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Perspectivas da história do tempo presente no Brasil: entrevista com Francisco Carlos Teixeira da Silva

Perspectives on the history of the present in Brazil: Interview with Francisco Carlos Teixeira da Silva

Resumo:

Em sua entrevista, Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa a chegada da história do tempo presente ao Brasil e os caminhos que o novo campo seguiu em um país recém-saído da ditadura civil-militar (1964-1985) e em fase de construção de uma nova democracia. Fundador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente (Tempo), Francisco Carlos aponta ainda problemas e desafios que a história recente enfrenta no Brasil.

Palavras-chave:
História do tempo presente; Historiografia; Francisco Carlos Teixeira da Silva (1954)

Abstract:

In this interview, Francisco Carlos Teixeira da Silva, full professor of Contemporary History at UFRJ, analyzes the arrival of the history of the present in Brazil and the paths that the new field has followed in a country that had just emerged from the civil-military dictatorship (1964-1985) and is in the process of building a new democracy. Founder of the Laboratory of Present Time Studies (Tempo), Francisco Carlos also points out the problems and challenges facing recent history in Brazil.

Keywords:
History of the present time; Historiography, Francisco Carlos Teixeira da Silva (1954)

Francisco Carlos Teixeira da Silva (1954-), mais conhecido como Chico Carlos, foi pioneiro nos estudos da história do tempo presente no Brasil, tanto ministrando disciplinas, como novos pesquisadores desde a graduação até o mestrado e doutorado. Em 1994, fundou o Laboratório de História do Tempo Presente (Tempo) na UFRJ, um dos primeiros do país e em funcionamento até os dias atuais. Autor e organizador de livros e artigos, Francisco Carlos incentivou os estudos das direitas, das relações civis-militares, dos fascismos, dos “temas que ninguém queria”, dentre outros. Destaca-se ainda a sua atuação na política, quando trabalhou junto com Maria Yedda Linhares na Secretaria Estadual de Educação durante o governo de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e sua marcante presença na mídia.

A presente entrevista foi concedida pelo professor e historiador à revista Tempo no dia 13 de janeiro de 2024, em sua residência na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Trata-se ainda de um reencontro entre a primeira geração de seus orientandos e o mestre para um balanço e celebração dos seus 70 anos de idade e dos trinta anos do Tempo em 2024.

Samantha Quadrat: Pensamos o seu nome para esta entrevista do dossiê de história do tempo presente porque você foi um dos pioneiros no Brasil sobre a história do tempo presente, com cursos e formação de novos pesquisadores, entre os quais me incluo. Queremos então fazer um balanço do que tem sido esse campo nos últimos anos na historiografia brasileira.

Francisco Carlos Teixeira da Silva: A primeira coisa que devemos pensar é o que chamamos de história do tempo presente. No meu livro mais recente, Como não fazer o golpe de Estado no Brasil (2023aSILVA, Francisco Carlos Teixeira da; SCHURSTER, Karl. Como (não) fazer um golpe de Estado no Brasil. Recife: Edufpe, 2023a.), os dois capítulos iniciais são sobre a questão do tempo presente porque é um livro sobre o 8 de janeiro de 2023 e foi escrito nos meses imediatamente seguintes, fevereiro e março. Eu o escrevi em quarenta dias! Então achei que deveria ter uma discussão sobre essa questão do tempo presente. Eu acho que as questões teórica e metodológica, inclusive diferenciando as duas coisas, estão muito mal amparadas entre a gente no Brasil. Porque a noção que se tem do tempo do presente aqui é a mais empobrecedora possível, que é a noção de um marco cronológico, e seria o golpe de 31 de março de 1964 que teria feito isso. Em primeiro lugar, tem a questão de discutir a própria natureza do golpe de 1964. Porque em termos de estrutura de longa duração, como por exemplo os modelos econômico e cultural, 64 não é uma cesura, não é um corte. Porque continua com um projeto de industrialização por substituição de importações, continua com toda aquela cultura nacional-popular que se tinha. O corte só vai se dar entre 1968 e 1969; principalmente com o AI-5 e a consolidação da ditadura é que você tem uma mudança. A grande transformação ocorre ali entre 1958 e 1959, que forma uma década até 1968, em que o Brasil explode em transformações, desde o cinema novo, o teatro do oprimido, a bossa nova, a MPB, o carro popular brasileiro... coisas fundamentais nos diversos domínios. Eu sempre brinco que quando João Gilberto está gravando “Chega de saudade” e está acabando uma noção de cultura nacional-desenvolvimentista, está surgindo uma cultura nacional-popular, uma nova visão do Brasil. Nesse sentido, 64 não é uma cesura. O tempo presente é viciado nos marcos da história política brasileira, como Império, República, Revolução de 1930... Então eu acho que precisamos acabar com esse domínio da história político-administrativa como marcos nesse sentido. A segunda questão é do ponto de vista teórico. A história do tempo presente, conforme foi elaborada inicialmente pelo François Bédarida e pelo CNRS,1 1 CNRS é a sigla do Centre National de la Recherche Scientifique. na França, vai dar origem ao Instituto de História do Tempo Presente fora da universidade francesa porque, como na brasileira, não se aceitava a ideia de um tempo presente. Senão, daqui a trinta anos, o que será a história do tempo presente? Nós vamos ter uma história do tempo passado e uma história do tempo presentíssimo dali em diante. Isso não resolve nada nesse sentido. O procedimento metodológico proposto pelo François Bédarida é o enlace da discussão contemporânea com processos históricos. Então, por exemplo, se você está discutindo a natureza étnica da população do Egito faraônico, se eram brancos ou se eram negros, é história do tempo presente. Porque ela foi informada do processo antirracista que vem descolonizando a história e a arqueologia europeia nos últimos anos.

