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Confiança nas instituições democráticas e vitimização por crime: qual a relação?

Resumo

O objetivo do artigo é analisar a confiança nas instituições democráticas (executivas, representativas e de justiça) com base em experiências traumáticas (como a vitimização por crime), controlando-se pelo enraizamento da cultura democrática (preferência pela democracia). Busca-se responder se, nas democracias antigas, com cultura cívica institucionalizada, indivíduos adquirem reserva afetiva ao regime e, assim, a vitimização por crime levaria à responsabilização apenas das agências diretamente envolvidas com a temática, isentando as demais. Nas novas democracias, ao contrário, o efeito de contaminação implicaria a redução da confiança nas instituições em geral. Para tanto, dados de 2010 referentes aos Estados Unidos da América (democracia antiga) e ao Brasil (democracia recente), do Latin American Public Opinion Project (Lapop), são tomados como contraponto empírico. Os resultados demonstram que a perda de confiança nas instituições em virtude da vitimização por crime é semelhante nos dois países, com a presença do efeito de contaminação um pouco maior no Brasil que nos Estados Unidos da América, mesmo quando os resultados são controlados pela preferência pela democracia.

PALAVRAS-CHAVE:
confiança; contaminação; instituições; vitimização; legitimidade

Abstract

The purpose of this article is to analyze the confidence on democratic institutions (executive, representative and justice) derived from traumatic experiences (such as victimization by crime), controlling by the roots of democratic culture (preference for democracy). We seek to answer whether in old democracies with institutionalized civic culture individuals acquire affective reserves to the regime making the victimization of crime responsiveness only of the agencies directly involved with the theme, exempting the others. In new democracies, by contrast, the contamination effect would lead to the reduction of confidence levels on democratic institutions in general. To this end, data from 2010 for the United States of America (ancient democracy) and Brazil (recent democracy) are taken from the Latin American Public Opinion Project (Lapop) as empirical counterpoint. The results show that confidence in institutions decline due to victimization of crime in both countries, with the presence of a slightly higher contamination effect in Brazil than in the United States, even when results are controlled by preference for democracy.

KEYWORDS:
confidence; contamination; institutions; victimization; legitimacy

I. Introdução* * Agradecemos aos comentários e sugestões realizados pelos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política.

De que forma a vitimização por crime afeta as atitudes que os cidadãos têm em face das instituições da democracia (confiança nas agências executivas, representativas e de justiça) em cenários diferenciados de institucionalização do regime político (democracias antiga e recente)?

Para responder a essa pergunta, importou-se da Ciência Política a discussão sobre os elementos que viabilizam a classificação de um país como democrático, bem como as características que permitem identificar a cultura política como cívica, tendo em vista o grau de confiança dos indivíduos nas instituições do regime. Da Sociologia, trouxe-se o debate acerca das consequências comportamentais que a vitimização por crime pode ocasionar na vida dos cidadãos em termos de interação com as instituições sociais.

Para comparar os efeitos da vitimização por crime na confiança nas instituições democráticas, partiu-se da categorização de Dahl (2004)Dahl, R.A., 2004. Os sistemas políticos democráticos nos países avançados: êxitos e desafios. In A. Borón, ed. Nova hegemonia mundial: alternativas de mudança e movimentos sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. de democracias antigas e recentes. Afinal, toda a literatura da área atesta que a confiança nas instituições é mais resiliente no primeiro contexto que no segundo, em razão do aprofundamento da cultura política cívica. As democracias antigas existem continuadamente desde 1950 (ou antes), ao passo que as democracias recentes funcionam de forma ininterrupta há poucas décadas. A democracia antiga é representada, neste artigo, pelos Estados Unidos da América (EUA), que contariam com uma cultura cívica mais internalizada pelos cidadãos e, portanto, com mais afeição às instituições do regime. A democracia recente é a brasileira, em que a cultura democrática seria menos enraizada, visto que a transição do autoritarismo para esse regime se completou há apenas 30 anos, desde 1985.

O tema principal em análise é a confiança nas instituições democráticas, cuja extensão e forma dependem do contexto de crenças, valores e vivências em que estão situados os cidadãos (Moisés 2005)Moisés, J.A., 2005. A desconfiança nas instituições democráticas. Opinião Pública, 11(1), pp.33-63. DOI: 10.1590/s0104-62762005000100002
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, ou seja, dependem intrinsecamente da experiência democrática, correlacionando-se diretamente com o tempo do regime (se novo ou antigo). Conforme Norris (1999Norris, P., 1999. Critical Citizens: Global support for democratic government. New York: Oxford University Press., p.11), os “governos, parlamentos, o sistema de justiça e polícia, a burocracia estatal, os partidos políticos e os militares” são considerados instituições do regime democrático.

Nesse contexto, a vitimização por crime se insere como evento que afeta uma parcela bastante reduzida da população, em que pese o sentimento de que se trata de algo muito próximo a qualquer indivíduo1 1 Segundo Sant’Anna e Scorzafave (2014, p. 8), com base nos dados da PNAD de 2009, observa-se que, no Brasil, “pouco mais de 10% da população foi vítima de algum tipo de crime no período entre 27 de setembro de 2008 e 26 de setembro de 2009”. No mesmo período, nos Estados Unidos, menos de 10% de toda a população reportou algo desse tipo. . De acordo com Carneiro (2007Carneiro, L.P., 2007. Pesquisas de vitimização e gestão da segurança pública.São Paulo em Perspectiva, 21(1), pp.60-75., p.67), isso ocorre em razão do efeito telescópico, que transforma eventos graves ocorridos muito tempo atrás em algo recente, da mesma forma que transforma eventos que vitimaram pessoas próximas em algo que vitimou o próprio indivíduo. A experiência com o crime teria essas propriedades por se tratar de algo traumático (visto que excepcional), que implica em sentimentos relacionados à vulnerabilidade pessoal, podendo, em última instância, levar à corrosão da legitimidade do Estado, bem como à promoção de atitudes e preferências não condizentes com a consolidação da democracia em regimes políticos frágeis (Ceobanu, Wood & Ribeiro 2010Ceobanu, A.M.; Wood, C.H. & Ribeiro, L., 2010. Crime Victimization and Public Support for Democracy: Evidence from Latin America.International Journal of Public Opinion Research, 23(1), pp.56-78. DOI: 10.1093/ijpor/edq040
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).

A hipótese que se pretende testar é a de que, em democracias antigas, a confiança nas instituições é cristalizada em virtude de uma afeição arraigada ao longo do tempo ao papel desempenhado por cada agência do regime, que se traduz na consolidação da própria democracia. Nesse cenário, a vitimização por crime afetaria apenas a credibilidade nas instituições policiais e de justiça, que são diretamente responsáveis pelo controle do delito. Nas democracias recentes, como a confiança ainda é superficial, uma vez que a afeição ao papel das instituições é frágil e vulnerável, a vitimização por crime produziria o efeito de contaminação, levando o indivíduo a desconfiar de todas as agências do regime, não apenas da polícia e da justiça.

O termo “contaminação” significa a influência que a avaliação ou a experiência positiva ou negativa com alguma instituição ou mesmo ator político causa na percepção e na avaliação dos demais atores, instituições e até do regime do qual se faz parte, além da afeição a eles (Fuks & Fialho 2009Fuks, M. & Fialho, F.M., 2009. Mudança institucional e atitudes políticas: a imagem pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (1993-2006). Opinião Pública, 15(1), pp.82-106. DOI: 10.1590/s0104-62762009000100004
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). Essa categoria foi utilizada por Vox Populi (1993Vox Populi, 1993. Desinformação alimenta descrença. Revista do Legislativo, 5, pp.10-13., p.10) para se referir às generalizações que os cidadãos fazem “para outros Poderes, o que ouvem falar de ruim de um deles”. Esse efeito é associado a uma postura “dura” diante das instituições, acompanhada de um pífio conhecimento sobre suas funções. Na mesma direção, Fuks e Fialho (2009Fuks, M. & Fialho, F.M., 2009. Mudança institucional e atitudes políticas: a imagem pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (1993-2006). Opinião Pública, 15(1), pp.82-106. DOI: 10.1590/s0104-62762009000100004
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, p.93) verificaram que a falta de conhecimento faz com que escândalos no Congresso afetem a confiança nas assembleias legislativas estaduais.

No presente estudo, parte-se do princípio de que a contaminação decorrente da vitimização por crime ocorreria apenas nas novas democracias. Nas democracias antigas, em virtude de uma cristalização maior da cultura cívica, os cidadãos teriam mais apego aos princípios democráticos e às instituições que buscam atendê-los. Por isso, diante de fenômenos excepcionais da vida cotidiana, como a vitimização por crime, não responsabilizariam todo o aparato estatal, mas somente as instituições diretamente relacionadas ao problema. Nas democracias recentes, em que o indivíduo ainda não tem muita confiança nas instituições do regime, a emergência de um evento excepcional (como o crime) tem efeito de contaminação, levando a uma descrença generalizada no desempenho das instituições.

Para o teste dessa hipótese, Brasil e Estados Unidos foram escolhidos como representantes, respectivamente, de uma democracia recente e uma antiga. Como contraponto empírico foi utilizada a base de dados resultante do Latin American Public Opinion Project(Lapop) referente a 2010LAPOP (Latin American Public Opinion Project). 2010. Nashville: Vanderbilt University.. A partir do uso dessa fonte de informação, torna-se possível verificar se diferentes contextos (democracias antigas e recentes) fazem com que uma mesma experiência (ser vítima de crime) tenha impactos diferenciados sobre um mesmo fenômeno político (confiança nas instituições do regime) quando controlado pela afeição dos indivíduos ao regime político (preferência pela democracia).

