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Imperialismo, revolução e contrarrevolução na América Latina

Depois de ter sofrido o ocaso provocado pelo terrorismo de Estado, pelo dogmatismo teórico e pelo neoliberalismo acadêmico, a teoria marxista da dependência (TMD) tem se afirmado, mais e mais, como referência teórica reivindicada por autores e autoras em diversos círculos da intelectualidade brasileira, com destaque para o Serviço Social. No momento em que a Revista Katálysis traz à tona um volume dedicado ao exame da luta de classes na América Latina no contexto das relações imperialistas e sua contraparte, a dependência, a abordagem fundada por Ruy Mauro MariniMARINI, R. M. Dialectica de la dependencia. México: Ed. ERA, 1973. Disponível em: https://marini-escritos.unam.mx/wp-content/uploads/1973/01/Diale%CC%81ctica-de-la-dependencia.pdf.
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, Vânia BambirraBAMBIRRA, V. Integración monopolica mundial e industrialización: sus contradicciónes. Chile: Ed. PLA Universidad de Chile, 1972. Disponível em: https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/wp-content/uploads/2019/06/dep_01.pdf
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e Theotonio dos Santos SANTOS, T. dos. Imperialismo y dependencia. Ed. ERA, México, 1978. demonstra sua vitalidade no que se refere ao método crítico.

Tal vigor deve ser compreendido como uma apropriação do materialismo histórico e suas categorias fundamentais como totalidade, historicidade, contradição, mediação, níveis de abstração, determinação, mas também pelo que István Mészáros chamou de uma abertura metodológica radical na apreensão do desenvolvimento histórico. Este procedimento consiste em considerar o horizonte de possibilidades inscritas em cada momento, sem reduzir o processo histórico a um sentido positivo ou a uma “lógica necessária”. Com isso, evita-se o risco de excluir dimensões e contradições materiais as quais, embora não desenvolvidas, são significativas para uma plena compreensão da realidade social. Pois, explicações que se fecham às possibilidades de transformação estrutural abertas em cada conjuntura resultam em um estreitamento arbitrário da complexidade da ação humana. Daí que os elementos de latência presentes nas relações sociais devem ser considerados como parte constitutiva da análise a fim de captar as contradições que abrem oportunidades de efetivação de processos emancipatórios, como também de reafirmação de estruturas de exploração e dominação.

Tomar a América Latina à luz dessas indicações implica, em primeiro lugar, compreendê-la como uma totalidade ontológica aberta. Um pré-requisito necessário nesse sentido consiste em desentranhar as determinações que estruturam, hierarquizam e dinamizam as relações sociais no continente. Pois, se o universal se universaliza particularizando-se, neste mesmo movimento, o particular, além de expressar o universal, também se singulariza no tempo e no espaço, engendrando o novo na história. E esse é o movimento por meio do qual o real se abre à sua própria transformação ou reafirmação modificada.

A TMD buscou exercer essa abertura histórica radical ao estudar o desenvolvimento desigual entre imperialismo e dependência, desvendando tendências adicionais na lei do valor que caracterizam as formações econômico-sociais dependentes como parte do modo de produção capitalista. Como o/a leitor/a poderá verificar nesta edição da Katálysis, algumas das relações categorizadas por Ruy Mauro Marini, como superexploração do trabalho, Estado de contrainsurgência e Estado dependente entregam valor explicativo para realidades vigentes. Mas também outras como as transferências de valor, cisão nas fases do ciclo do capital e padrão de reprodução do capital, as quais contribuem na compreensão das estruturas e tendências sem as quais resta precária a apreensão de nossas sociedades. A própria categoria dependência, cuja apropriação pelo marxismo foi obra de Theotonio dos Santos, é talvez uma das mais visitadas para caracterizar a América Latina. E coube a Vânia Bambirra desentranhar a unidade diferenciada que inscreveu o Brasil como parte integrante e inseparável da realidade latino-americana, enquanto a intelectualidade do Império e da República acentuavam e acentuam os vínculos ibéricos. Mais do que isso, nos mostrou como essa realidade comum não estava restrita ao colonialismo, mas que a industrialização sob a égide de um mercado mundial monopolizado engendrava um desenvolvimento capitalista dependente para o conjunto da região.

Como vertente do marxismo ocupada do complexo imperialismo e dependência, a TMD está desafiada a contribuir para a apreensão das tendências do capitalismo contemporâneo, o novo caráter da dependência frente a IV Revolução Industrial e a transformação profunda nas cadeias de valor, sempre atenta às implicações desses processos para a realidade latino-americana. Da mesma forma, se ocupa das novas morfologias do mundo do trabalho sob a crise e seus impactos não apenas para a América Latina, onde são engendradas formas renovadas da superexploração, mas rebaixando os salários em relação ao valor da força do trabalho em escala mundial, imbricadamente a processos como o racismo e o patriarcado capitalistas. O papel cada vez mais determinante dos Estados, ao contrário do discurso neoliberal, para garantir a reprodução da sociabilidade fetichizada do capital, seus mecanismos violentos de dominação, consiste em outro aspecto dos estudos sobre dependência, entre outras temáticas e campos de investigação.