SQ: Então podemos pensar que a história do tempo presente, mais do que um marco cronológico, como o Holocausto na Europa e as ditaduras na América Latina, é o que ela impacta nos dias de hoje?

FCTS: Exatamente! Se você está discutindo as relações entre escravidão, racismo e desigualdade social é história do tempo presente mesmo que você esteja lá no final do século XIX. Porque as questões colocadas ao historiador são do presente. São elas que informam a atuação do historiador. Se eu estou preocupado com ditadura, a possibilidade de uma ditadura e como age uma ditadura, por exemplo, no Estado Novo, eu estou preocupado porque estou informado pela questão da resistência antifascista e da resistência democrática no país. Então o que faz a história do tempo presente são os enlaces entre passado e presente, e não a cronologia. A visão de uma história do tempo presente centrada na cronologia é o esvaziamento teórico e do procedimento metodológico. Nesse sentido, toda história do tempo presente necessariamente tem um conteúdo comparativo porque você está vendo processos em tempos diferentes. Mantém-se a advertência central de Marc Bloch de que a história é a ciência do homem no tempo, mas desmonta-se o tempo cronológico, o tempo sequencial. Você não está mais fazendo uma história evolucionista que trabalha no sentido único da flecha do tempo. Você pode deslocar o tempo, por isso ela é trans-histórica, enlaçando processos históricos que estão em tempos diferentes, mas informados pela mesma preocupação.

SQ: Em sua opinião, a história do tempo presente como tem sido feita hoje é construída a partir dos marcos cronológicos ou dos enlaces?

FCTS: Tudo o que eu tenho visto dentro dos levantamentos bibliográficos que tenho feito, todos eles são história contemporânea recente. Não tem essa discussão. Conversei com alguns autores sobre isso. O que vai acontecer com o seu livro daqui a 15 anos? Seu título não vai representar mais nada porque tem marcos que são cronológicos. O problema da história do tempo presente é o procedimento metodológico que transforma, respeitando o tempo, mas transforma a história num processo trans-histórico e comparativo entre processos que se desenvolvem em tempos diferenciados, mas informados pela mesma preocupação. É isso que permite a história do tempo presente. Bédarida nunca falou num marco cronológico fechado. Quando ele levantou a questão da ocupação da França, do colaboracionismo, da derrota e depois da luta de libertação nacional foi porque esse debate informava a disputa contemporânea (na época dele) entre gaullistas, comunistas e socialistas sobre o futuro da França, inclusive a permanência na Aliança Atlântica, a aliança com os Estados Unidos. Era isso que estava sendo discutido ali. Quando a historiografia contemporânea alemã de um lado favorece enormemente os estudos, por exemplo, de organizações de resistências como a Rosa Branca e a Capela Vermelha, ela está fundamentando as origens da Alemanha Federal, está falando da continuidade e da legitimidade dessa Alemanha. Quando a DDR favorece uma história da resistência comunista, ela está legitimando as origens da Alemanha Oriental. Então, na verdade, é um debate sempre do tempo presente em que você busca processos no passado que legitimam a discussão contemporânea. Como esses enlaces entre passado e presente são feitos é a grande questão do método. Obviamente com todo rigor científico, mas você tem que ter esses dois momentos que vão ter capacidade de estar em enlace ou não para explicar as disputas contemporâneas. A história do tempo presente, da disputa historiográfica. Não é a história de um período cronológico.

SQ: Gostaria de falar um pouco sobre a sua trajetória. Você já escreveu um artigo para a Revista Acervo, do Arquivo Nacional (2000), onde falava da sua trajetória como um jovem estudante secundarista e universitário na ditadura. Anos depois integrou o grupo liderado pela Maria Yedda Linhares após o retorno dela do exílio, onde as questões da fome, do desabastecimento e do sertão eram centrais em algumas das pesquisas. Você analisa que essas experiências contribuíram para que você olhasse a história do tempo presente a partir dos anos 1990? Se sim, de que maneira?

FCTS: Eu acho que tem duas coisas aí. A primeira é esse artigo que você citou em que falo também da questão da antropologia em minha formação. A minha graduação foi muito ruim.2 2 Francisco Carlos fez a sua graduação entre 1973 e 1976, na UFRJ. Era o período de apogeu da ditadura. A repressão era brutal. Professores tinham sido cassados, colegas tinham sido expulsos. Eu fui preso durante a graduação. O curso, em seu conjunto, era muito ruim, com exceção das aulas do Francisco Falcon e da Nara Saletto. E como também o sistema de créditos tinha acabado de ser implementado, ninguém sabia muito bem como funcionava. Nem a gente, os estudantes, nem eles, os funcionários, burocratas da universidade. Acabei me inscrevendo livremente em um número muito grande de disciplinas que não eram de história. Então eu fiz muitas aulas na antropologia, que era muito boa, que já era a antropologia do Museu Nacional. Então eu fui fazer na antropologia os créditos que eu não fiz na história. E aprendi que uma das coisas principais da antropologia, inclusive da sua legitimidade, era o pesquisador se integrar ao processo da pesquisa. Ele não era diferente do seu próprio processo de pesquisa. Nem daquilo que de uma forma muito empirista se chama de objeto. Eu prefiro chamar de atores que estão ali na cena. O pesquisador, o método e os atores têm que estar em acordo, que tem que ser dito, você tem que fazer a sua apresentação de armas. Dizer quem você é, que você está ali e por que você se preocupa com aquela questão, por que você quer estudar aquilo.

