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CAMINHANDO DE COSTAS: PAU BRASIL(OSWALD DE ANDRADE) E BOITEMPO (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

WALKING BACKWARDS: PAU BRASIL (OSWALD DE ANDRADE) AND BOITEMPO (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

Resumo

Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade, e Boitempo (1968), de Carlos Drummond de Andrade, são obras limiares, à medida que se situam respectivamente na abertura e no fechamento da intermitente era modernista da literatura brasileira. Além disso, as duas coletâneas de poemas revisitam o passado colonial e oligárquico, construindo intepretações singulares sobre a história do Brasil. Nesse sentido, partimos do pressuposto de que elas constroem internamente, cada uma a seu modo, uma historicidade própria, definida a partir de um tempo compósito. Este artigo pretende realizar uma leitura comparada entre as duas obras, a fim de investigar o modo como elas repensam, em viés poético, elementos estruturais de nossa formação histórica e social.

Palavras-chave:
Modernismo; Memorialismo; Historicidade; Autoritarismo; Poesia

Abstract

Pau-Brasil (1925), by Oswald de Andrade, and Boitempo (1968), by Carlos Drummond de Andrade, are threshold works, as they stand respectively at the opening and closing of the intermittent modernist era of Brazilian literature. Also, the two collections of poems revisit the colonial and oligarchic past, building unique interpretations of Brazilian history. In this sense, we start from the assumption that they build internally, each in its own way, their own historicity, defined from a composite time. This article intends to carry out a comparative reading between the two works, to investigate the way in which they rethink, in a poetic way, structural elements of our historical and social formation.

Keywords:
Modernism; Memorialism; Historicity; Authoritarianism; Poetry

As histórias futuras e as histórias passadas são determinadas por desejos e planos, assim como pelas questões que surgem de hoje, do ponto de vista da teoria do conhecimento, o espaço contemporâneo da experiência torna-se o centro de todas as histórias.

Reinhart Koselleck

O debate suscitado com as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna e, ainda, do bicentenário da Independência do Brasil, ao mobilizar enquadramentos políticos e culturais, revistos retrospectivamente a partir de um presente problemático e pautado por reações antimodernas e obscurantistas, parece ativar uma temporalidade estendida, que passa, sob revisão, representações monumentais do passado, mas sem se descolar da experiência do presente. O retrocesso do debate político dos últimos anos, com o recuo de pautas progressistas que há uma década eram agenciadas por políticas públicas, o acirramento de conflitos étnicos e raciais, o retorno dos militares ao poder pela via eleitoral, os novos arranjos da tradição autoritária, em suma, todos esses processos que “desfiguram” a ideia de uma sociedade moderna, idealizada nas contraditórias tramas modernistas, condicionam a reflexão fomentada pela dupla efeméride1 1 A pensadora italiana Nadia Urbinati (2014) adota a expressão “desfiguração da democracia” ao tratar do cenário político contemporâneo, em seu livro Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. .

A Semana de 22 e os movimentos dela derivados, cujo arco estético-ideológico se estende da rapsódia marioandradina ao verde-amarelismo, passando pelo Pau brasil e a antropofagia, não são fundadores do Brasil moderno, como defende parte de nossa historiografia literária, mas, sem dúvida, definem entre nós uma tradição do pensamento que, balizada em uma espécie de teoria do conhecimento, considera o campo artístico e cultural como espaço proeminente para a discussão de projetos de sociedade e de nação.

As preocupações centrais que foram capazes de congregar o heterogêneo grupo de artistas da Semana de 22 articulavam-se, como se sabe, em torno da renovação dos códigos artísticos no Brasil. Tratava-se, nos termos definidos por Mário de Andrade, de garantir o direito à experimentação no embate contra o que se entendia como passadismo. A partir de 1924, sobretudo após a célebre viagem da caravana paulista pelas Minas coloniais, o projeto de atualização estética recebe como suplemento a “defesa da nacionalização das fontes de inspiração do artista brasileiro”, conforme expressão de Eduardo Jardim (1988Jardim, Eduardo. (1988). Modernismo revisitado. Estudos históricos, 1/2, p. 220-238.: 221). São abertos novos caminhos para a reflexão acerca da modernidade cultural brasileira, em pauta desde o século XIX2 2 Adoto aqui a divisão temporal da produção modernista proposta por Eduardo Jardim (2016) em A brasilidade modernista - sua dimensão filosófica. . Na nova disposição, que não elimina as dissenções internas, o moderno ganha contornos nacionais, estando comprometido, num passo surpreendente, com as tradições locais, especialmente com as populares. Mário de Andrade, em uma missiva endereçada a Carlos Drummond de Andrade, formula o problema à sua maneira: “Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo pra fase da criação. E então seremos universais, porque nacionais” (Andrade, C. & Andrade, M., 2002Andrade, Carlos Drummond de & Andrade, Mário de. (2002). Carlos e Mário: correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-te-vi.: 71).

A equação registra a virada do projeto artístico que doravante associaria a independência cultural e literária, propalada no evento de 1922, à definição da identidade nacional. Era preciso encontrar uma forma “pra este monstro mole e indeciso ainda que é o Brasil” (Andrade, M., 2002Andrade, Carlos Drummond de & Andrade, Mário de. (2002). Carlos e Mário: correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-te-vi.: 71). Para tanto, já não se tratava de uma ruptura com o passado herdado da colonização, mas de sua ressignificação. Impunha-se a tarefa de reconsideração analítica do passado histórico, a fim de se encontrar ou de se deslocar valências culturais capazes de reposicionar as relações entre particularismos e universalismos, cultura popular e cultura erudita, bem como entre o campo estético e o social, no contexto pós-colonial caracterizado àquela altura pela expansão acelerada dos projetos de modernização do Ocidente.

Tomo aqui como objeto de estudo duas obras da poesia brasileira que poderiam ser consideradas limiares, à medida que participam respectivamente dos anos de abertura e de fechamento da intermitente e heterogênea era modernista: Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade, e Boitempo (1968), de Carlos Drummond de Andrade3 3 No decorrer dos anos de 1960, a literatura brasileira vê-se tomada por um “surto” memorialístico e/ou biográfico, com a presença destacada de escritores que, como o século, também beiravam os sessenta anos, sendo a maior parte deles formados sob fluxos teóricos e estéticos modernistas. A idade do serrote, de Murilo Mendes, e Boitempo, de Drummond, por exemplo, são publicados em 1968, exatamente no ano em que Pedro Nava inicia a redação de Báu de Ossos. O veio memorialista terá ainda desdobramentos na década seguinte, com os relatos dos ex-combatentes e guerrilheiros e suas narrativas de resistência e embate contra a Ditadura Militar. . Ainda mais significativo para a análise que pretendo desenvolver é o fato de que ambas as coletâneas revisitam o passado colonial e oligárquico, elaborando intepretações singulares da história brasileira. Parto do pressuposto de que elas constroem internamente, cada uma a seu modo, uma historicidade própria, definida a partir de um tempo compósito que se propõe a embaralhar a linearidade histórica e perturbar a lógica do continuum da história, de modo a incidir sobre expectativas e leituras do período em que os poemas foram publicados. No entanto, para validar esse intento, é preciso dar crédito ao detalhe desconcertante lançado nos respectivos pórticos das duas obras. No caso de Oswald, o leitor se depara com a frase ambígua, antes de alcançar os poemas, posicionada como uma epígrafe: “Por ocasião da descoberta do Brasil” (Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.: 21); já em Boitempo, nas páginas iniciais, o breve poema “Intimação” cumpre efeito análogo:

- Você deve calar urgentemente

as lembranças bobocas de menino.

