Acessibilidade / Reportar erro

As paisagens literárias na obra de Jorge Amado: navegando com(o) turcos à descoberta da América

The literary landscapes in the work of Jorge Amado: sailing as/with turks discovering America

Resumos

A relação entre a Geografia e a Literatura é bilateral: por um lado os escritores tomam o espaço como referência para a concepção e estruturação das suas obras; por outro os geógrafos compreendem dinâmicas territoriais através de pistas literárias. Dessa forma, a escrita ficcional, como instrumento de trabalho, ganha importância no contexto técnico, assim como no plano didáctico. Tendo como base analítica o quadro teórico estruturante dos sistemas migratórios transatlânticos, pretende-se reflectir sobre alguns pontos específicos dos percursos geográficos, sociais e económicos da emigração árabe para o Brasil, no início do século XX, tendo como base "A descoberta da América pelos Turcos" (1994), de Jorge Amado.

Geografia; Migrações Transatlânticas; Emigrantes Árabes; Jorge Amado


The relation between Geography and Literature is bilateral: on the one hand, writers take space as reference to the conception and structuring of their works; on the other hand geographers understand territorial dynamics through literary clues. This way, fictional writing, as a work tool, gains importance in the technical context as well as in the teaching plan. In the specific case of transatlantic migrations, basing analytically on the theoretical structuring board of transatlantic migration systems, it is intended to reflect over some specific points of the geographic, social and economic paths of Arab emigration to Brazil, in the beginning of the 20th century, having as base "A descoberta da América pelos Turcos" (The discovery of America by the Turks) [1994] by Jorge Amado.

Geography; Transatlantic Migrations; Arab Emigrants; Jorge Amado


ARTIGOS

As paisagens literárias na obra de Jorge Amado: navegando com(o) turcos à descoberta da América

The literary landscapes in the work of Jorge Amado: sailing as/with turks discovering America

Fátima Velez de Castro

Prof. Dra., Depto. de Geografia, Universidade de Coimbra velezcastro@fl.uc.pt

RESUMO

A relação entre a Geografia e a Literatura é bilateral: por um lado os escritores tomam o espaço como referência para a concepção e estruturação das suas obras; por outro os geógrafos compreendem dinâmicas territoriais através de pistas literárias. Dessa forma, a escrita ficcional, como instrumento de trabalho, ganha importância no contexto técnico, assim como no plano didáctico. Tendo como base analítica o quadro teórico estruturante dos sistemas migratórios transatlânticos, pretende-se reflectir sobre alguns pontos específicos dos percursos geográficos, sociais e económicos da emigração árabe para o Brasil, no início do século XX, tendo como base "A descoberta da América pelos Turcos" (1994), de Jorge Amado.

Palavras-chave: Geografia; Migrações Transatlânticas; Emigrantes Árabes; Jorge Amado.

ABSTRACT

The relation between Geography and Literature is bilateral: on the one hand, writers take space as reference to the conception and structuring of their works; on the other hand geographers understand territorial dynamics through literary clues. This way, fictional writing, as a work tool, gains importance in the technical context as well as in the teaching plan. In the specific case of transatlantic migrations, basing analytically on the theoretical structuring board of transatlantic migration systems, it is intended to reflect over some specific points of the geographic, social and economic paths of Arab emigration to Brazil, in the beginning of the 20th century, having as base "A descoberta da América pelos Turcos" (The discovery of America by the Turks) [1994] by Jorge Amado.

Key-words: Geography, Transatlantic Migrations, Arab Emigrants, Jorge Amado.

PERCURSOS, PROCESSOS E IDENTIDADES MIGRATÓRIAS NA DIÁSPORA TURCA, SEGUNDO A VISÃO DE JORGE AMADO

A busca de sinais geográficos em obras literárias constitui-se, para o geógrafo, como uma forma de pesquisa de dados e de informações da realidade, a qual é abordada no plano hipotético-ficcional. Cravidão (1992) e Cravidão e Marcos (2000) referem que, na literatura, as descrições dos espaços, dos tempos, das personagens, das relações afectivas, sociais e culturais, se constituem como um vasto campo de análise. Pois em todas as épocas, segundo Jacinto (1995, p.140), a literatura reproduz de uma forma ou de outra a sociedade e as suas contradições, podendo a ficção reportar-se a um espaço fisicamente identificável. As primeiras obras de geografia, tanto as de carácter nomotético como ideográfico, têm uma forte ligação à viagem de natureza exploratória, derivando numa concepção corográfica associada à observação directa, tanto mais que interessava descobrir e descrever os lugares decorrentes dessa pesquisa espacial.

