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Qual o papel das experiências subjetivas na crítica social? Distinguindo entre justiça de primeira e de segunda ordem1 1 Uma versão preliminar deste artigo foi publicada em língua inglesa, em Pragmatism Today (v. 12, n. 1, 2021). Tive a oportunidade de discutir algumas dessas ideias em um seminário de pós-graduação na Universidade de Bergen, em um colóquio sobre afetos e crenças, organizado em uma parceria entre a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade de Bergen, e no seminário “Memória, Trauma e Narrativas de Si”, na Universidade de Coimbra. Agradeço pelos comentários e sugestões do público, nessas ocasiões, em particular a Franz Knappik, Marina Haddad, Joana Ricarte e Claudio Carvalho.

What is the role of subjective experiences in social criticism? Distinguishing between first and second order justice

Resumo:

Nas últimas décadas, diferentes abordagens ligadas à tradição de(s)colonial têm movido o pêndulo da crítica de pretensões de universalidade para relatos e experiências particulares. Contudo, nisso que podemos chamar de virada narrativa, não são sempre evidentes as justificativas morais de perspectivas em primeira pessoa. A questão que se gostaria de explorar neste artigo é se seria possível encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. Começa-se por inverter a questão, partindo do problema da objetividade na crítica, diante da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, é de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Se falamos sempre em primeira pessoa, e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar experiências que não são as nossas? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça? Em seguida, defende-se que podemos avançar, se distinguirmos duas dimensões de justiça. Seguindo distinções conhecidas de teorias de primeira e segunda ordem, defende-se que reivindicações ligadas à virada narrativa se referem a demandas de justiça de primeira ordem: trata-se de reconhecer moralmente a pretensão epistêmica dos sujeitos, vendo-se ali a possibilidade de confrontar noções falhas de universalidade e pontos cegos em teorias da justiça. Contudo, essas pretensões não possuem em si próprias critérios de justificação, requerendo dependências normativas, as quais são externas às próprias experiências - essas, sim, situadas em justiça de segunda ordem. Propõe-se que esse modelo tem a vantagem de incorporar as vantagens teóricas de teorias de(s)coloniais, sem negligenciar os potenciais da crítica da injustiça.

Palavras-chave:
Narrativas; Experiências; Crítica; De(s)colonialidade

Abstract:

Over the last decades, different approaches linked to decolonial tradition have shifted the pendulum of critique from claims of universality towards individual accounts and experiences. However, in what we can call “narrative turn”, the moral justifications for first-person perspectives are not always evident. In this paper, I explore the boundaries of epistemic relevance regarding the role that subjective accounts and experiences play in the critique of injustice. For that, I start by inverting the question of objectivity in the critique considering the particularity of different experiences. The issue, in this case, is the position from where philosophers speak in their attempts to describe experiences of suffering. With regards to first-person standpoint, the question that is at stake is whether philosophers are capable of describing others’ experiences. In these terms, how can we share experiences of injustice after all? Next, I argue that there ought to be, in the debate, a distinction between two dimensions of justice. According to usual distinctions of “first- and second-order” approaches, I insist that theoretical claims related to the narrative turn refer to demands of first-order justice: it is about moral recognition of individuals’ epistemic claims, opening to the possibility to confront defective notions of universality and blind spots in theories of justice. However, these claims do not have justification criteria themselves, requiring, thus, normative dependencies which are external to experiences - these are situated in second-order justice. I argue, then, that this model has the advantage of incorporating the insights of decolonial theories without neglecting the potential for the critique of injustice.

Keywords:
Narratives; Experience; Critique; Decoloniality

Mas como não ia ter pena? O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente. […]
Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá [...]
O mais bonito do mundo é isso: as pessoas não são sempre iguais, elas ‘inda não foram terminadas.
(Guimarães Rosa, Grande Sertão: VeredasROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.).

Introdução

Quando tentamos encontrar uma característica que liga diferentes teorias associadas à tradição liberal, vemos a de propor critérios de justiça que, ao invés de obstruir a pluralidade de visões de mundo, permitissem conciliá-los. Diante da tensão entre preferências particulares, a solução encontrada por teorias liberais foi a aparentemente mais simples: abster-se de criticá-las, porque, se a crítica se orientasse por imperativos morais vinculados a noções como autenticidade ou vida boa, ela acabaria por colocar em risco uma suposta objetividade e imparcialidade pretendida por critérios de justiça. Seguindo de perto o sentido do que, na clássica formulação de Isaiah Berlin, ficou conhecido por liberdade negativa, não caberia a teorias normativas se aventurar na seara de definições particulares, devendo abster-se de determinar os conteúdos de preferências individuais. Teorias políticas alinhadas a esse raciocínio deveriam, então, focar apenas naquilo que supostamente lhe cabem: a universalidade de demandas da justiça, voltando seus esforços, de um modo ou de outro, a critérios que transcendam a parcialidade e contingência de visões particulares de mundo. O espectador imparcial de Adam Smith ou o véu da ignorância de John Rawls são soluções teóricas que tentam desobstruir teorias de toda particularidade que, por assim dizer, atrapalharia encontrar critérios imparciais para a justiça.

Ao se pôr uma clara linha divisória entre o que concerne à razão pública e o que se delimita à esfera privada, experiências subjetivas enquanto autodescrição e narrativas singulares passaram a ser restritas a esta última esfera. A consequência dessa separação mais rígida entre público e privado foi a tendência por escamotear a relevância que relatos e narrativas singulares poderiam assumir, na elaboração de uma teoria da justiça. Enquanto particulares, experiências seriam como peças que não mais conseguem se encaixar no quebra-cabeça de uma suposta universalidade, o que faz com que aquela noção de razão que subjaz a esse potencial de universalização acabe por revelar-se restritivo ou mesmo excludente.