- Impossível. Eu conto o meu presente.

Com volúpia voltei a ser menino (Andrade, C., 1992Andrade, Carlos Drummond de. (1992). Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.: 443).

Em ambos os casos, o tempo não é tratado como dimensão natural; ao contrário, as duas obras repensam as formas de compreensão entre as experiências passadas e as expectativas contemporâneas, entre o supostamente já conhecido e as possibilidades que se abrem ao futuro. Portanto, parece-me produtivo revisitá-las crítica e comparativamente, tendo em vista os intentos reflexivos e todo o esforço interpretativo atualmente em voga para lidar com o nosso inquietante presente. Não se trata aqui de referendar as cobranças anacrônicas que têm pautado parte significativa da reflexão produzida em 2022, em que diferentes setores da intelectualidade brasileira atribuem aos modernistas a responsabilidade pelo fracasso de nosso projeto moderno ou, em viés oposto, negam-lhes a devida relevância no dimensionamento de nossa vida cultural.

Em outra direção, tomando o modernismo como campo conflitivo por excelência, ocupo-me de uma obra poética decisiva e repleta de sugestões acerca da cultura e da sociedade brasileiras, Pau brasil, e estudo algumas de suas formulações em contraponto com o memorialismo poético de Boitempo, que poderia ser lido como uma espécie de balanço, ainda que irresolvido, de uma geração diretamente envolvida com as propostas e utopias modernas catalisadas pela Semana de Arte Moderna. Entre as duas obras, longas décadas condensam o período nacional-desenvolvimentista, a constituição de novos espaços públicos de debate e de circulação da literatura, bem como a ação do Estado populista como principal vetor de mudanças e modernização. Os poemas memorialísticos de Drummond também se constroem lidando com o tempo histórico, mas já estavam definitivamente marcados pela atmosfera de fracasso das aspirações modernistas de democratização cultural, soterradas com o golpe militar de 1964. Justamente por isso, eles parecem oferecer um ângulo enviesado e inquietante para a consideração crítica das ideias e formas, parte delas lançada na obra oswaldiana, que sacudiram os fervorosos anos de 1920.

PAU BRASIL: UMA HISTÓRIA FATAL

A história se decompõe em imagens, não em histórias.

Walter Benjamin

A primeira coletânea de poemas de Oswald de Andrade, publicada em 1925 pela editora francesa Au Sans Pareil, com capa de Tarsila do Amaral, um ano após a publicação do Manifesto da poesia pau-brasil, reabre o campo de batalhas artísticas e culturais que dividia sensibilidades no Brasil republicano. Desconcertante, o conjunto seria recebido com alguma estranheza, quando não com recusas inegociáveis4 4 O artigo de Tristão de Athayde, intitulado “Leitura suicida”, é representativo da recusa predominante que caracteriza a recepção das referidas publicações de Oswald de Andrade. Ver Teles (1980: 346). , gerando discórdias e reavaliações mesmo entre simpatizantes da Semana de Arte Moderna. Manuel Bandeira, em resenha publicada e posteriormente compilada em Andorinha, andorinha, avalia criticamente o manifesto: “O seu primitivismo consiste em plantar bananeiras e pôr de cócoras embaixo dois ou três negros tirados da antologia do Sr. Blaise Cendrars” (Bandeira, 1986Bandeira, Manuel. (1986). Andorinha, andorinha. Seleção e coordenação de textos de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olímpio.: 248). Poucos dias depois, o poeta confessaria outra apreciação em correspondência a Mário de Andrade, de quem diverge: “Estava alegre, excitado pelo manifesto do Oswald que não considero horrível e leviano como dizes; achei-o, ao contrário, admirável” (Andrade & Bandeira, 2001Andrade, Mário de & Bandeira, Manuel. (2001). Correspondência: Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp: IEB.: 116). Em resenha datada de 14 de dezembro de 1925, o jovem Drummond apontava de Belo Horizonte suas ressalvas: “A poesia dele peca pela pobreza de processos. É tecnicamente mal construída. Oswald apregoa o equilíbrio geômetra e o acabamento técnico. Não procura obtê-los. Excesso de liberdade” (Andrade, C., 1925Andrade, Carlos Drummond de. (1925). O homem do Pau-brasil. A noite, Rio de Janeiro.).

Em uma linha distinta dessas que enumeravam restrições à poesia do enfant terrible do modernismo paulista, Paulo Prado (2017Prado, Paulo. (2017). Poesia Pau Brasil. In: Andrade, Oswald de. Poesias reunidas . São Paulo: Companhia das Letras , p. 15-19.: 17), prefaciador da obra, a saudava como marco inaugural, “primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro”. Seu influente juízo crítico fundaria uma tradição de leitura dos poemas Pau brasil balizada pela inovação da linguagem poética, tomando-a como valor maior, à maneira das vanguardas europeias. Após o breve período de demolição realizado com a Semana de 22, estaria instituída, conforme o crítico, a fase criadora da literatura brasileira.

De fato, podemos verificar o intento transgressor apontado por Paulo Prado presente já nos aforismos iniciais - versão abreviada do manifesto de 1924 -, que funcionam como uma dobra crítica da obra: “Contra a argúcia naturalista, a síntese. Contra a cópia, a invenção e a surpresa” (Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.: 25)5 5 Em “Falação”, poema situado no início do livro, Oswald recupera, em versão resumida, alguns aforismos publicados no manifesto de 1924 (Andrade, O., 2017). . Os poemas são compostos por versos curtos, com cortes rápidos adequados à construção de cenas simultâneas, em uma estética primitivista que evita o detalhe e as articulações sintáticas, tudo sob aparente simplicidade - “Meu amor me ensinou a ser simples / como um largo de igreja” (Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.: 57) -, mas dando engenho a uma diversidade vertiginosa de imagens e a frases poéticas lapidares. Será justamente essa senha de ruptura formal que será expendida no célebre ensaio de Haroldo de Campos (2017Campos, Haroldo de. (2017). Uma poética da radicalidade. In: Andrade, Oswald de. Poesias reunidas . São Paulo: Companhia das Letras , p. 239-296.), responsável por apresentar as poesias reunidas de Oswald quatro décadas mais tarde. Para o crítico, a obra do jovem modernista, cunhada como “poética da radicalidade”, deveria ser pensada no quadro do seu tempo histórico, à medida que, ao alterar a linguagem, produto social por excelência, teria também alterado a consciência de seu tempo.

Essa vertente de leitura, empenhada em destacar o “jacobinismo” estético da poesia oswaldiana, parece, no entanto, descuidar-se do caráter de reflexão histórica proposto na obra por meio de uma complexa operação de montagem que, ao retomar eventos do passado, justapõe vozes, personagens, espaços e temporalidades na elaboração de seus poemas. Foi a leitura de Silviano Santiago (2006Santiago, Silviano. (2006). Oswald de Andrade ou elogio da tolerância racial. In: Santiago, Silviano. Ora (direis) puxar conversa! Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 133-146.), já no século XXI, que relançou luzes sobre a desconstrução do tempo homogêneo e vazio ali configurada e, a reboque, sobre o tema da tolerância racial. Voltarei a este segundo aspecto adiante. Inicialmente, abordo a subversão do relato histórico realizado na obra, conforme apontamentos do crítico.