Com o objetivo de facilitar a compreensão do leitor quanto aos temas tratados, além desta introdução, este artigo está dividido em três seções. A primeira apresenta uma revisão da literatura sobre confiança nas instituições democráticas nos diferentes contextos; a segunda discorre sobre a metodologia e a análise de dados; e, por fim, são sumarizadas as principais conclusões.

II. Legitimidade democrática: confiança institucional em democracias antigas e recentes

Nos últimos anos, a Sociologia Política assiste à proliferação de estudos que têm como dimensão analítica a confiança, em que pesem os determinantes desse fenômeno serem pouco explorados. O foco dessas análises é a compreensão das atitudes dos indivíduos na (des)legitimação do sistema político e das instituições. A explicação dos determinantes da confiança interinstitucional, ainda que presente e compreendida como dimensão do apoio político, encontra-se relacionada a aspectos culturais, que se tornam relevantes para a compreensão de como elementos estruturais contribuem para a ação individual.

Na seara de estudos culturais sobre o comportamento político, duas obras emergem com especial importância: Easton (1965)Easton, D., 1965. A Framework for Political Analysis. New Jersey: Prentice-Hall. e Almond e Verba (1963)Almond, G. & Verba, S., 1963. The Civic Culture. Princeton: Princeton University Press.. Enquanto Easton categoriza o apoio político em difuso e específico, Almond e Verba constroem uma mescla de dimensões, que resultam em três diferentes orientações individuais em termos de atitude diante dos sistemas políticos: cognitiva, afetiva e avaliativa.

Easton (1975Easton, D., 1975. A Re-Assessment of the Concept of Political Support. British Journal of Political Science, 5(4), pp. 435-457. DOI: 10.1017/s0007123400008309
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, p.436) dá importância à socialização segundo os valores do regime, dimensão que determinaria a existência de laços fortes de afeição, impactando a estabilidade política. O autor entende que o apoio político se embasa em avaliações dos outputs, o que pode ser associado a uma avaliação do desempenho e da própria afeição ao regime, relacionada a valores e crenças. Para compreender essa intrincada relação, Easton cria uma tipologia de apoio: de um lado tem-se o “apoio difuso”, decorrente dos “laços fortes de lealdade e afeição”; de outro, o “apoio específico”, que emana da percepção que o indivíduo faz do desempenho das autoridades políticas.

O apoio difuso é associado a sentimentos de legitimidade, submissão, aceitação da noção de existência de um bem-comum, de um sentido de comunidade política fortemente presente em todos os indivíduos, incluindo os jovens. Esse fenômeno é frequentemente descrito como patriotismo e lealdade, sendo sua principal propriedade a capacidade de resistência a crises e a frustrações de desejos individuais, mesmo que oriundas de decepções com o padrão de desempenho de agências específicas. Essa categorização permite explorar a aparente contradição entre apoio ao regime e rechaço aos governantes, e avança muito do ponto de vista da discussão dos determinantes da estabilidade do regime.

Contudo, uma “visão culturalista da democracia liberal” contribui mais para o problema clássico da Ciência Política ao sustentar que “a confiança política é importante para a legitimidade, governabilidade e consolidação do regime democrático” (Power & Jamison 2005Power, T. & Jamison, G.D., 2005. Desconfiança política na América Latina.Opinião Pública, 11(1), pp.64-93. Disponível em: 10.1590/s0104-62762005000100003
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, p.65). Isso porque ela se ocupa de compreender como a existência de valores congruentes com o regime político pode explicar o sucesso das democracias, perspectiva segundo a qual a teoria desenvolvida por Almond e Verba (1963)Almond, G. & Verba, S., 1963. The Civic Culture. Princeton: Princeton University Press. oferece subsídios importantes para compreender os próprios eixos que determinam, em última instância, os apoios difuso e específico.

Para Almond e Verba (idem), existem três tipos de cultura política fundamentais: súdita, paroquial e participativa2 2 A cultura paroquial é uma estrutura de valores tradicionais, descentralizada, e os indivíduos estão reduzidos à esfera particular. A súdita possui estrutura autoritária e centralizada. É meio-termo entre a completa ausência do indivíduo em relação ao sistema, na cultura paroquial, e o sentimento de completa inclusão pública, da cultura participativa (Castro & Capistrano 2008, p.77). . O tipo de cultura política condizente com o regime democrático (cultura cívica) seria uma mistura entre esses três tipos básicos, permitindo, ao mesmo tempo, apego aos princípios e às leis do regime, bem como às dinâmicas de envolvimento e participação política. Pesa a chamada orientação afetiva, que ampara o posicionamento em face do sistema político, pois essa é inerente aos sentimentos individuais direcionados ao regime e a seus componentes. A própria existência de uma cultura cívica dependeria da valorização que os indivíduos dão às instituições democráticas. A orientação afetiva às instituições significaria uma internalização normativa ante as instituições políticas, percebidas como importantes para o funcionamento da democracia (Paiva, Braga & Pimentel Jr. 2007Paiva, D.; Braga, M.S.S. & Pimentel Jr., J.T.P., 2007. Eleitorado e partidos políticos no Brasil. Opinião Pública, 13(2), pp. 388-408. DOI: 10.1590/s0104-62762007000200007
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, p.398).

No desdobrar dos estudos sobre cultura política, o tema da confiança ganharia visibilidade, anos mais tarde, com a análise de Putnam (1993)Putnam, R.D., 1993. Making Democracy Work. Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University Press., uma vez que o autor concede papel de destaque à relação virtuosa entre cultura cívica e capital social. Seus resultados indicaram que a existência de uma cultura cívica institucionalizada leva à disseminação de um sentimento de confiança mútua, viabilizando a emergência de relações de cooperação (em detrimento de competição), associativismo (em vez de individualismo e egoísmo) e, consequentemente, coesão entre os indivíduos residentes em determinada comunidade. Nesse cenário, pode-se interpretar que a confiança nas instituições e até o desempenho institucional seriam causados pela confiança interpessoal.

Apesar de Putnam (idem) tratar a confiança social como um aspecto que favorece o desempenho das instituições políticas, essa visão não é unânime. Para Inglehart e Welzel (2005)Inglehart, R. & Welzel, C., 2005. Modernização, mudança cultural e democracia: a sequência do desenvolvimento humano. São Paulo: Francis., por exemplo, o surgimento e o desenvolvimento de valores cívicos são elementos fundamentais para a transformação de outros regimes em democráticos, em sentido formal e substantivo. Não seriam os laços fortes que favoreceriam o surgimento e a efetivação da democracia, mas sim a existência da confiança social em sentido mais difuso e próximo ao referenciado por Easton (1965)Easton, D., 1965. A Framework for Political Analysis. New Jersey: Prentice-Hall..

A despeito da controvérsia entre Putnam e Inglehart e Welzel, há algum consenso na literatura especializada sobre os significados da categoria confiança, que pode ser traduzida como expectativa ou crença positiva em relação a um indivíduo ou instituição. No caso de instituições, pressupõe-se que confiar é esperar que essas agências cumpram as funções para as quais foram designadas, tendo-se em vista o bem-estar coletivo, sem favorecer certos grupos ou pessoas a despeito do prejuízo de outros (Koury 2002Koury, M.G.P., 2002. Confiança e sociabilidade. Uma análise aproximativa da relação entre medo e pertença. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 1(2), pp.171-206.; Offe 1999Offe, C., 1999. How Can We Trust Our Fellow Citizens? In M.E. Warren, ed. Democracy and Trust. Cambridge, UK: Cambridge University Press.).

Segundo essa definição, a confiança possibilita a legitimidade e a estabilidade do regime político, considerando sua qualidade de bem público que é progressivamente acumulado e cuja utilização cria círculos virtuosos de eficiência institucional (Putnam 1993Putnam, R.D., 1993. Making Democracy Work. Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University Press.). Em última instância, seria a confiança que conferiria segurança à democracia (Moisés 2010Moisés, J.A., 2010. A confiança e seus efeitos sobre as instituições democráticas. In J.A. Moisés, ed. Democracia e confiança: por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas? São Paulo: Edusp.), sendo um mecanismo de geração das virtudes cívicas e republicanas (Santos & Rocha 2011Santos, M.L. & Rocha, E.C., 2011. Capital social e democracia: a confiança realmente importa? Revista de Sociologia e Política, 19(38), pp.43-64. DOI: 10.1590/s0104-44782011000100004
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).

Do ponto de vista da aplicabilidade dessa moldura teórica a exemplos concretos, é possível agrupar os países em duas categorias principais. De um lado estariam as democracias antigas, fundadas ainda no século XIX e cujo padrão de socialização dos indivíduos em paradigmas de confiança interpessoal e institucional perpassaria uma história longa o suficiente para se consolidar em confiança nas instituições do regime, levando à cristalização de uma cultura democrática com alto grau de afeição às instituições políticas. De outro lado estariam as democracias recentes, que emergem nas últimas décadas do século XX como alternativa a regimes autoritários, com o desafio de reverter o esgarçamento das relações de confiança interpessoal e institucional para viabilizar a emergência dos valores cívicos de Almond e Verba (1963)Almond, G. & Verba, S., 1963. The Civic Culture. Princeton: Princeton University Press..

