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Dificuldades dos pacientes diabéticos para o controle da doença: sentimentos e comportamentos

Resumos

Este estudo teve como objetivo identificar as dificuldades dos pacientes diabéticos em relação ao tratamento para o controle da doença. Participaram 24 diabéticos acompanhados no Centro Educativo de Enfermagem para Adultos e Idosos, em 2003. Para obtenção dos dados utilizou-se de relato escrito, de forma individual, em dia pré-determinado, a partir de uma questão norteadora previamente elaborada. Na análise dos dados, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo. Os resultados mostraram que são inúmeras as dificuldades relacionadas ao seguimento do tratamento: rejeição e negação da condição de doente, sofrimento e revolta devido às restrições impostas pela alimentação, atividade física e medicamento. É possível inferir que o enfoque da abordagem educativa não deve se restringir apenas à transmissão de conhecimentos, mas é importante englobar os aspectos emocionais, sociais e culturais que influenciam no seguimento do tratamento.

diabetes mellitus; educação em saúde; doença crônica


This study aimed to identify difficulties diabetic patients face during treatment in controlling the disease. A total of 24 diabetic patients, attended in the Nurse Educational Center for Adults and Elders in 2003, participated in the study. The data was collected individually, through a written report guided by a question previously elaborated, on a pre-scheduled date. The Content Analysis technique was used in the data analysis. The results showed several difficulties related to the treatment follow up: rejection and denial of the patient's condition, suffering and revolt due to restrictions imposed by the diet, physical activity and medication. It is possible to infer that the focus of the education approach should not be restricted to the transmission of knowledge; it should also include emotional, social and cultural aspects that also influence in the treatment follow up.

diabetes mellitus; health education; chronic disease


Este estudio tuvo como objetivo identificar las dificultades de los pacientes diabéticos en relación al tratamiento para el control de la enfermedad. Participaron 24 diabéticos acompañados en el Centro Educativo de Enfermería para Adultos y Ancianos en 2003. Para obtener los datos, se utilizó un relato escrito, de forma individual, en día predeterminado, a partir de una pregunta orientadora previamente elaborada. En el análisis de los datos se utilizó la técnica de Análisis de Contenido. Los resultados mostraron que son innumeras las dificultades relacionadas al seguimiento del tratamiento: rechazo y negación de la condición de enfermo, sufrimiento y revuelta debido a las restricciones impuestas por la alimentación, actividad física y medicamentos. Es posible inferir que el enfoque de la aproximación educativa no debe restringirse apenas a la transmisión de conocimientos; también es importante que englobe aspectos emocionales, sociales y culturales que influencian en el seguimiento del tratamiento.

diabetes mellitus; educación en salud; enfermedad crónica


ARTIGOS ORIGINAIS

IPsicóloga, Mestre em Ciências Médicas, e-mail: desiperes@ig.com.br

IIProfessor Doutor da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Brasil

IIIProfessor Associado da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil

IVPsicólogo

RESUMO

Este estudo teve como objetivo identificar as dificuldades dos pacientes diabéticos em relação ao tratamento para o controle da doença. Participaram 24 diabéticos acompanhados no Centro Educativo de Enfermagem para Adultos e Idosos, em 2003. Para obtenção dos dados utilizou-se de relato escrito, de forma individual, em dia pré-determinado, a partir de uma questão norteadora previamente elaborada. Na análise dos dados, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo. Os resultados mostraram que são inúmeras as dificuldades relacionadas ao seguimento do tratamento: rejeição e negação da condição de doente, sofrimento e revolta devido às restrições impostas pela alimentação, atividade física e medicamento. É possível inferir que o enfoque da abordagem educativa não deve se restringir apenas à transmissão de conhecimentos, mas é importante englobar os aspectos emocionais, sociais e culturais que influenciam no seguimento do tratamento.