Diante desse contexto, a questão que gostaria de explorar, neste artigo, é se seria possível encontrar relevância epistêmica de relatos e experiências subjetivas na crítica de injustiça. Antes de enfrentar essa questão, contudo, gostaria de inverter o problema da objetividade na crítica em face da particularidade das experiências. A questão, nesse caso, seria de onde fala o filósofo ou a filósofa, na sua intenção de descrever experiências de sofrimento de outras pessoas. Também aqui nos movemos em um plano sobretudo epistêmico, isto é, sobre em que medida podemos falar a respeito de experiências que não são nossas. Significa perguntar como podemos transferir uma perspectiva de primeira pessoa para a de terceira pessoa (como em teorias e suas pretensões normativas), ou, em um sentido mais próximo do que estou discutindo, em acessar experiências particulares de outra pessoa - o que é chamado de second-person standpoint. Se falamos sempre em primeira pessoa e se existe algum limite cognitivo ou epistêmico de experiências, de onde viria a capacidade de criticar desejos, escolhas ou experiências que não os nossos? Afinal, como podemos compartilhar experiências de injustiça?

1 O pêndulo entre particular e universal: compartilhando experiências de injustiça

Pode ser útil, em um primeiro momento, lembrarmos a distinção que Peter Strawson propôs entre ressentimento e indignação moral: enquanto o ressentimento seria uma reação à ofensa ou indiferença direcionada a si mesmo, a indignação moral seria uma atitude compreensiva, impessoal e desinteressada. Ao contrário do ressentimento, atitudes de indignação seriam “[...] reações à qualidade das vontades dos demais, não a nós mesmos.” (STRAWSON, 2016STRAWSON, P. Liberdade e Ressentimento. In: CONTE, J.; LUÍS, I. (ed.). Ensaios sobre a filosofia de Strawson. Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 2016., p. 258). Strawson distingue, então, atitudes reativas pessoais do que ele chama de atitudes vicárias: aquelas em que, apesar de a ofensa não ser dirigida a mim mesmo, eu me coloco lugar do outro. Em outras palavras, posso ser tomado por um sentimento de indignação diante de uma experiência de injustiça, independentemente de ela ser dirigida a mim. Afirma Strawson:

O que temos aqui, por assim dizer, é o ressentimento em nome de outro, onde nem o interesse próprio nem a própria dignidade estão implicados; e é esse caráter impessoal ou recíproco da atitude, somado aos demais, o que lhe outorga a qualificação de “moral”. (STRAWSON, 2016STRAWSON, P. Liberdade e Ressentimento. In: CONTE, J.; LUÍS, I. (ed.). Ensaios sobre a filosofia de Strawson. Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 2016., p. 258).

Não está claro, contudo, quais critérios nos permitem identificar uma atitude vicária (ou indireta) como sendo moral. Apesar de Strawson contribuir para distinguirmos entre, por um lado, o ressentimento enquanto atitude reativa direta, e, por outro, a indignação como sentimento de quem observa e percebe uma experiência de injustiça, isso não deve nos levar a assumir que todo sentimento de indignação seja per se moralmente legítimo. Posso me indignar com uma atitude dirigida a alguém próximo a mim ou com o qual eu tenha algum vínculo afetivo, sem que esse sentimento possa discernir sobre a legitimidade moral da ação. Também nesses casos as emoções são sobretudo ambivalentes: neles, eu posso tomar parte apenas motivado pelo laço de proximidade afetiva que tenho, não sendo suficientemente neutro para oferecer um juízo moral adequado.

Tal dificuldade pode ser em parte explicada pelo fato de que o esforço teórico de Strawson já assume como ponto de partida a intenção de trazer a discussão sobre emoções para o debate de viés analítico - mais especificamente, em torno do problema do determinismo moral (como ele reconhece, “[...] é uma pena que falar em sentimentos morais tenha caído em desuso.” (2016, p. 268).3 3 As distinções entre conceitos como emoções, afetos, paixões ou sentimentos são bastante controversas na literatura filosófica sobre o tema (cf., por exemplo: HARTMANN, 2010; DEMMERLING; LANDWEER, 2007; RORTY, 1980). A minha preferência pelo termo afeto deve-se a um certo teor naturalista, mas que, ao mesmo tempo, é suficientemente flexível para adequar-se a um conteúdo cognitivo. O termo distingue-se ainda de outros já mais carregados semanticamente - como em certos recursos aos termos emoção ou sentimento. Em todo caso, entendo que mais relevante que a preferência pelo termo afeto é o significado que lhe será atribuído. Mais do que o estranhamento que esse desuso poderia causar, gostaria de me deter na questão em torno da relevância da perspectiva em primeira pessoa. Qual é exatamente a diferença entre as experiências que sinto em primeira pessoa e a que me é oferecida sob a forma de relato? Mais precisamente: a experiência é uma condição para a crítica de injustiça?

Vejamos este relato de Joaquim Nabuco. Nascido no Engenho Massangana, próximo ao Recife, em uma família branca e abastada da aristocracia rural pernambucana, Nabuco narra suas memórias da infância passada no Engenho. Uma de suas lembranças mais marcantes desse período é a ruptura de quando a condição de escravidão deixa de ser algo familiar, sentida através de um acrítico laço afetivo, e passa a ser questionada:

Eu estava em uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi esse o traço inesperado que me descobriu a natureza a instituição com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava. Nada mostra melhor do que a própria escravidão o poder das primeiras vibrações do sentimento. [...] Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência. (NABUCO, 2012NABUCO, J. Minha formação. São Paulo: Editora 34, 2012., p. 190).

A questão epistêmica da percepção de injustiça de Nabuco, que evidentemente não sente a mesma experiência do escravo que vai ao seu encontro, é um caso de passagem entre primeira e segunda pessoa. Qual é a diferença entre os dois relatos? O que permite compartilhar essa experiência, senão enquanto sofrimento, como percepção de injustiça?

Um primeiro modo de abordar essa questão, e mais recorrente no debate, consiste no que podemos chamar de privilégio epistêmico da experiência. A posição crítica e reativa de Joaquim Nabuco não resulta de sentir em primeira pessoa a condição de escravidão, senão de uma experiência de um relato: ao deparar-se com o jovem negro, na condição de escravo clamando por ser comprado, Nabuco narra “sentir” a dor que o afligia. Sentir, nesse caso, não significa, e isso é claro, uma experiência em primeira pessoa (como veremos mais adiante, em relação ao conceito de experiência vivida), mas perceber, ou seja, poder compartilhar em segunda pessoa experiências que intersubjetivamente podem ser criticadas como injustas.