Em seu desejo de “tirar o meridiano exato da nossa hora histórica”, Oswald busca “outra concepção de processo e evolução históricos, diferentes da concepção então vigente entre historiadores e sobretudo muito diferente da que foi dominante entre nossos historiadores oficiais, atuantes por ocasião do Centenário da Independência” (Santiago, 2006Santiago, Silviano. (2006). Oswald de Andrade ou elogio da tolerância racial. In: Santiago, Silviano. Ora (direis) puxar conversa! Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 133-146.: 135). Ao propor que o livro publicado em 1925 o fora “por ocasião da descoberta do Brasil”, o poeta institui um campo ambíguo de significações, sugerindo que, ao “ver com olhos livres”, teria descoberto uma nova realidade. Paradoxalmente, o novo país é redescoberto, conforme confissão desabusada, de um ateliê da Place Clichy, em Paris, retomando o tropos-da-distância frequentemente amentado pela intelectualidade brasileira. Trata-se ainda de desconsiderar o passado e toda a herança dos descobridores portugueses em nome dessa “descoberta”, ou seja, idealizar um outro começo, como se desejasse “acertar o passo com as revoluções culturais do progresso ocidental” (Santiago, 2006Santiago, Silviano. (2006). Oswald de Andrade ou elogio da tolerância racial. In: Santiago, Silviano. Ora (direis) puxar conversa! Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 133-146.: 134).

Todo o procedimento, que cria um tecido híbrido entre poesia e história, ampara-se na arquitetura cubista adotada na divisão do livro em seções, reunindo os poemas em eixos temáticos (colonização, fazenda cafeeira, cidade moderna, escravidão, minas colonial etc.), com o propósito de abordá-los sincronicamente, a partir de perspectivas díspares e sem se prender à imparcialidade ou ao sequenciamento causal dos acontecimentos, elementos exigidos de um historiador. Na verdade, tal qual um pintor moderno que recusa o espelhamento da paisagem e toda pretensão realista, o poeta afasta-se da narrativa factual, a fim de refletir sobre a organização dos episódios recortados e, por tabela, sobre as possibilidades de uma “representação histórica” pela via poética, mesclando grandes acontecimentos e personagens históricos com flashes do cotidiano. A montagem potencializa e conecta significações de cada uma das peças, permitindo associá-las dentro e fora do bloco em que se encontram.

O jogo de vozes dos personagens históricos, empreendido na construção elocutiva dos poemas, ao criar muitas vezes a sensação de distanciamento ou mesmo de uma enunciação sem sujeito enunciador, parece multiplicar os efeitos desestabilizadores. O escritor recorta e cola trechos de cartas e anotações de viajantes, padres e cronistas do período colonial, atualizando-os, rasurando-os, oscilando entre a paródia e o pastiche, com a perspicácia e o humor que se tornarão traços permanentes de toda a sua obra; recorre igualmente a palavras e expressões portuguesas arcaicas, ao prosaico das ruas, a regionalismos e à emergente linguagem publicitária; faz valer, em conformidade com o programa do Manifesto pau-brasil, a “contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos” (Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.: 25). Os versos-colagens, livres do mito do bem-dizer e do nacionalismo de estandarte, soam muitas vezes como um deboche das descrições hiperbólicas, difundidas com os românticos, de uma “nação-só-natureza” ou de um “terreal paraizo”, como se lê no verso final de “Civilização pernambucana” (Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.: 37).

No cenário de disputas entreaberto com a crise da República e toda efervescência provocada pelos conflitos sociais e pelo modernismo de 22, Oswald elabora uma interpretação singular da história brasileira, dando curso às reflexões que se voltam ao passado em busca da gênese das mazelas sociais e políticas da nação periférica, em sintonia com leituras cujas demandas se explicitariam com o ensaísmo dos anos de 1930. Como afirma Antonio Candido (2006Candido, Antonio. (2006). Literatura e cultura de 1900 a 1945. Panorama para estrangeiros. In: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, p. 117-145: 132), “a alegria turbulenta e iconoclástica dos modernistas preparou, no Brasil, os caminhos para a arte interessada e a investigação histórico-sociológica do decênio de 1930”.

A armação do conjunto oswaldiano, servindo-se da “técnica de Kodak de Cendrars”, conforme expressão de Bandeira6 6 A expressão foi empregada em carta de Manuel Bandeira para Mário de Andrade. , explora os contrastes: a floresta e a escola, a carroça e o bonde, a casa colonial e o arranha-céu, o erudito e o popular, o arcaico e o moderno, as fazendas e as indústrias, alçando-os à condição alegórica, como se eles definissem a especificidade identitária brasileira no conjunto das nações modernas. É exatamente esse o ponto sobre o qual se estrutura a leitura de Roberto Schwarz (1987Schwarz, Roberto. (1987). A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: Schwarz, Roberto. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras , p. 11-28.: 12), para quem a matéria-prima de Oswald é obtida “mediante duas operações: a justaposição de elementos próprios ao Brasil-Colônia e ao Brasil burguês, e a elevação do produto - desconjuntado por definição - à dignidade de alegoria do país”.

No entanto, a despeito de toda a maquinação engendrada e da força irônica e corrosiva que a alimenta - de fato, inovadoras -, cumpre observar para além das estratégias empregadas qual seria a representação histórica construída poeticamente. Isso porque se delineia em Pau Brasil uma narrativa sobre o desenvolvimento de uma “civilização” original, que, apesar das mazelas da colonização e das contradições daí resultantes, culmina com o progresso impulsionado pela economia cafeeira e com um futuro urbano e industrial promissor, como se lê em “prosperidade”:

O café é o ouro silencioso
De que a geada orvalhada
Arma torrefações ao sol
Passarinhos assoviam de calor
Eis-nos chegados à grande terra
Dos cruzados agrícolas
Que no tempo de Fernão Dias
E da escravidão
Plantaram fazendas como sementes
E fizeram filhos nas senhoras e nas escravas
Eis-nos diante dos campos atávicos
Cheios de galos e reses
Com porteiras e trilhos
Usinas e igrejas
Caçadas e frigoríficos
Eleições tribunais colônias
(Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.: 49).

Do café às usinas e frigoríficos, o poema cifra e elenca passagens históricas que supostamente dão forma à história de modernização da ex-colônia. As bandeiras paulistas são equiparadas às cruzadas, e as fazendas agrícolas do passado são sementes plantadas para progresso. E, como se interrompesse repentinamente um sobrevoo irregular sobre a paisagem-história, o sujeito do poema, valendo-se de uma voz coletiva, “Eis-nos” (aqui estamos), conduz e apresenta aos leitores a “grande terra” e os “campos atávicos” como “conquistas” ou etapas decisivas da escalada de desenvolvimento. A expressão formal utilizada, que liga o advérbio ao pronome pessoal, mimetiza o tom de descoberta proposto na obra, tom de chegada a um território (como terra à vista) ou a um determinado instante temporal.

O que desponta do poema são traços do mundo moderno que convivem com e reativam traços do passado, dando visibilidade a um (novo) “sentido da colonização”. À economia mineradora, sobrepõe-se a elite agrária cafeeira, trampolim, por sua vez, da industrialização. Temos ainda o cruzamento de sensações e sugestões visuais - o canto dos pássaros, a contemplação da paisagem dos pastos -, que, aliadas à construção fragmentada e à economia de adjetivos e de conexões sintáticas, oblitera toda a dissenção fundante da dinâmica histórica e social da ex-colônia, revestindo de tranquilidade um período marcado pela clivagem da colonização e do escravismo. Inclui-se aí também a violência sexual, naturalizada no verso que alude ao tempo e à ação dos bandeirantes: “E fizeram filhos nas senhoras e nas escravas”.