Embora extemporâneo a autores pioneiros nesta ciência, como é o caso de Humbolt e Ritter, Jorge Amado parece ter herdado, inconscientemente presumível, a herança descritiva da paisagem, mais especificamente a vertente humana na relação com o território. É disto exemplo a obra "A descoberta da América pelos Turcos" (1994) que, num primeiro momento, parece atípica no conjunto da sua produção, quer pela dimensão, quer pela brevidade do conteúdo. Todavia, trata-se de um testemunho literário de grande importância que oferece ao leitor um ponto de vista sobre as migrações transatlânticas para o Brasil, de meados do século XIX ao início do século XX.

Figura 01


Raduan Murad e Jamil Bichara são os protagonistas. Estes dois "turcos" fazem parte do vasto elenco de personagens árabes de Jorge Amado, e ajudam a entender a dinâmica da diáspora do Médio-Oriente na América do Sul. Esta omnipresença fiel que persevera na obra deste escritor, em muito se deve, segundo Medauar (1993), à relação entre o "achador" e o "achado", num passado longínquo. O autor refere-se aos cristãos arabizados da Península Ibérica que, na época dos Descobrimentos, chegaram ao novo mundo como colonizadores. Acentua que o inflamado sangue árabe fervia tanto quanto o lusitano, pois nunca alguém de fora influiu tanto na nacionalidade e no nacionalismo português, que mais tarde haveria de influenciar o brasileiro.

Nesta lógica, parece assumir uma proto-colonização indirecta iniciada por portugueses descendentes de povos do Médio-Oriente, que mais tarde se haveria de consubstanciar em efectivos e originais fluxos migratórios oriundos dessa mesma região. Cabe referir que a singularidade desta obra se relaciona com uma dualidade de funções. Por um lado, foca os aspectos geográficos, económicos, laborais, sociais e culturais da diáspora árabe; por outro coloca questões referentes à terminologia migratória, discutindo a validade de conceitos ligados ao produto e forma deste tipo de mobilidade:

Não participaram [as edições desta história em várias línguas] das comemorações do Quinto Centenário [da descoberta do cami nho marítimo para o Brasil] que, por sinal, degeneraram como previsto em polémica dura e radical: descoberta ou conquista?, epopeia ou genocídio? (AMADO, 1994, p.16)

Outros papéis, outras testemunhas, os espa nhóis rebatem, vá-se lá saber quem tem razão, carimbos nos papéis se falsificam, compram -se testemunhas com vil metal. Se os espanhóis merecem pouco crédito, menos ainda o me recem os italianos, como se comprova com a vigarice de Vespucci. (...) Muito atrapalhada, a Descoberta. (AMADO, 1994, p.22)

[Sobre o Quinto Centenário] da Descoberta, dizem os descendentes dos impávidos que des cobriram o outro lado do mar; da Conquista exclamam os descendentes dos índios mas sacrados, dos negros escravizados, das cul turas arrasadas à passagem de mercenários e missionários conduzindo a Cruz de Cristo e a pia baptismal. (AMADO, 1994, p.25, 26)

Toma-se em atenção o ponto de vista de quem "descobre" e de quem é "descoberto", daí que se acentue, num primeiro momento, a perspectiva negativa do domínio territorial preconizada pelos fluxos iniciais de migrantes. Lógica será a opinião de Jorge Amado, ao considerar que o processo de integração não ocorreu no verdadeiro sentido etimológico do conceito, isto é, terá sido antes um genocídio assimilador da população autóctone através da morte ou da escravização. Também coloca em causa a seriedade e veracidade das versões oficiais sobre os autênticos vanguardistas, insinuando que a deturpação documental pode ser um facto, perigando as teorias sobre o início dos movimentos migratórios na América do Sul.