Descritores: diabetes mellitus; educação em saúde; doença crônica

INTRODUÇÃO

Na atualidade, o diabetes mellitus é considerado um dos mais importantes problemas de Saúde Pública, tanto pelo número de pessoas afetadas, pelas incapacitações e mortalidade prematura que pode acarretar, quanto pelos custos envolvidos no controle e tratamento das suas complicações. Esses fatores justificam o desenvolvimento de estudos não só para detectar, como também para encaminhar um processo de intervenção educativa e terapêutica, nos diversos estágios dessa doença e de suas complicações.

Um dos maiores problemas encontrados pelos profissionais de saúde no processo de intervenção com pacientes diabéticos é a baixa adesão ao tratamento, fenômeno recorrente no tratamento de doenças que exigem mudanças nos hábitos de vida. Estimular a adesão ao tratamento é de extrema importância e a educação em saúde pode ser considerada uma das estratégias que possibilitam melhor adesão dos pacientes ao esquema de tratamento(1). Nesse sentido, a educação em saúde tem sido muito valorizada e é considerada parte integrante do tratamento das doenças crônicas(2). No entanto, muitos programas de educação em saúde fracassam por não levarem em consideração os aspectos psicológicos, culturais, sociais, interpessoais e as reais necessidades psicológicas da pessoa diabética(3).

O enfoque da abordagem educativa deve englobar os aspectos subjetivos e emocionais que influenciam na adesão ao tratamento, indo além dos processos cognitivos(4). Enfim, é fundamental que a educação em saúde leve em consideração a realidade e a vivência dos pacientes, pois, muitas vezes, as informações em saúde são fornecidas de maneira vertical, sem permitir maior participação dos pacientes e sem considerar o que esses já sabem e o que desejariam saber. Nesse enfoque, almeja-se transformar o sujeito que assume uma posição passiva na condução de seu tratamento em um indivíduo participativo.

Parece ser necessário conhecer e compreender, de forma mais profunda, as experiências vividas, já que o paciente diabético "atribui às experiências vividas com a doença não somente um significado, mas um sentido que se relaciona com seu modo de existir"(5). Assim, para que um processo educativo seja eficaz, é necessário conhecer as crenças, os sentimentos, os pensamentos, as atitudes e os comportamentos dos pacientes, enfim, o que os sujeitos apreendem do seu meio ambiente(6-7) e nas suas relações com outros indivíduos.

Conhecer aquilo que os pacientes apreendem de sua realidade e como organizam seu cotidiano pode fornecer diretrizes para estabelecer estratégias de intervenção, além de oferecer alguns subsídios para ampliar a compreensão dos fatores associados à adesão ao tratamento(7). Torna-se necessário entender como a pessoa com diabetes percebe a si própria, vivenciando um mundo de muitas limitações, ou seja, o diabético enquanto ser integral, dotado de compreensão, afetividade e ação, dentro da sua própria perspectiva de mundo.

Cabe ressaltar, ainda, que o diagnóstico da doença acarreta muitas vezes um choque emocional para a pessoa, que não está preparada para conviver com as limitações decorrentes da condição crônica. Assim, a vivência do diabetes quebra a harmonia orgânica e, muitas vezes, transcende a pessoa do doente, interferindo na vida familiar e comunitária, afetando seu universo de relações. Ter que mudar hábitos de vida que já estão consolidados e assumir uma rotina que envolve disciplina rigorosa do planejamento alimentar, da incorporação, ou incremento de atividade física, e uso permanente e contínuo de medicamentos impõem a necessidade de entrar em contato com sentimentos, desejos, crenças e atitudes. A modificação do estilo de vida não se instala magicamente, mas no decorrer de um percurso que envolve repensar o projeto de vida e reavaliar suas expectativas de futuro.

A mudança de hábitos de vida, dessa forma, é um processo lento e difícil. Particularmente no que se refere à alimentação. Os hábitos alimentares estão relacionados pelo menos a três fatores complexos: culturais, que são transmitidos de geração a geração ou por instituições sociais; econômicos, referentes ao custo e à disponibilidade de alimentos e, por fim, aos sociais, relacionados à aceitação ou rejeição de determinados padrões alimentares. Outros fatores também influenciam o indivíduo a adotar muitas vezes padrões inapropriados de comportamentos, tais como aversão a certos alimentos, crenças relacionadas a supostas ações nocivas e tabus ou proibições ao uso e consumo de certos produtos(8).