SQ: Na história do tempo presente isso não pode ser visto de uma maneira crítica como uma militância no tema, sem uma suposta neutralidade do historiador?

FCTS: Sem dúvida alguma. Tem pessoas que falam que você está fazendo presenteísmo, atualismo. Não tem como escapar dessa crítica. Ela é uma aporia. Mas voltemos ao exemplo do Egito faraônico, se era ou não uma civilização negra. Aqueles pesquisadores que defendem que era uma civilização negra ou aqueles que defendem que não era, eles estão informados pelas suas condições do nosso tempo. Eles estão informados pelo movimento negro mundial, pela legitimidade de uma posição antietnocêntrica e antieurocêntrica. Nesse sentido, são todas discussões contemporâneas. Não era uma questão no Egito faraônico. Somos nós que estamos projetando sobre o Egito faraônico uma discussão para saber se Nefertiti era negra ou se não era negra. Então não há como escapar disso, não há como você dizer que você tem uma interação de amor ou de ódio para escolher um tema de debate. Você tem que ter clareza e colocar isso para o seu leitor. Como você chegou a esse tema? Quando eu fui fazer o meu primeiro pós-doutorado na Alemanha, em 1991, eu ia estudar sobre o século XIX. Aí fui visitar Dresden, uma cidade que ainda não conhecia, e fui cercado por um grupo de fascistas. Era uma grande novidade para mim. O grande susto para mim foi que estavam todos na casa de 20, 22 anos. Não era um fascista naquela vila alpina, escondidinho, com 60, 70 anos. Eram jovens fascistas. Então a minha pergunta foi: o que aconteceu para que esse fenômeno, a ressurgência fascista, conseguisse conquistar essas pessoas? Eu vinha da experiência de ditadura, de resistência, onde jovens eram sempre de esquerda. Lá não. Pelo menos aquele grupo era de jovens fascistas. Então aquilo me despertou para outra questão. Mudei imediatamente de tema e fui trabalhar com os fascismos a partir daí, com pesquisas etc. Então eu acho que essas experiências do historiador têm que ser colocadas. Isso a gente tem da antropologia. O antropólogo sempre faz essa apresentação, essa colocação, sua limitação em relação a isso. O que não impede que você seja acusado de militância, mas permite que você diga em primeiro lugar quais são as suas preocupações. A segunda coisa é que todo aquele campo de história agrária que a Maria Yedda Linhares cria a partir de 1976, inicialmente no horto florestal, no CPDA da Fundação Getulio Vargas, que depois vai para a [Universidade Federal] Rural, era uma preocupação que também vinha do presente que se projetava ao longo de toda a história passada. Por quê? Porque a gente via um momento de desabastecimento, da existência da fome no Brasil. O Brasil, essa terra da fartura, em que se plantando tudo dá, era um país da fome. E a gente começou a pesquisar por que um país como esse se transforma num país da fome. Nós não estamos numa das áreas típicas da fome no mundo. A fome no Brasil é produto de uma construção histórica e tinha um resumo, uma palavra-chave na época, que inclusive a cultura popular vai representar, que é o latifúndio. Isso implicava que qualquer solução para fome no Brasil teria que passar necessariamente pela reforma agrária. Então, seja de uma forma mítica ou uma forma metafísica, chamando de carcará, de bicho mal etc., desde Graciliano Ramos até João Cabral de Melo Neto, na poesia, na literatura, estavam falando da fome. Então a gente estava pegando um tema do presente e fazendo esse enlace com o passado para entender a origem do latifúndio e, mais do que isso, a permanência do latifúndio. Então, mesmo estudando o século XIX, por exemplo, a minha tese de mestrado foi sobre o Vale do São Francisco entre o Sergipe e Bahia, que era uma das cinco regiões mais pobres do Brasil na época. A dissertação (Silva, 1981SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Camponeses e criadores na formação social da miséria: Porto da Folha no Sertão do São Francisco (1820-1920). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1981.) se chama Camponeses e criadores na formação social da miséria (1820-1920), então a pergunta era exatamente essa: por que chegamos à miséria? A miséria não é um estado natural. Ela decorre desse processo histórico. Então mesmo fazendo a história do século XIX havia uma preocupação com o presente. Isso era algo muito da Maria Yedda, que por volta de 1957, 1958, 1959, já tinha tido uma atuação muito importante discutindo o imperialismo, o colonialismo e o neocolonialismo. E tinha participado intensamente do processo de exigência da reforma agrária como uma das Reformas de Base do governo do João Goulart, do qual ela era parte, que tinha sido derrubado em 1964. Como sabemos, a reforma agrária não foi feita e a fome havia continuado. Então o tema se mostrava como algo permanente nesse sentido.

SQ: Você falou da aproximação com outras ciências durante a graduação. No entanto, quando a história do tempo presente chegou ao Brasil não foi uma aproximação tranquila. Houve muita resistência de várias partes.

FCTS: Eu fiquei um longo tempo no Comitê de Ciência Política. Quando criei o Laboratório de Estudos do Tempo Presente, na UFRJ, em 1994, os pareceres dos colegas diziam que tempo presente não era história, mas sim sociologia ou ciência política. Isso depois de Georges Lefebvre e Marc Bloch falarem em derrubar os muros. “Abaixo os muros!” foi a palavra de ordem dos Annales. A própria história dos Annales é uma história que incorpora sociologia, antropologia, economia, ciência política. Mas nós tínhamos a ideia de que a história era um campo próprio, sem relações nesse sentido. Até hoje a gente vê historiadores, com exceções claro, com uma baixíssima formação em teoria do Estado, em teoria social, então vão discutir assuntos que são importantes, como por exemplo o golpe de 8 de janeiro de 2023, ele não foi em si um golpe, mas uma insurreição, foi um processo de levantamento popular - o fascismo tem massas também -, que mostraria a incapacidade do governo de controlar a administração do país. Aquilo ensejaria o golpe que viria depois. Aquilo que aconteceu na rua foi uma insurreição que permitiria o golpe e que graças a uma série de medidas não aconteceu.

