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Ignacio Ellacuría e o método de historicização dos direitos humanos

Ignacio Ellacuría and the method of historicization of human rights

Resumos

Resumo

O objetivo deste estudo é contextualizar as linhas principais do pensamento de Ignacio Ellacuría, especialmente sua maneira de entender a filosofia e o seu papel, para que se torne possível apresentar sua proposta teórico-metodológica de historicização dos direitos humanos. Dada a importância do autor para a constituição de um pensamento propriamente latino-americano, faz-se extremamente necessário este resgate de suas ideias e o seu modo de compreender os desafios para a construção de uma sociedade justa. Retirar os conceitos de sua neutralidade abstrata implica, dessa maneira, inseri-los na realidade e fazer deles instrumentos de luta.

Palavras-chave:
Direitos Humanos; Realidade Histórica; Filosofia da Libertação; Historicização; Ellacuría


Abstract

The aim of this study is to contextualize the main lines from Ignacio Ellacuría’s thought, especially his way to understand the philosophy and its role, so that it becomes possible to present his theoretical-methodological proposal for the historicization of human rights. Because of the author's importance for the constitution of a properly Latin American thought, this rescue of his ideas and his way of understanding the challenges for the construction of a just society is extremely necessary. Removing concepts from their abstract neutrality implies, in this way, inserting them into reality and making them instruments of struggle.

Keywords:
Human Rights; Historical Reality; Philosophy of Liberation; Historicization; Ellacuría


Introdução

Ignacio Ellacuría, sacerdote jesuíta espanhol radicado em El Salvador, é um nome extremamente importante no que se refere à constituição de um pensamento propriamente latino-americano. Sua contribuição se estende da filosofia até a teologia e está sempre voltada a criticar as ideologias que encobrem as violências e desigualdades em um continente marcado pela exploração colonial e, posteriormente, por um sistema político e econômico profundamente desumano.

De maneira geral, seu pensamento é caracterizado não apenas pelo aspecto teorético, mas sim pela profunda simbiose entre teoria e prática. Uma práxis histórica libertadora a partir de uma crítica das ideologias que naturalizam a opressão, este é o objetivo para o qual está voltado todo esforço do autor.

O objetivo deste estudo, a partir disso, é contextualizar as linhas principais do pensamento de Ellacuría, especialmente sua maneira de entender a filosofia e o seu papel, para que se torne possível apresentar sua proposta teórico-metodológica de historicização dos direitos humanos. O objetivo do autor é superar o caráter abstrato deste conceito e inseri-lo na realidade concreta para, dessa forma, tenha uma significação e força efetivas.

A realidade histórica como objeto da filosofia

O pensamento de Ignacio Ellacuría, por mais que esteja determinado a pensar a realidade latino-americana desde suas próprias estruturas, não se exime de um enfrentamento com o pensamento filosófico europeu, especialmente no sentido de dele extrair as próprias potencialidades críticas para um pensamento não eurocêntrico. Nesse sentido, o autor está empenhado em mostrar que a construção de uma leitura da realidade local não pode ser feita simplesmente a partir de uma filosofia reduzida a um ponto de vista particular. Isto fica bastante evidenciado no caso de sua leitura dos autores que trazem para a primeira linha da filosofia uma compreensão dialética da realidade histórica. Marx e Hegel são expoentes de tal movimento. Desta discussão resultará uma clara posição acerca do objeto da filosofia. Como o próprio Ellacuría destaca com relação ao conceito de realidade histórica: “É a realidade inteira, assumida no reino social da liberdade.” (1991a, p. 39). Ou seja, diante dos diferentes níveis a partir dos quais podemos compreender a realidade, o entendimento de que é constituída estruturalmente por uma dinâmica histórica é o ponto mais alto. Em outras palavras, por realidade histórica não se entende simplesmente aquele conjunto de acontecimentos que compõem determinada linha temporal. Não se trata de um pensamento que descreve a história como conjunto de fatos. Ao invés disso, o que está em jogo para este autor é mostrar como a compreensão filosófica se eleva ao entendimento de que o que é real é socialmente e historicamente construído. Que a realidade tal como se mostra é uma das possibilidades de uma história construída a partir da liberdade humana. E liberdade, neste contexto, não significa uma crença ingênua e nem um postulado metafísico que poderia servir de fundamento. Liberdade é a consciência de que a história é o resultado da ação humana, com todas as contradições e lutas que carrega consigo.