Um exemplo estimulante demonstra o Serviço Social brasileiro, onde os trabalhos inspirados nos aportes da TMD têm oferecido um olhar crítico renovado. Os estudos que propõem a incorporação de novas determinações à questão social, em perspectiva unitária de classe, gênero e raça/etnia, estão inscritos na preocupação com a abertura histórica e o desenvolvimento desigual ressaltados. Ainda no tocante à questão social há trabalhos de referência que problematizam sua periodização no Brasil. São inúmeras as investigações e publicações sobre as relações de superexploração da classe trabalhadora, nas imbricações com o racismo estrutural, analisando seu papel na criação de condições propícias à escravidão contemporânea, com o incremento do trabalho infantil doméstico etc. Avançam as interlocuções com a teoria da reprodução social e o diálogo com a obra de Heleieth Saffioti. As reflexões sobre o Estado dependente e sobre como a financeirização vem impactando o debate sobre as políticas sociais em nossas formações.

Para além do Serviço Social, apenas para mencionar alguns campos importantes, estão em andamento estudos sobre economia política da saúde, os quais vem mobilizando centros de referência como a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/FIOCRUZ e do Instituto de Medicina Social da UERJ. No campo jurídico, a falta ou dificuldade de efetivação dos direitos vem sendo explicada com base nas relações de dependência. No âmbito da história econômica, estudos sobre a economia brasileira contam uma outra história do Brasil, em particular do “milagre” econômico da ditadura empresarial-militar, tema que por um tempo significativo confundiu parte da intelectualidade crítica. O desenvolvimento das investigações sobre dependência também vem incorporando à análise novas determinações estruturais, como a renda da terra. E os exemplos poderiam ser ampliados, mas de qualquer maneira não seriam exaustivos.

Finalmente, nos parece relevante que o serviço social tome as relações de superexploração da força de trabalho para a apreensão das determinações da questão social e da luta de classes na América Latina. Quer dizer, se as condições de reprodução do conjunto da classe trabalhadora são violadas sistematicamente, esteja ela existindo temporariamente como parte do exército ativo ou inativo, embora as nuances não possam ser menosprezadas, cabe problematizar como se estabelecem e modificam as fronteiras entre trabalho e assistência social no capitalismo dependente, o sentido e o conteúdo da política social e, portanto, a própria atuação do Assistente Social a fim de preservar e efetivar o compromisso ético-político do Serviço Social brasileiro. São questões que, em nosso entendimento, merecem a atenção dos e das assistentes sociais. E, se a vitalidade da abordagem sobre a América Latina oferecida pela TMD pode ser em parte explicada pela incorporação da abertura histórica radical e da lei do desenvolvimento desigual como fundamentos do método crítico, oxalá a realidade que compeliu à retomada dos estudos marxistas sobre a dependência possa também ser compelida pela teoria à almejada transformação emancipadora em benefício dos povos de “nuestra” América. Seguramente, o serviço social brasileiro tem muito a aportar neste sentido.

Referências

  • BAMBIRRA, V. El capitalismo dependiente latinoamericano. México: Ed. Siglo XXI, 1974.
  • BAMBIRRA, V. Integración monopolica mundial e industrialización: sus contradicciónes. Chile: Ed. PLA Universidad de Chile, 1972. Disponível em: https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/wp-content/uploads/2019/06/dep_01.pdf
    » https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/wp-content/uploads/2019/06/dep_01.pdf
  • LUCE, M. S. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias: uma visão histórica. Expressão Popular, São Paulo: 2018.
  • LUCE, M. S. Brasil: nova classe média ou novas formas de superexploração da classe trabalhadora. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 11 n. 1, p. 169-190, jan./abr. 2013.
  • MARINI, R. M. Dialectica de la dependencia. México: Ed. ERA, 1973. Disponível em: https://marini-escritos.unam.mx/wp-content/uploads/1973/01/Diale%CC%81ctica-de-la-dependencia.pdf
    » https://marini-escritos.unam.mx/wp-content/uploads/1973/01/Diale%CC%81ctica-de-la-dependencia.pdf
  • MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Boitempo Editorial, São Paulo: 2002.
  • MÉSZÁROS, I. O desafio e o fardo do tempo histórico. Boitempo Editorial: São Paulo: 2011.
  • SANTOS, T. dos. Imperialismo y dependencia. Ed. ERA, México, 1978.
  • SANTOS, T. dos. El nuevo caracter de la dependencia. Facultad de Ciencias Economicas de la Universidad de Chile, 1967.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023
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