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Judicialização da questão social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no Poder Judiciário

Handling social problems in the courts: repercussions for social assistants in the Judiciary Branch

Resumos

Embora sejam inegáveis as conquistas civilizatórias dos direitos humanos, seu reconhecimento e sua operacionalização têm demandado, além de lutas históricas, de modo cada vez mais intenso, a interpelação do Poder Judiciário. O fenômeno da judicialização da questão social ocorre em uma superposição de responsabilidades do Judiciário às demais instâncias da esfera pública. Esta forma de acesso à justiça se dá, via de regra, de forma individual e por um segmento seletivo de sujeitos - os que conhecem ou conseguem acessar este canal jurídico. Mas a efetivação dos direitos dependerá de outros fatores que não somente o seu reconhecimento, como a capacidade de atendimento e de financiamento à demanda apresentada. Diante deste quadro, discute-se este processo de efetivação de direitos que, ao privilegiar cada vez mais a via judicial, rebate no descomprometimento do Estado com o enfrentamento da questão social e na despolitização da esfera pública. Esta conjuntura adversa desafia os assistentes sociais a fazerem sentido ético-político em suas respostas profissionais às demandas de judicialização da questão social que se apresentam cotidianamente ao Poder Judiciário.

questão social; direitos; políticas públicas; judicialização


Although the civilizing conquests of human rights are undeniable, their recognition and enactment have required, in addition to increasingly intense historic struggles, the involvement of the Judicial Branch. The judicial treatment of social issues overlaps the responsibilities of the Judiciary with other public institutions. Access to justice takes place, as a rule, individually and by a select group of subjects - those who know how to access this legal channel. But the effective enactment of rights depends on other factors that include not only its recognition, but the capacity to attend to and finance the demand presented. Given this situation, this paper discusses the process of the effective enactment of rights, which by increasingly emphasizing judicial channels, leads to a reduced commitment of the State as a whole, to face social issues and toward the depoliticization of the public sphere. This adverse situation challenges social assistants to take an ethical-political direction in their professional responses to the demands of judicialization of the social question that is presented daily to the Judicial Branch.

social question; rights; public policies; judicial involvement


ARTIGOS

Judicialização da questão social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no Poder Judiciário

Handling social problems in the courts: repercussions for social assistants in the Judiciary Branch

Beatriz Gershenson AguinskyI; Ecleria Huff de AlencastroII

IDoutora em Serviço Social pela PUCRS. Bacharel em Direito. Professora e Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Ética e Direitos Humanos, Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Assistente Social do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul

IIAssistente Social. Doutoranda em Serviço Social na PUCRS. Professora do Curso de Graduação em Serviço Social da UNISINOS

RESUMO

Embora sejam inegáveis as conquistas civilizatórias dos direitos humanos, seu reconhecimento e sua operacionalização têm demandado, além de lutas históricas, de modo cada vez mais intenso, a interpelação do Poder Judiciário. O fenômeno da judicialização da questão social ocorre em uma superposição de responsabilidades do Judiciário às demais instâncias da esfera pública. Esta forma de acesso à justiça se dá, via de regra, de forma individual e por um segmento seletivo de sujeitos - os que conhecem ou conseguem acessar este canal jurídico. Mas a efetivação dos direitos dependerá de outros fatores que não somente o seu reconhecimento, como a capacidade de atendimento e de financiamento à demanda apresentada. Diante deste quadro, discute-se este processo de efetivação de direitos que, ao privilegiar cada vez mais a via judicial, rebate no descomprometimento do Estado com o enfrentamento da questão social e na despolitização da esfera pública. Esta conjuntura adversa desafia os assistentes sociais a fazerem sentido ético-político em suas respostas profissionais às demandas de judicialização da questão social que se apresentam cotidianamente ao Poder Judiciário.

Palavras-chave: questão social, direitos, políticas públicas, judicialização.

ABSTRACT

Although the civilizing conquests of human rights are undeniable, their recognition and enactment have required, in addition to increasingly intense historic struggles, the involvement of the Judicial Branch. The judicial treatment of social issues overlaps the responsibilities of the Judiciary with other public institutions. Access to justice takes place, as a rule, individually and by a select group of subjects - those who know how to access this legal channel. But the effective enactment of rights depends on other factors that include not only its recognition, but the capacity to attend to and finance the demand presented. Given this situation, this paper discusses the process of the effective enactment of rights, which by increasingly emphasizing judicial channels, leads to a reduced commitment of the State as a whole, to face social issues and toward the depoliticization of the public sphere. This adverse situation challenges social assistants to take an ethical-political direction in their professional responses to the demands of judicialization of the social question that is presented daily to the Judicial Branch.