Do ponto de vista dialético, é importante assinalar, torna-se absolutamente fundamental perceber as relações sociais e históricas que garantem uma compreensão não imediata dos fatos. O conceito de mediação, em outras palavras, remete à dinâmica de termos que situar cada acontecimento em uma certa totalidade de sentido. Ou seja, nada poderá ser claramente explicado sem que percebamos sua constituição no interior de determinada dinâmica social e histórica. E isto, sem dúvida, impacta um pensamento latino-americano. Nas palavras do próprio Ellacuría (1991a, pELLACURÍA, I. Filosofía de la realidad histórica. Madrid: Editorial Trotta, 1991a.. 41): “Tem-se dito que não houve uma história propriamente tal até tempos recentes. Hoje é cada vez mais ‘una’, ainda que esta unidade seja estritamente dialética e enormemente dolorosa para a maior parte da humanidade”. O que se mostra, dessa maneira, é a necessidade de entender que aquilo que se costumava chamar de “terceiro mundo”, em referência aos países subdesenvolvidos, não pode ser compreendido sem que se remeta sua situação à dinâmica histórica de exploração e imposição cultural que se tornam mais e mais agudos na medida em que a sociedade se globaliza. Em outras palavras, a ideologia que legitima a exploração e a lógica colonizadora, que ademais introjetamos amplamente, precisa ser identificada e compreendida para que possa ser negada.

Hegel e Marx, nestes termos, enquanto autores que se empenharam em traduzir conceitualmente um pensamento que desse conta da realidade em sua dinâmica histórica, são autores fundamentais que precisam ser claramente situados por Ellacuría. A racionalidade ou, em outras palavras, a lógica imanente que coordena o desenvolvimento da realidade, se forma e se revela historicamente. Os conflitos concretos que têm lugar na realidade social é que vão configurando uma racionalidade, isto é, a dinâmica própria da realidade. A célebre formulação programática de Hegel no início da sua obra Princípios da Filosofia do Direito (1997, p. XXXVI) de que “O que é real é racional e o que é racional é real” tem exatamente esse sentido. Ao invés de ser compreendida como uma apologia idealista a uma realidade histórica que seria confirmada como plena manifestação da razão, o que Hegel pretende expressar com esta frase é algo bastante diverso e que servirá como base metodológica de sua filosofia. Ou seja, o que está sendo dito é que racionalidade não é algo meramente formal ou algo que esteja na mente das pessoas, mas sim a dinâmica concreta do real. Racionalidade é a lógica interna da realidade que torna inteligível seu desdobramento. A realidade, dessa maneira, enquanto resultado de um movimento dinâmico e de um jogo de contradições e conflitos, é a própria revelação desta racionalidade. O caráter concreto e histórico enquanto fundamentos da realidade ficam assim muito bem destacados na filosofia hegeliana. Marx, por sua vez, radicaliza ainda mais a importância de a filosofia se ater a uma compreensão da realidade histórica. É no âmbito da histórica que as lutas por emancipação e, também, as dinâmicas de reificação e dominação, devem ser situadas. Estes autores, portanto, ainda que seja impossível tratá-los de forma mais detalhada neste estudo, estabelecem as condições para que a realidade histórica possa ser elevada à condição de objeto da filosofia.

