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Entrevista com Raquel Varela: Revolução dos Cravos, condições de trabalho e vida em Portugal

Interview with Raquel Varela: The Carnation Revolution, working and living conditions in Portugal

Em toda a América Latina, Europa e demais continentes, os direitos sociais conquistados pelas lutas sociais dos trabalhadores vem sendo suprimidos por medidas de austeridades impostas pelas classes dominantes em resposta à crise do capital que explodiu nos Estados Unidos e se alastrou pelo mundo.

Esta entrevista visa colaborar com as análises acadêmicas da área do Serviço Social e Ciências Sociais a respeito das transformações recentes do capitalismo, seus impactos na seguridade social, bem como, os seus reflexos na vida das maiorias populares e nas lutas sociais.

A pesquisadora entrevistada é a historiadora portuguesa Raquel Varela, que nos traz importante contribuição para análise comparada entre o que ocorre em Portugal e as condições de vida e trabalho dos povos latino-americanos, que também sofrem as consequências sociais da crise do capital. Raquel Varela é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, onde coordena o Grupo de História Global do Trabalho e dos Conflitos Sociais e investigadora do Instituto Internacional de História Social, onde coordena o projeto: In the Same Boat? Shipbuilding and ship repair workers around the World (1950-2010). É coordenadora do projeto História das Relações Laborais no Mundo Lusófono. Desde 2011, é Presidente da International Association Strikes and Social Conflicts. Principais livros publicados: História do Povo na Revolução Portuguesa 1974-1975 (Bertrand, 2014); A Segurança Social é Sustentável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal (Bertrand, 2013); Quem paga o Estado Social em Portugal? (Bertrand, 2012); História da Política do PCP na Revolução dos Cravos (Bertrand, 2011); Revolução ou Transição? História e Memória da Revolução dos Cravos (Bertrand, 2012); Greves e Conflitos Sociais no Portugal Contemporâneo (Colibri, 2012); O Fim das Ditaduras Ibéricas (1974-1978) publicado pelo Centro de Estudios Andaluces/Edições Pluma, 2010.

Ricardo e Mauri - O que foi a Revolução dos Cravos e qual sua importância para a constituição do Estado social em Portugal, quem paga este Estado social, quais são os principais direitos conquistados durante a Revolução dos Cravos em 1974 que estão sendo atacados agora e como você explica essa retirada de direitos?

Raquel - É uma das revoluções mais importantes de todo o século 20: pela extensão da dualidade de poderes (comissões de trabalhadores, moradores, soldados). Trata-se, do ponto de vista da extensão deste poder paralelo ao Estado, de um processo histórico que tem muitas semelhanças com a revolução italiana de 1919-1920 (conhecida como bienio rosso), com a revolução húngara de 1956 e com a revolução chilena. É também, e essa é outra característica importante, uma revolução na metrópole que se dá por força das revoluções anticoloniais (guerra colonial) nas colônias portuguesas. É uma revolução democrática que se transforma numa revolução social. Aquilo que começou a 25 de abril - um clássico golpe de Estado - é a semente de uma revolução social (que imprime mudanças nas relações de produção), encetada como uma revolução política democrática (que muda o regime político). Em poucos dias ou semanas, estava praticamente assegurada a substituição do regime político de ditadura por um regime democrático, mas tinham sido já lançadas as bases de uma outra revolução, que lutava pela igualdade social. Estas bases foram lançadas pelo sujeito social que, atrás do Exército (e por isso sem medo), entra na história - a classe trabalhadora e os setores populares e estudantis. E quando entra na história, em breve saltaria à frente deste exército e passaria a constituir a frente da revolução, deixando o Movimento das Forças Armadas (MFA) a tentar compor o Estado, que entrará em crise com o golpe que o próprio MFA dera no regime. A Revolução dos Cravos, que não se pode resumir ao dia do golpe, 25 de abril (como recentemente têm sido feito, pressionando para só se celebrar o dia do golpe e não todo o processo), mas sim a um processo histórico de quase dois anos, é o momento mais democrático da história de Portugal. A democracia de base que vigorou, e que tinha centro nos locais de trabalho e habitação, colocou qualquer coisa como três milhões de pessoas a decidir, não por delegação de poderes de quatro em quatro anos, mas dia a dia como a sociedade devia produzir, ser gerida. Nunca tanta gente decidiu tanto em Portugal como entre 1974 e 1975. A derrota da revolução - que começa a partir de novembro de 1975 com a imposição da 'disciplina', isto é, da hierarquia, nos quartéis - é um balão de ensaio da chamada "contrarrevolução democrática" (teoria da transição democrática, segundo a politologia de inspiração liberal) que vai ser aplicada na Espanha franquista e depois em toda a América Latina nos anos 1980, a doutrina Carter, ou seja, a ideia de que, pelo menos por um período largo, para derrotar processos revolucionários, as eleições e a democracia liberal eram preferíveis aos regimes ditatoriais. Portugal é o primeiro exemplo de sucesso de uma revolução derrotada com a instauração de um regime de democracia representativa que, para se impor, teve de pôr fim à democracia de base, nomeadamente nos quartéis, fábricas, empresas, escolas e bairros.