Em relação ao seguimento da terapêutica medicamentosa, as principais dificuldades se relacionam ao número de medicamentos utilizados pelos pacientes diabéticos, que geralmente apresentam co-morbidades, aos efeitos adversos, ao alto custo, aos mitos e crenças construídos, ao grau de instrução dos pacientes, que limita o acesso a informações e à compreensão; e o caráter assintomático da doença, que faz com que os pacientes, na maioria das vezes, não reconheçam a importância do tratamento medicamentoso(8).

A despeito dos esforços para conseguir que os pacientes diabéticos sigam o plano alimentar, atividade física e terapêutica medicamentosa tem-se observado que a adesão ao tratamento é baixa. Nessa direção, é necessário compreender como os aspectos psicológicos - sentimentos e comportamentos - podem interferir na motivação e na predisposição para a incorporação de mudanças no dia-a-dia, o que possibilitaria ao paciente conviver melhor com o diabetes.

O presente trabalho se justifica, uma vez que conhecer os sentimentos e os comportamentos de pacientes diabéticos pode fornecer alguns subsídios para a adoção de estratégias de intervenção mais eficazes no controle do diabetes.

O PERCURSO METOLÓGICO

Trata-se de estudo descritivo exploratório, realizado no Centro Educativo de Enfermagem para Adultos e Idosos - CEEAI, localizado no Campus Universitário de Ribeirão Preto da USP. Nesse Centro é realizado um trabalho multidisciplinar, com freqüência semanal, às terças-feiras, das 14 às 17 horas, envolvendo profissionais de diferentes especialidades tais como enfermeiras, nutricionistas, psicólogos e educador físico. A amostra de 24 diabéticos foi selecionada por conveniência, sendo a maioria do sexo feminino, com idade entre 25 e 76 anos, alfabetizados, com oito anos de estudo, com procedência de Ribeirão Preto, SP e, quanto à ocupação, a maioria exerce atividades domésticas. Em relação ao local de tratamento a maioria realiza acompanhamento de saúde em Unidades Básicas de Saúde e grande parte referiu ter diabetes do tipo 2. Quase todos referiram apresentar outras doenças além do diabetes tais como hipertensão arterial, hipotireoidismo, osteoporose, cardiopatia, labirintite, gastrite, dislipidemias e problemas circulatórios.

Para obtenção dos dados elaborou-se a questão norteadora: quais as dificuldades encontradas pelo Sr.(a) no seguimento do tratamento do diabetes?. Os dados foram coletados em fevereiro de 2003 após assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, por meio de relato escrito, de forma individual. Os pacientes foram instruídos a considerar as dificuldades e sentimentos relacionados à alimentação, medicamentos, atividade física e outros fatores que interferem no controle do diabetes. O tempo médio para redigir os relatos foi de 60 minutos.

Optou-se pela análise qualitativa dos dados, pois permite maior compreensão do caráter multidimensional dos fenômenos, e permite, também, captar os diferentes significados da experiência vivida, auxiliando a compreensão do indivíduo e do seu contexto. Os dados foram analisados através da técnica de análise de conteúdo(9).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos dados englobou três categorias analíticas relacionadas à alimentação, atividade física e medicação. A seguir, apresenta-se a descrição e análise das categorias elaboradas a partir dos relatos dos diabéticos.

A Tabela 1 apresenta as categorias analíticas dos respondentes em relação à alimentação. As respostas obtidas foram enquadradas nas seguintes categorias: dificuldade de controle dos impulsos (n=9), dificuldade de seguir a dieta (n=7). Em contrapartida, número menor de respondentes relatou que não tem dificuldades de fazer dieta (n=4), ou que consegue controlar bem a alimentação (n=1).