SQ: Você falou da questão da criação do Tempo, na mesma época também se funda o Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC), na UFF. Podemos falar de um pioneirismo dos cursos do Rio de Janeiro num campo hoje consolidado no Brasil?

FCTS: Sim, mas não temos uma unidade teórica. A história do tempo presente no Brasil virou uma locução. Tem programas que trabalham com a análise de processos históricos e tem programas que pensam como marco cronológico. Não há nenhuma unidade teórica sobre o que as pessoas estão chamando de história do tempo presente.

SQ: Além das questões de disputas que envolveram as diferentes áreas, podemos pensar, no Brasil dos 1990, algo parecido com o silenciamento dos historiadores na França ou a querela dos historiadores na Alemanha com relação ao nazismo? Naqueles anos 1990 já tinham saído muitas publicações, por exemplo, sobre a ditadura, livros de memória etc.

FCTS: Durante todo o período avançado da ditadura, até pelo menos o fim da censura, o que predominava nas pesquisas era o período colonial. Brasil Colônia era assim um período mais ou menos tranquilo para se pesquisar naquela época. Os cursos, inclusive, nunca iam depois de 1930. Na verdade, poucos chegavam até 1930. Então não tinha nada disso. Houve uma grande transformação quando teve a anistia. Maria Yedda Linhares, Eulália Lobo e Francisco Falcon foram para a UFRJ e mudaram o currículo. Estabeleceram as disciplinas do primeiro semestre como Formação do Mundo Contemporâneo, Brasil Contemporâneo e América Contemporânea. Essa foi a grande mudança que eles impuseram, porque a gente só ia estudar o contemporâneo no fim do curso, no quinto ou sexto semestre. Era até difícil discutir a situação que se vivia no Brasil naqueles anos. Isso foi copiado por outras universidades. Infelizmente, uma das características do conservadorismo atual da universidade é tentar acabar com essa ideia, voltar a um currículo cronológico. Muitos não entenderam que era uma problematização da historiografia, que era uma questão de você fazer uma discussão de contemporaneidade, e passaram a dar conteúdo. Em América, por exemplo, o grande debate seria discutir as teses sobre o populismo. Um conceito datado, de classe, preconceituoso, que coloca Vargas, Perón, Haya de la Torre num mesmo guarda-chuva. O conceito que explica tudo, na verdade, perde toda a validade, toda a riqueza. A gente tem clareza de que esse conceito foi forjado quando grandes massas populares foram incorporadas aos processos políticos. Você tinha então um problema grande de historiografia contemporânea, de discutir as bases dessa historiografia e os conteúdos ideológicos e classistas existentes dentro dessa mesma historiografia. Com relação ao que Falcon, Yedda e Eulália pensaram a gente tem um retrocesso muito grande e que marca o aspecto conservador dos cursos de história. Sobre o que você perguntou com relação à França e à Alemanha, tivemos uma tentativa muito grande de fundamentar a transição para a democracia num silenciamento sobre coisas que aconteceram. É o caso, por exemplo, da questão da corrupção. As pessoas estão convencidas hoje no Brasil de que a corrupção é um produto da democracia, assim como a insegurança cidadã. Mas sabemos que havia uma corrupção intensa na ditadura, que havia os esquadrões da morte, justiçamentos, crimes, sequestros criminais e quando não discutimos esses conteúdos fundamentais, essa formação meio que utópica do passado, um passado onde eu vivia muito melhor no “tempo do vintém, do tostão, que dava para comprar um montão”, enfraquecemos a própria discussão de democracia hoje. Com exceção da tese do Pedro Campos (2012CAMPOS, Pedro. A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.) defendida na UFF, que mostra claramente a junção das grandes empresas nacionais e estrangeiras com os militares e com uma corrupção intensa do Estado. Quando uma grande parcela da população está convencida de que a corrupção foi do trabalhismo e, mais recentemente, que foi inventada pelo PT, trabalhos nessa direção são muitos importantes porque abrem esses debates.

SQ: Podemos então dizer que a história do tempo presente combate os negacionismos que vemos hoje?

FCTS: Ela faz isso o tempo todo. Fora o trabalho da demógrafa Elza Berquó (1974BERQUÓ, Elza; GONÇALVES, Mirna A. I. A invasão de óbitos no município de São Paulo.Cadernos Cebrap, São Paulo, n. 19, 1974.), do Cebrap, chamado A invasão de óbitos no município de São Paulo, que fala sobre a epidemias na ditadura militar, nós não temos mais a lembrança disso. E a epidemia da Covid-19 aparece como algo surpreendente, quando a gente vivia epidemias de meningite e de tuberculose intensas durante a ditadura que eram proibidas de serem notificadas. Isso não saía nos jornais. Aí você pega a epidemia de Covid e não entende a relação entre negacionismo ontem e hoje e como se combate isso. A clareza de combater o negacionismo da ditadura seria extremamente importante para a gente entender o negacionismo do bolsonarismo, que é uma ressurgência daquela extrema direita. Às vezes até uma continuidade de pessoal, já que vários ministros do governo Bolsonaro serviram à ditadura.