As questões que vemos nesse relato não são, contudo, inerentes apenas ao lugar das experiências vividas como critério de crítica a injustiças. Em um passo anterior, devemos nos perguntar por um significado da injustiça que não se refira aos problemas epistêmicos de sua percepção, pois a posição privilegiada de Nabuco, que é de onde ele narra a sua percepção ainda criança da injustiça intrínseca à condição de escravidão, não apenas torna sua narrativa um exemplo do problema da perspectiva em segunda pessoa, mas faz com que seu relato seja relevante enquanto relato. Ainda que também tivesse destaque na luta abolicionista o papel de intelectuais negros, como Luiz Gama, ou de personagens importantes na resistência quilombola, como Tereza de Benguela, o relato de Nabuco é o que é ouvido e resiste ao tempo.4 4 Não por acaso, são raros os relatos de escravos em primeira pessoa. O fato de que a autobiografia de Mahommah Gardo Baquaqua, ex-escravizado que fugiu para os Estados Unidos, ter sido o único relato autobiográfico de pessoas escravizadas, no Brasil, atesta a discrepância de como esses relatos circulam e da relevância epistêmica que assumiram historicamente, na percepção da injustiça.

Do ponto de vista da injustiça epistêmica, a questão da injustiça não se refere apenas à capacidade reflexiva da injustiça. Mais do que sua percepção em segunda pessoa (ou seja, a percepção por um outro que não sofre diretamente a experiência da injustiça), o que é injusto aqui é o fato de que a perspectiva em primeira pessoa não possua relevância.5 5 Em Epistemic injustice, trabalho pioneiro sobre o tema, Miranda Fricker (2008) chama esse problema de injustiça testemunhal - quando relatos não são ouvidos, em seu potencial epistêmico. Esse sentido difere do que Fricker chama de injustiça hermenêutica: diferente da injustiça testemunhal, que se refere aos preconceitos diante do conteúdo do relato a depender de quem o faz, nos casos de injustiça hermenêutica, relações de injustiças arraigadas em prática sociais sequer chegam a ser percebidas pelos sujeitos como injustas. Certamente, a importância dada a relatos em primeira pessoa se refere apenas à dimensão epistêmica da injustiça, mas não é suficiente para superar dimensões políticas da injustiça. Basta lembrar que Frederick Douglass, o qual se tornaria um dos principais nomes do abolicionismo, nos Estados Unidos, deixou suas memórias relatadas em três autobiografias - a primeira delas, The Narrative of the Life of Frederick Douglass, An American Slave, Written by Himself - que viriam a se tornar um grande sucesso de vendas. O significado moral do reconhecimento epistêmico não substitui o significado das dimensões jurídicas e sociais que constituem o horizonte normativo do vocabulário da justiça. É também por essa razão que divirjo das reflexões sobre a justiça que a reduzem à dimensão epistêmica da experiência vivida, a qual interpreto como sendo uma das pré-condições para que o vocabulário disponível para as disputas sobre justiça possa ser posto de maneira mais simétrica e, portanto, mais justa. A narrativa da experiência vivida em primeira pessoa - ouvir o que têm a dizer aqueles que sentem a experiência de injustiça - adquire pesos distintos no recorte da justiça, quando ela já distingue de antemão quais delas importam. Essa ausência ou desequilíbrio entre a percepção da injustiça de quem fala em nome desse outro e os próprios relatos em primeira pessoa, e sobretudo o seu apagamento, são problemas de justiça: Enquanto uns têm voz, outros têm silenciada sua capacidade de oferecer relatos; uns são lembrados, outros esquecidos.

Quando Frantz Fanon escreve Pele negra, máscaras brancas, ele alerta para o que está por trás das pretensões de universalidade epistêmica - intimamente ligadas, nesse caso, ao discurso colonial. Fanon articula, ali, uma densa conexão entre sua experiência como médico psiquiatra e sua prática em um contexto de dissonâncias culturais que tem lugar na Argélia, sob o domínio colonial francês. Do ponto de vista da prática psiquiátrica, as pretensões de universalidade da subjetividade tornam-se ainda mais latentes, pois assumem um modelo totalizante da categoria de sujeito e seus sintomas. Esse tipo de resistência tinha como motivação certas questões, como: quem pode falar em nome do universal? Qual universalismo? E por que alguns discursos valem como universais, enquanto outros, apenas como particulares?

Essas foram questões que, de um modo ou de outro, mobilizaram diferentes vertentes do pensamento decolonial. Fanon argumenta que, por trás do que nomeamos como “universal”, se escondem disputas de narrativas que excluem perspectivas impedidas de serem reconhecidas, em sua pretensão epistêmica. Ao trazer luz para essa questão, o que é válido e consolidado como centro do discurso canônico contrasta com o que Fanon chama de “a experiência vivida do negro”, que dá título a um dos capítulos da obra. Ao narrá-la em primeira pessoa, ele descreve a experiência de não se reconhecer naquela suposta universalidade do conhecimento no colonizador francês, na Argélia: um tipo de recorte racial e colonial que provoca um estranhamento vertiginoso - uma espécie de desidentificação epistemológica. A escolha de Fanon pela narrativa em primeira pessoa traz uma força epistêmica enquanto luta por reconhecimento de uma subjetividade vetada à categoria do universal. Enquanto se dirige à teoria, a crítica não é particular, tampouco quer afirmar sua visão como “outro universal”, mas reivindica que sua experiência vivida não está incluída naquele discurso colonizador que, como tal, quer valer como universal. Ele está dizendo, de maneira contundente: “eu não me reconheço nessa teoria”.