O desafio das democracias recentes está em como desenvolver uma cultura de confiança em um cenário de instituições incipientes. Nessas localidades, a despeito da existência de regras formais que garantem direitos civis, políticos e sociais, existem inúmeras falhas no processo de transformação da letra da lei em realidade. Apesar da ocorrência de eleições livres, com um padrão regular e claro, bem como a existência de Congresso e Poder Judiciário, a presença de atores e agências que tendem a agir de acordo com o padrão autoritário faz com que, por vezes, as normas formais deem lugar a práticas que reproduzem valores pouco democráticos (O’Donnel 1996O’Donnell, G.,1996. Uma outra institucionalização: América Latina e alhures. Lua Nova,37, pp.5-31. DOI: 10.1590/S0102-64451996000100002
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; Levitsky & Helmke 2006Levitsky, S. &Helmke, G., 2006.Informal Institutions and Democracy: Lessons from Latin America. Baltimore: Johns Hopkins University Press.). Com isso, a confiança que seria a base para a emergência de uma cultura cívica virtuosa, dando outro conteúdo ao regime, é minada desde o momento de anúncio do novo regime. Por isso, “a falta de confiança nas instituições de representação democrática tornou-se mais evidente e conhecida nas jovens democracias da terceira onda” (Torcal & Brusatin 2010Torcal, M. & Brusatin, L., 2010. Confiança institucional nas novas democracias europeias: outra dimensão do apoio político? In J.A. Moisés, ed. Democracia e confiança: por que os cidadãos desconfiam das instituições políticas? São Paulo: Livraria Cultura., p.219). Ou seja, não é que o problema não exista nas democracias antigas, talvez seja menos visível.

Desde 1970, são inúmeros os estudos que descrevem a desconfiança como um fantasma que rondaria as culturas cívicas cristalizadas, minando suas sólidas bases. Esse fenômeno traz à baila uma série de discussões sobre os prováveis riscos que essa redução de legitimidade poderia gerar para a própria estabilidade das democracias (Power & Jamison 2005Power, T. & Jamison, G.D., 2005. Desconfiança política na América Latina.Opinião Pública, 11(1), pp.64-93. Disponível em: 10.1590/s0104-62762005000100003
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). As análises mais atuais procuram questionar o caráter ambíguo da confiança interpessoal e institucional (Norris 1999Norris, P., 1999. Critical Citizens: Global support for democratic government. New York: Oxford University Press.; Warren 1999Warren, M.E., 1999. Introduction. In J.A. Moisés, ed. Democracy and Trust. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Moisés 2010Moisés, J.A., 2010. A confiança e seus efeitos sobre as instituições democráticas. In J.A. Moisés, ed. Democracia e confiança: por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas? São Paulo: Edusp.) na legitimidade do regime e na cristalização da cultura cívica. Moisés (2010)Moisés, J.A., 2010. A confiança e seus efeitos sobre as instituições democráticas. In J.A. Moisés, ed. Democracia e confiança: por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas? São Paulo: Edusp. e Warren (1999)Warren, M.E., 1999. Introduction. In J.A. Moisés, ed. Democracy and Trust. Cambridge, UK: Cambridge University Press., por exemplo, afirmam ser saudável a existência da desconfiança em cenários de cultura cívica enraizada, pois a ausência de credibilidade imediata permite aos cidadãos a fiscalização de seus representantes. No entanto, esses mesmos autores consideram necessário um mínimo de confiança para que a governança possa existir.

Logo, para a literatura contemporânea, a questão deixou de ser a existência de uma confiança universal e inquestionável (como em Putnam) e passou a ser o entendimento de qual seria o balanço ideal entre confiança e desconfiança (como em Moisés e em Warren) para a garantia da estabilidade do regime.

Norris (1999)Norris, P., 1999. Critical Citizens: Global support for democratic government. New York: Oxford University Press. procura responder a esse dilema destacando que o aumento das exigências dos cidadãos diante do desempenho dos regimes políticos seria expresso pela baixa confiança nas instituições. Desconfiança não significaria baixo apoio ao regime político. Ao contrário. Expressaria afeto ou forte apego aos princípios do regime e uma percepção de que as instituições sempre podem melhorar, sempre podem ser mais democráticas e, por isso, não se pode confiar plenamente nelas, pois isso significaria estar satisfeito com seu desempenho. A queda da confiança nas instituições seria decorrente do surgimento do “cidadão crítico”, que nada mais é do que um indivíduo democrata que acredita que o desempenho das instituições do regime sempre pode melhorar por meio de sua própria pressão.

Mais recentemente, Norris (2011)Norris, P., 2011. Democratic Deficit: Critical citizens revisited. Cambridge, UK: Cambridge University Press. complementa a noção de cidadão crítico com a de “déficit democrático”. Atrela a redução da confiança nas instituições democráticas, incluindo as democracias antigas, ao aumento das expectativas dos cidadãos, o que transforma em insatisfeito o cidadão crítico democrata. O apoio às instituições seria resultado da diferença entre as expectativas dos cidadãos e a proporção de expectativas contempladas pelas instituições. Dessa forma, se as instituições são ineficientes mas as expectativas são baixas, provavelmente a confiança nas instituições se mantém alta, ao passo que, se as expectativas são muito elevadas, mesmo com boa performance das instituições, o resultado será a baixa confiança.

Segundo a reformulação teórica de Norris (1999)Norris, P., 1999. Critical Citizens: Global support for democratic government. New York: Oxford University Press., as democracias antigas tenderiam a apresentar níveis mais baixos de confiança interpessoal e nas instituições por contarem com um quantitativo maior de cidadãos críticos, que têm mais expectativas do que os cidadãos que vivem nas democracias recentes. A redução na confiança institucional observada nas democracias antigas nas últimas décadas não seria atribuída a uma queda de desempenho ou de legitimidade da democracia. A mudança estaria no grau de exigência ou na capacidade de demanda dos cidadãos e em sua capacidade de criticar o sistema político. Todavia, uma dimensão que permanece desconhecida é a relacionada ao impacto de fenômenos traumáticos como o crime, que a princípio erodem a confiança (interpessoal e institucional) em ambos os cenários – democracia antiga ou recente.

A Sociologia tem sido bastante prolífera em estudos que visam descrever os efeitos da vitimização por crime sobre o sistema de crenças, valores e atitudes individuais. A experiência com o delito faz com que a vítima se sinta bastante vulnerável e, quando o criminoso não é descoberto, processado e punido, pode levar ao sentimento de que o inimigo espreita na próxima esquina. Para evitar nova vitimização, o cidadão pode construir um grande arsenal de vigilância (como ocorre no Reino Unido e nos Estados Unidos) até recorrer a grupos ilegais que vendem serviços de segurança (exemplo do que ocorre na Colômbia e no Brasil).

Os estudos empíricos sobre as consequências da vitimização por crime na cultura política destacam que esse evento implica uma série de sentimentos, atitudes e preferências que não são condizentes com a consolidação da democracia em regimes políticos frágeis (Ceobanu, Wood & Ribeiro 2010Ceobanu, A.M.; Wood, C.H. & Ribeiro, L., 2010. Crime Victimization and Public Support for Democracy: Evidence from Latin America.International Journal of Public Opinion Research, 23(1), pp.56-78. DOI: 10.1093/ijpor/edq040
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). O medo de ser novamente vítima de uma agressão (física ou patrimonial) tornaria os indivíduos mais propensos ao endosso de ações de mano dura, como a possibilidade de a polícia desrespeitar a lei para garantir a captura ou a punição dos criminosos (Cruz 2008Cruz, J.M., 2008. Violence and Insecurity as Challenges for Democratic Political culture in Latin America. Digit. Vanderbilt University.). A percepção de que os tribunais são ineficientes leva à “justiça vigilante” ou à justiça com as próprias mãos, algo que no Brasil recebe o nome de linchamento (Godoy 2006Godoy, A.S., 2006.Popular Injustice: Violence, Community, and Law in Latin America. Stanford: Stanford University Press.). Além disso, a vitimização diminui a confiança nos outros, promove comportamentos intolerantes, como restrição dos direitos civis de determinadas populações e apoio a leis repressivas, erodindo o capital social (Bailey & Flores-Macías 2007Bailey, J. & Flores-Macías, G., 2007. Violent Crime and Democracy: Mexico in Comparative Perspective. In Annual Midwest Political Science Association Meeting. Chicago.). Por fim, a experiência de ser vítima de um crime pode se transformar em demandas por soluções de impacto imediato, como um golpe militar que prometa “acabar” com a criminalidade, ainda que se comprometa o ideal do Estado Democrático de Direito (Pérez 2003Pérez, O.J., 2003. Democratic Legitimacy and Public Insecurity: Crime and Democracy in El Salvador and Guatemala. Political Science Quarterly, 118(4), pp.627-644. DOI: 10.1002/j.1538-165x.2003.tb00408.x
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).

Mesmo que o Estado seja responsável pela segurança pública, quando se trata do controle do crime, a polícia é a principal agência encarregada dessa tarefa. Apesar de realizarem uma série de atividades, quando questionados sobre qual seria sua função, os próprios policiais a relacionam à prevenção e à repressão da criminalidade e da violência (Goldstein 2003Goldstein, H., 2003. Policiando uma sociedade livre. São Paulo: Edusp.). Nesse cenário, ser vítima de um crime significa visualizar, diretamente, a ineficiência da polícia, o que se traduz em graus mais baixos de confiança na instituição (Tyler & Wakslak 2004Tyler, T.R. & Wakslak, C.J., 2004. Profiling and Police Legitimacy: Procedural Justice, Attributions of Motive, and Acceptance of Police Authority. Criminology, 42(2), pp.253-281. DOI: 10.1111/j.1745-9125.2004.tb00520.x
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; Roberts 2007Roberts, J.V., 2007. Public Confidence in Criminal Justice in Canada: A Comparative and Contextual Analysis. Canadian Journal of Criminology and Criminal Justice, 49(2), pp.155-184. DOI: 10.3138/rn84-2371-2482-mr06
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; Silva & Beato 2013Silva, G.F. & Beato, C., 2013. Confiança na polícia em Minas Gerais: o efeito da percepção de eficiência e do contato individual. Opinião Pública, (19)1, pp.118-153. DOI: 10.1590/s0104-62762013000100006
https://doi.org/10.1590/s0104-6276201300...
).

