Epidemiologia da sífilis gestacional em um estado brasileiro: análise à luz da teoria social ecológica

RESUMO

Objetivo:

Analisar, à luz da teoria social ecológica, a evolução temporal da sífilis gestacional e sua relação com a implantação da rede cegonha no Ceará.

Método:

Estudo retrospectivo, documental, a partir do sistema de informação de agravos de notificação acerca da sífilis gestacional na perspectiva da teoria social ecológica. A amostra foi composta por todas as notificações do estado do Ceará no período de 2007 a 2017. A coleta de dados foi realizada em outubro de 2019.

Resultados:

Foram notificados 229.558 casos de sífilis gestacional no Brasil; destes, 7.040 foram oriundos do estado do Ceará (3,1%), com aumento crescente dos casos no decorrer dos anos. Com relação à distribuição dos casos de sífilis entre o período antes e após a implantação da rede cegonha, houve associação com escolaridade (p < 0,0001), classificação clínica (p < 0,0001) e idade gestacional (p = 0,0005).

Conclusão:

Apesar da efetivação de políticas públicas e aprimoramento do sistema de vigilância epidemiológica, ainda há um longo caminho para controle da sífilis na gestação.

DESCRITORES
Sífilis; Gravidez; Promoção da Saúde; Doenças Sexualmente Transmissíveis; Saúde Materno-Infantil; Inquéritos Epidemiológicos

ABSTRACT

Objective:

To analyze, in the light of the social-ecological theory, the temporal progression of gestational syphilis and its relationship with the implementation of the rede cegonha in Ceará.

Method:

This is a retrospective documental study, based on the information system of notifiable diseases about gestational syphilis in the perspective of the social-ecological theory. The sample consisted of all notifications from the state of Ceará in the period from 2007 to 2017. Data collection was carried out in October 2019.

Results:

A total of 229,558 cases of gestational syphilis was reported in Brazil; of these, 7,040 were from the state of Ceará (3.1%), with a growing increase in cases over the years. Regarding the distribution of syphilis cases between the period before and after the implementation of the rede cegonha, there was an association with education (p < 0.0001), clinical classification (p < 0.0001), and gestational age (p = 0.0005).

Conclusion:

Despite the implementation of public policies and improvement of the epidemiological surveillance system, there is still a long way to go to control syphilis during pregnancy.

DESCRIPTORS
Syphilis; Pregnancy; Health Promotion; Sexually Transmitted Diseases; Maternal and Child Health; Health Surveys

RESUMEN

Objetivo:

Analizar, a la luz de la teoría social ecológica, la evolución temporal de la sífilis gestacional y su relación con la implantación de la rede cegonha en Ceará.

Método:

Estudio retrospectivo, documental, a partir del sistema de información de agravios de notificación acerca de la sífilis gestacional en la perspectiva de la teoría social ecológica. La muestra fue compuesta por todas las notificaciones del estado de Ceará en el período de 2007 a 2017. La colecta de datos fue realizada en octubre de 2019.

Resultados:

Fueron notificados 229.558 casos de sífilis gestacional en Brasil; de estos, 7.040 fueron provenientes del estado de Ceará (3,1%), con aumento creciente de los casos a lo largo de los años. Con relación a la distribución de los casos de sífilis entre el periodo y después de la implantación de la rede cegonha, hubo asociación con escolaridad (p < 0.0001), clasificación clínica (p < 0,0001) y edad gestacional (p = 0,0005).

Consideraciones Finales:

A pesar de la efectuación de políticas públicas y mejora del sistema de vigilancia epidemiológica, todavía hay un largo camino para el control de la sífilis en la gestación.

DESCRITORES
Sífilis; Embarazo; Promoción de la Salud; Enfermedades de Transmisión Sexual; Salud Materno-Infantil; Encuestas Epidemiológicas

INTRODUÇÃO

A sífilis é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) que persiste milenarmente mesmo com vasta aplicação de medidas de prevenção e tratamentos eficientes. Presume-se que acometa aproximadamente 12 milhões de pessoas no mundo(¹–²). Além de associar-se a complicações graves em pessoas não tratadas, a Sífilis Gestacional (SG) relaciona-se a complicações perinatais como a Sífilis Congênita (SC), mortes fetais/natimortos, mortes neonatais, prematuros/baixo peso e crianças infectadas(³).