É importante assinalar, no entanto, que quando se define a realidade histórica como objeto da filosofia não se está simplesmente dizendo que a filosofia se ocupa de um objeto historicamente situado. Ao invés disso, o que está em questão neste conceito é algo muito mais radical. A história é o espaço do novum, do devir. Só se pode falar de história, neste sentido, pelo fato de que a realidade vai além das estruturas estáticas daquilo que é a natureza. Entender a realidade como histórica, portanto, é chegar à compreensão de que o que é vai sendo constituído e construído na materialidade do processo histórico. Significa, no caso da antropologia filosófica, por exemplo, mostrar que o ser humano não é redutível a um elemento biológico que o determina, mas sim, que o seu caráter histórico aponta para uma abertura de sua realidade intrínseca. Em síntese, significa dizer que o próprio objeto da filosofia é intrinsecamente histórico. Além de Hegel e Marx, Xavier Zubiri é uma referência extremamente central para a tarefa da definição do objeto da filosofia como sendo a realidade histórica. Em sua obra Estructura dinámica de la realidade pode-se ler isso claramente:

A realidade não é somente o que é atualmente. Também está, de uma ou de outra forma, mergulhada nisso que de uma maneira mais ou menos vaga podemos chamar devir. As coisas devêm. A realidade devém. [...]. Não se trata de averiguar de uma maneira concreta o que é que as diversas ciências nos dizem, por exemplo, acerca do devir físico do Universo, ou acerca do devir dos organismos, ou da evolução destes ao longo do tempo, ou das vicissitudes históricas. Todos estes temas têm que transparecer desde um ponto de vista estrita e formalmente filosófico. (ZUBIRI, 1995, pZUBIRI, X. Estructura dinámica de la realidad. 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1995.. 7-8).

Portanto, como já foi dito anteriormente, por realidade histórica não se entende um desdobramento de uma estrutura estática no decurso do tempo. Significa, isso sim, entender o tempo histórico como um espaço de transformação, onde uma determinada configuração da realidade abre possibilidades que levam a realidade, cada vez, para além de si mesma. Não se trata, se quisermos usar uma figura da linguagem nietzscheana, de um eterno retorno do mesmo, mas sim, de um eterno retorno do outro. Devir.

Esta concepção, além disso, conduz a uma desconstrução de todas as perspectivas filosóficas que veem um telos inscrito na própria realidade histórica. A modernidade foi profundamente marcada por narrativas de um progresso inevitável. Assim Hegel, por exemplo, pôde ver na história um caminho que conduz ao “fornecimento da razão como rosa na cruz do sofrimento presente.” (HEGEL, 1997, pHEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.. XXXVIII). Ou seja, mesmo em uma realidade conflitiva e contraditória, a razão vai se formando e guiando o processo de maneira imanente. Até mesmo Marx é frequentemente lido desde uma ótica parecida. Isto é, como alguém que estaria demonstrando a inevitável morte natural do capitalismo. A perspectiva de Ellacuría, neste sentido, pretende se desvincular radicalmente de qualquer predeterminação histórica. Martínez (2008, pMARTÍNEZ, A. R. Derechos humanos, Liberación y Filosofía de la realidad histórica. In: MARTÍNEZ, A. R. et al. Teoria Crítica dos direitos humanos no século XXI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 15-45.. 23) aponta isso de forma muito clara, trazendo para o centro do debate outro conceito primordial para o filósofo salvadorenho, qual seja, o de práxis histórica:

Com efeito, não se pode compreender a história como um progresso cuja meta estivesse prefixada. A realidade histórica não de prediz, ela se produz. Se cria a partir da práxis humana sobre a base do sistema de possibilidades determinada por cada situação e momento do processo histórico. Dessa maneira, o processo histórico não está orientado por algo, somente pelo que pode fazer a atividade humana a partir da apropriação de possibilidades e segundo determinadas capacidades. Porém, nada nos assegura que a apropriação de possibilidades seja a mais adequada para a instauração da justiça. Por isso, para Ellacuría, a práxis não é libertadora por si mesma. O ser humano vai se configurando historicamente em virtude das possibilidades que recebe e de apropria em cada momento. Neste sentido, a realidade histórica pode ser princípio de liberdade, humanização e libertação, porém, também, de alienação, dominação e opressão. Disso surge seu interesse por estabelecer a necessidade da ajuda da filosofia no que se refere às lutas por libertação. Isto é, para que a práxis histórica seja uma práxis libertadora.