Alguns relatos demonstram sentimentos despertados pela necessidade de se impor um controle alimentar rigoroso. Apareceram, ainda, reações emocionais intensas tais como "raiva do mundo", dificuldades de raciocínio, mal-estar psicológico, preocupação e ansiedade, sentimentos de desânimo, privação de prazer, suscetibilidade à crítica do outro e negação da doença. Os pacientes salientaram que sentem grande dificuldade no controle dos impulsos, conforme os relatos mencionados abaixo

Tenho dificuldades porque gosto de comer bem. E muitas coisas que não posso comer. Eu gosto e eu não consigo deixar de comer (S10).

Com relação à dieta, procuro lutar para não comer determinados alimentos, mas às vezes não resisto (S20).

A dificuldade de seguir a alimentação prescrita acontece porque está relacionada aos hábitos adquiridos, ao horário definido, ao valor cultural do alimento, às condições socioeconômicas e à questão psicológica envolvida. A transgressão e o desejo alimentar estão sempre presentes na vida do paciente diabético. "O desejo alimentar faz sofrer, reprimir, salivar, esquecer, transgredir, mentir, negar, admitir, sentir prazer, controlar e sentir culpa"(10).

Uma respondente relata que sua dificuldade consiste em preparar a alimentação para os familiares, ir a festas e não poder comer: olhar, tocar, manipular, preparar o alimento instiga o desejo, conforme mostrado a seguir.

Minha dificuldade é na dieta, é você fazer as coisas para seus filhos e não poder comer, ir a alguma festa e você ficar só olhando e dizendo: 'obrigado, não posso comer'... (S8)

Há necessidade de manter os impulsos orais sob controle, mas, simultaneamente, há dificuldade de manter a alimentação prescrita por um tempo prolongado - subitamente perde-se o controle e incorre-se em episódios de compulsão alimentar, o que suscita alívio passageiro ao liberar a voracidade. O mecanismo de negação é insuficiente para conter os sentimentos negativos (raiva), mobilizados pela consciência da perda do controle sobre sua impulsividade. Esses sentimentos sobrepõem-se ao controle racional, acarretando dificuldades de concentração e de raciocínio. As influências das emoções nas condutas alimentares são representadas no relato a seguir.

Nem sempre consigo, sei que é perigoso, tento controlar, mas quando fico ansiosa ou nervosa, corro a procurar algo que comer. Para acalmar minhas emoções, fico ligada em comida. Por alguns dias consigo agüentar fazendo o que é certo, comendo certo, mas basta uma emoção ou chateação para sair da linha. (...) Meu maior problema é a alimentação e gostaria muito de ajuda neste sentido (S22).

Esse último relato mostra claramente o quanto alguns diabéticos reconhecem a influência que as emoções têm sobre suas dificuldades de conduta alimentar. O ato de comer é um dos comportamentos humanos mais complexos, já que não significa apenas a ingestão de nutrientes, mas envolve também extensa gama de emoções e sentimentos, além dos significados culturais atribuídos à comida. Nesse sentido, muitas vezes come-se simbolicamente o nervosismo, a ansiedade e o desemprego. Assim, o comportamento alimentar está relacionado tanto aos aspectos técnicos e objetivos - o que comemos, quanto e onde comemos, com quem compartilhamos o alimento - como também com aspectos socioculturais e psicológicos(11).

No relato acima descrito nota-se, ainda, além do esforço voluntário necessário para manter a disciplina e o controle alimentar, que o alimento procurado tem função de aplacar a ansiedade suscitada pelo período em que se consegue manter a dieta. Nesse sentido, pode-se dizer que, freqüentemente, privação rima com compulsão.

Os relatos dos participantes do estudo, que salientaram dificuldades de seguir a dieta, variam desde o simples apontamento dessas dificuldades até relatos pormenorizados que permitem a compreensão mais detalhada dos entraves enfrentados, conforme depoimento abaixo.

Esse está meio difícil. Não tenho tido muito ânimo para alimentação. Faço para os outros e não ligo muito para mim. Como andei me sentindo mal algumas vezes por não estar tendo uma dieta regrada, me preocupo e agora estou me pondo na linha (S16).