Durante a gestação, a sífilis chega a causar mais de 300.000 mortes fetais e neonatais por ano em todo o mundo, além de aumentar o risco de morte prematura em outras 215.000 crianças(⁴). No Brasil, estimava-se um aumento de 300% do número de casos de SG entre 2010 e 2016, em decorrência do aprimoramento do sistema de vigilância em saúde e à ampliação da distribuição e utilização de testes rápidos, levando ao maior número de diagnósticos e notificações(¹).

Em 2017, o número de casos de SG notificados no Brasil foi de 49.013 (28,4% a mais que 2016). Destes casos, 9.084 (18,5%) eram residentes na Região Nordeste, sendo 1.297 casos apenas no estado do Ceará (2,65%). Ainda em 2017, o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou com procedimentos de médio e alto custo, como internamentos, aproximadamente 2,8 milhões de dólares, dos quais montante expressivo estava relacionado diretamente à sífilis e à SC(⁵).

O eficaz controle da sífilis depende, dentre outras medidas, da otimização das políticas públicas e do empenho de gestores para pôr em prática ações que visem à qualidade da atenção prestada à gestante, juntamente com suas parcerias sexuais, durante a realização do Pré-Natal (PN). Além disso, é imprescindível a sensibilização da comunidade em geral e dos profissionais da saúde quanto à importância de o diagnóstico ser realizado precocemente, bem como da realização de tratamento eficaz da gestante e do seu parceiro(³).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou em 2007 uma iniciativa para eliminar a transmissão da sífilis que visava, dentre outros objetivos, aumentar o acesso de mulheres grávidas à testagem e ao tratamento(⁶). Desde então, o Brasil tem implantado diversas políticas nacionais para atingir este objetivo. Entre elas, em 2011, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria Nº 1.459, que instituiu a Rede Cegonha (RC) no âmbito do SUS, estabeleceu a triagem sorológica para sífilis na rotina PN, proporcionando a descentralização e disponibilização de testes rápidos para a gestante e seu parceiro(⁷–⁸). Apesar destes esforços, nos últimos anos vem ocorrendo um aumento desta infecção na gestação(⁷). Ademais, ainda se observa predomínio do diagnóstico tardio da SG, com tratamentos considerados inadequados(⁹).

Baseado no pressuposto que o processo de saúde e doença é resultado da interação de diversos elementos sociais, políticos e econômicos, no intuito de analisar a epidemiologia da sífilis gestacional, optou-se pela Teoria Social Ecológica (TSE) como marco teórico(¹⁰–¹¹) para a condução deste estudo. Logo, objetivou-se analisar, à luz da teoria social ecológica, a evolução temporal da sífilis gestacional e sua relação com a implantação da rede cegonha no Ceará.

MÉTODO

Desenho do Estudo

Estudo retrospectivo, documental, realizado de acordo com as recomendações do STROBE (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology), a partir do banco de dados do Sistema Único de Saúde, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), acerca das notificações de sífilis gestacional do Estado do Ceará.

População e Amostra

A amostra foi composta por todas as notificações do estado do Ceará realizadas entre 2007 e 2017 (n = 7.040), período em que o sistema apresenta dados completos.

Coleta de Dados

O banco de dados foi acessado em outubro de 2019. As variáveis investigadas foram: (¹) taxa de detecção da SG e SC; (²) faixa etária, até 19 anos e ≥ 20 anos; (³) escolaridade – analfabeto, Ensino Fundamental (EF) incompleto/completo, Ensino Médio (EM) incompleto/completo, Ensino Superior (ES) incompleto/completo; (⁴) idade gestacional – 1º trimestre, 2º trimestre, 3º trimestre; (⁵) classificação clínica da SG – primária, secundária, terciária, latente; e, (⁶) esquema de tratamento – penicilina, outro esquema, não realizado, ignorado. As taxas de detecção da sífilis em gestantes e congênita foram calculadas pelo número de casos notificados de sífilis em gestante e sífilis congênita respectivamente, por ano, dividido pelo número de nascidos vivos do mesmo ano/local e multiplicado por 1.000.

