possível compreender que se a territorialização estatal é hegemônica, ela não é exclusiva, pois não há uma territorialidade única, universal e neutra, há territorializações.

Para continuar a problematização do instituto jurídico território, será necessário aprofundar sobre como ele foi reduzido à noção de terra, espaço físico, objetivo e neutro, ou seja, foi reduzido a uma categoria linear, encobrindo a complexidade que lhe é própria. Deve-se analisar como o nomos modernos-estatal tomou o espaço, transformando-o em terra, nua, despersonalizada e mercantilizada por sujeitos-cidadãos proprietários.

4) A redução do instituto jurídico do território à terra

Como expõe Reinhard Bendix (1996BENDIX, R. Construção nacional e cidadania. Tradução de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. p. 69-138.) a formação do Estado moderno envolve a centralização do poder administrativo e judicial. Na análise do autor, uma nova relação com o espaço é inaugurada, em que o servo se desvincula da terra transformando-se em cidadão livre e igual em uma relação direta com o Estado, não mais mediada pelo senhor. Ao mesmo tempo, o território como terra torna-se bem público, detido pela autoridade central e submetido ao mercado, podendo, então, ser comercializado como uma propriedade privada. Como coloca Carl Schmitt (2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014.), há a fundação de um novo nomos, reorganizando as relações sociais e espaciais, sendo o território reduzido à terra. Começa, então, a ser subjetivado como uma grandeza exclusivamente física, objetiva e universal, que pode ser desvinculada de seus sujeitos e ser comercializada no mercado.

Na modernidade há uma nova forma de subjetivação do território, que implica em outra estabilização simbólica e emocional envolvendo o espaço. Há a cristalização de um universo simbólico particular, que se institucionaliza, oferecendo um horizonte de ação previsível para os indivíduos, permitindo o desenvolvimento da vida quotidiana. O objetivo deste tópico é compreender o processo de institucionalização e redução do território à terra, ocorrendo perda da sua complexidade. O primeiro passo para entender esse processo será esclarecer o que se quer dizer com a categoria instituição.

4.1) O que é instituir?

Beger e Luckmann (1985) são importantes autores que discutiram sociologicamente o papel da institucionalização. Para eles, as instituições não se reduzem aos constructos jurídicos. São resultados da estabilização de hábitos coletivos, que criam um campo comportamental intersubjetivamente compartilhado, o qual viabiliza o agir quotidiano7 7 A análise dos autores (BEGER e LUCKMANN, 1985) é de grande valia para a compreensão de como a realidade estabiliza-se. No entanto, apesar de oferecerem uma relevante contribuição para a compreensão da institucionalização do real, eles não conferem a devida ênfase ao papel do sujeito, o que pode gerar críticas sobre a tendência determinista da teoria desenvolvida por eles. Este texto assume os pressupostos da Teoria Cultural-histórica da subjetividade, para a qual a relação entre sujeito e instituição é sempre processual: se, por um lado, o indivíduo reproduz as condutas socialmente compartilhadas (o instituído); por outro lado, também as vivencia em um campo biográfico e psíquico próprio, induzindo sentidos subjetivos singulares. Feita a crítica, é importante destacar que a teoria de Beger e Luckmann (1985) é pertinente para entender a institucionalização do real e, neste sentido, será útil para os propósitos deste tópico. Será empregada pelos autores do artigo, realizando as contextualizações necessárias, mas sabendo que se está correndo o risco de um ecletismo teórico e eventuais críticas de incompatibilidade. .

O centro do estudo de Beger e Luckmann (1985) está na institucionalização do real e no seu processo normativo sobre os indivíduos. Como dito, as instituições para eles são os resultados perenes de hábitos coletivos que se estabilizam. Ao perpetuarem-se no tempo, fixam-se e começam a atuar normativamente sobre os indivíduos. Assim, partilhar uma instituição é vivenciar um hábito coletivamente construído.

No exercício da vida quotidiana, por exemplo, a instituição família tem demandas próprias sobre o que é ser uma boa mãe, um bom pai, bem como institui um local particular para cada um na relação. A performatização de tais papéis sociais é fundamental para que as pessoas envolvidas se reconheçam e sejam reconhecidas como parte daquela institucionalidade. O desvio será visto com desconfiança. Outro exemplo que pode ser dado é o do Poder Judiciário, que fixa muito bem - inclusive ritualizando por meio de normas jurídicas - o papel do juiz, do promotor, do advogado e do réu. Mesmo que fosse permitido, dificilmente um juiz presidiria uma audiência com roupas de praia ou excessivamente informal. Não se reconheceria e não seria reconhecido em seu lugar de autoridade (BEGER e LUCKMANN, 1985).

Como falado no tópico anterior, esses processos não são lineares como sugere a teoria dos autores ora em discussão (BEGER e LUCKMANN, 1985). A vivência da institucionalidade não possui um impacto homogêneo sobre os sujeitos. A pessoa reproduz o papel social, mas também é um sujeito de transformação, pois traz consigo múltiplas experiências - inclusive de outras institucionalidades - que também terão influência no exercício de um papel social específico.