O conceito de práxis histórica, portanto, reúne em si o conjunto de tensões que será profundamente explorado pelo autor. Ou seja, através desse conceito é que se pode ter acesso tanto à potencialidade libertadora da atividade dos seres humanos, bem como as forças alienantes e opressivas que aí se mostram. Um sofisticado véu ideológico, em grande parte introjetado e naturalizado pelos indivíduos, tem como finalidade manter a realidade tal como está. Por isso, a práxis nem sempre é libertadora. Ela pode ser, apenas, uma atividade alienada, isto é, determinada por forças externas que predeterminam a ação dos sujeitos. No entanto, existe a possibilidade de uma tomada de consciência da situação e das possibilidades que a história nos coloca à disposição. A filosofia teria, neste sentido, suma importância, especialmente no sentido de nos fazer compreender o lugar e o tempo em que estamos situados e, inclusive, as possibilidades concretas de atuar sobre a realidade para transformá-la. Compreender a realidade como histórica e, consequentemente, compreender a práxis como histórica, significa, em última análise, mostrar que a realidade é o resultado da ação humana, seja ela uma ação alienada e a serviço do capital e do mercado, seja ela uma ação libertadora.

Filosofia da libertação na América Latina

Fazer filosofia na América não significa apenas, a partir de uma suposta neutralidade da razão, pensar de um lugar diferente. Trata-se, ao invés disso, de pensar radicalmente — isto é, até a raiz — a estrutura da realidade para que possamos agir sobre ela. O ponto de partida, no entanto, está claro: o engajamento ético-político na tarefa da libertação. E não se trata simplesmente de um ativismo político que possa vir a desmerecer a função da teoria. Compreender a estrutura social e as possibilidades emancipatórias nela inscritas exige muita acuidade e capacidade de análise. Desfazer o processo histórico que petrificou estruturas de exploração e de dominação não é algo simples de ser feito. Esta violência está amplamente enraizada na sociedade e introjetada pelos indivíduos.

Assim, o estado de opressão e exploração que marcou e que marca a história da América Latina começa a ser denunciado e um esforço conjunto de encontrar alternativas vai se impondo lentamente. A filosofia da Libertação, precisa, como dito anteriormente, desconstruir a lógica da modernidade eurocêntrica, de acordo com a qual a América Latina foi situada como continente atrasado e não desenvolvido. Em outras palavras, desde a lógica filosófica eurocêntrica, um lugar hierarquicamente inferior e submisso é atribuído aos latino-americanos. Nesta lógica, nós não pensamos, mas somos pensados. O ideal civilizatório europeu se impõe e é naturalizado, sem que se leve em conta o fato de que para que esta Europa desenvolvida exista, foram necessários séculos de exploração e violência colonizadora.

Construir um pensamento latino-americano, assim, significa romper com a lógica de pensamento pela qual fomos colonizados. E, rompendo com essa lógica, resgatar nossa condição de sujeitos. Enrique Dussel (1973, pDUSSEL, E. América Latina: dependencia y liberación: Antología de ensayos antropológicos y teológicos desde la proposición de un pensar latinoamericano. Buenos Aires: García Cambeiro, 1973.. 87) é bastante pontual neste sentido:

Ontologicamente isto significa que o nosso saber estava oculto: o que ocultava era, justamente, o ser um ser-oprimido colonial, ontologicamente dependente. A tarefa da filosofia latino-americana que pretenda superar a modernidade, deverá se propor desvelar todos os traços deste sujeito dominador em nosso oculto ser latino-americano dependente, oprimido.