Ricardo e Mauri - No seu mais recente livro, História do Povo na Revolução Portuguesa (1974-1975), quais são suas teses novas sobre a Revolução dos Cravos?

Raquel - Sim. Umas não são novas, mas reforço essas hipóteses com a investigação empírica e análise que fiz. Outras são novas. Reforço a hipótese de que a revolução começa em 1961, ou seja, que não é só uma revolução que tem origem numa guerra colonial mas que é uma revolução que tem dois atos em território de administração portuguesa - as revoluções anticoloniais e a revolução na metrópole (Perry Anderson, Dalila Cabrita Mateus, entre outros). Acentuo a tese da dualidade de poderes contra a tese de Estado dual (defendida em Portugal por Fernando Rosas, Boaventura de Sousa Santos é quem cunhou o conceito). Acentuo a tese, de Valério Arcary, de que a democracia representativa para se impor teve que derrotar a democracia de base. Entre as teses em que fui pioneira - a ser contestadas ou não, espero um debate sobre esta questão de fundo - estão as hipóteses de que os sindicatos não são em 1974-1975 organismos de dualidade de poderes, mas de reconstrução do Estado e que se opõem, com tensões internas, aos organismos de dualidade de poderes: as comissões de trabalhadores, moradores e soldados. Avanço com a tese de que a dualidade de poderes não foi só embrionária - há coordenação nos setores mais importantes, a nível regional e de setor, metalmecânico, e é isso que leva a burguesia e seus aliados sociais a preparar o golpe do 25 de novembro de 1975. Também proponho a hipótese de que houve controle operário na revolução portuguesa e que este processo se distinguiu da autogestão; a tese de que as nacionalizações são para contornar o controle operário; a hipótese de que o quarto Governo cai devido ao controle operário e que estendo a todo o livro, ou seja, a ideia de que são os movimentos sociais que levam a mudanças de Governo e não o contrário (proponho uma alteração na periodização da revolução em função disso).

Ricardo e Mauri - No âmbito dos direitos sociais sabe-se que eles são conquistados através das lutas sociais. Fale-nos da importância da participação dos trabalhadores na Revolução.