É o caso da categoria “homem”, especialmente enquanto ligada aos seus desejos - questão que Fanon elabora, a partir de sua vivência profissional como psiquiatra. “Que quer o homem? Que quer o homem negro?” - pergunta, deslocando a ênfase da universalidade da categoria “homem” para uma particularidade identitária que não se reconhece nela. O desejo do homem negro é questionado como uma esfera volitiva que não adentra a categoria “desejos do homem”, pois o padrão “universal” de reconhecimento do homem negro martinicano - segue Fanon - é o do francês branco. O particular torna-se, então, refratário a seu encapsulamento por uma categoria estranha a ele, mas ela só lhe é estranha na medida em que exclui de si outros particulares. É o universal, não o particular, que é alienado de si, reduzindo-se a uma razão autorreferencial e, portanto, excludente. A conclusão de Fanon é taxativa: “O negro não é um homem” (FANON, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Nova York: Grove, 2008., p. 26).

O mesmo vale para a linguagem: ao se perguntar sobre a construção de identidade do negro, Fanon traz o exemplo do uso do petit-nègre como incorporação da linguagem colonial: enquanto indica apenas uma versão simplificada do francês, o falante de petit-nègre se “autossubalterniza” frente ao linguajar colonialista, de modo que “[...] responder em petit-nègre é enclausurar o negro com corpos estranhos extremamente tóxicos.” (FANON, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Nova York: Grove, 2008., p.48). Isso significa sobretudo que a sujeição colonial é também uma sujeição psíquica. Dessa ideia decorre que, para Fanon, os modos de vida coloniais e racializados são formas específicas de sofrimento, que, como tais, devem ser enfrentadas sob modelos reativos de ação política.

Um sentido análogo de estranhamento da linguagem é relatado por Kwame Appiah, em Na casa de meu pai. No que chama de “a invenção da África”, Appiah menciona os subterfúgios de violência semântica do discurso de Alexander Cummel, padre episcopal norte-americano, que defende a ideia de que, apesar da escravidão, com a colonização, a “divina providência” tinha deixado como herança a posse da língua anglo-saxônica, “[...] uma língua superior tanto em eufonia como em recursos conceituais para expressar as ‘verdades mais elevadas’ do cristianismo.” (APPIAH, 1997APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão de tradução de Fernando Rosa Ribeiro. 1. ed. 1. reimpr. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., p. 19). O tipo de violência epistêmica que Appiah relata é resultado de um sentido excludente de universal que só consegue lidar com a diferença, eliminando-a. Nesse recorte entre universal e particular, a questão permanece sendo quais discursos valem como universais, e, principalmente, quem pode falar em nome do universal. Appiah conclui, em tom irônico:

Agora, decorrido mais de um século, mais de metade da população da África negra vive em países em que o inglês é língua oficial; e a mesma providência decretou que quase todo o restante da África fosse governado em francês, árabe ou português. (APPIAH, 1997APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão de tradução de Fernando Rosa Ribeiro. 1. ed. 1. reimpr. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., p. 19).

2 Razão de quem? Entre relato particular e pretensões de universalidade

Ao confrontar o lugar de fala da razão, críticas decoloniais abriram o caminho para o descolamento do pêndulo do universal para o particular, questionando o que passa a ser visto como modelos defectíveis e excludentes de racionalidade. Acontece que, se as críticas antes estavam voltadas para uma ampliação epistêmica daqueles discursos que importavam para a legitimação de teorias e visões de mundo, elas passaram a assumir um lugar de autovalidação em que não mais ficava claro em que medida suas pretensões de validade iam além de sua dimensão particular. O resultado disso foi que, da centralidade da luta por reconhecimento de diferentes narrativas, essas abordagens deslocaram seu foco do que seria uma crítica epistêmica para uma espécie de autovalidação normativa baseada na experiência. Narrativas em primeira pessoa que poderiam ter um potencial de crítica passaram a ser autorreferenciais, ou seja, ao invés de pressionar e corrigir pretensões teóricas, permaneceriam apenas como relatos singulares.

No entanto, o potencial de ampliação das narrativas encontrava seu significado epistêmico justamente enquanto estava em condições de transcender o caráter particular dos relatos em primeira pessoa. Ou seja, o problema da falta de reconhecimento epistêmico se dá enquanto, embora relatos fossem ouvidos, eles não eram vistos em seu potencial de contribuição epistêmica para além de uma mera história particular. Em Memórias da plantação, Grada Kilomba se queixa de ser criticada por um excesso de emotivismo, de um descrédito, pois sua análise seria carregada de sentimentalismo, pouco objetiva, pouco científica (“você interpreta demais”), em que se encontram maneiras de descreditar seu discurso ou de a tentar calar - o “[...] controle interminável sobre a voz do sujeito negro e o anseio de governar e comandar como nós nos aproximamos e interpretamos a realidade.” (KILOMBA, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogá, 2019., p. 34).

Como acadêmica, por exemplo, é comum dizerem que meu trabalho acerca do racismo cotidiano é muito interessante, porém não muito científico. Tal observação ilustra a ordem colonial na qual intelectuais negras/os residem: “Você tem uma perspectiva demasiado subjetiva”, “muito pessoal”; “muito emocional”; “muito específica”; “Esses são fatos objetivos?”. Tais comentários funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes assim que falamos. Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos discursos de volta nas margens, como conhecimento desviante, enquanto seus discursos se conservam no centro, como a norma. Quando elas/eles falam é científico, quando nós falamos é acientífico.

universal / específico;

objetivo / subjetivo;

neutro / pessoal;

racional / emocional;

imparcial / parcial;

elas/eles têm fatos / nós temos opiniões;

elas/eles têm conhecimento / nós temos experiências.

Essas não são simples categorizações semânticas; elas possuem uma dimensão de poder que mantém posições hierárquicas e preservam a supremacia branca. Não estamos lidando aqui com uma “coexistência pacífica de palavras”, como Jacques Derrida (1981, p. 41) enfatiza, mas sim com uma hierarquia violenta que determina quem pode falar. (KILOMBA, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogá, 2019., p. 51-52).6 6 Também nesse sentido da relação entre narrativa e poder escreve Adichie: “É impossível falar sobre a história única sem falar do poder. Há uma palavra, uma palavra malvada, em que penso, sempre que penso na estrutura do poder no mundo. É ‘nkali’. É um substantivo que se pode traduzir por ‘ser maior do que outro’. Tal como os nossos mundos económico e político, as histórias também se definem pelo princípio do ‘nkali’. Como são contadas, quem as conta, quando são contadas, quantas histórias são contadas, estão realmente dependentes do poder.” (ADICHIE, 2019, p. 37).