Uma pessoa pode, perfeitamente, recusar o papel social que uma determinada instituição lhe impõe, sem que isso comprometa sua autoimagem como membro daquele espaço social. Por exemplo, um juiz, que também é ator, pode ter uma facilidade maior de subverter determinados ritos; uma mãe ou um pai que tenha uma vivência político-acadêmica sobre os feminismos pode ter uma inclinação maior para contestar determinados aspectos da estrutura familiar.

As instituições estabilizam condutas, oferecem papéis sociais e, com isso, contribuem para cristalizar o real. Atuam normativamente (mas não linearmente) sobre os indivíduos, que por sua vez tendem a retroalimentá-las.

A padronização coletiva de hábitos tem como vantagem a automatização dos comportamentos, oferecendo um campo de ação previsível para o agir quotidiano. Os indivíduos, conscientemente ou não, comungam expectativas sobre a conduta alheia. Agem, em regra, com base em padrões previamente institucionalizados e esperam ações recíprocas. Como ensinam Berger e Luckmann (1985BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985.), uma das vantagens desse processo é a redução do campo de escolhas8 8 Deve-se deixar claro para os leitores que a formação de hábitos está inserida dentro da complexidade social, com suas disputas e lutas, bem como suas inúmeras instituições que se procuram formas e conduzis condutas. Quem desejar aprofundar nesse nessa intricada teia de poder que leva às institucionalizações jurídicas, bem como nas resistências que dela emergem, consultar Rocha (2013). . Ao não precisar decidir sobre determinados aspectos da vida, o ator está liberado para tomar novas decisões.

As instituições servem como um espaço de controle, mas também como um espaço de conforto e de possibilidade, pois oferecem parâmetros sobre como agir em determinada sociedade. A ausência ou a incompreensão delas terá o efeito oposto, a deficiência de referências para a conduta. É exatamente por elas limitarem o campo de ação humano, induzirem determinados comportamentos e permitirem a partilha de uma mesma realidade quotidiana, que são tão importantes.

Instituir, então, é consolidar simbolizações, estabilizar uma gama de relações cotidianas. Por meio delas, compartilham-se representações simbólicas comuns, que induzem subjetividades próprias. Simbolizações estabilizadas instigam sentidos subjetivos relativamente comuns, que atuam de forma não linear sobre os indivíduos. Por exemplo, supõe-se que as instituições penais brasileiras impelem, de forma relativamente generalizada, registros emocionais que estão associados ao sofrimento, ao medo e à raiva. São espaços coletivamente produzidos com uma subjetividade social específica (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

Vale observar que, apesar dessa indução do agir possibilitada pelo simbólico, os espaços sociais conformam sentidos subjetivos próprios, processados em histórias biográficas particulares, possuindo, assim, uma influência complexa sobre os indivíduos. Enquanto para alguns a experiência da prisão pode significar o encontro com o Divino; para outros pode representar a negação de qualquer metafísica. Assim, a estabilização simbólica do real é processada de forma particularizada por cada sujeito, em uma relação recursiva e não linear entre o social e o individual (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

As instituições são produtos históricos e subjetivos, mas na medida em que se institucionalizam, passam a ser reificadas, ou seja, subjetivadas como sendo uma realidade em si, exteriores à própria ação humana, perdendo a sua dimensão social e histórica: “é a apreensão dos fenômenos humanos como se fossem coisas, isto é, em termos não humanos ou possivelmente super-humanos” (BERGER e LUCKMANN, 1985BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985., p.122, grifo nosso). Uma das consequências políticas desse processo é a naturalização, ou seja, a percepção de uma determinada instituição como algo não histórico; portanto, inquestionável, inalterável, o único caminho.

A reificação das instituições fica bastante evidente nas atuais discussões sobre gênero, família ou sobre o território como terra. Não é simples a compreensão do gênero como uma construção social. Da mesma forma, pode-se citar a família, que tende a ser vivenciada como uma esfera natural de pertencimento, entendida por muitos como sagrada. Citam-se ambos os exemplos para poder voltar ao objeto deste artigo. Defende-se que a visão moderna do território, institucionalizado como terra, também é resultado desse processo de reificação. A redução do território à sua dimensão geográfica e física é naturalizada, ocultando as complexas relações existentes entre a rede simbólica que constitui o espaço e seus sujeitos.

Todo espaço social é um território que induz sentidos subjetivos, mesmo quando compreendido como terra. É a ocultação da complexa teia de sentidos produzidos entre os sujeitos e os territórios que permite que o território estatal seja reduzido à porção física neutra, despida de relações humanas e sentidos subjetivos.

A institucionalização do Estado moderno é acompanhada da institucionalização do território como terra. Na modernidade o território é reduzido uma dimensão material, física, perdendo seu viés espiritual, metafísico, presente em outras cosmovisões (ELIAS, 1994_____. A Sociedade dos Indivíduos. Zahar, 1994.; HAROCHE, 1992HAROCHE, C. Fazer dizer, querer dizer. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi. São Paulo, Editora Hucitec, 1992.).

O território como terra é objetivado e reificado, subjetivado como se fosse natural. Por essa razão é tão difícil questionar esse pressuposto, agregar complexidade a esse instituto jurídico, reconhecendo outras formas de subjetivação que geram e são producentes de territorialidades múltiplas.