Expor-se à crítica do outro, à não aceitação por parte de familiares faz o diabético sentir-se "diferente" dos demais. O "ser diferente" é vivido como experiência penosa. A diferença é tratada como algo problemático, e não como uma peculiaridade que singulariza o sujeito, ou seja, uma diferença que faz a diferença na medida em que constitui o fundamento mesmo da identidade pessoal, conforme relato abaixo mencionado.

Já a parte da dieta é a mais difícil, pois os hábitos familiares são bem o oposto da dieta (massa, frituras e doces). Muitas vezes as pessoas não entendem que não é querer ser diferente, é uma necessidade. Em todas as refeições tem sempre uma pessoa a criticar o porquê do café sem açúcar, do suco, etc., principalmente minha mãe, sinto que ela não aceita que aconteceu esta mudança (S24).

O controle alimentar é entendido dentro da ótica da privação, do "regime", das proibições e restrições impostas à gratificação oral, e não da necessidade de uma reeducação alimentar. As crenças prevalentes enfatizam a restrição, acentuam o "não pode", em detrimento das outras possibilidades que se abrem, como os ganhos na qualidade de vida caso o diabético siga as recomendações prescritas pelos profissionais.

Por outro lado, há relatos que não referem dificuldade de seguir a dieta alimentar.

Não tenho dificuldade em manter o controle da minha glicemia, pois não faço uso de medicamentos, controlo somente restringindo a quantidade da alimentação, ou melhor, reeducando a forma de alimentar anteriormente, selecionando os alimentos e frutas (S18).

Esse relato indica que parcela dos diabéticos que freqüenta o local do estudo é capaz de seguir um plano de reeducação alimentar. Os demais, embora reconhecendo a importância da reeducação dos hábitos alimentares na manutenção do controle glicêmico e na prevenção das complicações decorrentes da doença, referem não conseguir lidar adequadamente com as limitações na esfera da conduta alimentar. Há um hiato significativo entre o plano alimentar ideal recomendado e aquele que é possível de se realizar.

A Tabela 2 mostra as categorias analíticas elaboradas a partir dos relatos dos diabéticos segundo o uso de medicação. As respostas obtidas foram enquadradas nas categorias: insulina (n=7) e antidiabéticos orais (n=14), além de outras respostas (n=3). Com relação à insulina, foram obtidas as seguintes subcategorias: dificuldade de tomar insulina (n=5), recusa em receber a insulina (n=1) e sem dificuldade com a insulina (n=1). Em relação aos antidiabéticos orais, encontrou-se as seguintes subcategorias: dúvidas em relação aos horários (n=4), esquece-se de tomar a medicação (n=4), sem dificuldades com medicação (n=4), dificuldade de tomar (n=2) e recusa-se a tomar a medicação (n=1).

Observa-se, de modo geral, que, dos 24 respondentes, 16 apresentaram dificuldades em relação ao uso de medicamentos, seja por "dúvidas" quanto à forma correta de usar, seja por franca "recusa" ou alegado "esquecimento".

Vários relatos abaixo mencionados fizeram referência à dificuldade para tomar insulina, sendo mais freqüente o "esquecimento": o paciente simplesmente esquece de tomá-la nos horários prescritos. Foram relatados alguns sentimentos suscitados pelo uso diário da insulina, tais como: "ódio", "pavor" e "mau humor". O uso diário da insulina, ao mesmo tempo que mantém o controle do diabetes, denuncia que, para ter saúde, é preciso tomar a insulina.

Dificuldade em tomar insulina, medicação tomo, às vezes passo do horário (S2).

Medicação tenho pavor na hora da insulina (...) sou uma pessoa mal-humorada (S13).

O relato abaixo mostra a recusa em receber a insulina. Outro estudo, também, mostrou que a maioria dos pacientes tem dificuldade em aceitar o uso da insulina, pois ela "é considerada como uma agressão ao corpo; algo que provoca dependência (ao organismo e de outras pessoas) e perda do controle sobre si mesmo; impõe limites às atividades (trabalho e lazer); traz preocupação com a precisão das doses; provoca discriminações; é chato e desconfortável"(12).