A reivindicação de Kilomba é a de que seu discurso não deve valer apenas como meramente particular, mas que pode ser reconhecido em suas pretensões de legitimidade teórica que justamente transcendam o sentido exclusivamente subjetivo de suas experiências singulares. Ou seja, quando ela reivindica reconhecimento da perspectiva de pessoas e grupos identitários cujos discursos são epistemicamente invisibilizados, isso não se restringe às suas experiências particulares. Pelo contrário, ela quer dizer que suas posições devem também valer como discursos com pretensões de ganhos teóricos que transcendam a particularidade de suas narrativas. Não se trata apenas da experiência particular, porém, novamente, de uma questão de justiça: a exclusão ou invisibilização no modo de tratamento epistemicamente distinto desses discursos é injusta. Reivindicações desse tipo se referem, portanto, não a uma pretensão de particularidade (característica da pluralidade de formas de vida), mas a um universalismo concernente a demandas de justiça. Elas trazem, em suma, o potencial moral de luta por igualdade de reconhecimento epistêmico.

Como vemos, a reivindicação de Grada Kiloma é por ter seus discursos reconhecidos como atinentes a conteúdos que falam mais do que as próprias experiências, isto é, cujas pretensões de validade transcendam a mera particularidade, e que faz com que alguns discursos valham como particulares enquanto outros universais, alguns centrais e outros periféricos; trata-se do recorte de validação epistêmica que, em si, pode ser considerado como um problema de justiça. Entretanto, o alcance teórico dessas narrativas deve justamente estar em condições de ultrapassar sua relevância enquanto restritas a seu caráter particular: se não trouxerem a pretensão epistêmica de transcender a particularidade, relatos em primeira pessoa continuarão sendo apenas relatos.

Os potenciais normativos de relatos orientados por uma lógica identitária não são imunes a essas mesmas ambiguidades. No exemplo mencionado por Appiah, ele argumenta que o que leva Alexander Crummel a se ver autorizado a fazer a declaração de superioridade semântica da língua inglesa é sua condição de afro-americano. Ele não fala - assim acredita - da perspectiva de um branco colonizador, mas enquanto negro - um recorte identitário que, para Appiah, pode também levar a distorções em suas pretensões de legitimidade discursiva. Essa mesma opção por uma análise focada na vivência subjetiva - todavia, que pretende ser ao mesmo tempo compartilhada identitariamente - leva Fanon a, por vezes, reduzir a complexidade de uma cultura a uma construção quase que arquetípica do homem pós-colonial. Significa perguntar se Fanon, ao reivindicar uma posição identitária no seu discurso, pode falar em nome de todos os sujeitos negros, ou, ainda, se homens negros nascidos em Martinica podem falar por mulheres negras estudantes em Paris, o que é compartilhado e o que não é entre negros retintos do subúrbio de Paris de origem senegalesa recém-imigrados e negros de pele clara de origem diaspórica no Rio de Janeiro, e assim por diante. No limite: quem pode falar em nome da “negritude”?

A questão posta por Fanon, no início de seu livro - o que quer o homem negro - se demarca então por um tipo de constituição do desejo que não se encaixa no discurso “o que quer o homem?” (o que acaba por significar “o que quer o homem branco”), tampouco demarca necessariamente uma constituição válida para todos os homens negros. Ainda mais por se voltar para um objeto de reflexão fortemente contingente e particular, como é o caso do desejo, qualquer discurso com pretensão de universalidade pode se revelar paradoxal. Embora o discurso de Fanon em primeira pessoa, que fala a partir da experiência vivida do negro, traga o potencial de cissura e tensionamento, ele não pode ser dissociado de sua experiência, a qual pode possuir traços compartilhados com outras experiências vividas, mas que não consegue facilmente transcender o pêndulo entre experiência particular e uma categoria identitária que se pretende mais alargada. Em suma, qualquer discurso que se assuma falando em nome de experiências compartilhadas pode se revelar paradoxal.

Além disso, o potencial das experiências na constituição do sujeito não se refere apenas a um ponto de partida como que estático - de onde fala o sujeito - mas da possibilidade de refletir sobre esse lugar e de questioná-lo, ou seja, de se viver outras experiências. Isso faz com que experiências sejam um horizonte de aprendizado. Mais do que isso: como sujeitos, não nos situamos somente no limiar das experiências já vividas, mas também na abertura do que ainda podemos viver. Experiências que ainda podem ser vividas, outros desejos que ainda podem ser desejados.

Como se vê, deslocar o pêndulo da crítica para a experiência não nos leva a romper tão facilmente com os problemas anteriores que a virada narrativa pretendia confrontar. A tensão entre particular e universal como o horizonte de constituição do sujeito, a partir de uma noção de afetos como propriedade, persiste de maneira paradoxal: o particular assume o lugar do universal, depositando na experiência do indivíduo o que antes poderia ser encontrado no horizonte do vocabulário social que a antecede.

Entretanto, a reflexão de Fanon traz uma importante contribuição para questionar a colonização do discurso supostamente baseado em uma racionalidade universal, cuja pretensão de universalidade se sustenta apenas enquanto exclui. Embora a contribuição epistêmica da experiência vivida não conceda automaticamente o critério moral que transcenda sua imanência fenomenológica, ela tem uma força de pressão e correção de noções falhas da justiça. Nesses casos, falar em primeira pessoa é relevante, porque demonstra que a suposta impessoalidade da razão universal é, na verdade, igualmente concreta e particular, com a diferença de que uma se impõe mais coercitivamente do que a outra.