Inserido na seção “São Martinho”, nome de poderosa fazenda da República Velha cuja prosperidade a credencia como metonímia de São Paulo, o poema alinha-se a outras peças do livro, a fim de decantar o progresso paulista. De um texto a outro, vemos as linhas de trem dividindo o país como meridianos, fordes, viadutos de ferro, metalúrgicas e operários7 7 Refiro-me especialmente aos poemas “prosperidade de são paulo”, “versos de dona carrie”, “metalúrgica”, “angabaú” e “atelier” (Andrade, O., 2017). . A próspera cidade, comparada ao pico do Everest, funciona por seu turno como metonímia da nação: “a bandeira de São Paulo / enrolada no Brasil”8 8 Verso do poema “escola rural” igualmente inserido na seção “São Martinho”. (Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.: 50).

A narrativa entretecida poeticamente, amparada na notável e diversificada modernização de São Paulo, cuja dinâmica foi indiscutivelmente mais intensa do que a do restante do país, corrobora com a imagem celebrativa da cidade, tomando-a como carro-chefe da nação em desenvolvimento; participa, desse modo, dos processos discursivos e simbólicos, então em voga, destinados à construção da hegemonia econômica e cultural paulista. E o escritor antropófago sustentou essa narrativa “fatal”, que vincula o progresso da cidade paulista à inovação cultural, durante toda a sua trajetória intelectual. Em artigo publicado no Jornal do Commercio, em 1921, antes mesmo da Semana de Arte Moderna, o argumento central já se anunciava sem meias-palavras:

A questão Paulista é uma questão futurista. Nunca nenhuma aglomeração humana esteve tão fatalisada a futurismo de atividade, de indústria, de história e de arte como a aglomeração Paulista. Que somos nós, forçadamente iniludivelmente senão futuristas - povo de mil origens, arribado em mil barcos, com desastres e ânsias? […] São Paulo avança numa afirmativa de maravilhas (Andrade, O., 1921 apud Boaventura, 1995Boaventura, Maria Eugenia. (1995). O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade. São Paulo: Ex Libris; Campinas: Editora Unicamp.: 79, grifo nosso).

Décadas mais tarde, em texto reunido em Ponta de lança, Oswald reafirmará o vínculo causal entre o campo econômico e o campo artístico em São Paulo, sugerindo ser a mentalidade fomentada pelo primeiro a explicação para o traço avançado do segundo:

Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi uma consequência da nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria com a sua ansiedade do novo, a sua estimulação do progresso fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade (Andrade, O., 1971Andrade, Oswald de. (1971). Ponta de lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. : 53).

Trata-se de uma fabulação coletiva - devidamente incorporada e replicada, diga-se de passagem, pela historiografia literária brasileira moderna - cuja trama ou telos reafirma a vocação de liderança paulista, de modo a referendar São Paulo como berço da nação moderna. O que se construía discursivamente era apresentado como fatalidade histórica. A recorrente imagem do bandeirante na coletânea cumpre nessa narrativa poético-histórica papel decisivo. Fernão Dias Paes, explorador dos sertões paulista e mineiro, citado no poema “prosperidade”, já havia sido evocado em “carta”, texto em que a voz é concedida ao personagem histórico, por meio do pastiche de uma de suas missivas dirigida ao secretário do Estado e Guerra, Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre António Vieira. Na carta datada de 20 de julho de 1674, o bandeirante informa sobre a expedição que realizaria no interior paulista em busca de esmeraldas. Imagens ou referências às bandeiras comparecem ainda em “prosperidade de São Paulo”, “ideal bandeirante” e “sabará”; neste último, os paulistas são caracterizados pela voz poética como “traídos”, em tom de lamento, em clara alusão à Guerra dos Emboabas. Esses poemas e outros mais dialogam com uma série de obras historiográficas, literárias e sociológicas que retomavam, no início do século XX, o mito bandeirante9 9 A respeito do mito bandeirante e seus desdobramentos, ver Teixeira (2014). .

Na fragmentada narrativa que emerge da montagem poética oswaldiana, a figura do bandeirante, heroica e altiva, justifica, de um lado, a superioridade paulista, ao exprimir a linhagem genuína de uma identidade em construção, e, de outro, substitui estrategicamente a figura do colonizador português, rasurando ou negando sua herança. Nessa contabilidade histórica, a saga bandeirante, a despeito de sua violência constitutiva, é tomada como um impulso épico, inspirador, com o qual o poeta pode se inserir no cenário de disputas simbólicas e de redistribuição de forças políticas e culturais de seu presente. As “descobertas” dos bandeirantes são abordadas, no fundo, como precursoras da descoberta literária do Brasil proposta no livro, enquanto o poeta modernista, na condição de agente histórico, se apresenta nessa mitologia como um novo desbravador. O modernismo de Pau Brasil apresenta-se como fomento de nova consciência nacional, como se esta fosse o desdobramento natural do futurismo de “indústria, de história e de arte” (Prado, 2017Prado, Paulo. (2017). Poesia Pau Brasil. In: Andrade, Oswald de. Poesias reunidas . São Paulo: Companhia das Letras , p. 15-19.).

O segundo apontamento de Silviano Santiago sobre a obra de Oswald diz respeito à tolerância racial. De fato, na seção “Poemas da colonização”, vemos nos comprimidos de poesia representações de cenas brutais e covardes do escravismo, como no castigo do chicote inclemente, desconsiderando o pedido de perdão do escravo em “azorrague”, ou ainda em “medo da senhora”, em que a mãe se atira no rio Paraíba para que a filha recém-nascida não fosse castigada. Nesses poemas, os efeitos dramáticos são obtidos com o esvaziamento das instâncias subjetivas.

Silviano destaca com razão o modo como Oswald reposiciona a cultura negra ao tratar da “colonização do futuro”, com a denúncia da violência atroz e da posse sexual dos corpos - tema pouco explorado pelos companheiros de 22. Destaco, entretanto, uma peça, intitulada “a transação”, que, sem anular as observações do crítico, ilumina outro aspecto do debate:

O fazendeiro criara filhos
Escravos escravas
Nos terreiros de pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café
(Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.: 43).

Ao se voltar para os “ciclos econômicos” da história brasileira, o poema fabula, com seus versos prosaicos e irregulares, a transição para a monocultura cafeeira, tratada como uma espécie de acumulação primitiva necessária para garantir o desenvolvimento, conforme modelo do progresso ocidental; apresenta também uma fazenda do patriarcado rural, mas idealizada a ponto de minimizar antagonismos e hierarquias sociorraciais, posto que em seus pomares brincam juntos, em implícita harmonia, filhos de escravizados e de grandes proprietários. Tolerância e cordialidade dão a nota de uma convivência pacífica que elimina imaginariamente as separações entre a casa grande e senzala, nutrindo o mito do senhor benevolente cuja fortuna será duradoura no pensamento social brasileiro.

Na transação efetuada no poema, sobrevive, por ocasião da descoberta do Brasil, não apenas a violência racial, ativamente denunciada pelo poeta, mas também construções simbólicas que antecipam imagens e argumentos mais tarde apropriados pelos defensores do mito da democracia racial10 10 Na conferência pronunciada em Belo Horizonte, em 1944, Oswald diz ter antecipado no primeiro tempo modernista, a “sociologia nativa e saudosista do Sr. Gilberto Freyre”. . Esse ideário reaparece em discursos sociais que visavam integrar os negros à sociedade capitalista brasileira, nas décadas de 1930 e 1940, amparados especialmente nas leituras realizadas por Gilberto Freyre. Nesse mesmo período, o debate racial será retomado por Oswald nos ensaios publicados nos anos de guerra, e mais tarde agrupados no volume Ponta de lança, nos quais formula sua conhecida proposta da mulatização do ocidente11 11 Trata-se do artigo “Sol da meia noite”, em Ponta de lança (Andrade, O., 1971) .