Key words: social question, rights, public policies, judicial involvement.

Introdução

Este artigo tem como objetivo discutir a judicialização da questão social como uma tendência, hoje em tela, na construção social de respostas às desigualdades sociais e à efetivação de direitos humanos que reconhece, no Poder Judiciário, a institucionalidade privilegiada, não raro em detrimento de um compromisso mais efetivo do Estado e da esfera pública, em seu sentido mais amplo, para com as demandas de direitos da população. Para tanto, em um primeiro momento contextualiza-se o processo contraditório de afirmação dos direitos na sociedade brasileira e, no momento seguinte, discute-se as diferentes posições acerca da supervalorização do Poder Judiciário no trato dos desdobramentos da questão social. Finalizando, são tematizadas as mudanças processadas, por conta da Constituição Federal de 1988, na esfera judiciária. São questionadas as repercussões da centralidade desta instância estatal, carregada, muitas vezes, de autocracia e moralismo na gestão de conflitos e nas mediações com a realidade concreta, analisando o quanto suas respostas individuais e focalizadas, a demandas que são coletivas e estruturais, reverberam em um imaginário coletivo de concepção do Sistema de Justiça quanto à idéia de acesso à justiça em seu sentido mais amplo. Este quadro é analisado em suas repercussões enquanto desafios concretos à competência das respostas profissionais dos assistentes sociais que atuam junto ao Poder Judiciário.

1 O desafio da afirmação dos direitos na sociedade brasileira

A luta pela conquista de direitos no Brasil tem seu marco no próprio movimento de ocupação deste solo por europeus e no processo de resistência dos índios que aqui viviam e, mais tarde, dos negros trazidos como escravos do continente africano.

Neste sentido, reflete Couto (2004, p.76):

Os 500 anos de Brasil foram marcados por inúmeras transformações no que se refere tanto à formação do Estado brasileiro como à constituição da sociedade civil. Com características peculiares e permeadas de fatores que conformaram a sociedade brasileira, os direitos [...] foram se constituindo a partir de uma realidade histórica particular, na qual transcorreram os períodos colonial, imperial, chegando ao republicano.

Com o advento das constituições brasileiras, a partir de 1824, o Estado de Direito vai sendo conformado, incorporando, ainda, as grandes convenções internacionais que traduzem as diferentes gerações de direitos, desde os direitos civis, reconhecidos no século XVIII, passando pelos direitos políticos, instituídos no século XIX, pelos direitos econômicos e sociais, datados do início do século XX e culminando com os direitos de solidariedade, que surgem no final da primeira metade do século XX (RITT, 2002).

Cabe ressaltar que o ano de 1988 constitui um importante marco na afirmação dos direitos humanos para a sociedade brasileira. Naquele ano ocorre a promulgação da atual Constituição Federal, considerada, pelo seu processo de construção, assim como pelos seus avanços no campo dos direitos humanos, como Constituição Cidadã.

Entretanto, no ano seguinte à promulgação desta Constituição, é eleito presidente do Brasil Fernando Collor de Melo, candidatura esta forjada pelos interesses do grande capital, tendo, a partir do Consenso de Washington, a incumbência de introduzir no país o ideário neoliberal.

Assim fazendo, a partir de 1990, Collor coloca o Estado a serviço das reformas ditadas pelo reordenamento do capital internacional, subvertendo e negando a lógica constitucional de defesa de direitos, alterando, inclusive, o seu conteúdo, sob o argumento de inscrever o Brasil na modernidade e no primeiro mundo, mesmo que sob o preço da fragilização e desproteção social de sua população, advindas dos processos de desregulamentação, flexibilização e privatização (NETTO, 1999).

Neste sentido, as políticas sociais são operadas de forma fragmentada, focalizada e com níveis de financiamento que impedem a sua efetivação, tal como concebido no processo constituinte e na própria Carta Magna.

Mesmo após o impeachement de Collor, a população brasileira, sobretudo os segmentos mais vulnerabilizados do ponto de vista socioeconômico, não logrou ver suas demandas enfrentadas pelo Estado. Ao contrário, o governo seguinte, de Fernando Henrique Cardoso, ao longo de seus oito anos de mandato, procedeu à viabilização operacional das recomendações do Consenso de Washington, alargando as bases do modelo neoliberal e globalizante.