Esta discussão apresentada no prefácio da obra, acaba por se diluir ao longo da história, embora seja ubíqua através de referências indirectas ao tema. Um dos exemplos mais importantes é o do paralelo que o autor estabelece entre as migrações pré-modernas e modernas identificadas por Blanco (2000), neste caso tendo em conta a chegada ao Brasil dos dois protagonistas. Enfatiza o tempo, o espaço e a forma como ocorre o processo de mobilidade:

O navio no qual embarcaram o moço Jamil Bichara e o douto Raduan Murad aportou na Bahia de Todos os Santos em Outubro de 1903, quatrocentos e onze anos após a epopeia das caravelas de Colombo. Nem por isso o desem barque deixava de ser descoberta e conquista. (AMADO, 1994, p.26-27)

A importância da clarificação conceptológica também está patente na questão da identidade associada à origem geográfica. Jorge Amado faz questão que o leitor tenha dados suficientes que permitam compreender e justificar um antagonismo aparentemente desprovido de sentido, e que se relaciona com a identificação determinada pela população autóctone, no que diz respeito a estes emigrantes:

Os primeiros a chegar do Oriente Médio traziam papéis do Império Otomano, motivo por que até nos dias actuais são rotulados de turcos, a boa nação turca, uma das muitas que amalgamadas compuseram e compõem a nação brasileira. (...) Vindos de distintas plagas, sertanejos, sergipanos judeus, turcos – dizia-se turcos, eram árabes, sírios e libaneses –, todos eles brasileiros.(AMADO, 1994, p.26, 27)

Se por um lado faz questão de particularizar a origem geográfica, por outro desmistifica a incapacidade, ou melhor dizendo, a necessidade do povo brasileiro simplificar a compreensão da proveniência destes estrangeiros, designando todo e qualquer imigrante de diversos países do Médio-Oriente como "turco". Turco tem um significado colectivo. E perante tal facto, Jorge Amado retira a necessidade de especificação pois há uma identificação imediata entre o "turco" e o "brasileiro": ambos fazem parte da mesma "amálgama" que é o povo do Brasil.

Do ponto de vista teórico, esta dinâmica está associada à imagem do melting pot resultante da integração dos imigrantes no território de destino (VELEZ DE CASTRO, 2012a). Porém, e tal como já foi argumentado, na prática, o início do processo consubstancia-se através de uma violenta estratégia de assimilação. Este último conceito, embora com uma conotação (quase sempre) negativa, acaba por se revelar necessário e, mais importante, aceite pelas próprias personagens imigrantes como elemento indispensável ao processo de integração no território. Tal como defende Penninx (2008), Machado (2002) e Cashmore (1996), vários são os actores responsáveis pela dinâmica, não cabendo a responsabilidade apenas a um grupo, mas a todos os elementos da sociedade de acolhimento, separáveis e distinguíveis, mas com o mesmo valor, onde se incluem os próprios imigrantes.

São diversas as pistas indicadas pelas personagens, que consubstanciam a sua participação como agentes activos do processo de integração/assimilação:

Em tudo diferentes um do outro, nada con seguia turvar a amizade dos dois turcos, o sírio (Jamil) e o libanês (Raduan) – eram de nacionalidades fraternas e inimigas. (...) Se bem maometano, do ramo chiita, Jamil não mantinha preconceitos de religião em se tratando de ganhar dinheiro: Alá é grande, sua sabedoria é infinita, lê no coração dos homens, tudo pode compreender e estimar. (AMADO, 1994, p.33, 38)

Alguns afirmaram que o colóquio, tendo co meçado em árabe, terminara em português; outros garantiram exactamente o contrário: iniciado em português, prosseguira em árabe – língua aliás que Adib, nascido brasileiro grapiúna, falava conscienciosamente mal. (AMADO, 1994, p.83, 84)

Se por um lado a desterritorialização gerada pela perda do lugar de origem (FERNANDES, 2007) pode fomentar a perda conscienciosa e assumida da identidade e significado religioso e linguístico, por outro crê-se que o constrangimento provocado pela maioria cristã, por uma comunidade ligada à Igreja católica, por falantes de português, poderia "boicotar" a presença da identidade original destes imigrantes. Também as conflitualidades políticas latentes no território de origem, parecem deixar de fazer sentido no local de destino migratório, o que neste caso poderá revelar a falta de sentido e de validade teórica das perspectivas nacionalistas adversárias, ou somente apenas a indiferença de ambas as personagens por este tipo de assuntos.

Embora estas concepções pareçam válidas, há a considerar outro aspecto explicativo, quiçá mais consistente com a realidade dos quadros migratórios. A "inevitável" reterritorialização dos migrantes acaba por ser acompanhada pela liberdade individual, pela possibilidade de escolhas, uma vez que as pressões sociais e culturais da comunidade de origem quase cessam. E se alguns preceitos são mantidos, como Jorge Amado explicita neste livro, serão apenas os mais convenientes que servem o propósito primeiro de uma migração laboral, isto é, o ganho rápido e eficaz de dividendos monetários.