Raquel - A Revolução dos Cravos foi a última revolução europeia a colocar em causa a propriedade privada dos meios de produção. Isso resultou na transferência, segundo dados oficiais, de 18% do rendimento do capital para o trabalho, o que permitiu o direito ao trabalho, salários acima da reprodução biológica (acima do "trabalhar para sobreviver"), acesso igualitário e universal à educação, saúde e segurança social. Foi também a última revolução europeia onde se desenvolveu o controle operário de forma extensa. Existiu mesmo uma ampla discussão e confronto entre a autogestão (os trabalhadores serem "donos" da fábrica) e o controle operário (o questionamento total da produção e a recusa em "gerirem a anarquia capitalista e serem patrões deles próprios", para citar documentos da época). Dominou nas pequenas empresas descapitalizadas a autogestão e nas grandes empresas e fábricas o controle operário. A extensão da divisão da sociedade em classes sociais e a consciência dessa divisão, em 1974 e 1975, tem uma dimensão histórica. É provavelmente um dos raros momentos na história deste país (também aconteceu com setores do movimento operário durante uma parte da I República) em que os trabalhadores, em largas camadas, tiveram orgulho em sê-lo. Ou seja, houve força social para impor uma cultura que questionasse a ideologia hegemônica do trabalhador como alguém que trabalha porque há outros - muito inteligentes - que gerem por ele a produção. A ideologia das "empresas criam empregos". Isto foi totalmente invertido na revolução - o trabalhador ganhou a centralidade cultural que corresponde ao seu papel econômico. A Revolução dos Cravos é uma das revoluções mais importantes de todo o século 20: pela extensão da dualidade de poderes (comissões de trabalhadores, moradores, soldados, o equivalente aos conselhos, eleitos na base, em plenário e com representantes a qualquer momento revogáveis). A democracia de base que vigorou, e que tinha centro nos locais de trabalho e habitação, colocou qualquer coisa como três milhões de pessoas a decidir, não por delegação de poderes de quatro em quatro anos, mas dia a dia como a sociedade devia produzir, ser gerida. Nunca tanta gente decidiu tanto em Portugal como entre 1974 e 1975. Esse é o legado da revolução, que será derrotada com um golpe de Estado a 25 de novembro de 1975, que institui uma democracia representativa no quadro do capitalismo, que, inevitavelmente, significou a constante erosão dos direitos sociais - direta ou indireta - desde então.

Ricardo e Mauri - Em relação ao contexto histórico-social atual. Qual é sua explicação para as causas da crise do capital em escala mundial e como vê a importância de sua compreensão teórica para o entendimento dos fenômenos sociais do presente?

Raquel - É uma crise cíclica do capitalismo, mas que atingiu dimensões semelhantes a de 1929. Estou entre os que acham que não é uma "crise financeira", mas uma crise que começa na produção industrial norte-americana, reguladora do sistema a nível mundial. E em particular na produção industrial ligada à construção, setor automobilístico e material de guerra. A crise é um problema de acumulação dos capitalistas. Muitos capitalistas são banqueiros e há muitos capitalistas que não são banqueiros. Mas tudo se reflete nos bancos porque eles concentram o capital. Agora o que verdadeiramente aconteceu foi que os bancos ficaram cheios de títulos de empresas que entraram em deflação, como na crise de 1929. Por exemplo, não compensa vender este livro porque vou vender mais barato do que a taxa média de lucro que espero ter. Portanto, prefiro não o vender, fechar e mandar o livro para queimar. Tal como em 1929 se queimaram laranjas e como se despeja leite na Europa. Também rejeito as teorias keynesianas de que se aumentássemos o consumo saíamos da crise, ou seja, que poderia haver saída sem luta de classes, encontrar um equilíbrio entre exploradores e explorados, um retorno ao Pacto Social. Ora, no capitalismo, aumentar os salários (um custo) é aumentar a crise porque o capitalista não produz para o consumo nem sofre com problemas de consumo, mas com superprodução de capital. Aliás, um bom capitalista sabe que, numa crise, o melhor consumo, de preferência, é a guerra, ou seja, o não consumo, a destruição. O único keynesianismo bem sucedido no mundo, que teve resultados em sair da crise, foi o esforço de guerra de Estaline, Hitler e Roosevelt. Vale a pena lembrar de novo que a taxa de desemprego dos EUA só retornou ao pré-1929 em 1941 quando a Ford passou de construir carros a material bélico e os desempregados foram empregados na guerra, enviados para morrer e matar.

Ricardo e Mauri - Os empresários já se recuperaram da crise ou esta tende a se prolongar montada sobre uma regressão social contínua?