Conforme destaca NETTO (1999, p.79-80), "a inviabilização da alternativa constitucional da construção de um Estado com amplas responsabilidades sociais, garantidor de direitos sociais universalizados, foi conduzida por FHC simultaneamente à implementação do projeto político do grande capital" e acrescenta que

[...] um projeto desta envergadura e significação, colidindo com a ordem constitucional e com as aspirações da massa trabalhadora [...] só seria viável se pensado num lapso temporal mais largo que o de um só mandato presidencial [...]. Por isto mesmo, a questão da reeleição foi, no plano político, uma questão crucial: somente a segurança de poder disputar um segundo mandato poderia garantir a consecução do projeto.

Findo o governo de Fernando Henrique Cardoso, tem-se a eleição de um candidato que se apresentava como representante dos interesses da maioria da população brasileira, embora o conjunto de alianças forjadas, tendo em vista a conquista do poder, denunciasse a ausência de uma maior coerência com a base de onde partiu tal candidatura.

Na atual conjuntura, no governo Lula, renovam-se os desafios pela afirmação de direitos já que, sob a batuta do capital internacional, um sem fim de concessões são feitas a favor da reprodução infinita dos interesses de acumulação, em detrimento da garantia de condições de vida digna à maioria da população brasileira.

2 As demandas históricas por afirmação de direitos: a centralidade do Poder Judiciário em questão

Tendo por um lado a ampliação dos direitos positivados na Constituição Federal de 1988, mas por outro, sua negação pelo Estado em diferentes instâncias administrativas, um novo fenômeno aparece na esfera pública - aqui concebida como campo de disputa de diferentes interesses sociais, demandando novos padrões de relação entre o Estado e a sociedade civil - denominado por juristas como "judicialização dos conflitos sociais" ou, ainda, "judicialização da política" (VIANNA et al., 1999; SORJ, 2000; ESTEVES, 2005; MELO, 2005). Este fenômeno caracteriza-se pela transferência, para o Poder Judiciário, da responsabilidade de promover o enfrentamento à questão social, na perspectiva de efetivação dos direitos humanos.

Vianna et al. (1999, p. 42) refere que a sociedade civil, especialmente os setores mais pobres e desprotegidos, "depois da deslegitimação do Estado como instituição de proteção social, vêm procurando encontrar no judiciário um lugar substitutivo, como nas ações públicas e nos Juizados Especiais, para as suas expectativas de direitos e de aquisição de cidadania".

Nesta mesma direção, Esteves (2005, p.16), coloca que:

Enfraquecidas as formas de reivindicação social através do diálogo parlamentar possibilitado pela cidadania política, através do qual se reconheceram direitos que foram positivados mas não adquiriram eficácia, e da constatação de que, muitas das vezes, é a própria atividade governamental realizada pelo executivo que impede a consolidação dos direitos sociais, a sociedade passa a incumbir o judiciário na tarefa de possibilitar a efetividade dos direitos sociais e realização da cidadania social.

O autor antes citado defende ainda, utilizando Garapon (1999, p. 227-228), que "se no século XIX, da ordem liberal, houvera uma preponderância do legislativo, e no século XX, sob a égide da providência, foi a vez do executivo, o século XXI caminha para ser o da supremacia do judiciário".

A própria Declaração de Viena, datada de 1993, em seu art. 27, determina que

Qualquer Estado deverá dispor de um quadro efetivo de soluções para reparar injustiças ou violações dos direitos humanos. A administração da justiça, incluindo departamentos policiais e de promoção penal e, nomeadamente, a independência do poder judicial e estatuto das profissões forenses em total conformidade com as normas aplicáveis contidas em instrumentos internacionais de direitos humanos, são essenciais para a concretização plena e não discriminatória dos direitos do homem [...].

Piovesan (2003, p. 149, 157), afirma que "é fundamental adotar medidas para assegurar maior justiciabilidade e exigibilidade aos direitos econômicos, sociais e culturais" e que a efetivação destes direitos "não é apenas uma obrigação moral dos Estados, mas uma obrigação jurídica, que tem por fundamento os tratados internacionais de proteção", justificando sua defesa de que a pobreza constitui-se em uma violação dos direitos humanos.