4.2) A institucionalização do território como terra

O processo de tomada da terra pelo Estado moderno envolve a separação entre o sujeito e o território, que passam a ser compreendidos como elementos atomizados. O território passou a ser subjetivado e naturalizado apenas como espaço físico, dissociado de seus sujeitos. Por meio dessa ruptura, o indivíduo foi instituído e subjetivado como ser livre, autônomo, capaz de estabelecer relações contratuais, ser proprietário e possuidor. Já a terra tonou-se um bem, negociada mediante um contrato e, portanto, apta a ser apropriada, possuída ou transmitida.

Há a ruptura epistêmica entre o sujeito e o território, o que é reflexo, mas também implica em outras dicotomias modernas, como a oposição entre o sujeito e o objeto, entre o indivíduo e a natureza ou entre a objetividade e a subjetividade (SANTOS; MENESES; NUNES, 2005SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula G. de; NUNES, João Arriscado. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (ORG). Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Editora Record, 2005.).

A redução da terra à mercadoria gerou profundas consequências nas instituições sociais feudais, sustentadas no pertencimento do sujeito à terra. Com a desestruturação do nomos feudal e o surgimento do nomos moderno, novas instituições emergiram, entre elas o Estado, o indivíduo livre e proprietário, e a terra como um bem disponível.

O processo de mercantilização da terra teve início na Europa. Atingiu sua maturidade, inicialmente, na Inglaterra, proporcionando alimentos e mão-de-obra para as cidades inglesas, o que possibilitou o afloramento da Revolução Industrial. Na França, alcançou a maturidade com a Revolução Francesa, que atacou os laços feudais ainda existentes naquele país. Expandiu-se mundialmente na segunda metade do século XIX, com o Imperialismo europeu e o avanço da violência colonial, impondo-se militarmente e epistemologicamente às distintas formas de vida, consideradas selvagens ou não modernas (KAUTSKY, 1980; POLANYI, 2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.).

O resultado do colonialismo fundado, principalmente, nos processos expropriatórios e escravocratas na América Latina e na África, foi uma desestruturação das relações tradicionais entre o humano e o território, lançando novas terras e pessoas no mercado, como escravizados ou como mão-de-obra livre. O contexto de ruptura epistemológica imposto, em especial, das metrópoles sobre suas colônias, fortaleceu a institucionalização da terra como mercadorias, transformando-se na forma hegemônica de relação entre os sujeitos e o espaço do sistema-mundo moderno-colonial (KAUTSKY, 1980; POLANYI, 2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.; WALLERSTEIN, 2006WALLERSTEIN, I. Impensar a Ciência Social. Os limites dos paradigmas do século XIX. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2006.).

Segundo Ellen Wood (2000WOOD, Ellen Meiksins. As origens agrárias do capitalismo. Revista Crítica Marxista, n. 10, p. 12-30, 2000.), entre os séculos XVI e XVIII houve uma intensa transição na Europa, em especial na Inglaterra, em que se modificaram os sentidos produzidos em torno da terra. Pode-se afirmar que nesse período o território medieval se desinstitucionalizou em favor de uma nova territorialização: a terra como propriedade. No decorrer desses séculos, os direitos costumeiros foram questionados, viabilizando o avanço do processo de acumulação do capital.

O direito feudal erguia-se sobre institutos que protegiam a comunidade aldeã, como o uso coletivo da terra. Para o avanço das relações econômicas capitalistas, foi preciso o surgimento de novos institutos jurídicos que permitissem a mercantilização da terra, reestruturando as relações estabelecidas entre sujeitos e territórios. Foi necessário o desenvolvimento de uma noção excludente de territorialidade, capaz de impor limites às regulações e às restrições que a comunidade aldeã exercia sobre a propriedade individual (WOOD, 2000WOOD, Ellen Meiksins. As origens agrárias do capitalismo. Revista Crítica Marxista, n. 10, p. 12-30, 2000.).

O uso que a comunidade aldeã fazia do território começou a ser deslegitimado. Ellen Wood (2000WOOD, Ellen Meiksins. As origens agrárias do capitalismo. Revista Crítica Marxista, n. 10, p. 12-30, 2000.), ao fazer a análise da mercantilização da terra na Inglaterra, país que primeiro experienciou esse processo, ressalta a relevância que adquiriu, por exemplo, o conceito de melhoramento (improvement). Segundo a autora, a posse e os direitos comuns começaram a ser questionados, inclusive nos tribunais, sob o argumento de que a terra não era melhorada, o que deve ser entendido como tornada mais lucrativa. Não bastava trabalhar a terra, usá-la para atender às necessidades da comunidade seguindo práticas imemoriais. Passou a ser necessário aprimorá-la, aumentando sua produtividade e lucro.

A maturidade jurídica desse processo foi atingida com o Código de Napoleão, que instituiu a terra como um bem comercializável e transformou a hipoteca em um contrato privado. Na Inglaterra, as mudanças legislativas mais significativas ocorreram entre 1801 e 1846, por meio de leis que visavam ampliar a liberdade contratual em torno da terra em detrimento de institutos jurídicos medievais que impunham limites à apropriação privada livre, como o das doações inalienáveis e o das terras comuns (POLANYI, 2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.).