Nos dois países, as funções do sistema de justiça criminal são organizadas em âmbito estadual ou federal (prisões e tribunais), e as polícias são relegadas ao nível estadual, distrital ou municipal, levando a uma descentralização que, muitas vezes, significa fragmentação. Contudo, a polícia não tem a mesma institucionalidade nas duas localidades.

Nos Estados Unidos, atualmente existem 51 sistemas prisionais (entre o federal e os estaduais) e 20.000 departamentos de polícia, todos com ciclo completo, isto é, uma mesma organização trabalha no caso desde sua descoberta até o apontamento de um suspeito (Zimring 2012Zimring, F.E., 2012. The City that Became Safe. New York: Oxford University Press., p.102). As funções da polícia incluem investigação, aplicação da lei a uma variedade de situações criminais, manutenção da ordem e atendimento de emergências solicitadas pelo público (idem, p.103).

No Brasil, o arranjo institucional de segurança pública encontra-se descrito no art. 144 da Constituição Federal de 1988, que estabelece a competência das polícias para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio3 3 Constituição Federal, art. 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares”. . Cada uma dessas polícias tem atribuições distintas, dependendo de sua institucionalidade (se federal ou estadual) e da natureza do problema a ser administrado. Em âmbito estadual, uma polícia realiza a fase de cena do crime, e a outra reúne elementos para apontamento do suspeito, que será denunciado (ou não) pelo Ministério Público para início da fase judicial. Atualmente são três polícias federais de ciclo completo, 27 polícias militares com atribuição de policiamento ostensivo e 27 polícias civis com prerrogativas de polícia judiciária. Em suma, ao contrário dos Estados Unidos, as polícias brasileiras têm competências ora complementares, ora concorrentes.

Em virtude da forma de organização do sistema de segurança pública e de justiça criminal nos Estados Unidos, todos os níveis de governo estão diretamente envolvidos na administração da criminalidade. No Brasil, os governos estaduais e federais têm mais proeminência, uma vez que o texto constitucional lhes estabelece poder de polícia e seus respectivos desdobramentos. Aos municípios é reservada a opção de decidir participar (ou não) desse arranjo por meio da constituição de guardas municipais para a proteção do patrimônio ou de políticas de prevenção ao crime (Soares 2006Soares, L.E., 2006. Segurança pública: presente e futuro.Estudos Avançados, 20(56), pp.91-106. DOI: 10.1590/s0103-40142006000100008
https://doi.org/10.1590/s0103-4014200600...
)4 4 Constituição Federal, art. 144, § 8º: “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. .

Nessa dimensão, um ponto a ser ponderado diz respeito ao efeito contaminante do crime na legitimidade percebida nas diversas instituições, além da polícia e da justiça. É bem verdade que legislativos, partidos e governos têm responsabilidade sobre a administração da criminalidade em virtude da formulação de leis, plataformas de ações de controle social e também políticas de prevenção. O ideal seria que a população punisse todas essas agências quando da vitimização por crime. Entretanto, estudos do campo da criminologia e da segurança pública têm demonstrado que a função específica da polícia, percebida por ela mesma e pela mídia, pela literatura e pela opinião pública, é exercer o controle do crime (Goldstein 2003Goldstein, H., 2003. Policiando uma sociedade livre. São Paulo: Edusp.; Muniz 1999Muniz, J., 1999. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: IUPERJ.). Nas demais instituições, esse dever seria indireto. Se a vitimização por crime impacta a confiança em instituições outras que não as polícias e o Judiciário, isso ocorre em decorrência do efeito de contaminação.

Em última instância a possibilidade de a vitimização por crime potencializar a preferência por alternativas políticas autoritárias estaria vinculada à existência de um reservatório de crenças autoritárias. Para Moisés (1995Moisés, J.A., 1995. Os brasileiros e a democracia: bases sociopolíticas da legitimidade democrática. São Paulo: Ática., p.269), a reserva de legitimidade política existente no Brasil, na primeira metade da década de 1990, não seria suficiente para a sustentação da democracia e poderia levar os atores a aceitarem alternativas não democráticas para a solução de problemas emergenciais. Depreende-se de Moisés (idem) que, quanto menor a reserva de legitimidade, maior precisa ser a efetividade das instituições para que a estabilidade de todo o sistema seja garantida.

Nas democracias antigas, em virtude da socialização e da propagação dos valores cívicos, há mais apoio difuso ou uma orientação afetiva à democracia, impedindo a contaminação da desconfiança nas instituições democráticas em decorrência da vitimização por crime. As democracias recentes, por serem mais dependentes do apoio específico e da avaliação instrumental que os cidadãos fazem do desempenho institucional, seriam mais vulneráveis aos efeitos de contaminação decorrentes de um evento traumático como a experimentação do crime. Em última instância, acredita-se que, nas democracias recentes, a confiança nas instituições democráticas em geral é menos resiliente e, por isso, mais suscetível ao efeito de contaminação como resultado da vitimização por crime.

Contudo, como nas democracias antigas a confiança tem passado por um momento de crítica, a vitimização por crime aumentaria a desconfiança sobre a capacidade de as instituições apresentarem padrões de operação condizentes com o que se espera do regime democrático. Nas democracias recentes, a confiança encontra-se em processo de construção, sendo que sua disseminação está fortemente ancorada na capacidade de as agências demonstrarem aos indivíduos que o novo regime pode trazer ganhos em relação ao antigo. A emergência da vitimização por crime pode inviabilizar esse processo por demonstrar a incapacidade das instituições para garantir, de partida, os direitos da cidadania, fazendo até com que o sujeito possa preferir o antigo regime. Novamente, a vitimização por crime tem efeitos mais dramáticos nas democracias recentes que nas antigas.

III. Metodologia e análise de dados

Conforme destacado anteriormente, a proposta deste trabalho é verificar em que medida a confiança nas instituições democráticas (executivas, representativas e de justiça) apresenta variações de acordo com a experiência de ter sido (ou não) vítima de crime nos Estados Unidos e no Brasil, controlando-se pela preferência que os indivíduos expressam pela democracia. Para tanto, os bancos de dados escolhidos foram os produzidos pelo Latin American Public Opinion Project (Lapop), da Vanderbilt University, referentes ao survey sobre opinião política aplicado em 18 países das Américas em 2010.

O questionário dessa pesquisa atende aos objetivos propostos por apresentar quem são os entrevistados do ponto de vista econômico (grau de escolaridade e renda) e social (sexo, idade e estado civil), se foram vítimas de um crime ao longo do ano anterior, bem como o grau de apoio que eles concedem a cada uma das instituições democráticas, além da preferência pela democracia.

Do ponto de vista analítico, a primeira medida operacional foi a construção de um banco de dados que reunisse, no mesmo sistema, as informações dos Estados Unidos e do Brasil, uma vez que, para a construção dos índices de confiança, os valores desses dois países devem ser considerados em conjunto, e não de forma separada. Caso contrário, corre-se o risco de assumir que as perguntas mensuram fenômenos semelhantes em ambos os contextos quando, na realidade, dizem respeito a dinâmicas sociais distintas.

Em seguida, as variáveis que mensuram o grau de confiança nas instituições democráticas foram escrutinadas para a construção de índices de confiança a serem explicados pelas variáveis independentes e de controle. Apesar de as variáveis originais se apresentarem como escala ordinal, optou-se pela análise fatorial e pela regressão linear por dois motivos: 1) por ser o padrão da área a construção de índices múltiplos com base na análise fatorial, considerando que Booth e Seligson (2009)Booth, J.A. & Seligson, M.A., 2009. The Legitimacy Puzzle in Latin America: Democracy and Political Support in Eight Nations. Cambridge, UK: Cambridge University Press. e Norris (2011)Norris, P., 2011. Democratic Deficit: Critical citizens revisited. Cambridge, UK: Cambridge University Press. operacionalizam seus estudos de modo semelhante; 2) as variáveis dependentes apresentavam distribuição normal, requisito para a aplicação da regressão linear.

Para a transformação das variáveis dependentes, optou-se pela análise fatorial com vistas a verificar a possibilidade de elas serem condensadas em um mesmo valor. A operacionalização da análise fatorial teve início com a seleção dos fatores a serem considerados para a formação de três matrizes distintas e uma quarta que seria resultado das anteriores. As variáveis incluídas na primeira matriz foram as relativas aos graus de confiança nas instituições executivas, representadas pelos governos estaduais e municipais; na segunda matriz, foram incluídos os graus de confiança no Congresso Nacional e nos partidos políticos; na terceira, os graus de confiança na justiça e na polícia mais próxima do cidadão do ponto de vista de sua ostensividade, sendo, por isso, municipal nos Estados Unidos e militar no Brasil.

O método empregado foi o de análise dos componentes principais, aconselhável quando todas as variáveis se encontram mensuradas da mesma forma (Rummel 1988Rummel, R.J., 1988. Applied Factor Analysis. Hawaii: University of Hawaii., p.160), o que é o caso em questão, visto que o grau de confiança em cada uma das instituições varia entre nada (valor 1) e muito (valor 7). Para aceitar ou rejeitar a redução de fatores, optou-se pelo teste de Kaiser-Meyer-Olkin de adequação, que mensura a quantidade da variação em torno da média compartilhada pelas variáveis inseridas no teste (devendo ser, pelo menos, 0,5 para permitir a continuidade do processo); e pela significância do teste de esfericidade de Bartlett, que verifica se as variáveis inseridas podem ser reduzidas a vetores (idem, p.164).