Raquel - Depende dos setores. Os setores exportadores sim saíram da crise com a entrada em crise dos trabalhadores, que passaram a auferir menos salários. A queda real da massa salarial em Portugal nestes anos de Troika1 pode ter atingido algo superior a 40% (entre cortes diretos, impostos e cortes no salário social, o Estado social). Mas justamente porque o salário caiu o setor ligado ao consumo interno perdeu. Quanto às grandes empresas não sei. Tenho dúvidas de que o Estado consiga hoje, como conseguiu no passado, garantir a proteção de todas as frações da burguesia. E creio que isso tem levado a maiores crispações públicas nos partidos de Governo (PSD, PS e CDS). Por outro lado não conheço, isso está por estudar a relação entre as pequenas e médias empresas (PMEs) e as grandes empresas. Ou seja, era preciso uma radiografia - que não está feita - sobre a dependência das pequenas empresas das grandes, isto é, já não como pequenas empresas familiares, do início do processo histórico de desenvolvimento capitalista, mas como subcontratadas das grandes. E isso, creio, muda muita coisa na nossa análise: quem são do ponto de vista da lei do valor e politicamente estes empresários das pequenas empresas?

Ricardo e Mauri - No Brasil há um discurso constante sobre a "insustentabilidade" da Previdência Social, apesar dela ser parte da seguridade social que é superavitária e boa parte de seus recursos serem desviados para pagamento da dívida pública. Em Portugal ela é sustentável?

Raquel - A sustentabilidade da segurança social não depende do número de idosos e de jovens, mas de quantas pessoas trabalham (população ativa) e em que condições trabalham (qual o valor dos seus salários e se têm ou não direito ao trabalho ou podem ser facilmente despedidos). Hoje a produtividade por trabalhador é mais de cinco vezes superior ao que era quando estes sistemas foram criados. Eram sustentáveis quando cada trabalhador produzia cinco vezes menos por que não serão sustentáveis agora que cada um produz cinco vezes mais? Porque estas pessoas produzem cinco vezes mais, mas ganham menos, são precárias (e desempregadas) e descontam muito menos ou não descontam. Existe um problema demográfico - desde logo o direito de ter filhos (à reprodução da sociedade) está hoje vedado a muitas pessoas que não podem ter filhos porque não têm meios de dar-lhes uma vida digna - e isso é gravíssimo, é um problema social, afetivo, muito sério, esta é para mim a sociedade mais isolada de sempre, nunca tanta gente esteve sozinha, sozinha no trabalho, em que o colega do lado não é colega, mas uma ameaça à possibilidade ínfima de progressão na carreira (a famosa avaliação de desempenho), sozinha sem laços organizativos sociais (a participação em associações, sindicatos, partidos é escassa e também dentro deles a luta é feroz), sozinha em núcleos familiares restritos. Muita gente só e, por isso, muita gente deprimida. A depressão é filha do isolamento, da solidão. Mas isso, sendo horrível, e tendo como uma das suas expressões o envelhecimento da sociedade, não coloca em causa a sustentabilidade da segurança social, porque esta não depende disso, mas sim da produtividade e das relações laborais.

Ricardo e Mauri - Qual é a morfologia da força laboral em Portugal após a crise capitalista iniciada em 2007-2008?