Reforçando esta tese, Lima Júnior (2002, p. 658-659) afirma que:

[...] a exigibilidade (inclusive enquanto justiciabilidade - a possibilidade de exigir direitos face ao Poder Judiciário) é, hoje, um imperativo na teoria e na prática dos direitos humanos. Afinal, as declarações de direitos, as Constituições e as leis de um modo geral deixam de possuir qualquer significação prática se não tiverem a possibilidade de efetiva aplicação.

Entretanto, este autor (p.663) defende que "o caminho legal não esgota as possibilidades de realização de direitos" e que há outra forma que se impõe à efetivação dos direitos humanos, que é dada pelas políticas públicas. E falar em políticas públicas é falar em um movimento maior àquele operado pelos três poderes que compõem o Estado. Pressupõe falar em sociedade civil organizada, em atores sociopolíticos, que, na condição de sujeitos históricos, buscam, através de um processo de luta, a construção de uma nova história, de uma nova sociedade, com justiça.

Reconhecendo a importância do Poder Judiciário para a garantia dos direitos individuais e coletivos, a discussão que ora é proposta refere-se à responsabilidade do Estado em responder as demandas colocadas pela questão social, sem que haja um privilegiamento do Poder Judiciário, em detrimento da responsabilização inicial dos Poderes Legislativo e Executivo, instâncias fundamentais para a normatização, definição e execução das políticas públicas, que são os instrumentos de reconhecimento e viabilização dos direitos. Mais ainda, sem colisão ou desconsideração com os mecanismos históricos de controle social e de participação da sociedade organizada na garantia de direitos.

Sempre que houver o desrespeito aos direitos positivados, o Poder Judiciário tem, não somente a atribuição legal, mas a obrigação ética de interpelar a instituição que for, para que a lei seja cumprida. Entendemos, entretanto, que este ente estatal teria uma ação infinitamente mais impactante e transformadora nas relações sociais se agisse na prevenção dos conflitos sociais, detendo-se mais ao interesse coletivo do que ao despacho de ações ingressadas, via de regra de forma individual e por um reduzido segmento da população que conhece os seus direitos e possui condições de acessar o Sistema de Justiça. Se, por um lado, comemora-se o ingresso de ações judiciais que exigem a garantia de direitos, por outro, tem-se a realidade do esgotamento da capacidade de resposta a estas ações que tendem a ser, em larga escala, coincidentes, pelo Sistema de Justiça.

Esta, inclusive, é a preocupação de Esteves (2005, p.14) quando considera que "ou os magistrados assumem o papel de guardiões da Constituição e garantidores da cidadania, ou no futuro, talvez próximo, o judiciário seja colocado no rol das instituições desacreditadas pela sociedade e termine como peça de retórica e legitimadora da desigualdade social". Cabe questionar, todavia, se a forma de assim fazê-lo não poderia ser outra, aproximando-se dos demais poderes, comprometendo-os em sua responsabilidade, participando de diferentes fóruns de construção e deliberação de políticas públicas.

Neste sentido e posicionando-se de forma contrária à defesa da judicialização dos conflitos sociais, Melo (2005, p.1) coloca que

A judicialização do país traz um enorme prejuízo à sociedade e enriquecimento da classe jurídica em face de conflitos infindáveis que poderiam ser resolvidos de outra forma. É óbvio que há o aspecto cultural, onde se confunde Judiciário com Justiça, mas esta não pode ser monopólio de um grupo, todos podem fazer justiça, principalmente a conciliatória. O Executivo faz justiça quando emprega bem as verbas, o Legislativo faz justiça quando faz boas leis, o Ministério Público também faz justiça quando fiscaliza e não é omisso, a igreja faz justiça, a escola faz justiça. E o Judiciário faz injustiça também, quando realiza concursos sem critérios de correção publicamente definidos, quando promove os que agradam a cúpula, quando não participa da vida dos pobres, quando impede a fiscalização da sociedade [...].

O referido autor adverte que, para efetivar o monopólio do judiciário, a sociedade é impelida a crer que "o acesso à Justiça é apenas acesso ao Judiciário. Mas acesso à justiça não é apenas 'entrar' é também 'sair' com a solução definitiva". Assim, segundo ele, "o que se veda ao cidadão é o exercício violento do seu direito" (MELO, 2005, p. 2).

