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O Brasil sob a nova ordem

RESENHA

O Brasil sob a nova ordem

Rosa Maria Marques e Mariana Ribeiro Jansen Ferreira (orgs.)

São Paulo: Editora Saraiva

O oportuno livro O Brasil sob a nova ordem - a economia brasileira contemporânea: uma análise dos governos Collor a Lula, organizado por Rosa Maria Marques (Profa Titular de Economia da Pós-Graduação da PUC-SP, Doutora pela FGV/SP e Pós-Doutora na Université Pierre Mendès France, em Grenoble e Ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e Mariana Ribeiro Jansen Ferreira (Profa Assistente Mestre da PUC-SP), publicado pela Saraiva, reúne um grande número de informações úteis na compreensão das políticas implementadas desde o governo Fernando Collor de Mello ao governo Lula, sendo uma luz na apreensão da complexidade das estruturas e relações internas e externas do Brasil.

Dele participam professores e pesquisadores de São Paulo, de Vitória, de Minas Gerais e de Brasília. Existe um fio condutor um elemento que da integração à coletânea de artigos pois todos eles são produtos de um trabalho coletivo, resultado de dois anos de pesquisa em comum. A realização e debate dos resultados da pesquisa foram realizadas no Grupo de Pesquisa Políticas para o Desenvolvimento Humano, liderado pela professora Rosa Maria Marques. Dessa forma, além dos autores que assinam os textos, houve a colaboração de vários outros pesquisadores, entre alunos do mestrado de Economia Política da PUC-SP e colaboradores externos à PUC.

Um pouco inspirado pelo renomado professor François Chesnais (Université Paris XIII), quando em atividade na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o livro conta com um rico e elogioso prefácio de sua autoria. Os temas de cada capítulo têm como plano geral estudar as consequências das medidas adotadas pelo governo federal a partir das recomendações do chamado Consenso de Washington: a liberalização do comércio internacional, as privatizações das empresas estatais, a liberalização do fluxo de capitais, as mudanças na gestão estatal, as reformas previdenciárias e a política de geração de superávits primários, entre outras.

A economia brasileira mudou muito nessas últimas décadas, a partir delas. As transformações na estrutura produtiva e financeira foram efetuadas com maior participação do capital estrangeiro e a retirada do Estado da esfera produtiva. A reforma do Estado e das políticas públicas, sob o pressuposto da ineficiência intrínseca do Estado, foi efetuada com ênfase no mercado, em particular as reformas previdenciárias. A gestão empresarial foi submetida à lógica da esfera financeira, na qual o conceito de valor acionário passou a ser preponderante, como uma das consequências da expansão e do ingresso acelerado de capitais estrangeiros, seja na forma de investimentos estrangeiros diretos ou em carteira; este último era pouco significativo antes do plano real.

Entre os vários assuntos tratados no livro, destacam-se: a Política Econômica; o impacto da financeirização na determinação do gasto público; As transformações ocorridas no Sistema Financeiro e no Mercado de Capitais; o financiamento e a vulnerabilidade externa; o processo de privatização; As fusões e aquisições ocorridas no período; A Previdência Complementar e a Previdência Pública; o mercado e as relações de trabalho; A Saúde Pública; os programas de transferência de Renda; o tratamento da Educação; A reforma agrária; As transformações na imprensa. Dessa forma, para o período que compreende os governos Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, são destacadas e analisadas suas principais medidas, ações e políticas, tanto no campo econômico como social.

Esse trabalho coletivo foi desenvolvido durante dois anos no seminário que Rosa Marques dirige na PUC-SP. Como registra o Prof. Chesnais é frequente que professores ou orientadores de pesquisa façam seus estudantes trabalhar sobre temas que eles mesmos estão explorando. Infelizmente não é raro, ao menos na França, que os resultados desse trabalho se tornem a matéria prima de livros que eles assinam sozinhos. Ocorre diferentemente no livro coordenado por Rosa Marques, onde estudantes, mesmo ainda mestrandos, assinam capítulos ao lado de professores ou de pesquisadores cujos nomes já são bastante conhecidos. "Nos tempos onde o individualismo e a concorrência invadiram todas as atividades sociais, aí incluídas a do ensino e da pesquisa, esse trabalho coletivo é ainda mais marcante por sua concepção. Ele deve, então, ser saudado como tal."