Raquel - A população total em Portugal no primeiro trimestre de 2013 é de 10,5 milhões de indivíduos, dos quais 5,4 milhões são populações ativas (cerca de 51,5% da população total) - que incluem os quatro milhões da população empregada e cerca de um milhão e 400 mil desempregados (a taxa real de desemprego em 2013 é de 25,7%). De acordo com o Eurostat, Portugal, Espanha e Polônia são os países onde o peso dos trabalhadores a prazo no total dos trabalhadores por conta de outrem tem maior significado (respectivamente 20,94% e 23,65% e 27,56% no segundo trimestre de 2012). Estes dados, altíssimos, ficam aquém da precariedade total, porque são só sobre contratos a prazo. O conceito de precário é muito mais extenso e não se limita, nem só, nem principalmente, aos contratos a prazo. No total, há cerca de dois milhões de trabalhadores precários. E, calculamos, cerca de 90% proletários - vivem exclusivamente de vender a sua força de trabalho. No País há, em nossa opinião, trabalhadores precários que aparecem com um estatuto semelhante ao de empresários em nome individual, mas que são na essência trabalhadores. Não só os casos óbvios dos trabalhadores a recibo verde (trabalhadores independentes), bolseiros (metade da investigação científica nas universidades portuguesas é levada a cabo por bolseiros que exercem as mesmas funções de um professor titular, mas sem relações laborais protegidas e em média recebendo menos 900 euros), estagiários (várias profissões exigem um "estágio" de acesso à carreira pós-graduação que decorre durante um a três anos sem remuneração: professores, advogados, psicólogos etc.). Há casos mais polêmicos, como o de pequenos empresários que são de fato trabalhadores, como referi. Têm formalmente uma "empresa", mas na verdade são trabalhadores dependentes de grandes empresas que suportam todos os custos que a grande empresa deixou de suportar (segurança social, paragens da produção etc.). O capital circula por estas pequenas empresas, mas não se acumula aí: os que ganham "mal dá para pagar as contas", isto é, suportar os custos, em muitos casos. Uma parte destes serão pequenos empresários, acossados pela competição, mas uma fração serão trabalhadores precários na essência, embora juridicamente apareçam como pequenos empresários. Quase metade dos portugueses seriam, oficialmente, ou melhor, serão pobres caso desapareçam as prestações sociais. Feitas as contas para os valores teóricos disponíveis, podemos saber quantos portugueses vivem com menos de 420 euros: segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE) são 18% dos portugueses, um milhão e 980 mil, que se mantêm pobres mesmo depois de transferidas as prestações sociais todas, desde pensões a subsídios de inserção social. Eliminando as pensões, os 18% passariam a 25%; e sem os apoios às famílias e outras prestações sociais, chegariam a 47% - quase metade da população. Quanto ao peso do desemprego na pobreza: estar desempregado faz toda a diferença, 36% dos desempregados são pobres.

Ricardo e Mauri - Quais variações em termos salariais - salários diretos e indiretos - dos trabalhadores portugueses podem ser destacadas, analisando-se a distribuição da riqueza social entre capital e trabalho?

Raquel - Não posso responder a essa questão porque os dados não foram calculados. Era preciso contabilizar cortes diretos nos salários (e aí colocar não só o corte direto, mas a intensificação do trabalho, o aumento do horário de trabalho, diminuição de feriados, diminuição do pagamento de horas extraordinárias etc.); cortes diretos no Estado Social (diminuição de abonos de família, aumento de taxas hospitalares, aumento dos transportes públicos, cortes de pensões e reformas etc.); cortes na assistência social; aumentos de impostos gerais (sobre as casas, sobre o consumo, alteração da lei das rendas); para além disso era preciso calcular a diminuição da qualidade dos serviços, por exemplo, mais alunos por turma significa de fato um corte no salário indireto no serviço educação - pagamos o mesmo para ter pior educação. Este raciocínio teria que ser transposto para as outras áreas dos serviços públicos sustentados pelos contribuintes. Esta é a conta toda que tem que ser feita e está por fazer.

Ricardo e Mauri - A educação virou um tema recorrente no discurso empresarial. Os empresários falam cada vez mais em necessidade de "mão de obra qualificada". A ampliação da escolarização ou da formação profissional pode ter algum impacto na redução do desemprego e do trabalho precário em Portugal, ou isto é mais um fetiche do capitalismo?

Raquel - A educação ao serviço dos baixos salários fez de Portugal um sucesso no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). E dos jovens portugueses futuros trabalhadores com escasso raciocínio abstrato, indiferenciados, e incapazes de trabalhar sem um gerente que domina o processo de trabalho a controlá-los. Conseguem fazer - bem e cada vez melhor uma tarefa específica - e cada vez tem menos domínio sobre o conjunto do trabalho onde estão envolvidos.

Ricardo e Mauri - Hoje, quais são os impactos da crise sobre o adoecimento dos trabalhadores sob uma perspectiva da exaustão provocada pelo aumento da exploração da força de trabalho, bem como da redução dos bens de consumo necessários à reprodução da vida, como no caso da alimentação?