Com o avanço da modernidade e do capitalismo, a terra é diminuída a um artigo apropriável e negociável, dissociada de qualquer reprodução existencial. Já o sujeito contratual de direito subjetiva-se como ser autônomo em relação aos outros e ao território, livre para ir e vir, negociar e capaz de vender sua própria força de trabalho no mercado.

O processo de ruptura entre sujeito e território é estruturante da modernidade e fundamental para apropriação da terra como uma mercadoria. A fenda entre sujeito e natureza proporciona as bases epistêmicas para a comoditização do meio ambiente como um todo e da terra em particular (WITTMAN, 2009WITTMAN, Hannah. Reworking the metabolic rift: La Vía Campesina, agrarian citizenship, and food sovereignty, The Journal of Peasant Studies, 36:4, 805-826, DOI:10.1080/03066150903353991, 2009.
https://doi.org/10.1080/0306615090335399...
). Esse abismo entre o sujeito e o território encobre as relações necessárias existentes entre ambos, sendo que a natureza passa a ser subjetivada como externa ao indivíduo, como algo selvagem, que deve ser domesticado (SANTOS; MENESES; NUNES, 2005SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula G. de; NUNES, João Arriscado. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (ORG). Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Editora Record, 2005.).

Como mercadoria, a terra adquire valor no mercado. O seu valor de troca torna-se preponderante sobre os seus usos. Antes, ela era compreendida em sua dimensão multidimensional, subjetivada como fonte de comida, de reprodução sócio-ecológica, de conexão espiritual, de serviços ecológicos, agora, adquire um significado, preponderantemente, unidimensional. É reduzida, sobretudo, a um bem negociável. Igualmente, os múltiplos sujeitos que se interconectavam e constituíam-se com base em distintos territórios, tendem a se uniformizar na instituição do indivíduo proprietário. O processo se agrava com o avanço da reificação da terra como um bem e do indivíduo como ser contratual, capaz de realizar negócios e de se vender por meio da comercialização da própria força de trabalho (POLANYI, 2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.; WITTMAN, 2009WITTMAN, Hannah. Reworking the metabolic rift: La Vía Campesina, agrarian citizenship, and food sovereignty, The Journal of Peasant Studies, 36:4, 805-826, DOI:10.1080/03066150903353991, 2009.
https://doi.org/10.1080/0306615090335399...
).

A episteme moderna desconecta o humano da natureza. A terra é arrancada do humano e o humano da terra em um duplo movimento. Como afirma Polanyi (2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012., p.199): “Tradicionalmente, a terra e o trabalho não são separados: o trabalho é parte da vida, a terra continua sendo parte da natureza, a vida e a natureza formam um todo articulado”. Por meio da fenda criada pôde-se isolar o humano e a natureza, rompendo seus laços mais profundos e submetendo ambos à lógica mercantil. “Aquilo a que chamamos terra é um elemento da natureza inexplicavelmente entrelaçado com as instituições do homem. Isolá-la e com ela formar um mercado foi talvez o empreendimento mais fantástico dos nossos ancestrais” (POLANYI, 2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012., p.199).

O avanço da modernidade e da economia de mercado gerou o desfazimento do tecido social da comunidade aldeã. As instituições medievais foram desterritorializadas, entre elas sua organização familiar, seus costumes, assim como o cultivo da terra9 9 O novo universo simbólico emergente demandou uma nova agricultura, mercantilizada, com seus ritos, suas temporalidades, seu ritmo industrial, seus símbolos e seus sentidos específicos (POLANYI, 2012). Entre as principais características da agricultura moderna estão a propriedade individual da terra e mercantilização de todos os seus produtos (KAUTSKY, 1980). (POLANYI, 2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.).

A ruptura epistemológica entre sujeito e natureza promovida pela modernidade instituiu homem e terra como entidades distintas, induzindo significados e sentidos próprios. Ocultou as relações necessárias entre o humano e o território, submetendo ambos - não sem resistência permanente - à lógica do capital. Com isso, o território como instituto jurídico perde sua multidimensionalidade, sua complexidade, assumindo uma característica unidimensional, reduzida a coisa, que assume valor apenas no mercado.

5) Sujeitos, subjetividades e a complexidade dos territórios

Rogério Haesbaert (2004HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.) é certeiro em sua afirmação de que não há território sem sujeitos, assim como a destruição de territórios significa a eliminação daqueles. Os sujeitos se fazem enquanto tais no espaço geográfico, que não é apenas físico, mas também é socialmente gerado. Essa relação é complexa, não linear e precisa ser bem compreendida.

Como dito, há uma diferença conceitual entre o sujeito e o ator. Conceitualmente, o sujeito vai além do ator. Aquele está imerso nas redes semiológicas, porém, também representa um momento qualitativo de construção da comunicação e da própria teia que está inserido (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.). Assume-se que há um universo simbólico que se mantém relativamente estável, por mais que esteja em constante movimento.

Retomando o que foi aqui discutido, as instituições se estabilizam, mas não se fixam, pois elas são processos históricos e culturais em permanente movimento. São sincrônicas (instituindo uma lógica própria sistêmica), mas também diacrônicas (são temporais, históricas) (ROCHA, 2013ROCHA, E. G. Teoria constitucional-democrática e subjetividade: problematizando o sujeito de direito. Tese de doutorado defendida na Universidade de Brasília, 2013. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/15014.
http://repositorio.unb.br/handle/10482/1...
).