Por isso a discussão inicial fará ainda mais sentido, na medida em que não se trata de uma mera clarificação terminológica, ou de uma tomada de posição por parte do autor. Também revela a aceitação, tanto no puro sentido de sobrevivência como no de domínio do território, que se traduz na aceitação de determinadas regras e estratégias de adaptação territorial – pela assimilação interiorizada na integração – que reconstrói percursos e identidades migratórias destes estrangeiros em particular. Neste caso, a "nova" territorialidade parece estar consubstanciada.

DE UMA CULTURA MIGRATÓRIA ÁRABE À TEORIA DAS REDES SOCIAIS

Embora não seja explícito no que diz respeito à personagem de Raduan Murad, no caso de Jamil Bichara, Jorge Amado enfatiza o historial da personagem associada a uma cultura familiar migratória:

Os Bichara, numerosos e empreendedores, espalharam-se pelos portos do Mediterrâneo e adjacências (...), Espanha (...), Creta, no Egipto e em Marrocos, passaram da Líbia para a Itália, chegaram ao Senegal (...). O primeiro a descobrir a América, a rumar para o Brasil, foi Jamil. (AMADO, 1994, p.39)

Destacam-se neste contexto dois pontos. O primeiro diz respeito à diáspora familiar, metáfora da própria diáspora árabe, a qual se caracteriza pelo elevado quantitativo de efectivos, assim como pela dispersão geográfica, embora limitada à bacia mediterrânica. Apenas a referência ao Senegal implica uma difusão extraordinária face à realidade consolidada do Mediterrâneo.

No entanto, e como segundo ponto, percebe-se que a geografia das migrações para esta família/grupo tende a se alargar, com a escolha do Brasil como destino migratório por parte de Jamil. O conceito de "empreendedorismo", o qual se entende neste caso por investimento em termos laborais num negócio por conta própria, destacado a par da relevância efectiva do quantitativo, pode implicar por um lado uma disposição, mas por outro uma necessidade.

Necessidade, considerando-se a pressão demográfica sobre os mercados de trabalho locais, especialmente em contextos onde os quantitativos de população activa superem a oferta laboral; por outro a capacidade e predisposição para a emigração, resultante de uma decisão individual ou colectiva, porém onde não são apenas tidos em conta princípios de racionalidade económica, também obstáculos circunstanciais, defendidos por Everett Lee, e que se ligam às diferentes fases etárias no indivíduo ou a questões psicológicas (VELEZ DE CASTRO, 2012b, p.7-10).

Porém, o princípio preconizado pela teoria das redes, onde se defende que o incremento e/ou manutenção dos fluxos migratórios ocorre pela consolidação de comunidades de conterrâneos no país de destino migratório, está bem marcado na história:

Dele [o avô, Tahar Bichara] Jamil recebeu carta de recomendação dirigida ao patrício Anuar, chefe da tribo dos Maron, estabelecida com fazendas de cacau no Estado da Bahia. Carta para o ricaço, preces para Alá, que não haveria de faltar ao filho perdido na vastidão da América. (AMADO, 1994, p.39, 40)

Se a carta foi preciosa, determinante para a escolha da região grapiúna por Jamil, ali tinha em quem se apoiar para começar a vida, os rogos do venerável Tahar [ao parente já emigrado no Brasil] possibilitaram ao novo brasileiro não se sentir perdido, abandonado na pátria de adopção que necessitava de con quistar palmo a palmo, dia a dia. (AMADO, 1994, p.40)

Jorge Amado sintetiza de forma exemplar, através da teia de relações apresentada na comunidade de imigrantes árabes, a importância das redes sociais em termos materiais e imateriais. No que diz respeito à primeira situação, o avô de Jamil coloca-o em contacto com um elemento da rede de conterrâneos, recomendando-o a um compatriota já estabelecido no sub-sector da agricultura, proprietário de fazendas de cacau. Ora se por um lado este familiar, com o seu estatuto social e económico, irá minimizar os custos decorrentes do risco do processo migratório, por outro inseri-lo-á no mercado de trabalho local, gerando uma oportunidade inicial para o recém-chegado imigrante, que oblitera a (grande) preocupação de conseguir um emprego "seguro". Além disso, e embora a área de actividade possa não corresponder à área onde trabalhava no país de origem, de certo apresentará algumas marcas de economia de enclave étnico, mais não seja porque o patrão é árabe, e quiçá porque terá outros empregados da mesma origem geográfica.