Raquel - Não temos dados. Mas dou um exemplo. Em Portugal gasta-se por dia mais de 500 mil euros a tratar mais de um milhão de diabéticos, numa população total de dez milhões e meio. O salário mínimo e mesmo médio não permite consumir produtos frescos, peixe, carne, legumes e frutas, para uma família com regularidade. Os portugueses estão a comer uma quantidade absurda de hidratos de carbono. O consumo de papas aumentou 7% com a crise, com consequências graves para a saúde - diabetes, doenças degenerativas, obesidade - porque se trata de açúcares simples. As pessoas alimentam-se apenas de forma a garantir a energia necessária para continuarem a produzir. Sentem-se saciadas, mas manifestam carências alimentares de vitaminas, nutrientes, sais minerais e proteínas de qualidade. Os portugueses têm uma alimentação hipercalórica - média de 3883 kCal por dia - pobre em peixe e carne, proteínas de origem animal, essenciais, porque são de digestão lenta e indispensáveis ao sistema nervoso. O peixe era um dos raros alimentos na viragem do século 19 para o século 20 que os pobres comiam mais que os ricos. Agora, o peixe chega à lota e é imediatamente colocado em carrinhas de frio em direção à Alemanha e à Suíça, embora umas caixas fiquem na mesa dos ricos. O mesmo começou a passar-se com os medicamentos. O paraíso das exportações é um inferno para quem vive do salário e empobrece. Depois do 25 de abril de 1974, as classes trabalhadoras portuguesas estiveram algum tempo entre as mais bem alimentadas do mundo, melhor do que na própria Alemanha ou Estados Unidos. O aumento dos salários dos trabalhadores, por via das lutas, greves e ocupações de empresa, a reforma agrária, o congelamento das rendas nas cidades e uma economia fortemente nacionalizada, entre outros fatores, permitiram uma produção alimentar de qualidade e sobretudo de acesso policlasssista - não era preciso ser rico para se comer bem. Ir a um restaurante à hora de almoço comer peixe grelhado podia ser feito por um operário ou por um professor. Isso escandalizou os ricaços, claro: a visão de operários a experimentar o sabor do marisco (muitos pela primeira vez na vida) nos restaurantes da Rua das Portas de Santo Antão levou alguns então a apelidá-los, com rancor mal disfarçado, de "nova burguesia da cintura industrial de Lisboa".

Ricardo e Mauri - Como ocorre o que você conceitua de eugenização da força de trabalho?

Raquel - Longe vão os tempos em que se toleravam filas de famintos sem que isso tivesse um impacto social disruptivo. A pobreza hoje é cuidadosamente gerida pelo Estado criando gigantescas bolsas de dependência: três milhões de portugueses são pobres antes das transferências estatais, apesar de hoje sermos mais produtivos - produzimos mais riqueza em média do que nos últimos 40 anos. A precariedade surge em Portugal como um fenômeno generalizado a partir do final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Para tal foram criadas condições nas quais o Estado teve um papel essencial. Vejamos algumas delas, apenas alguns exemplos entre muitos. Partiu do Estado a criação do subsídio de desemprego para amparar os efeitos do desemprego (a incapacidade de sobreviver) em associação entre o fundo da segurança social e o fundo de desemprego (a introdução da taxa social única, em 1986, condição, aliás, imposta pela própria União Europeia). Ou seja, junta-se no mesmo fundo o dinheiro das reformas e pensões e o do subsídio aos desempregados. Dito de outra forma, metafórica, usa-se a pensão dos pais para pagar o desemprego dos filhos. Instituição do regime jurídico da pré-reforma (Decreto-Lei n. 261, de 25 de julho de 1991). Foi massivamente usado nas empresas nacionalizadas antes de serem privatizadas (Marconi, banca, seguros etc.). Poucos anos depois do começo da precarização iniciam-se os programas assistencialistas para amparar os efeitos daquela, com a criação de uma série de programas assistencialistas: aumento da duração do subsídio de desemprego e criação do subsídio de desemprego parcial (1999); criação do Rendimento Mínimo Garantido (1996), substituído pelo Rendimento Social de Inserção (2003). Coube também ao Estado promover despedimentos diretos: função pública, RTP (Rádio Televisão Portuguesa), Lusa. Promover despedimentos indiretos (aumento do IVA - Imposto Valor Acrescentado - imposto consumo) nos restaurantes e aumento dos impostos sobre as rendas, que leva à falência uma miríade de pequenos comerciantes, que são assim proletarizados, isto é, ficam na condição de que tem a sua força de trabalho e nada mais para vender e assim sobreviver; aumento generalizado da carga fiscal; imposição de estágios (sem exigir a sua remuneração por lei), o que significa prolongar anos de trabalho gratuito. Finalmente coube ao Estado, através da formação profissional e das políticas ativas de emprego, usar o dinheiro da segurança social para pagar os salários de empresas privadas. Mas não coube ao Estado, é preciso dizê-lo, o papel único. Também as famílias assumiram um salário-família, ou seja, como os filhos não ganhavam o suficiente para ter uma vida decente com trabalhos precários, mantiveram-nos em casa abdicando assim as famílias de uma parte do salário para pagar a alimentação, a habitação, os colégios dos netos etc. Transferiu-se para a família a luta entre trabalhadores e patrões por aumentos salariais, ou seja, os salários conquistados em lutas sociais pelos pais no após 25 de abril foram a almofada usada para precarizar os filhos sem reação organizada e coletiva por parte destes. De recordar que a substituição maciça de trabalhadores precários só foi possível num quadro de reconversão do mercado de trabalho em que dezenas de milhares de trabalhadores entraram na pré-reforma ou reforma antecipada e isso foi feito, na maioria dos casos, então, com apoio dos sindicatos (e a concertação social jogou aqui um papel fundamental), acreditando que assim estariam a salvar a "economia do país" e a evitar a deslocalização para Leste das empresas… esquecendo que assim estavam a recriar o Leste aqui, ou seja, a permitir a existência de salários de mera sobrevivência.