A Filosofia da Libertação, dessa maneira, pretende fazer uma crítica da lógica colonizadora mesmo depois de os regimes coloniais aparentemente ter siso extintos. Estruturas políticas e econômicas internas às antigas colônias acabavam repetindo a violência e a opressão colonial. Ignacio Ellacuría aproxima-se bastante deste diagnóstico e, inclusive, detalha com mais ênfase a função que a filosofia exerceu historicamente em nosso continente. E, além disso, aponta para a urgência de uma tomada de consciência para que possa haver algo como um pensamento próprio, uma filosofia libertadora. Seguem suas palavras:

O continente latino-americano - e não somente ele - vive estruturalmente em condições de opressão e ainda de repressão, sobretudo no que se refere às maiorias populares. Opressão e repressão às quais contribuíram, direta ou indiretamente, se não as filosofias enquanto tais, ao menos as apresentações ou manifestações ideológicas destas filosofias. [...]. Naturalmente, essa opressão-repressão não é apenas ideológica, mas sim, real. Porém, tem como um de seus elementos justificadores e, inclusive, ativamente operantes, diversos elementos ideológicos. (ELLACURÍA, 1991a, pELLACURÍA, I. Filosofía de la realidad histórica. Madrid: Editorial Trotta, 1991a.. 94).

A filosofia encontraria, assim, sua função libertadora sendo capaz de compreender a realidade na qual está inserida e, ao mesmo, sendo capaz de fazer a crítica desta realidade. Uma dupla capacidade filosófica é, neste sentido, destacada pelo filósofo salvadorenho: “criticidade e fundamentalidade” (ELLACURÍA, 1991b, pELLACURÍA, I. Veinte años de historia en El Salvador (1969-1989): Escritos políticos, Tomo I. San Salvador: UCA Editores, 1991b.. 101). De acordo com o pensador, estas são duas características intrínsecas à filosofia que podem garantir sua sobrevivência para além das ideologias justificadoras da realidade social. Criticidade, de acordo com o autor, é a característica que faz com toda nova teoria filosófica surja, sempre, com uma crítica ao pensamento anteriormente estabelecido. A filosofia, neste sentido, é essencialmente anti-idolátrica. Não é sua função bajular e homenagear autoridades, nem sequer as autoridades filosóficas, isto é, os clássicos. A melhor homenagem, nesse caso, é a apropriação crítica, o esforço de pensar seu próprio tempo com seu auxílio. A outra característica destacada é a fundamentalidade. O filósofo e teólogo jesuíta entende esse conceito da seguinte maneira:

A filosofia deve distinguir-se, também, pela fundamentalidade, pela busca dos fundamentos. É, pois, concebível que, nesta busca dos fundamentos, pode-se descobrir melhor a des-fundamentação das posições ideologizadas. O empreendimento em busca dos fundamentos últimos e totalizantes tem seus perigos de escorregar para ideologia, porém, tem também, enormes possibilidades para identificar e combater o que quer se apresentar como fundamento real, quando realmente é um fundamento imaginado. (ELLACURÍA, 1991b, pELLACURÍA, I. Veinte años de historia en El Salvador (1969-1989): Escritos políticos, Tomo I. San Salvador: UCA Editores, 1991b.. 101).

Com isso é amplamente destacado o papel da filosofia na práxis histórica latino-americana. Por mais que muitas filosofias tenham de fato se empenhado em manter as coisas como estavam, tornando-se produtos ideológicos nas mãos dos poderes constituídos, muitas delas também começaram por colocar em questão todo este estado de coisas injusto e violento. Se amplos setores da religião com suas correspondentes ideias teológicas; setores da economia, da política e da moral com suas correspondentes justificações ideológicas; se todos estes setores se mantêm acriticamente satisfeitos com a pobreza e a opressão naturalizadas, isso não condena toda filosofia nem sequer toda teologia. Ao pensar a realidade histórica como objeto da filosofia, como demonstramos na secção anterior, compreendemos que as formações sociais são resultados concretos da ação humana e não dados naturais.

Isso, em outras palavras, significa dizer que a América Latina se formou enquanto continente, com todas as contradições internas que a caracterizam, a partir do processo de colonização. Este processo não foi nem um pouco sutil. Foi um processo violento de exploração, de utilização de mão de obra escrava, de imposição de uma visão de mundo e de um modelo cultural em detrimento de todos os saberes milenares de populações locais. Inclusive, no limite, significou uma política aberta de extermínio destes povos e de seus saberes. Tudo isso, após séculos de crueldade manifesta, foi compondo a forma como a população latino-americana via a si mesma. Em outras palavras, passamos a nos olhar a partir daqueles que nos colonizaram.