SQ: Falando sobre a ditadura, você foi uma figura importante no Rio de Janeiro com relação à documentação da polícia política, no caso do Dops. Como encara as mudanças dos últimos anos com relação à lei de acesso, com idas e vindas, abertura de novos arquivos etc.?

FCTS: Não há como ter história sem arquivos, embora as pessoas não queiram mais frequentá-los, queiram as fontes impressas em casa. A relação entre arquivo e historiador é genética, fundamental. Se você quer avançar, dificilmente vai conseguir sem os arquivos, mesmo que já tenham sido usados antes. Um novo olhar, uma nova abordagem teórica, metodológica revelam coisas diferentes.

SQ: Gostaria de falar com você sobre a sua atuação na formação de mais de uma geração de professores e pesquisadores, dentre os quais eu me incluo, assim como Francisco Carlos Palomanes (USP), Flavio Limoncic (Unirio), Alessandra Carvalho (UFRJ), Sabrina Medeiros (Universidade Lusófona), dentre outros que hoje estão em universidades e centros de pesquisa, com temas e trajetórias bem diferentes. Já falei com você mais de uma vez que não teria avançado como pesquisadora no tema ditadura se não fosse o seu incentivo, porque sempre ouvia que estava fazendo jornalismo. Quais eram as demandas daqueles jovens historiadores nos anos 1990? E como esses temas chegavam até você?

FCTS: O professor Francisco Iglesias dizia que se você quisesse saber se teve sucesso na sua vida deveria procurar onde estavam os seus orientandos. Tive vocês, que estão nas maiores universidades do Brasil, mas também na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e na Escola de Guerra Naval, alguns dos generais democratas e profissionais do Estado-Maior hoje foram meus orientandos. Isso me dá um conforto muito grande. O que me dá uma ideia de que o trabalho foi legal. Mas isso não aconteceria se não fosse a confluência de alguns fatores muito especiais. Em primeiro lugar, a abertura política. Eu nem estaria na universidade se não fosse a abertura, porque eu não tinha como apresentar o atestado ideológico que eles pediam. Eu havia sido preso. Fiquei na UFF sem receber, num processo contraditório, semiempregado e não empregado. Também houve outro fator importante nesse momento que foi uma certa explosão da pós-graduação no Brasil. Eu nunca tive bolsa para me formar. Houve uma ampliação da Capes, do CNPq, da Faperj, da Fapesp e demais agências estaduais que forneceram bolsas com recursos para viagem e pesquisa que não existiam antes. Houve ainda a ampliação da universidade com concursos públicos para professor. Esses três fatores: a abertura política, a explosão no bom sentido da pós-graduação e dos financiamentos e a expansão do pessoal universitário, que permitiu a formação e a entrada de jovens, muito jovens no processo docente da universidade, foram determinantes. Havia concurso em que entravam três ou mais professores. Eu acho que estava no lugar certo, na hora certa. Acho ainda que esses alunos civis e militares entenderam perfeitamente a ideia de rigor acadêmico. O Flávio Limoncic (1997LIMONCIC, Flávio. A civilização do automóvel: a instalação da indústria automobilística no Brasil e a via brasileira para uma improvável modernidade fordista, 1956-1961. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.), por exemplo, utilizou em sua tese sobre a indústria automotiva brasileira, a modernização do Brasil, a revista Quatro Rodas. Você poder perceber a importância de uma fonte como essa e um aluno que quer trabalhar de uma forma rigorosa com esse material que não ocorreria a ninguém em outro período foi uma coisa fantástica. Nesse momento, eu tive o papel de deixar as pessoas fazerem isso, aceitar as pessoas. Mesmo que eu quisesse centrar no tema das ditaduras, que era o trabalho principal do Laboratório, chegava uma demanda dos abandonados que vinham com temas os mais variados possíveis, que usavam o Laboratório como uma área de experimentação e exílio. Não conseguia ter aceitação, ia para lá e eu dizia “vamos fazer”. Então surgiram teses com temas que iam da origem do Christopher Street Day até a indústria automobilística. Da ditadura em Vargas até o tempo presente e a ditadura militar. Era um pouco de experimentar tudo isso e deixar que essas coisas acontecessem. A maioria das pessoas que chegavam eram o que podemos chamar de self-sustained. Já chegavam sabendo o que queriam trabalhar, sabendo quais eram as suas fontes. Eu lembro que você sempre gostou de arquivos, sempre foi uma historiadora de arquivo. Já a Alessandra Carvalho sempre gostou das discussões teóricas, os grandes temas teóricos. A questão era como permitir que cada uma dessas pessoas, com perfis diferenciados, pudesse caminhar na mesma direção, que era fazer teses de qualidade. E isso foi possível e teve um papel fundamental. E quando você juntava tudo isso cada um tinha uma contribuição muito importante. Eu lembro que havia alguns temas, não só a questão em si do tempo presente, o que era esse tempo, mas também da modernidade, de você entender o que era modernidade. Os livros do David Harvey (1992HARVEY, David.Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992.) sobre a condição pós-moderna, pois era muito importante entender a diferença entre moderno, pós-moderno e modernismo. A discussão do Benjamin Coriat (1989CORIAT, Benjamin A revolução dos robôs: o impacto socioeconômico da automação. São Paulo: Busca Vida, 1989.) sobre fordismo, quer dizer, era algo que vinha do Gramsci ([1934] 2008) com o Americanismo e fordismo, e a ideia de que a sociedade estava sendo engolfada por relações novas capitalistas, em que o tempo, a produção e a eficácia eram as exigências que eram impostas ali. Essas temáticas e essas literaturas tiveram um papel importante para formar isso de que estamos falando.