Nem toda tradução de diferentes narrativas significa falar pelo outro como negação da diferença, nem toda representação deve assumir a forma de substituição. Representações podem significar, como propôs Spivak, em referência ao seu significado, no vocábulo alemão, não somente a substituição de um outro (Vertretung), mas uma exibição, apresentação (Darstellung) - um outro que fala por si mesmo, mitigando formas de violência epistêmica.7 7 “Devem observar como a encenação do mundo em representação - sua cena de escrita, sua Darstellung - dissimula a escolha e a necessidade de ‘heróis’, procuradores paternos e agentes de poder - Vertretung. Na minha opinião, a prática deve estar atenta a esse duplo sentido do termo representação, em vez de tentar reinserir o sujeito individual por meio de conceitos totalizadores de poder e de desejo.” (SPIVAK, 2010, p. 43). O diálogo entre o Xamã Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert, cujas intensas conversas resultaram na obra monumental A Queda do céu, é exemplo desses esforços de tradução na qual a disposição teórica sai de um falar por para um deixar ouvir. Sem negar o risco de um confronto reducionista de perspectivas, inerente à própria linguagem, Albert passou quatro décadas convivendo com Davi Kopenawa, numa postura de mediador que tece um laço de confiança mútua.

Somente a partir desse compromisso se tornou possível ir ao encontro de novas ferramentas conceituais e de tradução de visões de mundo(s) (ou mundos de visões, para usar uma expressão de Viveiros de Castro), apoiada em ontologias radicalmente distintas. Um encontro que ecoa de algum modo o potencial de tradução assumido pela própria entidade xamânica.8 8 “Na antropologia, é conhecida a imagem do xamã enquanto diplomata ou tradutor cósmico, aquele que viaja por diferentes mundos e lida com sujeitos diversos, mas igualmente humanos. Para voltar e contar o que viu, o xamã não pode confundir as perspectivas, caso contrário corre o risco ser capturado pela visão alheia, virando outro definitivamente. Na teoria da tradução xamanística, um mesmo referente, objeto ou palavra pode significar outra coisa por completo, a depender da perspectiva. Não há uma língua adâmica, absoluta, responsável por igualar as diferenças entre mundos e idiomas.” (IMBASSAHY, 2019, p. 12). “Gosto de explicar essas coisas para os brancos, para eles poderem saber.”9 9 Entrevista de Davi Kopenawa a Terence Turner, representante da comissão especial da American Anthropological Association, formada em 1991, para investigar a situação dos Yanomami no Brasil. Citado em A Queda do Céu (KOPENAWA; ALBERT, 2019, p. 63. Os verbos que Kopenawa usa nessa declaração têm força própria: explicar e saber trazem uma inquietante e consciente pretensão de verdade, que arroga, aliás, uma superioridade epistêmica. Como Kopenawa tem consciência de para quem está falando, a frase é menos arrogante e mais irônica. O tom é desconcertante, provocador. E Kopenawa sabe disso.

Relatos como os de Kilomba, Fanon, Appiah e Kopenawa reivindicam, de maneiras distintas, um processo de luta por reconhecimento epistêmico, não só enquanto representatividade - ao se fazerem ver e ouvir -, mas ao dizerem que a maneira como se constitui a construção “universal” de categorias epistêmicas exclui outros relatos invisibilizados nesse processo. Sua pressão é sobretudo metacrítica, uma vez que essas reivindicações não estão propriamente disputando o conteúdo da crítica, porém, o reconhecimento de que suas pretensões de crítica sejam igualmente ouvidas. Quando essas reivindicações pressionam o cânone, elas não o fazem apenas com base em um estatuto de particularidade - uma experiência vivida em particular -, mas a partir de um processo de retificação de injustiça epistêmica. Ao dizer “eu não me reconheço no seu universal”, perspectivas particulares não se reduzem nem à sua particularidade, nem se impõem como novo universal, contudo, pressionam teorias em direção à correção e ampliação. Enfatiza Spivak:

Não se trata de uma descrição de “como as coisas realmente eram” ou de privilegiar a narrativa da história como imperialismo como a melhor versão da história. Trata-se, ao contrário, de oferecer um relato de como uma explicação e uma narrativa da realidade foram estabelecidas como normativas. (SPIVAK, 2010SPIVAK, G. Pode o Subalterno Falar? 1. ed. Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010., p. 48).

3 Reconhecimento epistêmico e justificação moral: distinguindo injustiça de primeira e segunda ordem

Se, por um lado, a inclusão dessas perspectivas permite criar um vocabulário teórico já disposto de maneira imanente nas demandas por justiça, seus critérios de justificação dependem, contudo, de uma constante tensão entre perspectivas particulares e normas sociais. Nenhuma delas reúne critérios de justificação a priori, mas expressam uma função sobretudo negativa de crítica e correção, de questionar a suposta neutralidade normativa da “narrativa da realidade”. Na medida em que essas narrativas se dirigem a pretensões descritivas, a questão epistêmica consiste em trabalhos de tradução etnográficos ou culturais, isto é, dos limites e esforços em se debruçar sobre uma cultura diferente da do teórico ou teórica.10 10 Já há algum tempo, trabalhos no âmbito da antropologia levantaram o questionamento sobre os vieses da construção epistemológica enquanto falso universalismo que acabava por fetichizar o que não pertencia ao centro da construção do conhecimento. Eles apontavam para um deslocamento de perspectiva que, ao invés de mostrar-se como descrição supostamente neutra, significava uma “invenção” - p. ex. Mudimbe, A invenção da África, Edward Seid, Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. Nada mais distópico do que imaginar Kant, do alto de sua Könisberg, descrevendo detalhadamente as diversas culturas do mundo. Por trás desse suposto - e até arrogante - cosmopolitismo da filosofia, esconde-se uma posição que chega a ser surpreendente na sua presunção: um provincianismo com pretensões colonialistas. Sobre isso, cf., p. ex., Andrade, 2017, e Mignolo, 2011. Sem perder de vista esse conjunto de críticas em torno dessa questão do etnocentrismo, o problema que particularmente me interessa é, contudo, o impacto que elas têm no âmbito de teorias normativas. A disputa por critérios para questões de justiça não estão, certamente, no mesmo plano de narrar perspectivas antropológicas, e, no caso de teorias normativas, tais critérios se referem, como tenho insistido, ao potencial que relatos particulares baseados na experiência oferecem para essas teorias.