Análise e Tratamento dos Dados

Os dados foram organizados e analisados mediante o uso do programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 23.0, considerando frequência absoluta e relativa. Foi utilizado o Pearson Chi-Square de proporções para avaliar a relação entre a distribuição temporal, considerando os períodos anterior (2007–2011) e posterior (2012–2017) à implantação da Rede Cegonha, e as variáveis sociais e gestacionais. O nível de significância adotado foi de 5% com intervalo de confiança de 95%. A análise foi realizada a partir da identificação dos fatores individuais, sociais e ambientais associados à SG, tomando como referencial teórico a TSE na promoção da saúde.

A TSE enxerga o ambiente em níveis, metaforicamente comparado a um conjunto de bonecas russas, de maneira que um nível é comportado pelo nível subsequente. No microssistema, o nível mais interno da TSE, está o ambiente imediato do indivíduo, que inclui suas relações mais proximais, por exemplo, com a família, o trabalho, a vizinhança próxima, a escola. No segundo nível (mesossistema) encontra-se a relação entre os microssistemas. O Exossistema (terceiro nível) configura-se por ambientes que, apesar de o indivíduo não estar presente, afetam diretamente seu desenvolvimento. Já o macrossistema (último nível) engloba os elementos relacionados à temporalidade, como os sistemas de valores e crenças (¹²).

Aspectos Éticos

Para realização do estudo não foi necessária a aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa, uma vez que foram utilizados dados secundários de domínio público, disponíveis via internet, sem qualquer identificação das pacientes.

RESULTADOS

No período de 2007 a 2017 foram notificados 229.558 casos de SG no Brasil; destes, 7.040 foram oriundos do estado do Ceará, representando 3,1% do total. É possível observar aumento crescente dos casos de SG no decorrer dos anos, com a taxa de detecção, no Ceará, passando de 1,7 em 2008 para 9,8 em 2017.

Ao comparar as taxas de detecção de SG e SC no período de 2008 a 2017, foi verificado que ambas cresceram juntas. No entanto, esperava-se que com a detecção da sífilis na gestante houvesse o tratamento oportuno e adequado que impactasse em menores taxas de detecção de SC no recém-nascido. Apenas em 2017 as taxas de detecção de SG e SC se igualaram (Figura 1).

No tocante ao tratamento, os dados estão disponíveis apenas no período de 2014 a 2016, sendo que 7,4% dos casos não foram tratados com penicilina, destacando o ano de 2015 que apresentou menor número de gestantes tratadas com penicilina (86,5%) (Tabela 1).

Figura 1.
Taxa de detecção de sífilis gestacional e sífilis congênita entre 2008 e 2017. Ceará, Brasil, 2019.

Tabela 1.
Distribuição do número de casos de sífilis gestacional por esquema de tratamento e período entre 2014 e 2016 no Ceará – Fortaleza, CE, Brasil, 2019.

Esquema de tratamento	Período
	2014 (n = 712)		2015 (n = 828)		2016 (n = 956)
	n	%	n	%	n	%
Penicilina	660	92,7	716	86,5	871	91,1
Outro esquema	7	1	34	4,1	29	3
Não realizado	25	3,5	40	4,8	33	3,5
Ignorado	20	2,8	38	4,6	23	2,4

• Fonte: http://indicadoressifilis.aids.gov.br/.

Os dados apresentados na Tabela 2 indicam que não houve associação entre a faixa etária das gestantes com sífilis e os períodos avaliados (período 1: 2008 a 2011 e período 2: 2012 a 2017). Porém, houve relação entre escolaridade, classificação clínica e idade gestacional e os períodos investigados. No período de 2012 a 2017, dentre as mulheres diagnosticadas com sífilis, houve aumento de mulheres com escolaridade mais elevada (ensino médio e superior); maior proporção de diagnóstico de sífilis terciária; e maior número de diagnósticos realizados no 1º trimestre da gestação.

Tabela 2.
Análise da distribuição dos casos de sífilis gestacional quanto à faixa etária, escolaridade, classificação clínica, idade gestacional e a implantação da rede cegonha no Brasil – Fortaleza, CE, Brasil, 2019.