SQ: E era um tempo que não tínhamos tanto acesso às traduções, compras de livros estrangeiros ou ainda os PDFs que circulam hoje.

FCTS: Sim, mas tinha um trabalho em grupo importante. Alguém lia em inglês, outra lia em francês, e a gente fazia muitos seminários juntos, um passava para o outro. Havia muito a ideia de trabalho em equipe, de trabalho conjunto. Não sei se estou enganado, mas acho que isso se perdeu um pouco. As reuniões do Laboratório eram muito importantes. E houve um salto ali de que me orgulho muito de ter provocado, que foi a superação das fronteiras entre graduação, mestrado e doutorado. Eu tinha chegado da Europa e isso não existia. Os alunos estavam em um conjunto e faziam o seu trabalho. O trabalho final é que deveria ter o aspecto do nível em que o aluno estivesse.

SQ: Embora não fosse uma novidade naquela época, os estudos das direitas deram uma contribuição importante às pesquisas da história do tempo presente, um novo olhar para o tema.

FCTS: O primeiro trabalho que eu li sobre direitas foi do Francisco Iglesias (1977IGLESIAS, Francisco. Estudo sobre o pensamento reacionário: Jackson de Figueiredo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 2, n. 2, 1977.) sobre o pensamento reacionário no Brasil. Havia trabalhos sobre direita sendo colocados, mas havia também uma identidade de jovens com ideologia e militância. Então havia muitos trabalhos sobre proletariado, sobre anarquistas. Havia uma mítica anarquista, especialmente em São Paulo. Estudar a direita, no entanto, não era comum. Eu lembro que quando comecei a estudar a direita ouvi piadas como “tá se convertendo”. Mas sem dúvida nenhuma a gente entendeu, naquele momento da abertura política, que a direita não tinha sido derrotada. Naquele momento a gente achava que tinha acontecido um pacto. E que esse pacto tinha parido a transição.

SQ: A própria eleição do Collor, em 1989, demonstrava que a direita ainda estava ali.

FCTS: Pois é, primeiro você tinha que aceitar, e isso tem que se colocar em termos de época, o Tancredo, que não era uma opção da esquerda. Depois o Sarney. E na primeira eleição livre o Collor. Então a direita era forte nesse sentido. Recentemente, em um artigo que publiquei em La Plata (Silva, 2023bSILVA, Francisco Carlos Teixeira da; SCHURSTER, Karl. Un domingo que sacudió la democracia: el golpe de Estado en Brasil. Relaciones Internacionales, La Plata, v. 1, n. 2, p. 1-30, 2023b.), eu falo que essa transição era o contrário do dualismo entre transições pactuadas ou transições por colapso. Essa transição não foi nem uma coisa, nem outra. Ela foi uma transição falhada. A transição brasileira falhou porque ela não conseguiu acontecer. Na verdade, a Nova República faz uma transição marcadamente à direita. Não consegue punir os golpistas de 61, de 64. Em 1985, não consegue levar ninguém aos tribunais. Têm muitos trabalhos hoje sobre justiça de transição no Brasil, mas são trabalhos sobre o que não existiu na prática. Na África do Sul teve um processo de reconciliação que também não agradou a muita gente. Na Argentina e em Portugal você teve prisões. Agora no Chile, Brasil e Espanha você não teve transição. Particularmente o processo brasileiro foi muito pautado pela Espanha, a nossa anistia, a vinda de integrantes do antigo regime para dentro da nova fase democrática. Ai a gente passa a viver na Nova República espasmos autoritários, que vão culminar no 8 de janeiro. Quer dizer que isso é um longo processo. É nesse sentido que eu falo que é uma transição falhada.

SQ: Mas a história do tempo presente, além de trazer o recorte cronológico que falamos no início, trouxe novos temas ou novos olhares sobre temas antigos, como as próprias direitas. Tem o trabalho da Lúcia Grinberg (1998GRINBERG, Lucia. A Aliança Renovadora Nacional (Arena): a criação do bipartidarismo e do partido do governo. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1998. e 2004GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (Arena), 1965-1979. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.) sobre a Arena, desenvolvido na UFF sob a orientação da Ângela de Castro Gomes, eu, que fui estudar a repressão (Quadrat, 2000QUADRAT, Samantha. Poder e informação: o sistema de inteligência e o regime militar no Brasil. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000., 2005QUADRAT, Samantha. A repressão sem fronteiras: perseguição política e colaboração entre as ditaduras do Cone Sul. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.), entender como era a formação dos seus agentes. Não era fácil. Você não tinha fontes como hoje.

FCTS: A gente não tinha nem legitimidade acadêmica.

SQ: Não tinham legitimidade nem fontes. Líamos muito os jornais e legislação na Biblioteca Nacional. Fazíamos história oral com as pessoas ainda muito receosas. Muitas vezes você precisava de um intermediário que fizesse o contato inicial.