Os territórios institucionalizam-se por meio de símbolos, práticas, ritos, códigos, papéis sociais compartilhados, ou seja, uma cultura comum, com seus jogos próprios. São, assim, produtos de um conjunto de institucionalizações que se apoiam. O espaço geográfico organiza-se socialmente por meio de suas instituições. Ao mesmo tempo, é a vivência dessa realidade cristalizada que permite que os sujeitos deem sentido à realidade, permitindo que a vida se faça mundo (ESCOBAR, 2015ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 35, p. 89-100, dez. 2015.).

Ao estabelecerem uma lógica própria, os territórios fundam suas dinâmicas de poder e, assim, estimulam a produção de simbolizações e emocionalidades relativamente comuns em seus sujeitos, o que o psicólogo social Gonzalez Rey (2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.) denominou como subjetividade social. Esses territórios são espaços geográficos e fontes de produção de sentidos subjetivos sobre o mundo. Ou seja, são zonas geográficas e de subjetivação, sob as quais os sujeitos se constituem (ESCOBAR, 2015ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 35, p. 89-100, dez. 2015.; HAESBAERT, 2007_____. Território e multiterritorialidade um debate. In: GEOgrafia, ano IX, n. 17, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 19-45.).

É no território que o sujeito possui a referência simbólica e institucional para produzir sentidos sobre o mundo e sobre si. É nessa teia simbólica que a realidade se cristaliza e assume uma lógica sistemática (sincrônica). Assim, o sujeito somente existe atravessado pelo território, por suas simbolizações, instituições e jogos de poder, como bem colocou Rogério Haesbaert (2007_____. Território e multiterritorialidade um debate. In: GEOgrafia, ano IX, n. 17, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 19-45.). Contudo, tais sujeitos também possuem uma relação ativa e não linear com o território. Eles são fontes geradoras de novos sentidos subjetivos, que atuam, em uma tensão constitutiva, sobre o território.

A subjetividade é um processo complexo, fruto de uma interação recursiva entre o social e o individual. O social é simbolicamente compartilhado e institucionaliza-se estimulando sentidos subjetivos específicos. Contudo, os sentidos induzidos pelo social são processados por sujeitos que possuem uma biografia e um corpo próprio. Os sentidos são processados na rede de sentidos constitutiva do sujeito, o que o torna um espaço gerador de novos sentidos (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

Em sociedades complexas, multiterritoriais, como aponta Mançano Fernandes (2009FERNANDES, Bernardo Mançano. Sobre a Tipologia de Territórios. In: Saquet, Marco Aurélio e Sposito, Eliseu Sáverio (ORGs), Territórios e Territorialidades. Teoria, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 197-215.), há a convivência, ainda que conflitiva, entre diversas territorialidades. Dificilmente um sujeito se limitará a uma única experiência territorial. Nesse sentido, ele está profundamente marcado por suas diferentes vivências e pelos sentidos induzidos por suas múltiplas experiências territoriais.

Tal experiência territorial, por mais que seja comum, é sempre singular, pois é emocionalmente registrada de forma particularizada, sempre comportando inovações, rupturas e novidades. O sujeito é entendido por Rey (2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.) como um ser processual, que em sua configuração própria de sentidos processará suas cotidianidades, gerando sentidos sempre particulares. Os sentidos subjetivos elaborados com base em determinada experiência territorial serão marcados por vivências internas e estranhas àquele espaço. O sujeito é um importante elemento integrativo de diversas territorialidades, ser gerador e fator de mudança (REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).

6) Território como instituto jurídico complexo

Na modernidade, epistêmica e semanticamente, a noção de território associou-se preponderantemente ao território estatal, remetendo à sua noção jurídico-política de espaço fronteiriço sobre o qual o Estado exerce sua soberania. Há uma pretensa neutralidade, em que o espaço, reduzido à terra, é subjetivado como um objeto dissociado de qualquer relação social, como uma realidade em si reificada, ou seja, é a terra nua (SANTOSb, 2005SANTOSb, Milton. O retorno do território. In: OSAL : Observatorio Social de América Latina. Año 6 no. 16 (jun.2005- ). Buenos Aires : CLACSO, 2005- . -- ISSN 1515-3282 Disponível em:http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf. Acessado em 14 de maio de 2021.
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).

O pensamento de Milton Santos (2006, 2021) contribuiu para desconstruir a pretensa neutralidade geográfica, mostrando que o território não é apenas um objeto físico, com métricas e escalas universais, sendo vazio de relações humanas. Ao contrário, o espaço geográfico é produto e produtor de relações sociais. Ele é econômico, social, cultural, simbólico, portanto, afetivo e subjetivo. O autor trouxe para o campo geográfico o questionamento da pureza científica que tem marcado as ciências sociais pós-positivistas: “Vivemos com uma noção de território herdada da Modernidade incompleta e do seu legado de conceitos puros, tantas vezes atravessando os séculos praticamente intocados.” (SANTOSb, 2021, p. 255).