Não se trata aqui de apontar (ou de negar), tal como em um tribunal, um veio racista do poeta, como sugere Ruy Castro (2021Castro, Ruy. (2021). Oswald vs. Jack Johnson. Folha de S. Paulo, 17 out. Disponível em <Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/10/oswald-vs-jack-johnson.shtml >. Acesso em 14 jul. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ru...
), ao transcrever em sua coluna da Folha de S.Paulo trechos de um texto de Oswald, datado de 1914, em que o jovem comentava preconceituosamente a passagem pelo Brasil do campeão mundial de boxe, o negro norte-americano Jack Johnson, com sua esposa branca. Considero que a conduta do escritor, como sua obra, é repleta de ambiguidades e contradições, e que ele, não obstante textos e comentários reprováveis, defendeu uma nação livre de antagonismos sociorraciais, como demonstra sua postura combativa contra a ideologia de branqueamento do povo brasileiro e seus desdobramentos nazifascistas, amplamente disseminados em seu tempo (cf. Wisnik, 2022Wisnik, José Miguel. (2022). Semana de 22 ainda diz muito sobre a grandeza e a barbárie do Brasil de hoje. Folha de S.Paulo, 12 fev. Ilustríssima. Disponível em <Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/semana-de-22-ainda-diz-muito-sobre-a-grandeza-e-a-barbarie-do-brasil-de-hoje.shtml >. Acesso em 12 fev. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
). Vale ainda lembrar, como o faz Wisnik (2022Wisnik, José Miguel. (2022). Semana de 22 ainda diz muito sobre a grandeza e a barbárie do Brasil de hoje. Folha de S.Paulo, 12 fev. Ilustríssima. Disponível em <Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/semana-de-22-ainda-diz-muito-sobre-a-grandeza-e-a-barbarie-do-brasil-de-hoje.shtml >. Acesso em 12 fev. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissi...
), que o poeta participaria como convidado do congresso organizado pela Frente Negra Brasileira (FNB), em 1937, no Theatro Municipal de São Paulo, espaço das elites paulistas que também servira de palco da Semana.

O que me parece relevante é que a reconsideração do passado brasileiro empreendida pelo poeta, ao reivindicar nova consciência nacional por meio de procedimentos originais baseados nos recursos da imagem poética (síntese, condensação, alegoria etc.), conforme assinalado por Silviano Santiago (2006Santiago, Silviano. (2006). Oswald de Andrade ou elogio da tolerância racial. In: Santiago, Silviano. Ora (direis) puxar conversa! Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 133-146.), dá forma, entretanto, a uma história fatal, cujas premissas remetem à noção de progresso e a uma mentalidade “desenvolvimentista”. História cuja representação do passado, embora se anuncie como gesto de negação da história tradicional, pouco se afasta em seus resultados de empreendimentos históricos positivistas ou, melhor dizendo, se mantém presa a uma mesma “estrutura temporal”, tal como a expressão é definida por Koselleck (2012Koselleck, Reinhart. (2012). Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto.). A “transação”, agenciada discursivamente com a síntese histórico-poética, trabalha, com sua escrita fragmentada, para a construção de uma unidade do tecido social, criando as condições de integração necessárias para a ação do poeta-bandeirante em sua tarefa propositiva de erigir uma cultura nacional, sem fronteiras internas. Como se o transcurso do tempo histórico, captado numa poesia apta à exportação, definisse um destino fatal, modernizador - mas fora dos padrões ocidentais - para a coletividade.

Esse modelo interpretativo, dúbio por definição, ao dar visibilidade a desacertos decorrentes da experiência colonial, definindo positivamente um país não oficial, arcaico e moderno a um só tempo, serve tanto à celebração de São Paulo, e, por conseguinte, à história de modernização econômica e cultural idealizada pelos paulistas - um protótipo do que hoje se nomeia agroindústria -, quanto à denúncia da violência escravista. Violência, por sua vez, que é condenada por um viés crítico cujo ânimo triunfalista, indiciado na imagem do melting-pot do futuro, alimenta a ideologia de integração étnica e democracia racial corrente na sociedade brasileira.

BOITEMPO: UM VENTO SOPRA DE MINAS

A recepção de Boitempo (1968) foi bastante acidentada12 12 A obra foi publicada pela editora José Olympio em três volumes: Boitempo (1968), Esquecer para lembrar (1974) e Menino antigo (1979), sendo que o primeiro deles foi lançado em uma edição conjunta com uma coletânea de poemas inéditos, intitulada A falta que ama. . No calor da publicação, nomes de peso da crítica literária brasileira, como José Guilherme Merquior, Luiz Costa Lima e Haroldo de Campos, entre outros, se decepcionaram com os poemas memorialísticos de Drummond. Em linhas gerais, consideraram, sob régua da estética vanguardista, que os textos haviam perdido o engenho sintático e a tensão reflexiva das etapas anteriores. Merquior (1975Merquior, José Guilherme. (1975). Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio.), por exemplo, observava que a hipertrofia do humor teria provocado uma mutação estilística ao suspender o estilo mesclado - conceito-chave de Auerbach (1998Auerbach, Erich. (1998). Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva.) em sua caracterização da poesia moderna -, minando a perspectiva problemática do conjunto poético. Como consequência desse afrouxamento, os poemas teceriam, na cadência distendida da crônica, um movimento reconciliatório com as origens oligárquicas e demonstrariam uma postura condescendente com o que elas representam em termos sociopolíticos, notadamente com o patriarcalismo e com o conservadorismo. O desfecho seria a reinserção simbólica do poeta na estrutura familiar.

Um pouco mais tarde, Silviano Santiago (1976Santiago, Silviano. (1976). Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis: Vozes. (Coleção Poetas Modernos do Brasil): 42-32) também exporia suas restrições à obra, ao propor um ordenamento da produção memorialista drummondiana em dois grandes ciclos: o primeiro pautado por uma atitude rebelde em relação ao passado (fase robinsoniana) e o segundo (ciclo proustiano, iniciado com os poemas de 1968) caracterizado por uma aceitação complacente desse mesmo passado:

Ao querer recuperar as lembranças de menino nas Minas Gerais, a poesia de Carlos Drummond passa por um processo lento e intermitente de negação. Nega-se o Pai como transmissor da cultura; nega-se a Família como determinante da situação socioeconômica do indivíduo na sociedade. No auge da carreira, a partir do final da década de 1960, a restauração da memória do “menino antigo” desabrochará plena e perfumada nas auto-indulgentes coletâneas Boitempo I, II e III. Nesta segunda fase, que poderíamos chamar de proustiana (em oposição à primeira, robinsoniana), os fundamentos da rebeldia individual diante da figura do pai e os fundamentos da revolução ideológica frente ao conservadorismo político da sociedade patriarcal perderão a sua razão de ser, pois são indícios de mera e passageira insubordinação contra a família e contra a posição socioeconômica que ela mantém em Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais e Brasil (Santiago, 1976Santiago, Silviano. (1976). Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis: Vozes. (Coleção Poetas Modernos do Brasil): 68, grifo do autor).