Descontruir esse processo passa, portanto, em primeiro lugar pela compreensão de que o que é, o ser latino-americano, não é um dado natural, mas uma realidade histórica forjada por um processo de dominação. Em seguida, é preciso utilizar a filosofia como ferramenta para desvelar a realidade social opressiva escondida por trás de ideologias encobridoras. Isto dará condições para a emergência de uma práxis histórica libertadora. Como foi dito anteriormente, nem toda práxis é libertadora. Muitas forças bem-intencionadas foram desperdiçadas e acabaram colaborando com a solidificação dos sistemas políticos e econômicos de dominação por não terem feito uma leitura correta da realidade. A função de filosofia se dá neste aspecto. O grande engajamento de Ellacuría com a UCA (Universidade Centro Americana) deve ser entendido neste sentido. Ou seja, ao dedicar-se ao ensino universitário e formação do pensamento crítico em plena realidade salvadorenha, o que estava tentando não era um afastamento da realidade, mas o acesso a ela com outros meios que não aqueles já cooptados pelos poderes instituídos. A UCA, do qual foi grande expoente, levou muito a sério esta tarefa. O seu brutal assassinato em 16 de novembro de 1989, juntamente com outras sete pessoas, demonstrou como sua atuação foi incomoda.

A partir deste profundo engajamento na construção de uma América Latina livre e justa, torna-se possível agora caminhar para a compreensão das questões relativas aos direitos humanos em seu pensamento. Justamente pelo fato de este conceito carregar em si as contradições típicas que a filosofia da libertação havia se empenhado em compreender e denunciar, isto é, poder servir como ideologia encobridora ou para uma práxis libertadora, se fará especialmente necessária esta análise.

O método de historicização dos direitos humanos

“Por que falar tanto em direitos humanos quando este discurso, que é pretensamente universal, não serve para tirar da miséria a imensa maioria da população mundial?” Assim, Calos Eymar (1999, pEYMAR, C. Ellacuría y los derechos humanos. El Ciervo, año 48, n. 578, 1999.. 8) sintetiza a questão fundamental que, segundo ele, orientaria a obra de Ellacuría em sua abordagem sobre os direitos humanos. E a questão traz consigo uma série de elementos que serão fundamentais para compreender a forma como o filósofo salvadorenho conduzirá sua argumentação. Em primeiro lugar, os direitos humanos em sua universalidade são, reconhecidamente, o fundamento da sociedade liberal. Isto significa, em outras palavras, que apesar de as sociedades contemporâneas ver neles um fundamento inegável, múltiplas violações continuam sendo possíveis. A exploração colonial, a exploração da classe trabalhadora, a pobreza e a fome, enfim, toda a violência sistemática que condena pelo menos dois terços da população mundial a condições precárias de sobrevivência não invalidou e não invalida o discurso dos direitos humanos. Isto é, uma sociedade estruturalmente desigual pode, perfeitamente, ser legitimada pelo discurso dos direitos humanos. Em sua universalidade abstrata, portanto, este conceito tem pouca efetividade no âmbito concreto das lutas contra a injustiça.

Isto, no entanto, não significa que o conceito deva ser simplesmente abandonado. Por mais que ele, por si só, não seja garantia de efetividade, pode servir, porém, como instrumento de luta por justiça. E isto levará Ellacuría a pensar a necessidade de historicizar os conceitos. Arrancá-los de sua universal neutralidade e inscrevê-los na história a ponto de perceber sua potencialidade crítica. Antes de fazer isso, concretamente, com o conceito de direitos humanos, no entanto, cabe uma consideração sobre o método de historicização dos conceitos de modo geral.

Martínez (2008, pMARTÍNEZ, A. R. Derechos humanos, Liberación y Filosofía de la realidad histórica. In: MARTÍNEZ, A. R. et al. Teoria Crítica dos direitos humanos no século XXI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 15-45.. 30) resume da seguinte forma o referido método:

Um conceito historicizado se contrapõe a um conceito abstrato e universal, e busca situar o conteúdo do conceito em relação com a práxis histórica e descobrir como opera no processo social. [...]. Para Ellacuría, o método de historicização leva em conta que toda a ação e interpretação se devem às condições reais de uma sociedade e aos interesses sociais que a sustentam.