Tomo remédios, mas o médico sempre quer que eu passo a tomar insulina, mas eu não quero (S1).

Apenas um depoimento mostrou aceitação do diabético em utilizar a insulina.

Para mim não é difícil tomar remédio, tomo insulina duas vezes por dia (23).

Em relação aos antidiabéticos orais, alguns depoimentos mostraram que há dúvidas quanto aos horários em que se deve tomar os medicamentos, tais como:

A minha dificuldade em relação aos medicamentos é na hora do almoço. Eu tomo Daonil, quinze minutos antes do almoço, depois eu tenho de tomar após as refeições o Glifage, eu não sei se é logo após o almoço ou tem que esperar uma meia hora (S3).

O depoimento que se segue mostra a importância de receber orientações e informações. Sem dúvida, ter acesso à informação é muito importante, mas não é o único aspecto envolvido na complexa relação entre o saber e o fazer(13). É difícil traduzir o conhecimento em atitude.

Medicação: este está sendo o maior problema na atual fase. Tomo remédio para a pressão, circulação, diabetes, vitaminas. Antigamente houve muita confusão quanto a horários de cada um, mas hoje graças à orientação, estou dominando esta etapa. A necessidade de estar corretamente medicado e bem fisicamente e emocionalmente refletirá na evolução ou na boa manutenção de seu corpo e mente para você conviver com esta doença (S16).

Vários pacientes se autodescreveram como "esquecidos" ou "desligados", quando deixam de tomar a medicação prescrita. O paciente pode se cansar de viver com uma doença crônica. Pode-se dizer que o uso constante da medicação de algum modo salienta a presença da enfermidade(14). Ou seja, "o fato de tomar o remédio faz lembrar a sua condição crônica de saúde, podendo gerar ansiedade, medo e tristeza, o que os leva a evitar esta situação"(15), conforme segue.

Medicação: no início eu não esquecia de tomar os remédios na hora certa, atualmente isto vem acontecendo, não com muita freqüência, mas algumas vezes eu só percebo que não tomei na próxima refeição (S24).

O uso freqüente dos medicamentos não foi considerado difícil por alguns pacientes.

Eu não acho difícil a medicação (S12).

Por outro lado, há referências às dificuldades de tomar os medicamentos.

(...) os comprimidos ainda me fazem mal. Sou uma pessoa mal humorada (S13).

A Tabela 3 apresenta as categorias elaboradas a partir dos relatos dos diabéticos em relação a atividade física. As respostas obtidas foram enquadradas nas categorias: não faz atividade física (n=6), realiza, mas não diariamente (n=4), realiza atividade física (n=6) e oito não responderam.

Sempre há uma justificativa para a não realização de exercícios físicos: "O não caminhar (...) é justificado e logo atribuído a um porquê importante"(10). Dentre as falas dos que não realizam nenhum tipo de atividade física encontra-se os seguintes argumentos:

Não faço nada porque sinto dores nas pernas (S1).

Atividade não faço, canso muito. Andar também não (S14).

Por outro lado, a atividade física também foi vista como algo prazeroso e que pode controlar a glicemia e o peso. Quanto àqueles que realizam atividade física, encontra-se o depoimento:

Fazendo caminhada consigo manter o nível de glicemia e diminuir o peso (S18).

Alguns pacientes relataram realizar atividade física, mas não de forma sistemática. As justificativas para sua não realização foram: viagens, trabalho, estresse e mudanças no clima.

Tenho dificuldade quando eu viajo (S17).

Nem sempre é feita, pois devido ao trabalho essa fica em segundo plano, principalmente quando eu estou estressada ou meio desanimada da vida. Sei que preciso aumentar, ou melhor, fazer outras atividades físicas. Quando chove, então, fico literalmente sem caminhar (S24).