Outro aspecto muito relevante trata-se da dinâmica imaterial ligada a questões psicológico-afectivas, nomeadamente à mitigação da síndrome de Ulisses (VELEZ DE CASTRO, 2012a) isto é, um estado depressivo causado pelo processo de desterritorialização associado às migrações. Os termos "perda" e "abandono" do lugar de origem são usados por Jorge Amado como conceitos-chave para definir um estado que se pode aplicar a qualquer imigrante, independentemente da origem geográfica, e que se traduz num sentimento de solidão perante um novo lugar que se apresenta como "não-lugar", um território cuja comunidade em nada se assemelha à do local de origem ou, mesmo com alguns pontos em comum, não se mostra receptiva ao acolhimento do Outro. Também este Outro poderá não ter capacidade de impulsionar o seu acolhimento.

Em suma, importa reforçar esta ideia de segurança ontológica (VELEZ DE CASTRO, 2009) destacada pelo escritor através da preocupação específica do avô de Jamil, e que se centra não só na questão económica e laboral, essencial para o sucesso do projecto migratório, como também no bem-estar psicológico do migrante, que directamente interfere no âmbito desse plano.

Jorge Amado reforça a importância das redes sociais para os estrangeiros recém-chegados à Bahia, admitindo a prevalência de uma imagem territorial distorcida, manifestada pelas expectativas de alguns dos árabes:

Também os árabes, mal desciam do navio da Companhia de Navegação Bahiana, no porto de Ilhéus, tomavam o rumo da floresta, partiam em busca de fortuna certa e fácil. Fortuna fácil? Certa? Melhor dizer fortuna incerta e arriscada. (...) Dele [Jamil Bicha ra] se exigia ânimo para o trabalho duro e coragem (...). (AMADO, 1994, p.31)

Contudo Jorge Amado contribui para a desconstrução do estereótipo relativo à relação de causalidade directa em que se considerava que a migração por si só implicaria o necessário sucesso do projecto migratório. Realista, apresenta este pressuposto, porém tendo em conta as dificuldades do processo, além da importância da qualidade/capacidade do capital humano e social para o (relativo) êxito desta migração laboral.

MIGRAÇÕES E CAPITAL HUMANO: A (POSSÍVEL) IMPORTÂNCIA DE JAMIL E RADUAN NO CONTEXTO ECONÓMICO E LABORAL NA BAHIA DO INÍCIO DO SÉCULO XX

No âmbito dos movimentos migratórios de carácter laboral, urge reflectir sobre a dinâmica do mercado de trabalho do local de destino migratório. O progresso de um país em franco desenvolvimento económico, assim como o fim da escravatura, exigiram o aumento do contingente de mão-de-obra disponível, o qual dificilmente seria suprido pelo stock interno de trabalhadores. Sugere-se que esta necessidade não fosse específica quanto à formação académica ou experiência profissional. Apenas se pressupões que haveria necessidade de capital humano jovem e com motivação e capacidade de exercer tarefas com alguma exigência física. Rocha-Trindade (1995) e Figueiredo (2005) defendem a importância da selectividade do capital humano migrante, uma vez que para estas autoras quanto mais qualificados forem os fluxos, maior será a facilidade de integração na comunidade de acolhimento. Neste caso, Jorge Amado faz questão de salientar que, mesmo sem directivas assumidas acerca do perfil do migrante, ou quiçá mesmo em caso de estratégias de controlo de fronteiras baseadas em políticas migratórias específicas, a diversificação tipológica de capital humano seria inevitável, até mesmo necessária:

(...)[Raduan Murad] fugitivo da justiça que o perseguia por vadiagem e jogatina, letrado de prosa aliciante (...), era imaginativo, inventivo, e, quanto a escrúpulos, não os cultivava. (...) A Jamil Bichara não faltava disposição para o trabalho, era impávido (...), herdara a valentia das tribos (...). (AMADO, 1994, p.24, 31)

Raduan vive de esquemas ligados à vida nocturna como o jogo e a prostituição; Jamil torna-se um reputado comerciante por conta própria. Representando cada um a segmentação do mercado de trabalho numa lógica de formalidade e informalidade, o autor não o faz num sentido pejorativo, mas antes revelando e defendendo que todas estas actividades são requeridas, e por isso viáveis e necessárias, independentemente das concepções morais da época. A partir desta ideia, urge a discussão sobre a validade das políticas migratórias restritivas, assentes em quotas específicas para determinados segmentos laborais considerados, do ponto de vista oficial, necessários.