Variáveis	Período				p-valor*
	2007–2011		2012–2017
	n	%	n	%
Faixa etária**					p = 0,162
Até 19 anos	403	22,4	1396	77,6
≥ 20 anos	1179	24	3726	74
Escolaridade					p < 0,0001
Analfabeto	47	34,1	91	65,9
EF incompleto/completo	998	32,6	2065	67,4
EM incompleto/completo	432	25,3	1276	74,7
ES incompleto/completo	13	17,1	63	82,9
Classificação clínica					p < 0,0001
Primária	754	29,6	1794	70,4
Secundária	137	36,4	239	63,6
Terciária	300	19	1281	81
Latente	261	30,1	605	69,9
Idade gestacional					p = 0,005
1º trimestre	451	24,6	1381	75,4
2° trimestre	669	28,1	1711	71,9
3° trimestre	703	29	17,23	71

• Fonte: http://indicadoressifilis.aids.gov.br/; EF = Ensino Fundamental; EM = Ensino Médio; ES = Ensino Superior; *Pearson Chi-Square.
• **Dados disponíveis a partir de 2008.

Sob a análise da TSE, as variáveis do estudo foram organizadas graficamente em níveis, do mais interno (faixa etária, escolaridade, idade gestacional) ao mais externo (taxa de detecção), conforme Figura 2.

Figura 2.
Organização gráfica das variáveis de acordo com a teoria social ecológica. Ceará, Brasil, 2019.

DISCUSSÃO

De acordo com os resultados apresentados, a sífilis ainda é um problema presente entre mulheres gestantes, tendo sua taxa de detecção crescente ao longo dos anos. Esta infecção acarreta prejuízos ao binômio mãe-filho, pois a taxa de sífilis congênita, de maneira semelhante, também apresentou aumento no decorrer dos anos.

Com relação ao tratamento realizado, a maioria fez uso de penicilina. No entanto, ainda se observa tratamento com outros esquemas, especialmente no ano de 2015. Com relação à distribuição dos casos de sífilis, houve relação entre os períodos antes e após a implantação da rede cegonha com escolaridade, classificação clínica e idade gestacional.

Diversos fatores podem contribuir para o aumento da incidência dessa infecção em gestantes no Ceará, desde fatores mais distantes até aqueles mais próximos dessas mulheres. Destarte, entender como estes casos estão distribuídos e como se relacionam com o ambiente (natural e social) pode auxiliar no controle dessa infecção. Para a TSE, o ambiente determina o desenvolvimento humano por meio da influência das interações que se estabelecem e restabelecem entre pessoas, entre estas e seu ambiente externo e entre sistemas(¹³–¹⁴).

Sob uma perspectiva macro, o aumento do número de casos de SG, em grande parte se deve ao aperfeiçoamento do sistema de vigilância epidemiológica e à descentralização das ações de prevenção e controle, como a ampliação da distribuição de testes rápidos em unidades de saúde da família, estratégia preconizada pela rede cegonha(¹,¹⁵).

Apesar de a RC objetivar a qualificação da saúde obstétrica-neonatal, ter trazido benefícios para o binômio mãe-filho, e ter sido publicada há quase uma década, ainda assim suas ações são insuficientes. Em análise conduzida em Pernambuco, Brasil, a partir de uma avaliação pelo método Delphi, a qualidade da atenção obstétrica-neonatal desenvolvida por meio dos preceitos da RC mostrou-se insatisfatória, apontando a necessidade de tornar a política mais efetiva, especialmente entre pessoas em situação de vulnerabilidade, em face a um cenário político-econômico adverso(¹⁶).

Atrelado a isso, mesmo com uma maior oferta de testes diagnósticos para as gestantes e suas parcerias nos serviços de atenção ao PN, a transmissão vertical da sífilis não tem reduzido como esperado, o que evidencia a necessidade de uma assistência organizada e sensível, pois o acesso ao diagnóstico, somente, não é suficiente para a garantia da quebra da cadeia de transmissão da doença na gestante portadora de sífilis(¹⁵).

Acerca das relações entre a gestante e o serviço de saúde, parte integrante do exossistema (3º sistema da TSE), essas configuram-se como essenciais para a condução e manejo dos casos de sífilis nesta população, especialmente durante as consultas de PN. O desenvolvimento do PN de qualidade é um grande desafio para os gestores em saúde, pois deve assegurar o desenvolvimento da gestação, favorecendo um nascimento saudável, com minimização de riscos e proporcionando impacto positivo na saúde materna e fetal(¹⁴,¹⁷).