Em vista do que vimos até aqui, gostaria de sugerir que a força normativa dos relatos singulares se liga sobretudo a duas questões distintas. A primeira delas concerne à injustiça epistêmica. Teorias hermeticamente enclausuradas em seu próprio discurso, ouvindo apenas sua própria voz, falham ao tomar seus pressupostos de universalidade como incorrigíveis. Em nome da racionalidade que dizem assumir, alguns discursos validam a si próprios como universais, enquanto outros foram considerados periféricos, por supostamente não assumirem o lugar de fala da razão. Falar pelo outro significa, às vezes de maneira sutil, em outras mais explicitamente violenta, assumir que a outra pessoa não pode falar por si e que não teria boas razões - ou, no extremo, “razão” - que merecessem ser ouvidas.

Nesses casos, estamos diante de relações de injustiça que não são derivadas de disputas por critérios racionais em torno da justiça, mas de quem é reconhecido como falando em nome da razão, cujas razões merecem ser ouvidas. Nesse deslocamento de perspectiva de o que se anuncia para quem anuncia, a crítica deixa de ser balizada por bons argumentos - e no seu potencial de universalização - e passa a ter maior ou menor relevância, dependendo de quem fala. O problema epistêmico não se refere, em suma, ao acesso privilegiado a um conjunto de experiências, senão ao fato de que tais demandas não tenham sido historicamente contempladas de maneira equitativamente justa.

Denomino esse problema de justiça de primeira ordem.11 11 Distinções entre primeira e segunda ordem se tornaram familiares, por exemplo, no que se refere a níveis volitivos (FRANKFURT, 1971) ou de intencionalidade (DENNETT, 1978). Mais recentemente, o modelo de primeira e segunda ordem foi também utilizado por Alessandro Pinzani (2019), em relação a experiências de sofrimento, mais próximo ao que Miranda Fricker (2008) entende por injustiça testemunhal e injustiça hermenêutica. Já meu intuito, ao recorrer a essa distinção, é o de clarificar conceitualmente duas dimensões de justiça (que entendo como interligadas) em torno do reconhecimento epistêmico e do lugar das experiências subjetivas, na crítica de injustiças. Nesses casos, não temos ainda a disputa pelos conteúdos que devem ou não encontrar boas razões para serem justificados, contudo, a possibilidade de assegurar que as pessoas afetadas possam ser reconhecidas em suas pretensões epistêmicas, em um discurso livre de coerção.12 12 Apesar de partirem de premissas distintas, aspectos da justiça de primeira ordem são encontrados desde teorias procedimentais até teorias decoloniais. Ora, de um modo ou de outro, elas têm em vista a possibilidade de incluir no discurso quem estava fora dele. Contudo, o que essas diferentes abordagens compartilham não impede que as próprias premissas de racionalidade e universalidade tomadas por teorias procedimentais acabem por limitar a inclusão de outras narrativas, entrando em contradição com o que pretendem defender. Ao ter em vista superar um sentido transcendente de bem, apostas procedimentais de Rawls a Habermas assumem pressupostos de racionalidade que acabam por restringir o quão extensas poderiam ser aquelas mesmas noções de bem. Ao fim e ao cabo, os esforços de ampliar e tornar mais inclusivas as esferas discursivas esbarram em seus pressupostos bem mais implícitos e silenciosos, quase invisíveis, os quais acabam por limitar a ampliação do vocabulário que temos disponível para nos referir ao mundo e a nós mesmos. Além de trazer atenção para problemas de injustiça epistêmica, relatos têm o potencial de tornar visíveis falhas nas teorias normativas com pretensões de universalidade. Essa segunda dimensão normativa dos relatos, que podemos chamar de pretensões de legitimidade, consiste na sua pressão em face de supostos saberes universais, mostrando que são defectíveis, ou seja, que o vocabulário que utilizamos para delimitar noções como universalidade e racionalidade é falho. Experiências, relatos e narrativas possuem, por conseguinte, relevância crítica não somente porque contam outras histórias, senão também porque essas histórias nos oferecem novos conceitos e imagens, permitindo que o sujeito possa ampliar seu vocabulário, fazendo ver o que antes não tinha razão para ser visto.13 13 Tenho em vista aqui o que Jacques Rancière entende por atividade política, como “[...] o que desloca um corpo do lugar ao qual estava assinalado e muda o destino de lugar; faz ver o que não tinha razão para ser visto, faz escutar como discurso o que era escutado somente como um ruído.” (RANCIÈRE, 2018, p. 45).

O fato de algumas narrativas terem sido chamadas de “grandes” decorre de apostas e pretensões assumidamente indefectíveis de universalização. Entretanto, outras narrativas também ofereciam historicamente o potencial de serem “grandes”. Tal grau de relevância dependia não apenas do seu potencial de universalização - se conseguem explicar melhor fenômenos estruturais, ideologias etc. (o que, do ponto de vista teórico, poder ser justificável) -, mas de outros critérios alheios ao seu potencial semântico, como nos casos anteriormente mencionados de injustiça de primeira ordem. Esses critérios que estão além de uma teoria, digamos, moralmente neutra, definem quem está dentro e quem está fora, quais narrativas contam como sendo universais e quais como periféricas. E não é por acaso que esse recorte universal vs. particular coincida com teorias que historicamente se situavam no centro e na periferia do espectro geopolítico. Além disso, narrativas passadas são irretrocedíveis enquanto estruturalmente constituem nosso atual horizonte de visões de mundo. Ainda que seja possível criticar retroativamente as razões que as fizeram ser credenciadas como canônicas, seu efeito performático constitui o vocabulário a partir do qual pensamos e agimos, no presente.