A afirmação epistêmica da neutralidade tem significado a invisibilidade das relações de poder constituintes das relações sociais, portanto, o encobrimento das exclusões e das formas sociais não hegemônicas. Como aqui analisado, a neutralidade geográfica e a redução do território à terra, como unidade objetiva, contribuiu para que o território estatal fosse compreendido como único, em detrimento de outras territorialidades.

Como diz Milton Santos (2006, 2021), há uma relação circular entre o Estado e o território. O Estado moderno molda o território ao mesmo tempo em que é moldado por ele. Estabelece-se entre o território e suas instituições um caminho recursivo. O nomos estatal não é unidirecional, mas circular, pois, no mesmo instante em que o Estado é uma instituição fundante de uma nova forma de territorialização, ele existe somente em razão do conjunto de relações sócio-territoriais que contribuiu para instituir. Percebe-se, então, o equívoco de cindir o território dos sujeitos que o ocupam.

O território congrega manifestações de múltiplos sujeitos com suas espacialidades e temporariedades próprias. Isso porque o agir não está restrito ao presente, mas ressoa o passado e projeta-se como futuro. Essa espacialidade, então, assume também uma feição temporal. O território institui-se com base em uma configuração de sentidos específica induzindo uma forma de subjetivação particular, socialmente produzida.

O território também é um local de exercício político. Por essa razão, considerando a variedade de espaços, há, por consequência, uma multiplicidade de dinâmicas políticas em colisões. Há uma constante de fluxos de sentidos sobre os indivíduos, considerando esse ressoar do território também sobre a formação e a manifestação política dos sujeitos (SANTOSb, 2006SANTOSb, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2006.).

O território também é o espaço do exercício do afeto. Aqui, entendido para além da perspectiva do carinho, mas do ser afetado, o que pode acontecer das mais diversas maneiras. É nessa interação com o outro, com a alteridade, com a escuta, com o toque, que os sujeitos são também diversamente afetados e constituídos (HUTTA, 2020HUTTA, Jan Simon. Territórios afetivos: cartografia do aconchego como uma cartografia de poder. Caderno Prudentino de Geografia, v. 2, n. 42, p. 63-89, jun. 2020.).

O território ainda exerce sua influência nas relações de afastamentos e proximidades. Isso pode acontecer tanto no que diz respeito ao local propriamente dito; quanto às outras estruturas que com ele dialogam: sujeitos, discursos, estruturas físicas etc. Assim, percebe-se a extensão dos efeitos do território e da ideia de territorialidade sobre as constituições dos sujeitos (HUTTA, 2020HUTTA, Jan Simon. Territórios afetivos: cartografia do aconchego como uma cartografia de poder. Caderno Prudentino de Geografia, v. 2, n. 42, p. 63-89, jun. 2020.).

O instituto jurídico do território não pode ser limitado à visão administrativista, como porção territorial e fronteiriça, como terra nua que pode ser vendida e comercializada. As contribuições da Geografia Humana e da Psicologia Social permitem compreender sua complexidade epistêmica, o que deve ser traduzido em suas repercussões jurídicas.

A adoção de uma epistemologia, distante da dicotomia sujeito/objeto, permite entender que não há uma ruptura entre o sujeito e a terra, mas uma influência recíproca entre ambos, que se institucionaliza na territorialização. Compreende-se, assim, que mesmo a subjetivação moderna hegemônica do território como terra é apenas uma entre tantas outras formas de territorialização. A complexidade do território exige traduzir em termos jurídicos a rica e profunda inter-relação entre sujeitos e o espaço.

Conclusão

Caminhando para a conclusão, é importante fazer uma análise retrospectiva. Carl Schmitt (2014SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2014.) estava correto ao falar que há uma nova tomada da terra, um novo nomos, com o surgimento do Estado moderno. Com isso, problematizou o território como um instituto jurídico complexo. A relação entre o Estado e o espaço geográfico não é apenas uma relação de posse ou propriedade, mas de tomada, de fundação de um conjunto de instituições, de sociabilidades. Nas palavras de Schmitt (2014), é uma nova organização sócio-espacial.

Na modernidade, o sujeito é compreendido como isolado da natureza, atomizado, há uma ruptura que tem como consequências o apagamento epistêmico de outras espacialidades. A realidade passa a ser subjetivada como uniforme, sendo o espaço reduzido à terra, meio físico, acima do qual as relações humanas desenvolvem-se apartadamente. Como grandeza física, mensurável, quantificável, ele pode ser apropriado e comercializado no mercado. O seu valor de troca começa a se sobrepor ao seu valor de uso. Dessa forma, apesar do instituto jurídico território ser fundamental para o Direito moderno, ele é compreendido de forma unidimensional, como um espaço físico apenas, apagando sua dimensão humana.

O território reduzido à terra, ao ser despido da sua dimensão existencial, forma um abismo entre o sujeito e o território, em um dualismo ontológico e epistemológico. Nega-se o território como um espaço relacional e subjetivo, gerador de simbolizações e emocionalidades específicas, e de sujeitos próprios.