Com efeito, uma poética da memória atravessa a produção drummondiana, da primeira à última obra, criando diferentes formas de lembrar e de lidar com o tempo. No entanto, como observa José Miguel Wisnik (2018Wisnik, José Miguel. (2018). Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras .: 62), “já temos elementos abundantes para questionar a ideia arraigada de que Boitempo é um livro complacente com a origem oligárquica, entregue ao mero comprazimento rememorativo do mandonismo patriarcal, da província e da família”. Partindo dessa premissa, entendo que em Boitempo a memória se coloca como um dispositivo de reterritorialização por meio do qual “um menino, uma serra e um clã”, símbolos de um tempo aparentemente longínquo, dialogam com o adulto, abrindo possibilidades de significação que somente se revelam nas articulações entre a história individual e a coletiva, entre o passado recordado e o tempo da escrita, a rigor indissociáveis.

Com a intenção de ensaiar uma leitura comparada com a obra oswaldiana, destaco alguns poemas da trilogia drummondiana, atento à ruminação do tempo que ali se realiza e levando a sério o aviso ambíguo do menino antigo, que diz contar o seu presente. O problema racial, vivamente abordado em Pau Brasil, atravessa também as memórias do itabirano. No poema intitulado “Mancha”, ele parece receber o estatuto de uma “sobrevivência”, posto que as marcas da violência escravagista não se desfazem nem mesmo com o passar do tempo:

Na escada a mancha vermelha
que gerações sequentes em vão
tentam tirar.

Mancha em casamento com a madeira,
subiu da raiz ou foi o vento
que a imprimiu no tronco, selo do ar.

E virou mancha de sangue
De escravo torturado - por que antigo
dono da terra? Como apurar?

Lava que lava, raspa que raspa e raspa,
nunca há de sumir
este sangue embutido no degrau
(Andrade, C., 1992Andrade, Carlos Drummond de. (1992). Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.: 466).

O vermelho do sangue escravo fundiu-se definitivamente à madeira, à escada e à memória do filho do coronel. A mancha amorfa e indefinida, que se apresenta inicialmente apenas como cor, ganha predicado para se revelar como metáfora do trauma histórico decorrente do escravismo, e, como tal, coloca-se como passado que não passa, incômoda duração que “nunca há de sumir”. Os sons repetidos e guturais do fonema /r/ na última estrofe ecoam mimeticamente a insistência e o fracasso da tentativa de raspagem e apagamento do passado, revivido, contudo, no poema-memória. De quem é a culpa, indaga a voz poética? Como apurar quem foi o responsável? À certeza de permanência da mancha e do trauma corresponde a incerteza da condenação dos culpados. “Agritortura”, outra peça do livro sobre a escravidão, parte de um neologismo para apresentar os laços indissociáveis entre lavoura e trabalho compulsório no Brasil oitocentista:

Amanhã serão graças
de museu.

Hoje são instrumentos de lavoura,
base veludosa do Império: “anjinho”:
gargalheira,
vira-mundo.

Cana, café, boi
emergem ovantes dos suplícios.
O ferro modela espigas
maiores.
Brota das lágrimas e gritos
o abençoado feijão
da mesa baronal comendadora
(Andrade, C., 1992Andrade, Carlos Drummond de. (1992). Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.: 447).

Em estrofes compostas por versos livres, dominantes em toda a obra, a composição poética, que em tudo se assemelha esteticamente aos versos oswaldianos, aproveita-se das diferentes utilidades dos instrumentos de trabalho que tanto servem à lavoura quanto à tortura dos escravos, sendo ambos os usos vitais e integrados na mesma atividade econômica. Tamanha mobilidade de “significação” entre trabalho da terra e tortura do corpo abre a possibilidade para que a ferramenta usada cruelmente para garantir a dominação se transforme futuramente em “graças de museu”. “Anjinho”, “gargalheira” e “vira-mundo”, nomes que não denotam a brutalidade exercida pelo objeto nomeado, referem-se, respectivamente, aos anéis de ferro com parafuso, à coleira de ferro ou madeira e ao pesado grilhão de ferro com que se prendiam os escravizados, como forma de puni-los ou de fazê-los confessar seus “crimes”.

O poema drummondiano, como o de Oswald, alude aos ciclos econômicos (cana, café, gado), bem como aos contrastes do mundo pós-colonial, mas eles não são tratados como etapas de um progresso fatal; ao contrário, aparecem como saldo ou vitória sobre o suplício alheio. São efetivamente vistos como problema, escapando do movimento ideológico conciliador. As imagens elaboradas não consagram a produção agrícola como fonte de acumulação de capital necessária nem assumem a pedagogia nacionalista do progresso do país postulante à modernidade. Não pertencem, por assim dizer, à utopia desenvolvimentista latente na “filosofia da história”, que se pode apreender da obra oswaldiana. Basta notar que o “abençoado feijão”, expressão de ironia multidirecionada, é resultado do trabalho desumano, de lágrimas e gritos do negro cativo. Igualmente perpetuadas no tempo, as peças de tortura ou de cultivo seguirão contempladas em espaços da memória - do poeta e da sociedade. Seguirão por gerações como a mancha vermelha na escada.

As memórias do escravismo ganham novos matizes em “O ator”. A cena cômica em que o escravizado fugido é identificado e capturado, enquanto atuava em uma peça de teatro mambembe à beira de um rio, no mato-fundo de Minas, não parece pertencer a um poema abandonado pela “musa filosófica”, a despeito da leveza de seus versos prosaicos e rimados. Narrado pelo menino que conta as proezas do avô-coronel, mas com a intromissão dialógica das vozes dos personagens envolvidos na trama, o poema funda-se justamente no contraste entre a frivolidade da historieta e a violência atroz, no entanto, regularizada, que a atravessa.

Participante de uma plateia improvisada, durante os momentos de descanso de uma cavalgada, o coronel reconhece na encenação do palco a cicatriz facial de seu escravizado, que atuava no papel de um fidalgo espanhol. Abruptamente o proprietário invade a cena, brandindo seu chicote - utensílio indispensável (“pois anda sempre com ele / em roça, brejão ou vila”) - e tomando para si a fala definitiva: “Acaba com essa papeata / senão sou é que te acabo”. A autoridade do senhor se faz valer pela força e pelo direito, com o consentimento de todos os presentes: “Cumpre-se a lei. Está escrito: / a cada um o seu gado” (Andrade, 1992Andrade, Carlos Drummond de. (1992). Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.: 456).

Embora pertencente ao anedotário familiar, a narrativa poética não se restringe ao universo particular do menino-poeta. Os últimos versos, que inscrevem a cena num tempo do já-ocorrido - “A tropa vai caminhando / pelo Segundo Reinado” -, criam ambiência próxima a de uma “moral de fábula”, como se a escravidão fosse lei gravada no fundo dos tempos. O “sertão” mineiro torna-se metonímia da nação escravocrata. A ironia da cena, em que o conde fictício do palco é aprisionado pelo grande proprietário das Gerais, explora o fato de que mesmo o mundo ficcional do teatro se curva à realidade do mando e da lei escravista: “era uma vez um artista / pelo berço mui dotado”. O título da peça encenada na mata, “A vingança do passado”, remete à força-de-lei que impede a liberdade do escravo fujão.