A Tabela 4 apresenta as categorias analíticas dos diabéticos, referentes aos sentimentos associados à experiência da doença. Os resultados indicam que se articulam em torno de múltiplos núcleos de sentido, cujos eixos apontam características fortemente contrastantes. Assim, sentimentos negativos tais como raiva, revolta, mágoa e frustração coexistem com sentimentos amistosos ou agradáveis tais como satisfação, bem-estar e gratidão.

Pode-se hipotetizar que os sentimentos que favorecem maior proximidade com as conseqüências na vida cotidiana do diabético podem facilitar a aquisição de habilidades e atitudes que aumentam a adesão ao tratamento. Do mesmo modo que, no sentido inverso, sentimentos carregados de afetos negativos decorrentes da convivência prolongada com as limitações impostas pela doença crônica poderiam favorecer o afastamento daquilo que possa evocar a doença ou o tratamento. Nesse caso, predominaria atitude de distanciamento em relação às próprias emoções, que são vivenciadas como hostis, intoleráveis e potencialmente disruptivas por envolverem alto montante de sofrimento psíquico.

Entende-se, assim, porque a ambivalência na forma de vivenciar a própria doença é marca característica de muitos pacientes diabéticos. Ao lado dos sentimentos de raiva e revolta, devidos às restrições e privações exigidas para que se mantenha a doença sob controle, aparecem emoções ligadas à felicidade e à assunção de responsabilidade pessoal e de certa atitude de respeito à doença. A identidade do diabético é moldada, portanto, em processo complexo que exige entrar em contato com emoções potencialmente desagregadoras, geradas pelos embates diários com a interdição (o proverbial "não pode") e pela rejeição da condição de portador de uma condição especial, que faz o doente se sentir diferente dos demais e, nessa medida, menos normal. Esse conflito consigo mesmo - suas possibilidades, suas impossibilidades - acaba gerando reações emocionais intensas: mágoa, ansiedade, preocupação permanente, eterna vigilância para conter os próprios impulsos e o desejo de transgredir os limites e resvalar na perda de controle - afinal, o temor do descontrole também é uma sensação que acompanha constantemente o diabético.

A dificuldade de aceitação dessa condição leva o portador a viver um eterno dilema. Aceitar-se como diabético exige perceber-se como alguém que aprendeu, de algum modo, a conviver com o incômodo, o desconforto e a dor gerados pela restrição e contenção de hábitos, pelo controle imposto pelo tratamento sobre um dos impulsos mais básicos do ser humano, que é a oralidade. O significado de se tratar implica reconhecer-se portador de limitação importante, determinada por doença crônica. Implica, portanto, perda de autonomia:

O meu sentimento maior é de ser diabética. Ter que tomar as medicações todos os dias, não poder comer as coisas gostosas (S1).

A intolerância à frustração impede o paciente de se ver de um outro modo e, assim, elaborar outra versão de si mesmo, fazer uma outra descrição de self que lhe permitisse definir a si mesmo como ser de possibilidades e não apenas de limitações. Como assumir essa nova identidade, se ela traz consigo aquilo que se rejeita: renúncia a prazeres, autodisciplina, responsabilidade permanente para com a própria vida e as práticas de autocuidado?

Hoje em dia, com as orientações recebidas no Centro de Educação em Diabetes, fazendo exercícios diários e tomando a medicação ministrada pela médica, sinto-me muito bem. Só assim pude perceber que quem cuida melhor de mim sou eu mesmo (S17).

Além disso, a experiência do adoecimento é extremamente peculiar no diabetes, devido ao seu processo insidioso. A consciência da perda da condição de "indivíduo saudável" se dá, muitas vezes, tardiamente, após a ocorrência de complicações oriundas do mau controle glicêmico.

Nunca me importei com a doença até que a minha mãe teve várias complicações por causa da doença renal... amputou as pernas, então eu passei a me preocupar mais... (S10).