Mas tal como aconteceu e acontece em contextos migratórios particulares, a Bahia do início do século XX tornou-se num caso paradigmático de abertura à entrada de estrangeiros direccionados para trabalhar num determinado sub-sector da agricultura, ganhando particular importância no próspero negócio do cacau.

(...) Os dois imigrantes decidiram, sem con sulta prévia, tentar a vida nas terra dos Sul da Bahia, o recém-descoberto Eldorado do ca cau. (...) O Eldorado do cacau! Acorria gente do sertão, dos Estados do Nordeste – Sergipe, o menor deles, o mais próximo e mais pobre, por pouco viu-se despovoado de varões: abandonavam esposas, noivas, namoradas. (AMADO, 1994, p.29, 30, 31)

A motivação migratória despertou tanto os fluxos transoceânicos como também incrementou a mobilidade interna, em especial a oriunda de Estados brasileiros cuja população, com aptidões agrícolas, se via limitada pelas condições climáticas e edáficas pouco propícias à prática de uma agricultura de elevado rendimento.

Jorge Amado foca duas questões bastante pertinentes no processo migratório. Uma primeira já abordada, ligada à questão da imagem territorial, onde o autor reforça a construção das expectativas, cuja estruturação se baseava não em dados concretos e confirmados, mas antes em informações vagas e dúbias que impulsionaram estes migrantes a sair do país de origem e a escolher tal destino migratório "sem consulta prévia". Provavelmente não se tratou da total ausência de informação, mas antes na insipiência de elementos sobre a real situação do local de chegada, apenas baseados em testemunhos vagos de prévios imigrantes, que poderiam não corresponder a toda a verdade. Neste caso, o grande móbil inicial foi a plantação, processamento e comercialização do cacau, factor laboral que asseguraria o sucesso do projecto migratório, o qual poderia culminar no estabelecimento do migrante como agricultor-patrão, ou ainda ligado a um sub-sector de actividade "culturalmente" mais próximo – o comércio.

A segunda questão está relacionada com a (d)estruturação familiar e a prevalência dos fluxos migratórios masculinizados. Os movimentos populacionais internos da época tiveram uma base individualista, sendo a estratégia migratória subdividida em fases, pelo que num primeiro momento era o elemento masculino de um núcleo familiar mais restrito que migrava (casal ou agregado familiar parental). Seria o intuito de muitos, em especial dos que já tinham laços familiares formais (por exemplo, através do casamento), reunificar a família no destino migratório, se pretendessem permanecer no local.

Distingue-se porém o caso dos protagonistas, onde não há referência a ligações afectivas de tal natureza. Neste caso é destacado o exemplo dos jovens homens imigrantes, cuja motivação incidia também na constituição de família no destino migratório. No que diz respeito à diáspora turca, acentua-se a importância da endogamia, em especial quando se discute a necessidade de casar Adma, filha de imigrantes turcos, com alguém da sua própria nacionalidade, ou pelo menos que tivesse origem árabe:

Devia encontrar patrício solteiro e modesto que assumisse a gerência de O Barateiro e fizesse de Adma sua esposa. O sangue do árabe pretendente garantiria a vocação para o comércio e a disposição para o trabalho. A condição modesta facilitaria a realização dos esponsais. (AMADO, 1994, p.58)

Sendo um processo de perpetuação das características culturais e identitárias de determinado grupo, entende-se também a concepção da vantagem material de tal tipo de "ligação interna" dos membros, pela transmissão de conhecimentos relativos à actividade comercial em particular, e a estratégias de trabalho em geral. Esta concepção endogâmica está também ligada à constituição de uma economia de enclave étnico ligada ao comércio – bazares – que se relacionava com outros aspectos do quotidiano, nomeadamente a habitação:

Sentado a descansar ao fim da azáfama do dia, ai estafante!, na calçada do Empório de Itaguassu – na frente o negócio, nos fundos a moradia (...) Jamil Bichara ria estrepitosa mente ao recordar os lances da transacção do armarinho (...) [quando] Jafet lhe oferecera sociedade em O Barateiro (...). (AMADO, 1994, p.37)