Portanto, trata-se de analisar o processo concreto e real através do qual um conceito vai se formando e vai atuando na realidade histórica. Isto é, ao invés de pensar o conceito como algo definido e estabelecido previamente e que, posteriormente, seria aplicado na realidade, o que Ellacuría está propondo é uma compreensão dialética tanto do conceito quanto da história. Em outras palavras, isto significa dizer que os conceitos não são tomados como entidades abstratas. Um conceito não é algo determinado que é posto na história. Ao invés disso, é a própria histórica e a própria práxis humana que habitam os conceitos. Por exemplo, no conceito de ética não pode ser reconhecido um conteúdo abstrato e universal fora da história. Nele, ao contrário, estão sedimentadas muitas forças históricas que movimentam e o atualizam constantemente. Assim, também, é o caso do conceito de direito, apenas para citar mais um exemplo. As lutas sociais concretas estão nele inscritas e isto faz com que, ao longo da história, ele vá se modificando e servindo, ora para legitimar certas estruturas sociais, ora para fazer explodi-las. Os conceitos, portanto, desempenham um papel ativo na realidade social. E a práxis histórica que pretende neles inscrever um sentido crítico é a práxis política da luta pela libertação.

Os direitos humanos, dessa maneira, acabam sendo o exemplo mais emblemático de como é urgente entender os conceitos de forma historicizada. Joaquín Herrera Flores, expoente espanhol da assim denominada teoria crítica dos direitos humanos, é bastante preciso em sua problematização deste conceito.

Em nossos dias, ocorre exatamente o contrário: é o mercado autorregulado que controla a aplicação e até mesmo a formulação dos direitos, pois a efetividade dos mesmos já não se considera um bem público que diz respeito a sociedade, mas sim passa a ser considerado o alto custo econômico que precisa ser reduzido a qualquer custo para aumentar a eficiência dos processos de acumulação. [...]. Não é um insulto à inteligência e à sensibilidade humanas seguir pensando que os direitos já estão suficientemente garantidos por aparecer nas declarações internacionais e nos textos constitucionais, quando essa ‘revolução neoliberal’ transformou o mundo sem tocar em uma vírgula destas normas? (FLORES, 2005, p. 185).

Ou seja, o conceito geral e abstrato de direitos humanos tem servido, de forma predominante para garantir legitimidade e emprestar um véu de humanidade aos processos globais de acumulação capitalista. Se este conceito não for desmascarado em sua função ideológica e não for investido de sentido crítico, acaba servindo a uma realidade que é sua exata negação. E a realidade latino-americana, segundo Ellacuría, torna esta tarefa extremamente necessária. Ao invés de continuar apontando o indivíduo abstrato como sujeito dos direitos humanos, o filósofo quer olhar para os povos dos países pobres e explorados. Em relação a isso comenta:

[...] a mentira dos países ricos e das classes poderosas dominantes, que tratam de apresentar que em seus domínios se dá o pleno cumprimento dos direitos humanos, quando na verdade o que se dá é o desfrute de direitos nacionalistas, mediante a negação efetiva dos direitos que competem à humanidade em seu conjunto. (ELLACURÍA, 2001, pELLACURÍA, I. Historización de los derechos humanos desde los pobres oprimidos y las mayorías populares: Escritos filosóficos, Tomo III. San Salvador: UCA Editores, 2001.. 443).

A globalização capitalista produz uma sociedade estruturalmente injusta. Quanto mais desenvolvida for essa sociedade mais divisões e exclusões irão acontecer. A riqueza acumulada pelos países ricos é produzida a partir da sistemática pauperização de populações de países pobres. Até mesmo dentro dos próprios países as divisões se intensificam. Elites completamente alheias ao bem comum naturalizam uma sociedade desigual. Em outras palavras, “o terceiro mundo é a verdade do primeiro mundo e as classes oprimidas são a verdade das classes opressoras”. (ELLACURÍA apud MARTÍNEZ, 2008, pMARTÍNEZ, A. R. Derechos humanos, Liberación y Filosofía de la realidad histórica. In: MARTÍNEZ, A. R. et al. Teoria Crítica dos direitos humanos no século XXI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 15-45.. 37).