FCTS: E havia principalmente a história oral com as grandes figuras. A história oral do que o Christopher Browning (1993BROWNING, Christopher R. Ordinary men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. New York: Harper Perennial, 1993.) chama de ordinary people não era feito. Aí teve um papel muito importante a Ismênia Martins. Ela dá uma virada na história oral, que era uma história de grandes personagens. Ela vira para uma história oral da classe trabalhadora. A Ismênia foi a primeira a dar cursos de pós-graduação sobre história oral, mas se recusando a fazer a história dos grandes homens. Ela queria fazer uma espécie de prosopografia de multidões. Mesmo de multidões anônimas. Então ela colocava os alunos para entrevistar operários, trabalhadores, domésticas. E isso foi muito importante para fazer essa virada. Nesse momento, eu acho que o Departamento de História da UFF tem uma liderança nesse processo. A UFF começa a produzir trabalhos que de um lado renovam a história da escravidão e, de outro lado, da classe operária com a Ismênia e a Eulália Lobo. Tiveram ainda um papel importante dentro de fábricas, levantando documentação, buscando depoimentos. Nós tivemos também a possibilidade de fazer teses que mexiam com uma certa tradição, que foram teses sobre grandes líderes sindicais que tiveram um papel importante, mas que não viraram deputados, senadores, governadores. E que desapareceram de novo. Então surgiram trabalhos importantes nessas biografias de ordinary people. E isso foi uma contribuição muito importante naquele momento. Assim como o grupo do Ciro Flamarion Cardoso e da Maria Yedda lá na UFF com trabalho escravo e história agrária, em que a escravidão em si foi revista, principalmente a possibilidade de entender a formação do protocampesinato brasileiro a partir da escravidão e ainda a premência da reforma agrária. Mas me parece que a grande novidade foi essa movida que Ismênia, Eulália e Barbara Levy deram ali na UFF.

SQ: Você acha, a partir da experiência do Tempo, do NEC e de outros laboratórios, que há uma história do tempo presente brasileira?

FCTS: Eu acho que há.

SQ: Com quais características?

FCTS: Eu acho que a história do tempo presente no Brasil tem em grande parte a forma dominante equivocada, que é a cronológica, que tem marcos cronológicos móveis. É de se imaginar que daqui a vinte anos tenhamos outro marco, porque não dá mais para chamar a história de 64, que eu já falei antes que não vejo essa cesura, de tempo presente. Então vai acabar empurrando esse marco para frente infinitamente.

SQ: Mas quem trabalha na Europa com a história do tempo presente a partir do cronológico, com a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, também considera um marco móvel?

FCTS: Não, ele não é um marco móvel. Ele é processual, está se fazendo processo. E o que vem depois dessa história do tempo presente? Essa é a questão. Vem uma história que se abre, uma história que não é mais uma história cronológica. Então você passa a ter a história da mulher, a história dos LGBTs, a história dos humildes, a história dos sentimentos, a história dos medos. Você tem história que se abre e que não é cronológica nesse sentido. A história da mulher, por exemplo, não pode ser cronológica, senão a gente começaria no processo de hominização. Mas sim a condição, a condição dos atores na história. E essa é a grande novidade. Então você é capaz de produzir histórias bem interessantes. Então você começa a ter instituições, temáticas, campos que se abrem a partir daí. Essa é a grande liberdade nesse sentido. Mas acho que muitas vezes estamos fazendo história contemporânea, história dos nossos dias, e chamando de história do tempo presente. Eu insisto: a história do tempo presente é processual, ela é trans-histórica, não pode ser cronológica e tem que ser comparativa.

SQ: Quando pensamos a ditadura falamos muito da ruptura, mas pensamos pouco na continuidade.

FCTS: Michael Foucault sempre chamou atenção para a continuidade da história, para como esses discursos se entrelaçavam, criavam redes que se mantinham com extrema força na continuidade. A singularidade histórica é exceção. Bem mais exceção do que a regra. E a gente está perdendo isso. Um dos trabalhos mais interessantes que eu vejo hoje é esse do Christopher Browning sobre o batalhão 111 da polícia SS, as ordinary people, é um recorte. Ele apanha um grupo de pessoas, que são sem formação política, não são nazistas de carteirinha, mas que, em determinado momento, participam ativamente do Holocausto, como atores do Holocausto, perpetradores do Holocausto. A pergunta dele é uma pergunta fundamental: por que pessoas comuns foram levadas a fazer aquilo? Então ele abre uma possibilidade de você fazer história oral, de você fazer análise de mentalidade, de você fazer sociologia, de você fazer política a partir da análise da estrutura da repressão etc. Mas ele chega à conclusão de que aquelas pessoas foram voluntárias nesse processo e que, ao contrário do mito existente, ninguém era fuzilado se não quisesse matar judeu. Isso era plenamente entendido, e as pessoas ficavam no quartel. É preciso abrir esses novos campos. A gente precisa ver mais disso na ditadura militar no Brasil. Qual foi a participação voluntária das pessoas no que chamamos no fascismo da historiografia do consentimento. Porque se tem uma ideia, principalmente advinda da má compreensão da teoria política, de que a ditadura é a inimiga da sociedade civil e a sociedade civil é a vítima da ditadura. O que a gente vê muitas vezes é que a sociedade civil engendra a ditadura. Não é um ato contra a sociedade civil. É um ato no qual a sociedade civil participa.

SQ: A Denise Rollemberg e eu organizamos a trilogia “A construção social dos regimes autoritários” (2010ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha. A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.) e fomos, junto com os autores e autoras, chamadas de negacionistas e direitistas.

FCTS: Em função do vício de que toda sociedade é vítima. Não é verdade.

SQ: Aproveitando o gancho, você consegue identificar a existência de temas tabus para a história do tempo presente desses anos 1990 no Brasil e de hoje?