Outro aspecto focado na história desmistifica a concepção inicial de imagem territorial, dando a conhecer qual o processo comum a todos os que, não tendo capital inicial para estabelecimento de um negócio por conta-própria, conseguiam as necessárias divisas:

Foi-lhe dado pelo coronel Anuar Maron, um conterrâneo já estabelecido e integrado (como se pode ver pela designação "brasileira" de "coronel"), sendo Jamil empregado como transportador de mercadorias. O coronel Nor berto de Faria, conhecido por frequentarem os mesmos bordéis, ajudou-o a se estabelecer por conta-própria: "(...) Coronel Norberto, ao ouvir as queixas de Jamil, perguntou-lhe se não estaria interessado em montar negócio por conta própria em vez de trabalhar para o patrão. Que outra coisa podia Jamil almejar na vida? Era seu sonho (...). (AMADO, 1994, p.43)

Jorge Amado destaca também a importância das redes sociais, isto é, das ligações e dos contactos estabelecidos entre os migrantes e os conterrâneos já emigrados no país de destino migratório. Estas comunidades criavam oportunidades para que os migrantes, numa fase inicial do processo, realizassem uma primeira abordagem à realidade do país de destino migratório. Além disso, as redes sociais eram essenciais para a mitigação dos riscos e dos custos da viagem, assim como para, numa fase posterior ao estabelecimento, se consolidar a carreira profissional, neste caso, através do apoio material à fixação. Foi o que aconteceu com Jamil, que se tornou comerciante e dono do seu próprio bazar.

Rocha-Trindade (1995) defende que os enclaves apresentam vantagens por estimularem a incorporação do imigrante na sociedade receptora, daí que a sua formação acabe por estar dependente não tanto das iniciativas estatais, mas antes dos recursos do próprio individuo (já adquiridos no país de origem) e dos enclaves, pois estes geram oportunidades de emprego, educação e formação profissional aos seus elementos. Assim será mais fácil a progressão profissional e económica, com todas as vantagens que esta integração económica trará ao quotidiano dos migrantes. Arango (2004), cita nos seus estudos autores como Portes (1981, 1995) e Heisler (2000), os quais encaram este sistema como um modelo de incorporação dos imigrantes, já que a partir do seu empreendedorismo em pequenos negócios, conseguem também conciliar as necessidades de índole familiar e cultural. Destaca-se neste contexto a personagem de Jamil que, presume-se, além disto, estimularia a economia local/regional, gerando um efeito multiplicador em termos de efeitos positivos, sobretudo pelo investimento económico com capitais próprios, pelo fomento da empregabilidade na comunidade migrante e até mesmo autóctone, assim como pela disponibilização de bens necessários ao consumo da comunidade.

Perante a dinâmica discutida, Jamil e Raduan são entendidos enquanto capital humano activo "diferenciado" pela natureza formal/subterrânea dos seus negócios. Todavia, e mesmo actuando de forma distinta sobre o mercado de trabalho, dão a conhecer ao leitor a importância do papel dos migrantes no contexto económico e laboral da Bahia do século XIX/XX.

CONCLUSÃO

Ontem como hoje, as migrações constituem um fenómeno permanente na sociedade. Uma parte significativa da obra literária de Jorge Amado tem na mobilidade dos indivíduos e na geografia das migrações um eixo estruturante, que ajudou a construir a identidade brasileira. Na obra "A descoberta da América pelos Turcos" (1994)o autor mostra como durante parte do século XIX e principio do XX, os Turcos, Sírios, Libaneses (entre outros)constituíram um fluxo importantepara a região da Bahia.

Através de Jamil Bichara (Sírio) e Raduan Murad (Libanês), Jorge Amado discute um dos pilares motivacionais dos fluxos migratórios transatlânticos – o trabalho. Mas esta reflexão é construída em estreita relação com dados colaterais de grande importância, que ajudam o leitor a entender a dinâmica migratória europeia para o continente americano no final do século XIX, início do século XX, ou seja, as relações intra e extra comunitárias, a língua, a cultura, a religião, a habitação. Ao explorar o percurso migratório das personagens e a sua integração no território, o autor constrói uma paisagem literária que ajuda o geógrafo a entender a realidade dos sistemas migratórios históricos dessa época e até mesmo como é que se reflectem no período contemporâneo.