A análise fatorial foi realizada, separadamente, para cada uma das dimensões (executiva, representativa e de justiça) a fim de se estimar as cargas comunais entre as variáveis, que são coeficientes atribuídos com variação entre 0 e 1 (Vargas & Oliveira Jr. 2010Vargas, J.D. & Oliveira JR., A. 2010. As guardas municipais no Brasil: um modelo de análise. Dilemas, 3(7), pp.85-108.). Os fatores com valores acima de 0,7 são considerados altos, indicando que o fator pertence àquela variável particular. Por fim, a consistência interna dos índices foi analisada pelo Alfa de Cronbach, cujos valores variam entre 0 e 1, sendo que a confiabilidade de que duas ou mais variáveis, de fato, mensuram o mesmo fenômeno é tanto maior quanto mais perto de 1 o valor retornado estiver (Tavakol & Dennick 2011Tavakol, M. & Dennick, R., 2011. Making Sense of Cronbach's Alpha. International Journal of Medical Education, 2, pp.53-55. DOI: 10.5116/ijme.4dfb.8dfd
https://doi.org/10.5116/ijme.4dfb.8dfd...
)5 5 De acordo com Tavakol e Dennick (2011), quando o valor de Alfa de Cronbach estiver entre 0,5 e 0,7, a capacidade das duas variáveis em questão mensurarem exatamente o mesmo fenômeno é questionável. Contudo, para fins desta análise, optou-se por criar um fator que, apesar de questionável, seria mais robusto do ponto de vista da análise do que as variáveis consideradas individualmente. . Os resultados de todas essas etapas estão dispostos no Quadro 1.

Quadro 1
Etapas observadas para a construção das variáveis dependentes – Lapop (2010)LAPOP (Latin American Public Opinion Project). 2010. Nashville: Vanderbilt University.

Com base na análise fatorial, foram construídas quatro variáveis: 1) índice de confiança nas instituições executivas, resultado do somatório do grau de confiança nos governos municipais e federal; 2) índice de confiança nas instituições representativas, resultado do somatório do grau de confiança no Congresso Nacional e nos partidos políticos; 3) índice de confiança nas instituições de justiça, resultado do somatório do grau de confiança na polícia e no judiciário; e 4) índice de confiança nas instituições democráticas, resultado do somatório do índice de confiança nas instituições executivas, representativas e de justiça.

Com a criação dessas quatro novas variáveis, o estudo passou a contar com dez variáveis dependentes, visto o objetivo de explicar o efeito da vitimização por crime nas instituições democráticas em geral, em feixes de instituições democráticas e em cada uma das agências consideradas. Para os modelos de regressão, foram utilizados tanto o grau de confiança em cada uma das instituições (variável original) quanto o grau de confiança em cada conjunto de instituições (executivas, representativas e de justiça) e ainda o grau de confiança nas instituições democráticas como um todo. Em última instância, trata-se de uma análise escalonada do impacto da vitimização por crime, em cada uma das dimensões do Diagrama 1, controlando-se pelas características dos indivíduos e pela preferência pela democracia.

Diagrama 1
Dimensões consideradas nas variáveis dependentes (aquelas cujo grau de confiança se deseja explicar), de acordo com a escala de mensuração

A variável independente deriva da pergunta: “Você já foi vítima de algum tipo de crime nos últimos 12 meses? Ou seja, você já foi vítima de roubo, furto, fraude, chantagem, extorsão, violência, ameaça ou qualquer outro tipo de crime nos últimos 12 meses?”. As respostas eram do tipo sim e não, dependendo da experiência do entrevistado, permitindo identificar aqueles que vivenciaram o evento traumático nos 12 meses anteriores ao survey.

Como variáveis de controle, em um primeiro plano, tem-se a preferência pela democracia, operacionalizada em uma classificação binária. Na primeira dimensão, foram agrupados os indivíduos que afirmaram que “a democracia é sempre preferível a qualquer outra forma de governo”; na segunda, os que responderam que “para pessoas como eu, tanto faz um regime democrático ou um não democrático” ou “em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um democrático”. Esse controle foi inserido dado o entendimento de que, em democracias antigas, a cultura política cívica já se encontra consolidada e, por isso, os indivíduos vão sempre preferir a democracia como the only game in town. Em contextos de democracias recentes, especialmente quando grande parte dos indivíduos experimentou a passagem de um regime autoritário para um democrático, existe a possibilidade de preferência pelo autoritarismo em detrimento da democracia pela própria percepção que cada sujeito tem das qualidades do regime. Em especial, tem-se a ideia de que o passado pode ser mais satisfatório que o presente, dada a inexistência de um apego consolidado às instituições ou mesmo aos princípios do regime.

As demais variáveis de controle dizem respeito às características do respondente – idade, sexo, estado civil, educação e renda familiar. A raça não pôde ser computada no modelo em decorrência das diferentes categorias que são operacionalizadas no Brasil e nos Estados Unidos, inviabilizando a comparação dos resultados.

Para cada variável foi realizado o teste t de Student com o objetivo de verificar se o comportamento dos brasileiros difere dos estadunidenses nas dimensões de confiança nas instituições, vitimização por crime e preferência pela democracia. Esse teste também foi empregado com o propósito de elucidar se os perfis dos respondentes, nos dois países, são semelhantes ou distintos. Como inexistem distinções entre ambos quanto ao percentual de vítimas de crime em 2010, idade, sexo e estado civil, não houve significância estatística do teste t para essas variáveis.

Antes de iniciar a leitura dos resultados, é preciso lembrar que os respondentes do Lapop integram sociedades distintas, respondendo a ossaturas institucionais diversas no quesito consequências da vitimização por crime. Kant de Lima (2000)Kant de Lima, R., 2000. Carnavais, malandros e heróis: o dilema brasileiro do espaço público. In: L.G. Gomes; L. Barbosa; J.A. Drummond, eds. O Brasil não é para principiantes. Rio de Janeiro: Editora FGV. resume bem as diferenças existentes entre as duas sociedades. Para ele, um paralelepípedo representaria a condição de igualdade a que todos os cidadãos estadunidenses são submetidos ao nascer. Assim, o acesso às diversas instituições, incluindo as que compõem o sistema de segurança pública e justiça criminal, seria livre, fazendo com que a base da figura fosse exatamente igual ao topo. No Brasil, a pirâmide seria a melhor representação da forma como os indivíduos se relacionam com as instituições estatais e com a polícia em especial. Por isso, o acesso a essas agências é sempre restrito, dependendo da capacidade do sujeito em mobilizar recursos para alcançar o topo.

Para o autor, o modelo de administração de conflitos brasileiro é marcado por hierarquias excludentes, em que a polícia e a justiça reafirmariam as desigualdades, tendo como princípio orientador a presunção da culpa. Já o modelo estadunidense se caracterizaria pela hierarquia includente, em que a polícia e a justiça constroem uma igualdade entre os diferentes, tendo como princípio orientador a presunção da inocência. Dessa forma, enquanto nos Estados Unidos a igualdade jurídica comporia não apenas os documentos legais como também a realidade da vida em sociedade, no Brasil a igualdade jurídica seria uma ideia inscrita na Constituição Federal, mas distante da dinâmica das instituições estatais, cujo padrão de funcionamento pode ser relativizado a todo momento por frases como “você sabe com quem está falando?”. Em razão dessas diferenças estruturais e estruturantes, é de se esperar que a confiança nas instituições seja diferenciada e que o efeito do delito seja distinto em cada sociedade e muito mais avassalador no Brasil, onde o crime pode estar relacionado ao funcionamento desigual do sistema de administração de conflitos.

A Tabela 1 mostra as definições de cada uma das variáveis – dependentes, independentes e de controle – além de apresentar as estatísticas descritivas de cada um desses indicadores e o valor de F para a diferença entre Brasil e Estados Unidos.

Tabela 1
Conceitos, definições, códigos e estatísticas descritivas das variáveis dependentes e independentes, Estados Unidos da América e Brasil – Lapop (2010)LAPOP (Latin American Public Opinion Project). 2010. Nashville: Vanderbilt University.

Chama a atenção o fato de que o grau de confiança nas instituições executivas e representativas é maior no Brasil do que nos Estados Unidos, com exceção dos governos municipais. Como explicar esse aparente paradoxo de que os cidadãos das democracias recentes, com cultura cívica menos consistente, confiam mais nas instituições do regime que os cidadãos das democracias antigas?

Segundo Moisés e Meneguello (2013Moisés, J.A. & Meneguello, R., 2013. Os efeitos da desconfiança para a legitimidade democrática. In J.A. Moisés & R. Meneguello, eds. A desconfiança e os seus impactos na qualidade da democracia. São Paulo: Edusp., p.13), o fenômeno de mais confiança nas instituições democráticas em países de democracia recente em comparação ao que se observa nas democracias antigas é algo que tem perpassado os estudos atuais da Ciência Política. Para os autores, esse resultado está longe de indicar que os países de cultura cívica consolidada estariam passando por uma crise no que se refere ao grau de democracia. Ao contrário, a propagação dos valores democráticos tem levado os cidadãos a elevar seu nível de exigência em relação às instituições tanto nas democracias antigas quanto nas novas.