Outro aspecto desta judicialização, segundo este autor (p. 2-3), refere-se à administração do país por instituições jurídicas autocráticas e sem respaldo popular e acrescenta:

[...] em geral decidem individualmente de acordo com interesses pessoais e dizem estar fazendo justiça social, a melhor justiça social é a preventiva e feita com a participação do povo. A maioria dos 'juristas' não sabe como obter um auxílio reclusão, ou pensão por morte ou uma assistência social junto ao INSS, pois somente conhecem o processo judicial (MELO, 2005, p. 2-3).

Nesta linha de argumentação, de que justiça não se vincula diretamente ou necessariamente ao Poder Judiciário, Melo (2005, p. 5) também afirma que

[...] justiça não pode ser monopólio dos juristas, principalmente dos 'práticos judicialistas'. Justiça é democracia, e onde houver democracia haverá justiça, mas esta não é romântica, pois democracia é confronto [...]. Na verdade a reforma jurídica será feita por bem ou por mal, é melhor que seja por bem e que a classe jurídica participe deste momento, deixando o comportamento de apenas interpretar as leis e passar a influenciar o legislativo para fazer boas leis, a função do jurista é muito mais nobre, não é mero despachante judicial [...].

E é exatamente esta a concepção de Justiça Social que defendemos, apoiando-nos, ainda, em Aguiar (1995) que toma como pressuposto o fato de a regra fundamental ser o conflito e a harmonia, ou seja, a exceção. Emergindo, assim, a necessidade da justiça ser concebida como um dever-ser respaldado no compromisso com a construção de "uma ordem social que garanta a cada um o direito que lhe é devido" (AGUIAR, 1995, p. 44), lastreado, segundo este autor, na parcialidade.

A construção da justiça, nesta perspectiva, e na de qualquer segmento com ela comprometido, exige a formatação de um processo qualificado, que passa, necessariamente, pelo aprofundamento do conhecimento acerca da realidade, em uma perspectiva de totalidade. Tal desvelamento levará, possivelmente, à tomada de consciência do fenômeno ora, ou ainda, em curso, que se refere ao agravamento da questão social entendida por Iamamoto (1999, p. 27), como

[...] o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade.

Nesta perspectiva, conforme, com propriedade, coloca Melo (2005, p. 5-6), "precisamos encontrar soluções e não apenas identificar problemas, sendo que a questão não é apenas jurídica, mas também política e social", e transferir para o Poder Judiciário a atribuição de responder aos desdobramentos da questão social pode ser positivo na medida em que a força da lei será aplicada, entretanto, se esta prática for maciça será, possivelmente, ineficaz e injusta, pois privará do direito àqueles que não recorrerem a esta esfera estatal.

3 O Serviço Social e a defesa dos direitos humanos e da justiça social

A defesa de direitos humanos e de justiça social tem sido historicamente construída pelo Serviço Social e expressa através de seu Código de Ética Profissional, tendo a edição de 1993 reafirmado, de forma veemente, esse compromisso.

Conforme Paiva e Sales (1996, p.178),

O Código de Ética de 1993, como o foi também o de 1986, não se pretende somente corporativo, mas tenciona assegurar vínculos com as prioridades da sociedade. Dessa maneira, o atual Código se propõe a estabelecer nexos com essas prioridades, as quais vão estar bem expressas por meio de princípios e valores. A perspectiva é, então, buscar fortalecer uma clara identidade profissional articulada com um projeto de sociedade mais justa e democrática.

Desta forma, o Código de Ética Profissional do Assistente Social, expressa em seu artigo segundo, a "defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo".

Para tanto, torna-se fundamental o entendimento de direitos humanos como universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados (consoante art. 5º da Declaração de Viena1 1 A Declaração de Viena está disponível em: < http://www.dhnet.org.br>. , 1993). Implica reconhecê-los como um conjunto de direitos - civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, incluindo também os direitos à solidariedade, à paz, ao desenvolvimento e a um ambiente sadio.

Convém ressaltar que a busca pela efetivação destes direitos implica em um processo de enfrentamento de interesses divergentes, fundamentalmente econômicos, que se processam nos âmbitos nacional e internacional.

Já o quinto princípio do Código de Ética Profissional do Assistente Social expressa o "posicionamento em favor da eqüidade e justiça social, que assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas, bem como sua gestão democrática".