No entanto, essa realidade nem sempre é constatada. Em estudo realizado no município de Fortaleza-CE, que objetivou avaliar a qualidade do cuidado quanto ao processo no PN de gestantes com risco habitual, evidenciou-se que há baixa adequabilidade desse, no que se refere ao início do acompanhamento, número de consultas na gestação, realização de procedimentos clínicos e obstétricos e exames laboratoriais(¹⁸).

Corroborando com achados na literatura, a maioria das gestantes com sífilis, após a implantação da rede cegonha, obteve o diagnóstico de SG ainda no 1º trimestre, indicando que também iniciaram o pré-natal no período ideal(³,¹⁷). No entanto, vale destacar que mesmo em pleno funcionamento da RC o número de casos de SG detectados com classificação terciária é alarmante.

A taxa de detecção da SC também aumentou no decorrer dos anos, igualando-se à taxa de detecção da SG no ano de 2017. Com altas taxas de detecção, a SC configura-se como um moderador da qualidade do pré-natal, refletindo a necessidade de seu fortalecimento por meio de ações intersetoriais, a fim de evitar subnotificações, tratamento tardio, quadros de reinfecção e dificuldades para interpretação dos critérios de definição de SC(¹⁷).

Achado que chama atenção nos resultados refere-se ao tratamento recebido pela gestante, que se observa ainda ser inadequado. Pesquisas apontam que, em grande parte, essa realidade está associada à dificuldade em orientar e tratar adequadamente o parceiro e pela dificuldade na utilização do esquema terapêutico padrão pelos profissionais de saúde(¹⁹–²¹), levando à elevação de casos de sífilis congênita(²²).

Atrelado a isso, houve desabastecimento nacional de penicilinas, englobando os anos de 2014 a 2017, devido à escassez de matéria-prima para a sua produção em todo o mundo. Em 2015, o Ministério da Saúde publicou a Nota Informativa Conjunta nº 109/2015/GAB/SVS/MS, que orientou a respeito da priorização da penicilina G benzatina para sífilis em gestantes e outras alternativas terapêuticas que pudessem minimizar os prejuízos do desabastecimento(²¹).

Com essa restrição, a maior dificuldade enfrentada no tratamento dos casos de sífilis adquirida e dos parceiros das gestantes foi a posologia e a duração do esquema terapêutico mais extenso, entre 8 a 5 dias, dos antibióticos de segunda escolha disponíveis no SUS (Ceftriaxona e Doxiciclina), o que impactou negativamente na adesão a esse tratamento, favorecendo falhas e reinfecções(²¹,²³).

No tocante aos sistemas mais proximais à gestante (micro e mesossistema), as características individuais, como idade, escolaridade, renda, relações familiares com o (a) parceiro (a), bem como suas interações com seu meio, também interferem de maneira direta no desenvolvimento e manutenção de vínculos(¹³).

Os vínculos formados entre os serviços de atenção à saúde e a mãe durante o pré-natal são determinantes para evitabilidade de desfechos negativos, como a mortalidade materna e neonatal e complicações durante o parto, por meio da promoção de uma atenção qualificada, com diagnóstico e tratamento de infecções precoces, valorização das queixas das mulheres, quando necessário, encaminhamento ao pré-natal de alto risco, busca ativa em casos de interrupção do acompanhamento e comprometimento dos profissionais de saúde com a mãe durante a gestação até o puerpério(²⁴).

A incidência de sífilis em gestantes está intimamente ligada à estrutura socioeconômica desfavorável dos países, observada especialmente em países subdesenvolvidos, como a pobreza, desemprego, baixa escolaridade, cobertura incipiente do pré-natal(²⁵). Estudo realizado para determinar os fatores sociodemográficos, comportamentais e de assistência à saúde relacionados à ocorrência de sífilis em mulheres atendidas em maternidades públicas, no município do Recife-PE, identificou como fatores determinantes para a sífilis gestacional: nível de escolaridade fundamental incompleto ou analfabeta, ausência de acesso a telefone, histórico de quatro ou mais gestações, três ou mais parceiros sexuais no último ano, uso de drogas ilícitas antes dos 18 anos e uso de drogas ilícitas por parte do atual companheiro. Além desses, foram observadas a ocorrência de apenas uma a três consultas ao pré-natal e história anterior de infecção sexualmente transmissível(²⁶). Esses fatores mais proximais, contidos no micro e mesossistema, são preponderantes no planejamento de uma assistência de pré-natal com qualidade, a fim de direcionar estratégias para redução da transmissão vertical da sífilis.