Neste retrato, Jorge Amado ultrapassa largamente a dimensão do "povo turco", mas permite que ao longo da narrativa se possam identificar personagens de outras paragens, como por exemplo portugueses, italianos etc. Sempre gente que procurou no Novo Mundo outros horizontes de trabalho, tal como hoje. Passados mais de 150 anos o Brasil é agora, de novo, um porto de chegada. De portugueses e de outros. Com outra formação. Com uma diferente ligação ao território de partida. Com novos modos de construir redes sociais, mas sempre na expectativa de encontrar o que o país não lhe oferece. Estas são algumas das razões porque a obra de Jorge Amado se tornou Universal.

Artigo recebido em 06/12/2012 e aceito para publicação em 21/06/2013

  • AMADO, Jorge. A descoberta da América pelos Turcos. Mem-Martins: Publicações Europa-América, 1994, 158 p.
  • ARANGO, Joaquin. Theories of international migration. In: JOLY, Danièle (Ed.). International migration in the new millennium Global movement and settlement. Reino Unido: Ashgate, 2004, p.15-120.
  • BLANCO, Cristina. Las migraciones contemporáne as Madrid: Alianza Editorial, Col.Ciencias Sociales, 2000, 203 p.
  • CASHMORE, Ellis. Integration. In: CASHMORE, Ellis. Dictionary of Race and Ethnic Relations. Londres: Routledge, 1996, p.172-174.
  • CRAVIDÃO, Fernanda. Ficção, espaço e sociedade. Notas para uma leitura geográfica e social da obra de Alves Redol Avieiros. Cadernos de Geografia, Coimbra. nş11, p.37-47,1992.
  • CRAVIDÃO, Fernanda; MARCOS, Sérgio. Literatura e Geografia outras viagens, outros territórios. Emigrantes de Ferreira de Castro. Cadernos de Geografia. Coimbra. nş 19, p. 23-27, 2000.
  • FERNANDES, João Luis. A desterritorialização como factor de insegurança e crise social no mundo contemporâneo. In: I JORNADAS INTERNACIONAIS DE ESTUDOS SOBRE QUESTÕES SOCIAIS. Actas... Ponte de Lima: AGIR, 2007, 23 p., policopiado.
  • FIGUEIREDO, Joana Miranda. Fluxos migratórios e cooperação para o desenvolvimento Realidades compatíveis no contexto Europeu? Lisboa: ACIDI, 2005, 118 p.
  • JACINTO, Rui. As outras geografias: a literatura e as leituras do território. Cadernos de GeografiaCoimbra. nş14, p.139-141, 1995.
  • MACHADO, Fernando Luis. Contrastes e Continuidades. Migração, etnicidade e integração dos Guineenses em Portugal. Oeiras: Celta Editora, 2002, 464 p.
  • MEDAUAR, Jorge. Personagens árabes na obra de Jorge Amado. Revista de Estudos Árabes. São Paulo. nş1, p.1-7, 1993.
  • PENNINX, Rinus. Os processos de integração dos imigrantes: resultados da investigação científica e opções políticas. In: PAPADEMETRIOU, Demetrios G. (Coord.). A Europa e os seus Imigrantes no século XXI. Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 2008, p.36-57.
  • ROCHA-TRINDADE, Maria Beatriz. Sociologia das Migrações Lisboa: Universidade Aberta, 1995, 410 p.
  • VELEZ DE CASTRO, Fátima. Os migrantes e os territórios. Na busca pela segurança ontológica. In: I ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE MIGRAÇÕES. Actas... Faro: AGIR, 2009, 35 p., CD-ROM.
  • VELEZ DE CASTRO, Fátima. Imigração e Desenvol vimento em Regiões de Baixas Densidades. Territórios de Fronteira no Alentejo (Portugal) e na Extremadura (Espanha). 2012a, 487 f. Dissertação (Doutoramento em Geografia). Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2012b.
  • VELEZ DE CASTRO, Fátima. Imigração e territórios em mudança. Teoria e prática(s) do modelo de atracção-repulsão numa região de baixas densidades. In: VII CONGRESSO DA GEOGRAFIA DE COIMBRA. Coimbra, 2012. Actas...Coimbra: Departamento de Geografia da Universidade de Coimbra, 2012b, 22 p., policopiado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 2013

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2012
  • Aceito
    21 Jun 2013
Editora da Universidade Federal de Uberlândia - EDUFU Av. João Naves de Ávila, 2121 - Bloco 5M – Sala 302B, 38400902 - Uberlândia - Minas Gerais - Brasil, +55 (34) 3239- 4549 - Uberlândia - MG - Brazil
E-mail: sociedade.natureza@ig.ufu.br