Foi necessário o avanço epistêmico da Geografia para inserir o humano no espaço, apontando que o território é indissociável das relações e conflitos sociais nele existentes. Com a Psicologia social foi possível aprofundar a crítica epistêmica e afirmar que o território também é uma produção subjetiva, que induz sentidos. O espaço é sistêmico e histórico, com instituições e sujeitos próprios. Não há o território universal único, que a modernidade quis atribuir à terra. O nomos estatal é uma territorialidade entre tantas outras.

Essa conclusão é de grande relevância para pensar o Direito no contexto do Estado Democrático, pós Constituição de 1988. A sustentação epistêmica, política e jurídica do território como um instituto jurídico complexo significa, igualmente, a afirmação de uma multiplicidade de sujeitos, ou seja, de diferentes formas de dignidade e de realização existencial. No centro do Direito está a preservação da dignidade, entendida de forma plural e não universal. Assim, a Geografia e suas proposições sobre o território, bem como a Psicologia Social e suas reflexões sobre os processos de subjetivação têm muito a contribuir com o debate jurídico (FLORES, 2009FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.).

O território estatal não é exclusivo, neutro ou formador de um único sujeito. O espaço geográfico configura-se e institucionaliza-se em razão dos sentidos subjetivos produzidos por seus sujeitos. Nele, a vida se torna mundo, práticas sociais se institucionalizam, universos simbólicos cristalizam-se, tornando-se um espaço físico e social gerador de novos sentidos subjetivos, constitutivos dos sujeitos. Territórios e seus sujeitos são indissociáveis, apesar de não possuírem uma relação linear, mas sim uma tensão constitutiva. Se o território estatal não é único, há uma multiplicidade de sujeitos e muitas formas de dignidade que demandam a proteção por parte do Direito.

O debate sobre a dignidade está no centro do Direito e adquire contornos ainda mais complexos em uma sociedade Constitucional Democrática. O Direito vem descobrindo a complexidade desse instituto jurídico central para a modernidade, o território. A Geografia e a Psicologia, então, têm muito a contribuir com a luta jurídica e política na afirmação de distintos sujeitos, territórios e dignidades.