Desse modo, nas democracias recentes, a rejeição a um passado autoritário recente tenderia a viabilizar um alto nível de confiança nas instituições democráticas. Entretanto, a manutenção desse alto grau de confiabilidade somente se sustentará com o cumprimento das promessas do regime emergente. Nas democracias antigas, as expectativas cada vez maiores não têm encontrado ressonância nas práticas das instituições, implicando menos confiança. Tal constatação encontra amparo na emergência do cidadão crítico nas democracias mais antigas, bem como no aumento das expectativas dos indivíduos em contextos que contam com alto desempenho institucional (Norris 1999Norris, P., 1999. Critical Citizens: Global support for democratic government. New York: Oxford University Press.; 2011Norris, P., 2011. Democratic Deficit: Critical citizens revisited. Cambridge, UK: Cambridge University Press.). A exceção é representada por aqueles países com uma tradição de alto padrão institucional de funcionamento, como Holanda, Noruega, Finlândia e Dinamarca, que mantiveram ou sofreram pouca variação em seu nível de confiança nos últimos 40 anos. Outros, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Suécia e Canadá, deixaram patamares de confiança institucional acima de 70% e passaram a níveis próximos de 30%, o que demonstraria de forma inequívoca a insatisfação dos cidadãos críticos (Moisés 2013Moisés, J.A., 2013. Cidadania, desconfiança política e instituições democráticas. In J.A. Moisés & R. Meneguello, eds. A desconfiança e os seus impactos na qualidade da democracia. São Paulo: Edusp., p.31).

Nessa linha, nas democracias antigas, em que as instituições não apresentam desempenho acima da média, espera-se um processo contínuo de redução da confiança institucional ao longo do tempo. Nas democracias recentes, com o fim da lua de mel com o novo regime, espera-se também um processo de redução da confiança nas instituições, ainda que esses patamares de confiança sejam mais elevados que os das democracias antigas. Ressalta-se que esse processo de redução da confiança institucional está associado a uma difusão da democracia como princípio normativo e, por isso, não representa grande risco ao regime, especialmente nas democracias mais antigas, em que esses valores já estão consolidados e a adesão à democracia se tornou estável.

De acordo com a Tabela 1, há mais confiança nas instituições democráticas no Brasil que nos Estados Unidos, com exceção das instituições de justiça e do governo municipal. Entre as possíveis explicações, tem-se a possibilidade de que os cidadãos que vivenciaram o período militar comparam o funcionamento das agências atuais às que vigoravam anteriormente. Como a média de idade dos respondentes brasileiros é de 37 anos e a transição se realizou em 1985, um grande quantitativo de indivíduos participou dos dois regimes, o que pode provocar baixas expectativas quanto ao desempenho das agências no cenário atual e uma confiança relativamente elevada em sua performance. Afinal, “o que vier é lucro”, como diria um ditado popular brasileiro.

Por outro lado, a diferença verificada no grau de confiança nas instituições do regime entre Brasil e Estados Unidos pode dever-se ao fato de os americanos serem mais exigentes e terem mais expectativas quanto ao desempenho das instituições e, por isso, serem menos confiantes que os brasileiros. Entre os estadunidenses, confiar menos nas instituições não significa valorizar menos a democracia, mas sim ter uma postura mais crítica diante delas. Os brasileiros, por sua vez, confiariam mais por ainda estarem em um estágio anterior no processo de desenvolvimento crítico às instituições; cenário que tende a se transformar nas próximas décadas. Pode-se dizer que os brasileiros são mais otimistas porque ainda comparam o desempenho das instituições da democracia ao que vigorava no período autoritário. Não fazem, portanto, uso de critérios próprios da democracia para embasar sua confiança, ao passo que os cidadãos americanos apresentam muito apego aos princípios democráticos e os tomam como o único parâmetro de avaliação institucional.

Quando se analisa as instituições de justiça, percebe-se que, nos Estados Unidos, a confiança é maior do que no Brasil. Em parte, esse fenômeno pode ser explicado pela descrença generalizada do brasileiro na capacidade dessas organizações de administrar conflitos nos estritos marcos do Estado democrático de direito (Peralva 2000Peralva, A. 2000.Violência e democracia: o paradoxo brasileiro. São Paulo: Paz e Terra.). O Brasil é internacionalmente conhecido por ter policiais cujo padrão de operação é orientado por critérios extralegais, como a classe econômica e a cor da pele (Caetano et al., 2014Caetano, L. et al., 2014. Como o policial escolhe um suspeito? In VIII Encontro da ANDHEP. São Paulo.) e por ter um sistema de justiça criminal pouco efetivo, deixando homicídios cometidos de modo cruel permanecerem impunes, à espera de quase uma década para o encontro de um desfecho final no Tribunal do Júri (Ribeiro & Couto 2014Ribeiro, L. & Couto, V., 2014. Mensurando o tempo do processo de homicídio doloso em cinco capitais. Brasília: Ministério da Justiça.).

No entanto, em ambos os países, as polícias são conhecidas por ações letais contra negros e outras minorias, sendo continuamente objeto de questionamento por parte dos organismos de direitos humanos (Bueno 2014Bueno, S., 2014. Letalidade policial. In R.S. Lima; J.L. Ratton & R.G. Azevedo, eds. Crime, segurança e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto.). A diferença situa-se na intensidade, pois, em cinco anos (2009-2014), “as polícias brasileiras mataram o equivalente ao que as polícias dos EUA em 30 anos” (idem, p.6). Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos contam com um sistema de justiça bastante eficiente no processamento e na responsabilização dos culpados, com uma garantia constitucional ao Speedy Trial Act, que estabelece o direito do indivíduo a ser processado e sentenciado em até 100 dias, sob pena de multa do poder público por não cumprimento de suas obrigações legais (Ribeiro 2010Ribeiro, L. 2010. O tempo da justiça criminal. Estados Unidos e Brasil em uma perspectiva comparada.Civitas, 10(2), pp.309-329. DOI: 10.15448/1984-7289.2010.2.6438
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2010....
). Esse direito a processamento rápido contrasta nitidamente com a morosidade brasileira para o processamento de infrações graves como o homicídio doloso. Como no Brasil as mazelas das instituições de justiça são mais aparentes, os cidadãos tendem a confiar menos que os estadunidenses em tais agências.

Os dois países apresentaram taxas de vitimização por crime semelhantes em 2010, reforçando o argumento de que a efetividade das instituições de justiça e os aspectos culturais influenciam as atitudes dos cidadãos em face das instituições. Por fim, analisando a dimensão preferência pela democracia, constata-se que os cidadãos estadunidenses se encontram mais vinculados a esse regime que os brasileiros (respectivamente, 82% e 73%), o que confirma a possibilidade de essa variável funcionar de forma efetiva como dimensão que representa o tempo de vivência democrática de cada país.

Uma vez escrutinadas as variáveis dependentes, independentes e de controle, o passo seguinte foi a construção de modelos de regressão linear múltipla para estimar os efeitos da vitimização por crime na confiança nas instituições democráticas, controlando-se pela preferência pela democracia e pelas características pessoais dos respondentes. De modo esquemático, a equação pode ser descrita da seguinte forma:

Confiança = β + aX + bY + cZ + dW + eK + fL + gM, em que

X é vitimização por crime; Y é preferência pela democracia; Z é sexo; W é idade; K é estado civil; L é educação; M é renda familiar.

As premissas de linearidade, homoscedasticidade e normalidade das variáveis dependentes (índices de confiança) foram checadas para cada modelo ajustado, sendo conferidas ao final de cada regressão pela inspeção da distribuição dos resíduos. Para facilitar a visualização do efeito que a vitimização por crime tem em cada uma das variáveis dependentes (graus de confiança) e em cada país, foram criadas duas tabelas de sistematização de resultados dos modelos de regressão linear: uma para a realidade estadunidense (Tabela 2) e outra para a brasileira (Tabela 3).

Tabela 2
Efeitos da vitimização sobre os indicadores de confiança nas instituições democráticas, Estados Unidos da América – Lapop (2010)LAPOP (Latin American Public Opinion Project). 2010. Nashville: Vanderbilt University.
Tabela 3
Efeitos da vitimização sobre os indicadores de confiança nas instituições democráticas, Brasil – Lapop (2010)LAPOP (Latin American Public Opinion Project). 2010. Nashville: Vanderbilt University.

A hipótese que se pretende testar é que, na democracia antiga, a vitimização por crime impacta apenas a confiança nas instituições de justiça, já que estas são as que se ocupam diretamente da criminalidade, sendo essa percepção reforçada pela mídia, pela literatura e até pelos policiais. Na democracia recente, a vitimização por crime impacta a confiança em todas as instituições do regime em virtude do efeito de contaminação, que faz com que mazelas características de uma dimensão específica do Estado democrático sejam compreendidas como doenças da própria democracia.

A Tabela 2 apresenta os efeitos da vitimização por crime na confiança, para os Estados Unidos, indicando que a hipótese de pesquisa não pode ser aceita. Controlando pelas características pessoais dos respondentes e pela expressa preferência à democracia, a experiência de ser vítima de um delito reduz em 0,086 ponto o grau de confiança nas instituições democráticas em geral; o que, por si só, já seria uma amostra do efeito de contaminação. Ser vítima de um delito, nessa localidade, é sinal de que as instituições do regime não funcionam bem e, por isso, não merecem confiança.

Quando as instituições democráticas são analisadas em termos de sua especialização, constata-se que a vitimização por crime reduz a confiança nas instituições executivas em 0,064 ponto. Todavia, analisando cada uma dessas instituições, percebe-se que esse evento não impacta a confiança no governo federal. Esse resultado pode ser explicado pela vinculação institucional das polícias com os governos municipais, fazendo com que os cidadãos entendam que a vitimização por crime é muito mais uma amostra da ineficiência dos gestores locais que dos gestores públicos em geral.

Nas instituições representativas, o efeito da vitimização por crime é de 0,062 ponto. No entanto, não houve mudança na confiança depositada nos partidos políticos, o que indica que a bandeira das políticas de segurança pública não é algo que perpasse a competição partidária, devendo fazer parte das discussões no Congresso, cujo grau de confiança foi reduzido de forma estatisticamente significativa.