FCTS: Sem dúvida, o colaboracionismo ainda é muito pouco estudado. A UFF saiu na frente mais uma vez, mas ainda precisamos avançar mais. Foi se descendo do barco da ditadura e todos viraram heróis da resistência, como o Sarney, o Aureliano Chaves, a Igreja católica, a OAB, a ABI. Até mesmo pessoas que comemoram o golpe em 1964, como Ulysses Guimarães. E muitas vezes aqueles que lutaram o tempo todo contra a ditadura, viraram radicais desagradáveis, pessoas que “não precisa ouvir, não, são a radicalização de sempre”. Esse trabalho foi feito na Alemanha, por exemplo, a Filarmônica de Berlim e o nazismo, a Confederação de Bispos e o nazismo, o empresariado de motomecânica e o nazismo etc. Como cada um deles participou e teve atuação dentro dessa ditadura. Nós ainda temos muito pouco disso. Se teve um grande avanço, mais uma vez na UFF, quando se colocou ao lado de ditadura militar a ideia de civil ou a ideia de empresarial, mas como isso se deslocava, como isso se fazia, ainda precisa de mais pesquisas, porque não são mecanismos claros. Por exemplo, o financiamento do golpe, aquelas reuniões em São Paulo quando banqueiros se reuniram com empresários para planejar o golpe. Tudo isso foi pago, em tudo isso havia dinheiro. A mesma coisa acontece com o integralismo. Você hoje tem inúmeros trabalhos sobre o integralismo, quase todos baseados em jornais e revistas integralistas, mas quando você pergunta quem financiava o integralismo no Brasil, de onde vinha, quantos militares eram integralistas, quantos bispos e padres eram integralistas, quantos líderes sindicais eram integralistas, você não tem essa resposta porque você está fazendo majoritariamente análise de discurso. O arquivo não entra. Falta arquivo. Então o colaboracionismo, a participação da sociedade civil nos processos autoritários são tabus.

SQ: Você foi um dos primeiros historiadores a ir para a imprensa, comentarista de canal de TV, quando não éramos tão procurados para isso.

FCTS: Eu cheguei a ter um horário fixo no início da Globo News. Depois, na greve dos professores em 2013, eu me afastei porque não concordei com o encaminhamento da cobertura dos acontecimentos. De certa maneira, no início, isso criou muitos problemas, porque a história do tempo presente já tinha a fama de ser jornalismo. Então, quando você vai para o jornalismo, parece que confirma a crítica daqueles que chamavam a história do tempo presente dessa maneira. É claro que quando alguém com uma formação em história está falando de um processo é completamente diferente do jornalismo.

SQ: Essa busca da imprensa pela história do tempo presente é também o reconhecimento do trabalho do historiador?

FCTS: É reconhecimento, é compreensão de que o historiador tem sim uma função pública. E nisso eu queria voltar a Maria Yedda, a Eulália Lobo, a Francisco Iglesias nos 1958, 1959 até 1964. Quando eles eram intelectuais que estavam na mídia, que estavam falando na imprensa. Isso já existia. A ideia de uma história pública já estava ali. Maria Yedda chegou a ser diretora da Rádio MEC. Alguns tinham colunas nos jornais. Isso tinha sido interrompido. Quando sou chamado pela Globo News, na verdade, eu estava retomando uma tradição dos professores lá dos anos 1950, que estavam participando daquilo que eles achavam, certo ou errado no seu diagnóstico, que era a revolução brasileira. Já havia então uma prática da história pública no Brasil que precisamos (re)conhecer.

SQ: Para encerrar a entrevista queria que você apontasse onde ainda precisamos avançar na história do tempo presente no Brasil.

FCTS: Como falei no início da entrevista, acho que estamos pecando com a ideia de cronologia ou não cronologia, processo versus cronologia. Temos pecado numa certa timidez nas temáticas. Poderíamos abrir mais essas temáticas. Temos também tido pouco contato com a historiografia que mais avançou na história do tempo presente, a alemã e a italiana. Não tenho um diagnótico do que aconteceu com a história na França, mas ela não é mais a historiografia de ponta de outrora. Nos Estados Unidos a grande novidade é a história pública, que na verdade, para mim, era algo que fazíamos nos anos 1950 no Brasil.

SQ: E com a América Latina?

FCTS: Com a América Latina a gente tem uma diferença monstruosa em relação a lugares de memória e aos usos políticos dessa história do tempo presente. Se você compara o Chile com o que a gente tem no Brasil... nós não temos placas nas ruas sobre os locais, nós não temos placas comemorativas, você não tem placas como aqui morou o resistente tal. Você não consegue ter lugares de memória, mas tem havido uma ênfase muito grande em criar museus e arquivos, mas, ao mesmo tempo, não se define claramente o papel desse museu e desse arquivo como centro realmente de reunião, de pesquisa e de debate.

SQ: Mas em termos de Cone Sul a historiografia brasileira foi muito mais rápida em abraçar a ditadura como um tema. A demanda aqui no Brasil por acesso aos arquivos, ainda que com todos os problemas e críticas que podemos fazer, fez diferença.

FCTS: Sim, mas fomos por uma história política mais tradicional. No primeiro governo do Evo Morales, eu fui chamado a La Paz e começamos um projeto que não avançou, mas era sobre aquilo que chamamos de história compartida, uma história comum desses países. É algo muito difícil, mas temos processos muito semelhantes e intricados. A Operação Condor, que você estudou, é um exemplo, assim como o papel do Brasil no golpe do Chile, sobre o qual começamos a falar mais. A gente não tem uma história compartida. Seria muito importante se avançar nisso agora.

Referências

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  • 1
    CNRS é a sigla do Centre National de la Recherche Scientifique.
  • 2
    Francisco Carlos fez a sua graduação entre 1973 e 1976, na UFRJ.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2024
  • Aceito
    06 Fev 2024
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