Em capítulo que inaugura "O Brasil sob a nova ordem", Rosa Maria Marques aponta que as diferentes contribuições presentes neste livro objetivam compreender as especificidades do Brasil nos quadros da "mundialização do capital", processo que atingiu mais diretamente as periferias, e especialmente o Brasil, nos anos noventa e desnudou a face mais perversa do capital financeiro: o capital fictício. Este processo, incorporado de fora para dentro nos quadros do "Consenso de Washington", com a anuência das burguesias nacionais, redefiniu a correlação interna de forças políticas e desencadeou uma série de transformações econômicas, culturais e sociais, bem como o próprio reescalonamento do papel do Estado na economia brasileira. Como bem podemos notar neste esforço conjunto de pesquisa, os centros internos de decisão, ainda em busca de afirmação nas periferias, foram solapados pela redefinição das estratégias globais na segunda metade dos anos setenta, redundando em absoluta perda de autonomia dos projetos nacionais.

O livro tem a inequívoca vantagem de ser didático, pensado para o grande público; é também acompanhado por material de apoio, demonstrando a preocupação dos autores em atingir e difundir suas interpretações da economia brasileira contemporânea à luz da teoria marxista e keynesiana do dinheiro e do valor. Neste momento de crise do capitalismo a sociedade em seu conjunto clama por uma explicação lógica e consistente dos fenômenos, alargando assim o campo de debate, a despeito daqueles que pensam que o exercício da crítica já morreu.

O segundo é o fato de o livro ser fruto como já dito de um trabalho coletivo desenvolvido por professores e alunos, dentro de seus respectivos esforços de pesquisa. O fato de quase "aprendizes" assinarem os artigos juntamente com seus orientadores é louvável. A honestidade intelectual dos organizadores para com a produção do conhecimento é notável, dando-se os méritos a quem os merece de fato.

A obra tem o objetivo de perceber os limites, as possibilidades e as especificidades brasileiras de Collor a Lula no quadro de reforço das hierarquias mundiais ocorrido nas últimas décadas. Perdemos autonomia, é fato. O reformismo desenvolvimentista perdeu terreno, bem como o socialismo. A possibilidade de construção de um centro interno de decisões vai se esvaindo sucessivamente a cada crise especulativa, e foram muitas. O modelo pós-liberalização prevê baixo crescimento, altíssimo grau de endividamento externo e interno, sendo daí decorrente o aumento de nossa vulnerabilidade, derretimento de nossa já problemática seguridade social, deterioração do emprego e salários (low-wages capitalism), altas taxas de juros e um compromisso tácito com a recessão (num regime de baixa acumulação e altos lucros). Nas palavras de Rosa Marques: "a dominância do capital fictício - a face mais perversa do capital financeiro - sobre o capitalismo, envolve a imposição de uma lógica de curto prazo às empresas industriais e comerciais, deprimindo o investimento". Não se trata aqui de eleger a face "boa" ou "má" do capitalismo, ainda com a autora, mas de assinalar que o capital financeiro, ao lado do capital produtivo, tem agido de forma imbricada e coesa, mantendo alta rentabilidade a despeito da exclusão de parcela significativa da população mundial.

O Estado, como demonstra Mariana Ferreira, elegeu, além dos ganhadores, as prioridades de gasto, sendo a rolagem da dívida pública (interna e externa) considerada intocável pelos sucessivos governos de vocação neoliberal. O mercado financeiro, por sua vez, como demonstra a crise atual, reclama pela participação dos Estados em seus momentos de débâcle, de modo que quando nos referimos à financeirização, referimo-nos a uma totalidade que enlaça famílias, Estados e mercados (daí importância fundamental desta obra).

Nesta perspectiva da totalidade sistêmica, à luz da teoria marxista (mas não somente), o livro aborda ainda os temas da Previdência Social, da questão agrária (em artigo que traça instigante histórico sobre as leis e propostas de reforma agrária, dos programas de desestatização (em aberto processo de privatização do espaço público), das fusões e aquisições (ou concentração e centralização de capitais), das relações de trabalho (fragilizadas, fragmentadas e "flexíveis" num claro eufemismo), da saúde pública (onde a erosão da cidadania se demonstra da forma mais cristalina possível) , dos programas de transferência de renda (a saída proposta frente à nova pobreza), das políticas de educação (que assim como todo o conjunto de gastos sociais do governo, sempre fica em xeque a cada crise econômica).

José Marcio Rego

Professor Titular de Economia da PUC-SP e da FGV-SP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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