Por isso é compreensível que o paciente alterne entre momentos de impotência, desânimo, e momentos de maior confiança no tratamento. Essas oscilações podem ser vistas como reflexo do que ocorre em seu próprio viver: sua relação com a vida ora está depreciada pela crença de que a vida foi injusta consigo, ora está revigorada pela crença de que vale a pena viver mesmo com limitações, assumindo-se, então, como responsável por seu próprio destino e suas escolhas. Por isso, a renovação da esperança na vida parece ser um requisito essencial a ser conquistada pela assistência ao diabético. Geralmente são indivíduos que passaram por sucessivos tratamentos, que se submeteram a inúmeras tentativas anteriores e não obtiveram êxito, e foram vistos por um cortejo de profissionais, dificultando a manutenção de vínculos. As possíveis experiências prévias de fracasso suscitam vivências de culpa do tipo persecutória, em vez de reparatória.

Tenho sentimento de ter descoberto a diabetes muito tarde. Quando comecei a engordar muito não procurei o médico, mesmo tendo muita fome e dores pelo corpo (S14).

Relacionar-se de maneira mais franca com a doença significa confrontar-se com sua finitude e a restrição para usufruir de aspectos preciosos do mundo, dificultando ou impedindo o diabético de manter relação prazerosa com a vida. O desapontamento e a frustração são constantes.

Sentimentos: quando é para ir a algum lugar e não posso, fico muito sentida... (S7).

A incapacidade de elaborar a ansiedade e a preocupação constante geram sentimentos de raiva, levando o paciente a assumir atitudes de franca revolta e rebeldia frente ao tratamento.

Muita mágoa porque não gosto de fazer o tratamento (S11).

Em vários depoimentos predomina atitude de negação da condição de doente.

Sou diabética há 13 anos, mesmo assim ainda não aceito. Sofro muito. Sou uma pessoa mal humorada (S13).

O diabético vive em busca de sentidos para sua condição, que lhe permitam construir esse ser diabético. Dependendo dos significados que puder construir e do posicionamento que adotar em relação à doença, mais próximo estará da aceitação genuína de sua condição, assumindo a identidade social de sujeito da doença e atitude mais responsável diante de seus controles. Adquirir respeito pela doença é um processo lento, sofrido, permeado por oscilações de humor (desânimo, tristeza, conflitos, culpa) e sentimentos de impotência, que podem gerar vivências de desamparo e desvalia. Quando predominam os sentidos-sentimentos do pólo depressivo, a percepção de que se tem o controle sobre os acontecimentos significativos do próprio viver pode estar comprometida e a auto-eficácia - isto é, o sentimento de se ter competência na realização das tarefas cotidianas - pode estar prejudicado, contribuindo para a auto-estima rebaixada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pessoa diabética, no transcorrer do tratamento, vivencia sentimentos e comportamentos que dificultam a aceitação de sua condição crônica de saúde e, conseqüentemente, a adoção de hábitos saudáveis que permitam lidar com as limitações decorrentes da enfermidade.

As categorias referentes à alimentação, medicação, atividade física e sentimentos associados à doença se estruturam ao redor de sentimentos e comportamentos, que funcionam como pressupostos norteadores do modo particular como cada paciente vai se apropriar de sua doença. Em outras palavras, o modo como o sujeito expressa seus sentimentos direciona seu comportamento relacionado à saúde, tanto na busca de hábitos saudáveis quanto não saudáveis, determinando possibilidades e dificuldades/limitações para o controle do diabetes.

Acredita-se que melhor compreensão dos sentimentos e comportamentos da pessoa diabética pode contribuir para redimensionar o modelo de atenção à saúde com essa clientela, incorporando os pressupostos do cuidado integral que incluem as dimensões do bem-estar biológico, psicológico, social e espiritual entre outros, preconizadas no modelo de atenção primária à saúde.

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  • Dificuldades dos pacientes diabéticos para o controle da doença: sentimentos e comportamentos

    Denise Siqueira PéresI; Manoel Antônio dos SantosII; Maria Lúcia ZanettiIII; Antônio Augusto FerronatoIV
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      03 Jul 2007
    • Recebido
      31 Maio 2006
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