Concretizar os direitos humanos na América Latina, dessa maneira, implica, em primeiro lugar, romper com a naturalização da lógica de exploração com suas raízes coloniais. Além disso, significa dar uma voz real e um rosto concreto àqueles que sofrem em nosso continente. Não são sujeitos abstratos que precisam de direitos, mas pessoas pobres sem acesso à saúde e educação; povos indígenas constantemente atacados pelo desenvolvimentismo econômico; trabalhadores explorados e sem direitos; mulheres oprimidas por uma sociedade patriarcal. As frentes de luta por direitos humanos, assim, são inúmeras. Ellacuría se envolveu pessoalmente em muitas delas. De modo muito especial, se envolveu com a construção de um espaço universitário que pudesse ser a fonte de um pensamento latino-americano, um pensamento que partisse de nossa realidade e, desvelando suas contradições, pudesse encontrar alternativas.

Considerações Finais

A filosofia de Ignacio Ellacuría merece uma atenção especial neste momento histórico que estamos vivendo. Por ser um crítico radical das lógicas de violência naturalizadas e por nos deixar um legado teórico muito significado nos campos da filosofia e da teologia, continua sendo um autor imprescindível para aqueles que pretendem pensar a América Latina e suas contradições atualmente. Ao fazer da realidade histórica o objeto próprio da filosofia, Ellacuría nos apresenta um pensamento engajado, onde se pretende compreender as estruturas que formam a realidade para que se possa atuar nela de maneira mais efetiva. Abrir a realidade à ação humana ao invés de sucumbir de forma impotente ante as estruturas do poder instituído.

O conceito de direitos humanos, neste contexto, precisa ser situado historicamente para que deixe de ser mera ideologia encobridora de uma realidade estruturalmente injusta e se torne instrumento de denúncia e de luta concreta. A potencialidade contida no conceito precisa ser historicizada para que a sua universalidade abstrata seja superada. O conceito passa a ter um alcance real no interior de um momento histórico específico onde seu sentido vai sendo construído. Direitos humanos, na América Latina, são direitos concretos de povos que sofrem com inúmeros problemas que não têm perspectiva de serem respeitados no contexto de uma lógica capitalista do acúmulo e da exploração. Engajar-se na luta contra esse sistema perverso é, assim, tornar possível que direitos humanos sejam mais do que um belo ideal que enfeita discursos, legislações e páginas de livros.

Agradecimentos

Não se aplica

  • Agência financiadora Não se aplica
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica
    Consentimento para publicação Não se aplica

Referências

  • DUSSEL, E. América Latina: dependencia y liberación: Antología de ensayos antropológicos y teológicos desde la proposición de un pensar latinoamericano. Buenos Aires: García Cambeiro, 1973.
  • ELLACURÍA, I. Filosofía de la realidad histórica Madrid: Editorial Trotta, 1991a.
  • ELLACURÍA, I. Historización de los derechos humanos desde los pobres oprimidos y las mayorías populares: Escritos filosóficos, Tomo III. San Salvador: UCA Editores, 2001.
  • ELLACURÍA, I. Veinte años de historia en El Salvador (1969-1989): Escritos políticos, Tomo I. San Salvador: UCA Editores, 1991b.
  • EYMAR, C. Ellacuría y los derechos humanos. El Ciervo, año 48, n. 578, 1999.
  • HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
  • MARTÍNEZ, A. R. Derechos humanos, Liberación y Filosofía de la realidad histórica. In: MARTÍNEZ, A. R. et al Teoria Crítica dos direitos humanos no século XXI Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 15-45.
  • ZUBIRI, X. Estructura dinámica de la realidad 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
  • Revisado
    08 Maio 2023
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