Paiva e Sales (1996, p.190), ao comentarem este princípio, mais especificamente a questão da justiça social, expressam que esta

[...] fala da necessidade imperiosa de se atribuir a cada um o que é seu, no sentido do respeito à igualdade de direitos e aos indivíduos. Ela tenta corrigir as insuficiências e problemas decorrentes do modo de os homens se organizarem e produzirem a sua própria vida. Logo, numa sociedade como a capitalista, a justiça figura sempre como um ideal a ser perseguido, cuja objetividade se assenta, de um lado, sobre a legalidade, com todo o seu signo controverso, e, de outro, sobre a igualdade.

Portanto, justiça constitui-se em um "devir" e um campo, por excelência, para trabalhar a sua construção refere-se à luta por direitos humanos, uma luta que, necessariamente se trava na esfera pública e em uma dimensão maior que aquela expressa pelo Sistema de Justiça. Já para Aristóteles, "havia diferença entre o justo e o legal (lei escrita). A lei do eqüitativo era superior, pois poderia corrigir a própria lei escrita" (CAOVILLA, 2003, p.21).

É fundamental ter clareza de que o legal nem sempre se associa ao justo e nem tampouco que o justo alcança-se meramente pela via legal. A ausência de um Estado que enfrente as desigualdades e a exclusão social não terá resposta "milagrosa" junto ao Poder Judiciário. Neste sentido, Fávero, Melão e Jorge (2005, p.33) afirmam:

Em alguns espaços do Poder Judiciário, [...] funções sociais se expressam mais nitidamente, como aqueles nos quais tramitam as ações relativas à infância, juventude, família e criminais. Nessa realidade, expressões da ausência, insuficiência ou ineficiência do poder Executivo na implementação de políticas sociais redistributivas e universalizantes se escancaram, na medida em que, além de litígios e demandas que requerem a intervenção judicial, como regulamentação de guarda de filhos, violência doméstica, adoção etc., cada vez mais se acentua uma ´demanda fora de lugar' ou uma ´judicialização' da pobreza, que busca no judiciário solução para situações que, embora se expressem particularmente, decorrem das extremas condições de desigualdades sociais.

Neste sentido, cabe ao profissional de Serviço Social procurar desvelar o cenário em que está inserido e o conjunto de projetos societários que estão em jogo, desenvolvendo uma postura e uma práxis que supere a tendência, resultado do acúmulo de demandas, da adoção de um "tarefismo" burocrático, moralizante e que não enfrenta as condições que originam os processos judiciais. Processos esses que, em grande medida, expressam particularidades da questão social, necessitando, conforme, Barroco (2001, p.69), "compreender o ethos profissional como um modo de ser construído a partir das necessidades sociais e das demandas postas historicamente à profissão e nas respostas ético-morais dadas por ela nas várias dimensões que compõe a ética profissional".

Finalmente, pode-se considerar que o potencial de materialização do Projeto Ético-Político Profissional dos assistentes sociais, no exercício profissional junto ao Poder Judiciário, guarda direta relação com o reconhecimento das particularidades desta referência institucional como um espaço de lutas de interesses distintos, submetido a critérios de legitimação que dizem de uma disputa das formas de se dizer (ou não dizer) tanto o Direito, quanto a sociedade. E o que está em luta neste campo tem "no ideal liberal da sociedade capitalista contemporânea o hegemônico. Os mecanismos de legitimação deste ideário são ideológicos e se materializam nas práticas jurídicas por diferentes critérios, dentre eles critérios morais"

(AGUINSKY, 2003, p. 270). O critério do agir moral que letigima o ideal liberal na institucionalidade do Poder Judiciário é o da "legalidade da moral" (FLICKINGER, 1995).

Esse critério tem uma dupla face perversa: ao restringir a racionalidade do Direito (liberal) a uma posição meramente organizadora do terreno do agir social por parâmetros legais, constrói uma aparente igualdade para a efetivação de interesses subjetivos [...]; mas isso se dá à base da abstração das desigualdades dos interesses em luta, e que dizem da mediação material-econômica da vida social"(AGUINSKY, 2003, p.271).

Se o próprio da ótica da legalidade da moral é um ethos moralizador da vida social pelo qual o Direito regula as relações sociais através de uma homogeneidade lógica nos conflitos e contradições, o que resulta é que este ethos reproduz a vida social como particularidade em disjunção a possíveis mediações ao que, da questão social, o direito liberal não diz, antes, abstrai (AGUINSKY, 2003).