Nas instituições de justiça, a redução na confiança em virtude da vitimização por crime foi de 0,098 ponto. O maior efeito ocorreu na confiança nos tribunais (e não na polícia). O resultado pode ser explicado pelo entendimento de que são os tribunais que condenam ou absolvem os culpados pela prática de delitos, reduzindo o incentivo aos novos criminosos em razão de sua eficiência, como pressupõe a teoria da escolha racional. Se os tribunais funcionam mal, os indivíduos têm mais incentivos à prática do delito, sendo papel da polícia tão somente registrar o crime que aconteceu, e não preveni-lo.

Os dados estadunidenses se comportam, em parte, conforme previsto pela teoria. As instituições de justiça são mais diretamente responsabilizadas pela vitimização por crime. Contudo, como tanto as instituições democráticas em geral quanto algumas das instituições representativas e executivas também vivenciaram redução no grau de confiança, é possível especular sobre a existência do efeito de contaminação.

Essa tese se torna mais forte quando se analisam as seis instituições comparativamente, visto que apenas duas (governo estadual e partidos políticos) não têm, na opinião dos cidadãos, relação direta com o fenômeno do crime. Entre as instituições penalizadas, a que sofreu maior decréscimo no grau de confiança foi a justiça – com uma redução da confiança de 0,098; e os governos municipais foram os que perceberam menor impacto, registrando uma redução de 0,067 ponto. Todavia, essa explicação reduz sua aderência aos dados quando se constata que, apesar de a vitimização por crime não ter sido estatisticamente significativa no caso do governo municipal e dos partidos políticos, seus coeficientes têm sinal negativo, indicando a presença do efeito de contaminação.

Em síntese, os resultados dos modelos de regressão linear múltipla para os Estados Unidos indicam que, controlando-se pela preferência à democracia e pelas características sociais e econômicas dos respondentes, a ocorrência de um evento traumático como a vitimização por crime faz com que os indivíduos passem a avaliar de forma negativa a performance do próprio regime, e não apenas das instituições que se ocupam da administração da criminalidade. Logo, o efeito de contaminação parece estar presente nas democracias antigas, o que refuta a hipótese de pesquisa.

No Brasil, os resultados apresentados na Tabela 3 foram condizentes com o esperado, uma vez que a vitimização por crime reduziu, de modo estatisticamente significativo, a confiança em todas as instituições analisadas. Já no primeiro modelo de regressão, que testava o efeito da variável independente sobre o índice de confiança nas instituições democráticas, controlando-se pela preferência à democracia e pelas características pessoais dos respondentes, o coeficiente foi de 0,092 ponto, valor superior ao encontrado para os Estados Unidos (0,086). Contrastando esse resultado com as médias de confiança (Tabela 1), verifica-se que, não obstante a existência de mais confiança institucional no Brasil, esta se mostra mais frágil e mais vulnerável aos efeitos de contaminação.

A vitimização por crime contribui para a redução da confiança nas instituições executivas (em 0,075 ponto), nas instituições representativas (em 0,067 ponto) e nas instituições de justiça (em 0,099 ponto). De certa forma, ao comparar a redução que o grau de confiança em cada grupo de instituições recebe, constata-se que a vitimização por crime impacta especialmente as agências de justiça. Mesmo no Brasil, os cidadãos identificam as instituições de justiça como as principais responsáveis pelo controle do crime, como seria esperado com base na literatura especializada.

Ao se comparar o impacto da vitimização por crime sobre cada uma das instituições escolhidas, constata-se que a instituição que sofreu efeitos mais deletérios foi a polícia, com uma redução de 0,101 ponto de seu índice de confiança. Em parte, o modelo de administração de conflitos excludente tem na polícia seu maior padrão de filtragem: é ela que decide quem será levado aos tribunais, realizando a justiça antes mesmo da chegada do caso aos tribunais (Soares 2006Soares, L.E., 2006. Segurança pública: presente e futuro.Estudos Avançados, 20(56), pp.91-106. DOI: 10.1590/s0103-40142006000100008
https://doi.org/10.1590/s0103-4014200600...
). A agência cujo apoio sofreu menor impacto foi o partido político (0,050 ponto), indicando que os brasileiros ainda não entendem a questão do crime em geral e da segurança pública em especial como bandeira política, que deve ser objeto de leis.

Como não houve nenhuma instituição que não tenha experimentado a redução na confiança em virtude da vivência do crime, reforça-se a ideia de que, no Brasil, segurança pública é dever e responsabilidade de todos, mas, em especial, das organizações policiais, como descrito no art. 144 da Constituição Federal. A vitimização por crime assume a feição de falência do próprio regime, contribuindo para a redução da confiança em todas as instituições. A dramaticidade da vivência de um evento excepcional faz com que os cidadãos responsabilizem todo o sistema, reforçando o efeito de contaminação.

Os dados sumarizados nas Tabelas 2 e 3 não permitem grande diferenciação entre Brasil e Estados Unidos quanto ao efeito de eventos sociais traumáticos na confiança nas instituições democráticas, controlando-se pela preferência à democracia. Em ambas as localidades, a vitimização por crime diminuiu a confiança que os indivíduos depositam nas instituições democráticas, em que pese o efeito mais pronunciado naquelas que se encarregam diretamente da administração da criminalidade (polícia e justiça).

A justiça foi a instituição cuja confiança foi mais afetada nos Estados Unidos, ao passo que, no Brasil, os efeitos da vitimização por crime foram mais pronunciados sobre a polícia. Esses resultados evidenciam que, na opinião dos cidadãos desses países, os responsáveis pela administração da criminalidade são distintos. Talvez essa seja a alternativa encontrada para, nos Estados Unidos, rechaçar a polícia por seus padrões de conduta violentos que acabam contribuindo para o aumento das taxas de vitimização por crime, enquanto no Brasil o rechaço é à morosidade excessiva da justiça, que contribui para o sentimento de impunidade e, em muitas situações, para o aumento da criminalidade. Ou seja, como se percebe que essas instituições de justiça funcionam mal, é de se esperar que a confiança nelas não seja alterada com a vitimização por crime.

Em ambas as localidades, a variável que menor impacto sofreu com a vitimização por crime foi a confiança nos partidos políticos, não apresentando significância estatística entre os estadunidenses e apresentando o menor valor de coeficiente ajustado (beta) entre os brasileiros. Nos dois países, a questão do crime não parece conectada com a plataforma programática dos partidos políticos, o que talvez ajude a compreender a responsabilização espraiada por todas as instituições do regime.

Um último exercício interessante para pensar os efeitos da vitimização por crime na confiança nas instituições democráticas nos Estados Unidos e no Brasil foi a comparação dos valores dos coeficientes ajustados (beta) sobre cada uma das dimensões de confiança (Gráfico 1). Com isso, é possível constatar que a vitimização por crime tem efeito mais pronunciado sobre a confiança nas instituições democráticas brasileiras quando a base de comparação é o impacto desse fenômeno na realidade estadunidense.

Gráfico 1
Valores dos coeficientes ajustados (beta) da variável vitimização por crime sobre cada uma das dimensões de confiança, Estados Unidos da América e Brasil – Lapop (2010)LAPOP (Latin American Public Opinion Project). 2010. Nashville: Vanderbilt University.

Quando se analisa a natureza da instituição, o efeito de contaminação fica evidente, já que a vitimização por crime produz mais impacto nas agências executivas e representativas brasileiras do que nas estadunidenses. Contudo, nas instituições de justiça, os efeitos da vitimização por crime são muito semelhantes e mais pronunciados do que nas demais, indicando serem essas as principais agências responsabilizadas pelos cidadãos quando uma infração penal ocorre em ambas as localidades.

A regra de mais responsabilização institucional pela vitimização por crime no Brasil em comparação aos Estados Unidos não é verificada em três situações: governo municipal, Congresso Nacional e justiça. É interessante destacar que cada uma delas compõe uma dimensão institucional distinta – executiva, representativa e de justiça – aumentando a força da hipótese do efeito de contaminação em democracias antigas como a estadunidense. No Brasil, tem destaque o elevado efeito da vitimização por crime sobre a confiança que o indivíduo deposita no governo federal e na polícia, instituições diretamente envolvidas com a administração da criminalidade.

O Gráfico 1 confirma o entendimento de que a experiência de ser vítima de um crime promove valores, atitudes e disposições consideradas contraproducentes para a consolidação da democracia, reforçando que o crime tem como consequência a erosão da cultura política cívica, a qual é considerada pela literatura especializada condição para a institucionalização do regime democrático.

Controlando-se pela variável preferência à democracia, a vitimização por crime reduziu de modo estatisticamente significativo a confiança em quase todas as instituições executivas, representativas e de justiça analisadas tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Logo, a magnitude do efeito da vitimização por crime não parece mediada pela estrutura do contexto, uma vez que o efeito de contaminação é corrosivo tanto nas democracias recentes quanto nas antigas. Os resultados sugerem, porém, que o efeito de contaminação tem mais intensidade na democracia recente.

IV. Conclusões

A proposta deste trabalho foi verificar em que medida a confiança nas instituições democráticas (executivas, representativas e de justiça) pode apresentar variações com a ocorrência de eventos traumáticos (como o crime), considerando-se o grau de institucionalização da cultura democrática.

Partiu-se do entendimento de que, em contextos de antiga democracia, nos quais a cultura cívica já se encontra institucionalizada, os indivíduos tendem a confiar nas instituições do regime e apresentam um sistema de crenças, valores e atitudes democráticos resiliente em relação à ocorrência de fenômenos sociais excepcionais. Em contextos de transição do autoritarismo para a democracia, a cultura cívica ainda se encontra em fase de institucionalização, fazendo com que um evento excepcional como a vitimização por crime tenha efeito de contaminação, levando o indivíduo a desconfiar de todas as instituições do regime.