Ricardo e Mauri - Como está a ação dos sindicatos contra a retirada de direitos em Portugal. Eles estão conseguindo alguma organização e mobilização que consiga deter esta ofensiva capitalista contra os trabalhadores?

Raquel - Os sindicatos ou outras organizações de trabalhadores que começam a surgir têm pela frente um enorme desafio: organizar todos os trabalhadores, precários ou não, independentemente do seu vínculo jurídico, até pequenos empresários que são trabalhadores (empresas de um ou dois trabalhadores criadas pelo outsourcing); evitar a canalização de lutas coletivas para lutas jurídicas individuais. Os trabalhadores não podem transformar todos os conflitos laborais em conflitos jurídicos individuais que se eternizam nos tribunais; têm de saber reconstruir laços de solidariedade rompendo as amarras da divisão socioprofissional (porquê professores e funcionários não fazem greves juntos?); garantir democracia com votações abertas em plenários; eleger representantes que quando não cumprem com a vontade dos representados são destituídos; ter o seu próprio sistema de propaganda (jornais e televisões) que rompa o cerco comunicacional; proteger os trabalhadores despedidos (greves de trabalhadores precários têm de ser organizadas homem a homem, em regime discreto porque senão arriscam o desemprego) etc. É urgente recuperar a imaginação para uma organização que efetivamente proteja quem trabalha.

Ricardo e Mauri - Este ano se comemoram os 150 anos da criação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), com ativa participação de Marx e Engels. Que legados ela deixou aos trabalhadores e que ensinamentos precisam ser recuperados nas lutas sociais do presente?

Raquel - O movimento operário tem sido uma força civilizatória nos últimos 200 anos - começa, aliás, pelas suas mãos fatos hoje dado como adquiridos e como "inatos" nas sociedades burguesas - direito ao sufrágio universal, por exemplo. Mas a força do movimento operário viu-se, desde as revoluções de 1848 e, sobretudo, desde a Comuna na capacidade de organizar os "de baixo" e impor medidas básicas de civilização: condições de trabalho dignas, estado social, políticas de igualdade social, ou seja, pobres ou ricos, todos teriam acesso a uma educação digna, saúde com qualidade etc. É verdade que tudo isso sem uma perspectiva de luta organizada contra o Estado, pelo poder, esvai-se - a AIT, que agora celebra 150 anos, é uma tentativa de construir algo absolutamente lógico - uma organização internacional de trabalhadores, portanto que junte os trabalhadores que atomizados são frágeis e que combate a perspectiva dominante do nacionalismo.

  • 1
    A troika é formada pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2014
  • Aceito
    25 Fev 2015
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