O que as práticas jurídicas convencionais fazem movimentar em repressão à contradição e ao conflito submetido à decisão do Poder Judiciário, através da legalidade da moral, joga dialeticamente para inscrever a história como possibilidade do que falha nas práticas jurídicas. É no coração desta falha que os assistentes sociais inscrevem seu exercício profissional no campo jurídico. No centro dessa "tensão dialética é que se desenham as possibilidades do assistente social tecer subversões no instituído dessas práticas por gestos de interpretação da contradição, pondo-se a agir ao participar da interface do discurso jurídico" (AGUINSKY, 2003, p. 275) com uma perspectiva ampliada de acesso e garantia de direitos.

Dentre os desafios que se apresentam aos assistentes sociais, através de uma leitura atenta desta realidade, que se apresenta no cotidiano de seu exercício profissional no Poder Judiciário, destaca-se a necessidade de investimento no desenvolvimento de competências em resposta à judicialização da questão social. Argumenta-se a favor de uma competência para o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar, que se comprometa com a viabilização de direitos sociais invisíveis à jurisdição pela ótica da legalidade da moral. Vale dizer, competências capazes de articular as "demandas dos usuários dos serviços jurídicos às políticas públicas e à universalização de direitos em oposição ao que a reprodução do cotidiano como particularidade tende a transformar em problemas morais, defeitos individuais ou 'casos de boa vontade [...]'"(AGUINSKY, 2003, p.275). Tais competências são mediações de sentido ao trabalho dos assistentes sociais ao se colocarem intencionalmente em um movimento de resistência à injunção potencialmente violadora e opressiva dos mecanismos do direito, levada a efeito através do monopólio da coerção pelo Estado.

Considerações finais

O Poder Judiciário vive hoje um momento diferenciado daquele que historicamente lhe foi atribuído. Se até há pouco menos de duas décadas, seu papel era eminentemente controlador e coercitivo, a partir da Constituição Federal de 1988, com o avanço, por um lado, no plano da conquista de direitos humanos e, por outro, com a responsabilização do Ministério Público em garantir a defesa dos direitos de cidadania, o judiciário passa a ser chamado para responder a um conjunto de demandas sobre as quais não possuía uma maior aproximação ou mesmo vinculação, excetuando-se casos em que havia a opção pessoal de determinados juristas.

No entanto, a tendência em curso de judicialização da questão social, ao transferir para um poder estatal, no caso o Judiciário, a responsabilidade de atendimento, via de regra individual, das demandas populares - coletivas e estruturais, nas quais se refratam as mudanças do mundo do trabalho e as expressões do agravamento da questão social - ao invés de fortalecer a perspectiva de garantia de direitos positivados, pode contribuir para a desresponsabilização do Estado, sobretudo dos Poderes Legislativo e Executivo, com a efetivação destes direitos, através das políticas públicas.

Assim procedendo, cabe questionar se o que se está construindo é a justiça social em seu sentido amplo, através do acesso ao Poder Judiciário. Tal acesso não garante necessariamente a resolução do problema, uma vez que há entraves que independem da boa vontade de operadores de justiça e que dizem respeito ao papel do Estado e do seu atrelamento aos interesses ditados pelo capital. No anverso deste acesso, não havendo o enfrentamento deste status quo, reproduz-se, em verdade, a injustiça social. Isto porque a justiça social se constrói coletivamente, no interior da esfera pública, em um movimento contraditório onde se encontram presentes diferentes interesses em disputa pela direção da sociedade.

Finalizando, não se trata de negar a importância ao acesso à justiça em seu sentido estrito. Entretanto, importa reconhecer que esta via não poderá dar conta, sozinha, do enfrentamento à questão social, que é histórica e estrutural, demandando um movimento maior que possui, junto à esfera pública, seu palco privilegiado de disputa. Desta forma, há que se empreender uma práxis de acesso à justiça em seu sentido amplo, sem uma análise reducionista e ingênua de que a justiça será outorgada pelo Estado, como um ator neutro e comprometido com o bem comum. Este compromisso pertence à sociedade, ou à sua maioria. E os assistentes sociais que realizam seu processo de trabalho junto ao Poder Judiciário, além de leitura atenta desta realidade, são desafiados a contribuir com o que, da esfera pública, é abstraído nas formas de operar e de responder às práticas jurídicas convencionais.

Nota

Recebido em 19.10.2005.

Aprovado em 08.12.2005.

Beatriz Gershenson Aguinsky

aguinsky@pucrs.br

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS

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Ecleria Huff de Alencastro

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Recebido
      19 Out 2005
    • Aceito
      08 Dez 2005
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