Para a operacionalização empírica do estudo, foram analisados os dados referentes aos Estados Unidos da América (democracia antiga) e ao Brasil (democracia recente) oriundos do Latin American Public Opinion Project(Lapop) de 2010LAPOP (Latin American Public Opinion Project). 2010. Nashville: Vanderbilt University.. A hipótese da pesquisa foi a de que, nos Estados Unidos, apenas a confiança nas instituições de justiça seria afetada pela vitimização por crime, controlada pela preferência à democracia, uma vez que a polícia e a justiça são as agências estatais responsáveis pela administração da criminalidade de forma mais direta. No Brasil, existiria um efeito de contaminação fazendo com que a confiança em todas as instituições do regime fosse afetada em virtude da vitimização.

A análise apresentou resultados contrários aos esperados em dois sentidos. Primeiro, constatou-se que a confiança nas instituições democráticas no Brasil é superior à dos Estados Unidos, o que contraria o pressuposto de que a confiança está associada a círculos virtuosos, tal como esperado por Putnam (1993)Putnam, R.D., 1993. Making Democracy Work. Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University Press., pondo-se mais de acordo com as perspectivas de Norris (1999Norris, P., 1999. Critical Citizens: Global support for democratic government. New York: Oxford University Press.; 2011)Norris, P., 2011. Democratic Deficit: Critical citizens revisited. Cambridge, UK: Cambridge University Press., Warren (1999)Warren, M.E., 1999. Introduction. In J.A. Moisés, ed. Democracy and Trust. Cambridge, UK: Cambridge University Press. e Moisés (2013)Moisés, J.A., 2013. Cidadania, desconfiança política e instituições democráticas. In J.A. Moisés & R. Meneguello, eds. A desconfiança e os seus impactos na qualidade da democracia. São Paulo: Edusp.. Esses autores esperam que o amadurecimento das democracias torne os cidadãos mais adeptos ao regime e faça com que estes passem a cumprir melhor sua função de crítica, que envolve a participação e a fiscalização das agências oficiais e a desconfiança quando estas não apresentam performance condizente com suas expectativas.

O segundo resultado inesperado foi a existência do efeito de contaminação, decorrente da vitimização por crime em ambos os casos, apesar de os países terem uma cultura de administração de conflitos bastante distinta. De acordo com os resultados coligidos, a vivência desse evento excepcional faz com que os indivíduos passem a desconfiar das instituições democráticas em geral, e não apenas das instituições de justiça. Como esse efeito foi mais pronunciado no Brasil do que nos Estados Unidos, em dimensões como governos municipais, Congresso Nacional e justiça, pode-se afirmar que a vitimização por crime teve efeitos mais deletérios neste contexto do que naquele. Com isso, a hipótese de pesquisa restou rechaçada, apontando para uma consonância maior do que a esperada no comportamento dos cidadãos das duas localidades, mesmo controlando-se pela preferência expressa pela democracia.

Portanto, embora exista um maior nível de confiança nas instituições brasileiras do que nas estadunidenses, no Brasil essa confiança demonstra mais fragilidade, sendo mais vulnerável aos efeitos de contaminação em decorrência da vitimização por crime do que nos Estados Unidos. Como explicar esse fenômeno que, aparentemente, contraria os pressupostos sobre os quais se assenta a análise?

Uma forma de apontar algumas luzes é revisar os estudos recentes sobre o fenômeno da desconfiança política. Nos últimos anos, verifica-se uma crescente semelhança no padrão do comportamento da confiança institucional nos diferentes contextos. As democracias antigas parecem vivenciar uma crise inexplicável, pois, apesar de a cultura cívica se encontrar mais institucionalizada do que nunca, o grau de desconfiança nas instituições do regime nunca esteve tão elevado, o que reforça a ideia de que o apoio político se manifesta em relação às diferentes dimensões do regime. Por outro lado, enquanto o apoio à dimensão dos princípios da democracia aumenta, o apoio à dimensão institucional se reduz (Easton 1965Easton, D., 1965. A Framework for Political Analysis. New Jersey: Prentice-Hall.; Dalton 1999Dalton, R.J., 1999. Political Support in Advanced Industrial Democracies. In P. Norris, ed. Critical Citizens: Global support for democratic government. New York: Oxford University Press.; Norris 1999Norris, P., 1999. Critical Citizens: Global support for democratic government. New York: Oxford University Press.; Booth & Seligson 2009Booth, J.A. & Seligson, M.A., 2009. The Legitimacy Puzzle in Latin America: Democracy and Political Support in Eight Nations. Cambridge, UK: Cambridge University Press.; Rennó et al., 2011Rennó, L. et al., 2011. Legitimidade e qualidade da democracia no Brasil: uma visão da cidadania. Em Debate, 4, pp.57-63.).

Nas democracias recentes, inauguradas de modo formal a partir do fim de regimes autoritários nos anos 1980 e 1990, o problema principal é a ausência de institucionalização de uma cultura cívica, que inviabilizaria a adequada adesão, por parte dos indivíduos, aos princípios que orientam as funções das instituições democráticas. Nesses termos, o resultado final seria um grau elevado de confiança nas instituições, mas que não significa apreço pelas regras do jogo democrático nem tão somente expectativas quanto ao desempenho dessas agências.

Esses estudos reforçam que, do ponto de vista substantivo, a confiança nas instituições democráticas tem significado diferenciado nos dois contextos. Nas democracias recentes, essas agências, “mesmo reformadas, não completaram o que se designa como o processo de rotinização das estruturas institucionais, que, no caso das democracias originárias, malgrado seu mal-estar recente, foi um aspecto importante da longa acomodação dos cidadãos às inovações da ordem política democrática” (Moisés 2013Moisés, J.A., 2013. Cidadania, desconfiança política e instituições democráticas. In J.A. Moisés & R. Meneguello, eds. A desconfiança e os seus impactos na qualidade da democracia. São Paulo: Edusp., p.30). Nas recentes, a menor reserva de legitimidade precisaria ser compensada com mais efetividade das instituições para que a estabilidade de todo o sistema seja garantida e a confiança se mantenha em patamares elevados. Nas antigas, as expectativas acima da média, em razão da vivência do regime, fazem com que um desempenho tal como apresentado ao largo dos anos seja suficiente para a desconfiança.

O efeito de contaminação é maior no Brasil em virtude de um apego mais fraco e vulnerável à democracia e, por conseguinte, às instituições democráticas, fazendo com que o cidadão tenda a responsabilizar todas as agências disponíveis pela vitimização por crime, ainda que exista um rechaço maior àquelas diretamente relacionadas com a temática do delito, como ocorre com a polícia. Nos Estados Unidos, o efeito de contaminação seria menor porque os indivíduos conhecem os pressupostos que subjazem a existência de tais instituições e, por isso, a vitimização por crime potencializaria a descrença na democracia e geraria uma responsabilização mais espraiada das instituições que operam no regime, ainda que em graus menores do que no Brasil.

Neste artigo, evidenciou-se uma hipótese explicativa para a substantiva correlação da confiança interinstitucional com as condições de vivência em sociedade, mesmo apresentando apenas um componente (vitimização por crime), o que certamente não garante uma explicação completa. Isso posto, é possível afirmar que eventos traumáticos, por meio de efeitos de contaminação, fazem com que os níveis de confiança das diferentes instituições sofram variações no mesmo sentido (negativo), favorecendo altas cargas de correlação estatística.

  • *
    Agradecemos aos comentários e sugestões realizados pelos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política.
  • 1
    Segundo Sant’Anna e Scorzafave (2014Sant’Anna, e.g. & Scorzafave, L.G., 2014. Uma análise da vitimização no Brasil. In XL Encontro Nacional de Economia. Porto de Galinhas., p. 8), com base nos dados da PNAD de 2009, observa-se que, no Brasil, “pouco mais de 10% da população foi vítima de algum tipo de crime no período entre 27 de setembro de 2008 e 26 de setembro de 2009”. No mesmo período, nos Estados Unidos, menos de 10% de toda a população reportou algo desse tipo.
  • 2
    A cultura paroquial é uma estrutura de valores tradicionais, descentralizada, e os indivíduos estão reduzidos à esfera particular. A súdita possui estrutura autoritária e centralizada. É meio-termo entre a completa ausência do indivíduo em relação ao sistema, na cultura paroquial, e o sentimento de completa inclusão pública, da cultura participativa (Castro & Capistrano 2008Castro, H.C.O. & Capistrano, D., 2008. Cultura política pós-Consenso de Washington: o conceito de cultura cívica e a mudança política na América Latina.Revista Debates, 2(1), pp.75-97., p.77).
  • 3
    Constituição Federal, art. 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares”.
  • 4
    Constituição Federal, art. 144, § 8º: “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.
  • 5
    De acordo com Tavakol e Dennick (2011)Tavakol, M. & Dennick, R., 2011. Making Sense of Cronbach's Alpha. International Journal of Medical Education, 2, pp.53-55. DOI: 10.5116/ijme.4dfb.8dfd
    https://doi.org/10.5116/ijme.4dfb.8dfd...
    , quando o valor de Alfa de Cronbach estiver entre 0,5 e 0,7, a capacidade das duas variáveis em questão mensurarem exatamente o mesmo fenômeno é questionável. Contudo, para fins desta análise, optou-se por criar um fator que, apesar de questionável, seria mais robusto do ponto de vista da análise do que as variáveis consideradas individualmente.

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Outras fontes

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2014
  • Aceito
    04 Fev 2015
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