Não por acaso e certamente em função de correlações históricas, o “chicote” do coronel itabirano é também o signo-chave do poema “pobre alimária”, de Oswald de Andrade, bem como da interpretação a ele consagrada por Roberto Schwarz (1987Schwarz, Roberto. (1987). A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: Schwarz, Roberto. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras , p. 11-28.). O poema de Oswald, integrante da seção “Postes da light”, constrói-se como o flagrante de uma cena urbana, impelida pelo encontro/desencontro de uma carroça puxada a cavalo, resto do mundo arcaico, com o bonde, símbolo por excelência da cidade moderna na primeira metade do século XX. Com o animal empacado sobre os trilhos, impedindo que o veículo transportasse “os advogados para os escritórios”, um sistema de mando e hierarquias entre as classes sociais representadas na peça (os doutores, o motorneiro, o carroceiro e, claro, o animal) é devidamente acionado. Conforme observação de Schwarz (1987Schwarz, Roberto. (1987). A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: Schwarz, Roberto. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras , p. 11-28.: 15), o impasse é desempatado pelo funcionário do bonde, que “serve o campo moderno e lhe tomas dores”, pressionado pela “impaciência” dos nobres passageiros, ainda que seu mundo de origem seja outro.

Nessa escada de poderes, abordada pelo poema em viés cômico, os advogados intimidam silenciosamente o motorneiro, que, por sua vez, se lança sobre o carroceiro. Este, sem ter em quem mandar, ocupante que é das bases da pirâmide social, mas indisposto a aceitar tal fato, disfere seu chicote sobre o pobre animal. Dependências pessoais, advindas da sociedade colonial, definindo um “mundo de ressentimentos em luta, de insegurança e ambiguidade valorativa” (Schwarz, 1987Schwarz, Roberto. (1987). A carroça, o bonde e o poeta modernista. In: Schwarz, Roberto. Que horas são? Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras , p. 11-28.: 16) e aclimatado à condição moderna por meio do humor e do traço primitivo da linguagem vanguardista, integram-se sem que constituam exatamente um problema. A voz moderna e desimpedida do sujeito-do-poema se vale da sobrevivência de relações de mando e poder decorrentes do período colonial.

O chicote do coronel itabirano, peça-chave de uma estrutura de poder e dominação política, bem como de todo o maquinismo que regula as relações sociais, embora esteja igualmente revestido pelo humor no poema drummondiano, não corrobora com a visão negociada de Pau Brasil nem com a miragem do progresso, as quais amortecem os antagonismos constitutivos do Brasil moderno. No drama do escravizado fugidio, ele não é instrumento de conciliação, a partir da qual o mundo moderno desponta em acordo com o sistema de autoridade tradicional, mas sim símbolo de um poder que se faz valer efetivamente pela força e pela violência. Se o tempo narrado em Boitempo recoloca em cena o fim de uma era e a decadência de uma linha de poderosos, entre os quais se incluem os Andrades, e se esse passado é “o epítome-epílogo / da grandeza” de um clã provinciano, o poema não deixa de registrar a sobrevivência de um mundo autoritário na vida social e política do presente. Nesse sentido, a obra relança a seu modo um jogo recorrente da poética drummondiana, tecido entre dissolução e sobrevivência, posto que, enquanto desaparecem signos, valores e modos de vida da província, tornados inoperantes ou obsoletos pelo tempo-do-progresso, permanecem reatualizadas, sob condições modernas, relações e poderes continuados.

Como se vê, os poemas dão contorno a uma sociedade conservadora e patriarcal, na qual se encontram bem definidas as instâncias de poder e os dispositivos disciplinares que parecem assinalar o legado de nossa modernidade. Esse legado é capaz de reconduzir o passado da província mineira para o tempo-da-escrita, em que o poeta se encontra submetido às linhas duras do autoritarismo militar.

O tempo narrado do poema-memória já não se reporta, assim, simplesmente à temporalidade que ele delimita. Há nesse mecanismo de rememoração uma certa dimensão performativa, à medida que o passado é colocado em movimento e submetido a permanentes reinscrições, de acordo com as contingências e traumas do presente-da-escrita. Não me parece coincidência o fato de que as crônicas drummondianas publicadas no Jornal do Brasil - todas elas contemporâneas aos poemas memorialistas - discutam reiteradamente temas como repressão, censura e liberdade. Em uma delas, “Carta ao censor” (Andrade, C., 1970Carta ao censor. (1970). Jornal do Brasil, 79/266, p. 8. Disponível em <Disponível em http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_09&pagfis=180687 >. Acesso em 10 jun. 2020.
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader...
), para me ater a um único exemplo, o escritor se dirige ironicamente à autoridade responsável pela censura prévia de livros no estado da Guanabara, a quem pede licença para um “papo informal”.

Os “quadros itabiranos” de Boitempo - em alusão aos quadros parisienses de Baudelaire - criam imagens de um passado que se atualiza, seja sob o molde de um “racismo estrutural”, seja com a vigência da autoridade patriarcal e das estruturas de mando. Seus versos prosaicos não definem uma memória apaziguada do passado, uma vez que promovem reflexões acerca de experiências convergentes (Hoje… ontem) perante o poder autoritário, como se, ao tratar do tempo e da força dos coronéis da república, tempo em que desfrutara de sua infância, o poeta não perdesse de vista os problemas da hora histórica colocados com a ditadura militar instaurada em 1964. A esse respeito, vale ainda notar, como diferença de registro, que no poema drummondiano temos acesso, de uma forma ou de outra, a conteúdos subjetivos dos personagens em embate, o que não ocorre em Pau Brasil.

Manifestações do poder oligárquico e patriarcal são também abordadas em “Gesto e palavra”:

Tomar banho, pentear-se
calçar botina apertada
ir à missa, que preguiça.

A manhã imensa escurecendo
no banco da igreja
duro ajoelhar
imunda reflexão dos mesmos pecados
de sempre.

Manhã que prometia caramujos
músicos
mágicos
maduros sabores
de tato, barco de leituras
secretas sereias…
apodrecida.

Não vai? Pois não vai à missa?
Ele precisa é de couro

Ó Coronel, vem bater,
vem ensinar a viver
a exata forma de vida.
No rosto não!
Ah, no rosto não!
Que mão se ergue em defesa
da sagrada parte do ser?
Vai reagir, tem coragem
de atacar o pátrio poder?

Nunca se viu coisa igual
no mundo, na Rua Municipal

- Parricida! Parricida!
Alguém exclama entre os dois.
Abaixa-se a mão erguida
E fica o nome no ar.

Por que se inventam palavras
que furam com punhal?
Parricida! Parricida!
Com essa te vai matar
por todo o resto da vida
(Andrade, C., 1992Andrade, Carlos Drummond de. (1992). Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.: 565).

A micro-história da infância provinciana narrada no poema arma-se dramaticamente com a participação de personagens e vozes incertas, mas que participam, tal como num coro trágico, da desventura da criança. A primeira estrofe apresenta uma enumeração de ações disciplinares, misturando normas religiosas, sociais e familiares, que são impostas ao menino, impedindo-lhe de aproveitar o seu dia. Todas elas são elaboradas em versos regulares, compostos por redondilhas maiores, cujo rigor da construção apenas reforça o enquadramento imposto. De dentro da igreja, o menino vê a manhã, metonímia do mundo e da liberdade, figurada na promessa de contatos sensoriais com seres e coisas; entretanto, ele precisa se dobrar à lei para refletir sobre os seus sempre “mesmos pecados”.