A escolaridade é um importante indicador social e, quando é baixa, configura-se como um fator de risco para SG(²⁶). Foi possível observar um aumento das notificações em todos os níveis de escolaridade, porém a ocorrência da SG ainda é maior nas mulheres com ensino fundamental. Atrelado a isso, estudos indicam que a adequação do pré-natal é menor no caso das mulheres pretas/pardas, com baixas condições sociais, com menor renda e escolaridade e, em particular, para as residentes nas regiões Norte e Nordeste, que detêm os piores desempenhos na atenção PN em nível de atenção primária, secundária e terciária(²⁰,²⁷).

Vale salientar que apesar de o maior número de notificações estar concentrado em mulheres com ensino fundamental, quando comparados os dois cortes temporais, houve maior incremento de SG em mulheres com nível de escolaridade entre ensino médio e superior. Isso se deve, em parte, ao aumento do nível de escolaridade de uma maneira geral na população e a maior acesso aos serviços de saúde do SUS(²⁸).

Tais achados demonstram que a análise de fatores isolados não consegue explicar a incidência desta doença, além de chamar atenção à insuficiência das medidas de controle e a necessidade de intensificá-las, especialmente a partir de um cuidado PN de qualidade(²⁹).

Diante do exposto, o uso da TSE como referencial de análise deu-se pela abrangência na investigação dos aspectos que influenciam na incidência da sífilis em gestantes, por considerar fatores interativos entre indivíduos e suas relações sociais e condutas no ambiente familiar e social. A teoria auxilia na identificação dos fatores que afetam o comportamento de indivíduos e grupos populacionais em distintos níveis, o que potencializa os efeitos no direcionamento do problema que se deseja alcançar, e possibilita estabelecer um planejamento de ações e metas em promoção da saúde(³⁰). A análise a partir dessa teoria permite ampliar a compreensão dos agravos à saúde. Nesse estudo, ela demonstra como as variáveis agem nos distintos níveis na ocorrência da sífilis, o que reforça a necessidade de envidar esforços para assegurar a cobertura de atenção à saúde durante o pré-natal, em especial a mulheres de menor escolaridade, e maior vigilância no início da gestação e situação clínica.

Este estudo apresenta como limitação o uso de dados secundários, visto que estão condicionados à qualidade dos registros, além de não permitir estimar o quanto a frequência de subnotificações pode distorcer os resultados encontrados. Entretanto, a base de dados utilizada, mesmo com suas limitações, é considerada, com produção de informação fidedigna.

Para pesquisas futuras sugere-se que envolvam análise histórica, geoespacial e demográfica para que este fenômeno possa ser compreendido de maneira aprofundada e que estratégias possam ser determinadas em vistas ao controle e redução da sífilis na gestação.

CONCLUSÃO

Apesar da efetivação de políticas públicas e aprimoramento do sistema de vigilância epidemiológica no país, ainda há um longo caminho para a redução do número de casos de sífilis na gestação. Foi evidenciado que após a implantação da rede cegonha houve aumento das notificações dos casos de sífilis gestacional, diagnóstico de sífilis mais precoce e incremento de diagnóstico de sífilis terciária. Contudo, a taxa de sífilis congênita permaneceu elevada, levando à reflexão acerca da qualidade da atenção em saúde recebida pela gestante durante o pré-natal.

Para que haja modificação dessa realidade é imperativo que os profissionais da saúde e a comunidade em geral se sensibilizem com a temática, especialmente sobre a importância do diagnóstico precoce e do tratamento eficaz da mulher e de seu parceiro, bem como o desenvolvimento de atividades que objetivem o empoderamento da comunidade, o aumento da qualidade do pré-natal, a redução de práticas de risco sexual, a melhora do autocuidado, principalmente entre os mais vulneráveis.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Set 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  01 Jul 2020
• Aceito
  07 Jun 2021