Referências bibliográficas

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  • WOOD, Ellen Meiksins. As origens agrárias do capitalismo. Revista Crítica Marxista, n. 10, p. 12-30, 2000.
  • 1
    Gostaríamos de agradecer ao Professor Douglas Antônio Rocha Pinheiro, docente da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB, pela contribuição com as reflexões que auxiliaram na construção deste artigo.
  • 2
    O conceito hegemônico de território para o Direito vincula a ideia de território àquela que circunda um específico limite sobre a superfície. O Direito Constitucional se utiliza constantemente da ideia de território enquanto porção física delimitadora da extensão política de um país - isso não quer dizer que essa seja a única dimensão de território trabalhada na Constituição Federal, cabe ressaltar. É o que se vê, por exemplo, quando dispõe sobre o direito de locomoção, como a delimitação da nacionalidade brasileira e sobre a organização político-administrativa do país, apenas para citar alguns exemplos. Nesses casos, vê-se uma adoção muito clara do território enquanto espaço físico e político. Como se mostrará, essa visão administrativista do território está fundada epistemicamente na dicotomia entre sujeito/objeto. Ela cumpre um duplo propósito, a uniformização dos sujeitos e dos territórios, permitindo o melhor exercício do poder soberano (ROCHA, 2013ROCHA, E. G. Teoria constitucional-democrática e subjetividade: problematizando o sujeito de direito. Tese de doutorado defendida na Universidade de Brasília, 2013. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/15014.
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    )
  • 3
    Há múltiplos sistemas simbólicos, sendo a linguagem um deles (BENVENISTE, 2006BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. 2. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.). Como se tem claro desde Saussure (1999), a linguagem e os demais sistemas semióticos (BENVENISTE, 2006; TODOROV, 2001TODOROV, T. Semiótica. In: DUCROT, O. e TODOROV, T. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.) são criações intersubjetivas de uma comunidade específica. Se, por um lado, são produtos da ação humana; por outro, a própria ação humana necessita desses sistemas como um terreno estável para se desenvolver (ROLNIK, 2011ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulinas; Editora da UFRGS, 2011.). Eles existem por serem criações coletivas de uma determinada comunidade, mas, ao mesmo tempo, são condição de possibilidade da própria existência da coletividade, estruturando seu horizonte de significação. Além da linguagem há, ainda, outros sistemas que permitem que o mundo adquira significação. As pinturas, as músicas, as placas são formas de simbolização que não são linguísticas e contribuem para a produção coletiva de significados intersubjetivamente apreendidos. A linguagem possui uma função especial, pois é um meio para se interpretar outras formas de simbolização. Utiliza-se dela, por exemplo, para tentar entender uma música ou uma pintura, traduzindo-as em palavras. Sistemas significativos de bases distintas, todavia, não podem ser reduzidos uns aos outros. Por mais que se use a linguagem para tentar entender outras simbolizações não linguísticas, elas jamais se reduzirão a ela. É o que Benveniste (2006BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. 2. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.) denomina como princípio da não redundância entre sistemas semióticos de bases distintas.
  • 4
    Isso lançou enormes desafios para as Ciências Humanas, entre eles a seguinte indagação: a realidade reduz-se ao simbólico? Outra inquietação era qual o papel do humano diante de estruturas semióticas que lhe eram prévias e que possibilitavam suas ações. Perguntava-se: se o agir humano desenvolve-se com base em estruturas simbólicas intersubjetivas, pode ele modificar a própria estrutura ou apenas jogar o jogo instituído por ela? (DOSSE, 2007DOSSE, F. História do estruturalismo. Vol. I. Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica de Márcia Mansor D´Alessio. Bauru, SP: Edusc, 2007.). Inicialmente importa estabelecer que as análises partirão, sobretudo, dos estudos de François Dosse sobre o estruturalismo. Em resposta à primeira indagação, as percepções iniciais foram radicais no sentido de que o real se reduzia ao simbólico, com alguns autores chegando a constatar que tudo era linguagem. As respostas dadas à segunda inquietação caminhavam no mesmo sentido, afirmando a morte do sujeito (aquele que cria) em favor do ator/agente, aquele que age sob uma estrutura previamente estabelecida (DOSSE, 2007DOSSE, F. História do estruturalismo. Vol. I. Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica de Márcia Mansor D´Alessio. Bauru, SP: Edusc, 2007.; REY, 2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.). O raciocínio era: se o agir humano é possibilitado e desenvolve-se por meio de uma estrutura simbólica previamente estabelecida, cabe ao agente integrar um jogo anteriormente definido. A metáfora do xadrez era bastante utilizada. O agir humano é criativo e pode ser múltiplo, podem existir infinitas partidas de xadrez, cada uma com sua singularidade, mas sempre submetida ao mesmo conjunto de regras que devem ser obedecidas por todas as peças, sob pena de não existir o jogo. Dessa forma, o humano sempre podia ser o ator, aquele que move e realiza, mas não podia ser o sujeito, aquele que altera as próprias estruturas simbólicas intersubjetivamente compartilhadas. Segundo Dosse (2007DOSSE, F. História do estruturalismo. Vol. I. Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica de Márcia Mansor D´Alessio. Bauru, SP: Edusc, 2007.), então, foi declarada a morte do sujeito pelo estruturalismo. Trazer essa breve síntese é importante para afirmar que, se no tópico passado foi dito que a realidade é uma produção simbólica, este texto filia-se a uma corrente epistemológica que não vai reduzi-la a isso.
  • 5
    Com Vigotski (2008VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica José Cipolla Neto. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.) foi possível compreender que os significados são uma construção intersubjetiva, mas são acompanhados por sensações e percepções distintas ao serem experienciados por sujeitos diversos. Por exemplo, quando se diz “mãe”, certamente, dois interlocutores entenderão o mesmo significado, no entanto, os sentidos produzidos serão distintos. Um que sempre teve uma relação de cuidado e outro que foi permanentemente abusado física e psicologicamente pela sua mãe estabelecerão diferentes relações com a significação. O significado é a parte mais estável do símbolo, mas não o esgota. Todo significado é acompanhado por diferentes registros emocionais, o que Vigotski (2008) denominou de sentido.
  • 6
    Para aprofundar no conceito de subjetividade e de sentido subjetivo, consultar REY (2003REY, Gonzalez. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-cultural. Tradução Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.).
  • 7
    A análise dos autores (BEGER e LUCKMANN, 1985) é de grande valia para a compreensão de como a realidade estabiliza-se. No entanto, apesar de oferecerem uma relevante contribuição para a compreensão da institucionalização do real, eles não conferem a devida ênfase ao papel do sujeito, o que pode gerar críticas sobre a tendência determinista da teoria desenvolvida por eles. Este texto assume os pressupostos da Teoria Cultural-histórica da subjetividade, para a qual a relação entre sujeito e instituição é sempre processual: se, por um lado, o indivíduo reproduz as condutas socialmente compartilhadas (o instituído); por outro lado, também as vivencia em um campo biográfico e psíquico próprio, induzindo sentidos subjetivos singulares. Feita a crítica, é importante destacar que a teoria de Beger e Luckmann (1985) é pertinente para entender a institucionalização do real e, neste sentido, será útil para os propósitos deste tópico. Será empregada pelos autores do artigo, realizando as contextualizações necessárias, mas sabendo que se está correndo o risco de um ecletismo teórico e eventuais críticas de incompatibilidade.
  • 8
    Deve-se deixar claro para os leitores que a formação de hábitos está inserida dentro da complexidade social, com suas disputas e lutas, bem como suas inúmeras instituições que se procuram formas e conduzis condutas. Quem desejar aprofundar nesse nessa intricada teia de poder que leva às institucionalizações jurídicas, bem como nas resistências que dela emergem, consultar Rocha (2013ROCHA, E. G. Teoria constitucional-democrática e subjetividade: problematizando o sujeito de direito. Tese de doutorado defendida na Universidade de Brasília, 2013. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/15014.
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    ).
  • 9
    O novo universo simbólico emergente demandou uma nova agricultura, mercantilizada, com seus ritos, suas temporalidades, seu ritmo industrial, seus símbolos e seus sentidos específicos (POLANYI, 2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.). Entre as principais características da agricultura moderna estão a propriedade individual da terra e mercantilização de todos os seus produtos (KAUTSKY, 1980).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2021
  • Aceito
    28 Out 2022
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