A sujeira e a dureza do “ajoelhar-se” tornam “imunda” e sem valor real a contrição a que se vê forçado. Na verdade, toda essa cena é apenas imaginada, recordada, de certo modo, posto se repetir como rotina. O que de fato ocorre, no presente-do-narrado, é a recusa da criança, pois ele não chega a ir à missa: “Não vai?”; questiona ameaçadoramente uma voz alheia. O pai-coronel é então chamado para restabelecer violentamente a ordem. A surra é o recurso para ensinar o “menino desajustado” - retomando a imagerie gauche - a viver. Bater e viver são verbos e ideias distintos, mas aproximados pela rima. Bater para ensinar a viver: tudo definido pela persona do mandonismo local, modelar do autoritarismo no Brasil. Na sequência, a humilde resistência do menino, protegendo sua face, ganha ares de condenação maior, desfiando os poderes gravados na tabua da família, o que remete novamente à tragédia edipiana: Parricida! Parricida! Vozes sociais não identificadas, mas presumidamente pertencentes à órbita de agregados e da parentela do senhor-coronel, reivindicam a obediência à ordem paterna e se gravam na memória e, até mesmo, no ar, assegurando a força de sua ressonância social.

A religião e a família, a missa e o pai, o vestir-se e o pentear-se, a limpeza e o rigor, todos esses signos reunidos revelam representações embaralhadas da lei e dos poderes, garantidos pela violência da autoridade patriarcal - representada na figura do coronel da República Velha -, poder paterno que se coloca no poema como representante do poder da pátria. Essa associação entre as esferas doméstica e a coletiva, a privada e a pública, sendo que a primeira estende a sua lógica à segunda, dá-se num golpe de escrita, quando uma das vozes textuais lança indignada e surpresa a pergunta: “tem coragem de atacar o poder pátrio?” Poder do pai e poder da pátria reunidos no mesmo signo fazem confluir espaços familiares e sociais, o tempo dos coronéis e o tempo da nação, de modo a sugerir uma temporalidade estendida, presente e passado emoldurados pelo poema em um horizonte histórico comum, o de uma “pátria histocirizada”, para valermo-nos da feliz expressão de Luiz Costa Lima (1995Lima, Luiz Costa. (1995). Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro: Topbooks.).

É justamente no processo de distinção entre passado e futuro, entre experiência e expectativa, ou melhor, na impossibilidade de separá-los completamente, na dualidade cúmplice que se estabelece entre o poeta e o menino, que um tempo histórico se constitui nessas memórias. No lugar de um movimento teleológico que imputa uma contínua superação de movimentos e tempos, como se dá com a temporalidade das vanguardas, os poemas parecem traçar, à maneira das considerações teóricas de Koselleck (2012Koselleck, Reinhart. (2012). Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto.), um futuro-passado, de modo a apontar o passado como uma era vindoura. A frase do historiador alemão, retirada de outro contexto, parece esclarecer aspectos da poética tardia do itabirano: “O que se segue, portanto, procurará falar, não de um tempo histórico, mas de muitas formas de tempo sobrepostas umas às outras” (Koselleck, 2012Koselleck, Reinhart. (2012). Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto.: 15). Enquanto o menino caminha para frente na vida, narrando seus tropeços, o adulto retoma a posteriori o caminho percorrido, que já não pode ser plenamente refeito, em sua memória liminar, traçada como poema-em-crônica. Nesse regime temporal, a partir do qual temos acesso à experiência do outro, que, de certa forma, o adulto se tornou, uma ordem correlacional de imagens e vozes de ontem e de hoje se entrecruzam. Talvez por isso, Drummond estivesse duplamente certo ao declarar no início dos anos de 1940 que sua matéria sempre foi o tempo presente, os homens presentes.

REFERÊNCIAS

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  • Jardim, Eduardo. (1988). Modernismo revisitado. Estudos históricos, 1/2, p. 220-238.
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  • Teixeira, Ana Lúcia. (2014). A letra e o mito: contribuições de Pau Brasil para a consagração bandeirante nos anos de 1920. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29/86, p. 29-44.
  • Teles, Gilberto Mendonça. (1980). Seleção e apresentação. In: Athayde, Tristão de. Teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos.
  • Urbinati, Nadia. (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge: Harvard University Press.
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  • Wisnik, José Miguel. (2022). Semana de 22 ainda diz muito sobre a grandeza e a barbárie do Brasil de hoje. Folha de S.Paulo, 12 fev. Ilustríssima. Disponível em <Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/02/semana-de-22-ainda-diz-muito-sobre-a-grandeza-e-a-barbarie-do-brasil-de-hoje.shtml >. Acesso em 12 fev. 2022.
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NOTAS

  • 1
    A pensadora italiana Nadia Urbinati (2014Urbinati, Nadia. (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge: Harvard University Press.) adota a expressão “desfiguração da democracia” ao tratar do cenário político contemporâneo, em seu livro Democracy disfigured: opinion, truth, and the people.
  • 2
    Adoto aqui a divisão temporal da produção modernista proposta por Eduardo Jardim (2016Jardim, Eduardo. (2016). A brasilidade modernista - sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Ed. PUC Rio.) em A brasilidade modernista - sua dimensão filosófica.
  • 3
    No decorrer dos anos de 1960, a literatura brasileira vê-se tomada por um “surto” memorialístico e/ou biográfico, com a presença destacada de escritores que, como o século, também beiravam os sessenta anos, sendo a maior parte deles formados sob fluxos teóricos e estéticos modernistas. A idade do serrote, de Murilo Mendes, e Boitempo, de Drummond, por exemplo, são publicados em 1968, exatamente no ano em que Pedro Nava inicia a redação de Báu de Ossos. O veio memorialista terá ainda desdobramentos na década seguinte, com os relatos dos ex-combatentes e guerrilheiros e suas narrativas de resistência e embate contra a Ditadura Militar.
  • 4
    O artigo de Tristão de Athayde, intitulado “Leitura suicida”, é representativo da recusa predominante que caracteriza a recepção das referidas publicações de Oswald de Andrade. Ver Teles (1980Teles, Gilberto Mendonça. (1980). Seleção e apresentação. In: Athayde, Tristão de. Teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos.: 346).
  • 5
    Em “Falação”, poema situado no início do livro, Oswald recupera, em versão resumida, alguns aforismos publicados no manifesto de 1924 (Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 6
    A expressão foi empregada em carta de Manuel Bandeira para Mário de Andrade.
  • 7
    Refiro-me especialmente aos poemas “prosperidade de são paulo”, “versos de dona carrie”, “metalúrgica”, “angabaú” e “atelier” (Andrade, O., 2017Andrade, Oswald de. (2017). Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras.).
  • 8
    Verso do poema “escola rural” igualmente inserido na seção “São Martinho”.
  • 9
    A respeito do mito bandeirante e seus desdobramentos, ver Teixeira (2014Teixeira, Ana Lúcia. (2014). A letra e o mito: contribuições de Pau Brasil para a consagração bandeirante nos anos de 1920. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29/86, p. 29-44.).
  • 10
    Na conferência pronunciada em Belo Horizonte, em 1944, Oswald diz ter antecipado no primeiro tempo modernista, a “sociologia nativa e saudosista do Sr. Gilberto Freyre”.
  • 11
    Trata-se do artigo “Sol da meia noite”, em Ponta de lança (Andrade, O., 1971Andrade, Oswald de. (1971). Ponta de lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. )
  • 12
    A obra foi publicada pela editora José Olympio em três volumes: Boitempo (1968), Esquecer para lembrar (1974) e Menino antigo (1979), sendo que o primeiro deles foi lançado em uma edição conjunta com uma coletânea de poemas inéditos, intitulada A falta que ama.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2022
  • Revisado
    17 Jun 2022
  • Aceito
    21 Jun 2022
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