É devido a essa falsa simetria que teorias da justiça devem ser sensíveis a relatos que historicamente conseguiram encontrar pouco espaço na constituição dos modos canônicos de compreensão da justiça, abrindo-se constantemente à corrigibilidade e revisão de seus princípios. Enquanto o trabalho teórico se situa em uma constante tensão entre diferentes pretensões de legitimidade de visões de mundo(s) particulares, narrativas e experiências subjetivas continuam a confrontar pretensões de universalidade que passam a ser continuamente retificadas.14 14 Uma das questões que naturalmente surgem aqui é se vale a pena manter ou abandonar pretensões teóricas assim caracterizadas como “universais” ou “grandes” narrativas. Certos conceitos, como pluriversalismo ou perspectivismo ameríndio, têm sido propostos como formas de resistência a abordagens teóricas com pretensões de abrangência universais (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2016). No meu modo de compreender, podemos ampliar nosso vocabulário sobre questões de justiça, sem com isso termos que abandonar a crença de que questões como a escravidão podem ser criticadas como universalmente injustas. Por isso, entendo que, para se abrir à crítica, não precisamos prescindir do potencial de razões que continuem a oferecer a própria possibilidade da crítica a injustiças que transcendam o caráter particular das experiências. No entanto, são essas mesmas pretensões que devem assumir a abertura constante à sua correção, ao incluir, de maneira mais sensível, outras narrativas. Um dos maiores erros dos que são logo refratários quando criticados é a arrogância de não se permitir rever suas crenças, tomando-as sempre como verdade, ao invés de tentativas mais modestas de acertos que eventualmente podem falhar. Um pouco mais de humildade possibilitaria ver que os que continuam falando em nome da razão universal assim o fazem somente porque historicamente outras perspectivas foram excluídas desse universal. São anões em ombros de gigantes, mas por motivos contrários ao que a expressão queria originalmente indicar. As críticas latentes servem, então, como termômetros e como formas de pressão entre o particular e o universal. A depender dos pressupostos - e, em última análise, dos sentidos de razão assumidos -, tais críticas indicam que pretensões de universalidade são falhas enquanto não conseguem incorporar outras narrativas. É o que assevera Judith Shklar (1998SHKLAR, J. Political Thought and Political Thinkers. Chicago: Chicago University Press, 1998., p. 17), autora que se insere na tradição liberal, quando se refere ao que chama de “justiça normal”:

[...] justiça normal é um conjunto de regras e princípios básicos que governam a distribuição de benefícios e responsabilidades dentro de uma comunidade, e isso demanda o estabelecimento de instituições efetivas e imparciais para garantir a aplicação destas regras e princípios básicos. Esta abordagem geral e regida por regras é necessária para a justiça ser institucionalizada como leis e práticas organizacionais. Mas como resultado, a “justiça normal” frequentemente possui pontos cegos, lacunas e consequências não intencionais.15 15 “Body of rules and basic principles governing the distribution of benefits and burdens within a community, and it demands the establishment of effective and impartial institutions to guarantee the enforcement of these basic rules and principles” (p. 17). “This rule-bound, generalized approach is necessary for justice to be institutionalized as laws and organizational practices. But as a result, normal justice frequently has blind spots, gaps and unintended consequences.”

Tendo em vista esses pontos cegos do sistema da justiça, Shklar propõe que a filosofia política deveria considerar seriamente a perspectiva das vítimas de injustiça. Ela defende que o “sentimento de injustiça” das vítimas, enquanto perspectiva do diretamente afetado, pode contribuir para corrigir teorias e instituições, permitindo que o filósofo ou a filósofa possa igualmente rever suas posições teóricas. Para mostrar as falhas e ruídos na percepção de injustiça, Shklar descreve como relações que historicamente eram descritas como meros infortúnios (misfortunes) passaram a ser percebidas e descritas como injustas. Muito dessa ampliação da percepção da injustiça se deveu, conclui Shklar, às contribuições trazidas pelas narrativas e relatos de sofrimento por parte das vítimas de injustiça.

Em resumo: injustiça de primeira ordem refere-se a práticas desiguais de reconhecimento epistêmico. Isso significa que narrativas e experiências podem exercer um papel de ampliação e correção no alcance epistêmico de teorias normativas, contudo, ainda não está claro como experiências vividas podem fornecer os critérios de crítica de injustiça. Embora reconheçamos o potencial normativo dos discursos, no que concerne à injustiça de primeira ordem, disso não decorre que esses discursos revelam em si o conteúdo da justiça. Em outras palavras, ainda que todos os discursos possam ser normativamente justificados, não significa que devam ser justificados.

É em relação a essas disputas sobre critérios de justificação moral dos discursos que encontramos o que entendo por justiça de segunda ordem, porque a maneira como nos referimos às nossas próprias experiências, especialmente em sua dimensão afetiva, é ambígua: não há tradução imediata entre o que sentimos e o que se sejam boas razões para justificarmos essas experiências. Em meio a um amplo leque de ambivalências em que se situam nossos afetos, sobretudo quando aludimos a experiências de sofrimento, nem sempre temos boas razões para encontrar nelas critérios de justificação.

Desde as contribuições teóricas da psicanálise, não apenas o controle e a reflexão do sujeito sobre o que sente e deseja foram postos sob suspeita, como também a contingência e a vulnerabilidade constitutivas do processo de subjetivação passaram a ser analisadas como uma forma de sofrimento que escapa ao escopo de teorias normativas da sociedade. Tal sentido de sofrimento pretende indicar que, independentemente dos arranjos conquistados socialmente, sempre haverá fissuras inerentes à constituição da subjetividade.16 16 No âmbito das teorias psicanalíticas, a esse tipo de sofrimento singularmente contingente refere-se o papel da clínica. Trazer luz a essa complementaridade de uma divisão de trabalhos entre psicanálise e teoria social significa, como defendi em outro lugar, dar espaço àquilo que a psicanálise tem de melhor a oferecer: ainda que imaginássemos uma política no seu potencial terapêutico, sempre haverá formas de sofrimento próprias de processos contingentes de subjetivação e de histórias de vida individuais e que, como tais, escapam a uma teoria normativa da sociedade. É pelo fato de uma relação intersubjetiva não depender de um conteúdo previamente determinado que uma teoria social não pode satisfazer todos os critérios de uma subjetividade plenamente imune ao sofrimento e ao sintoma (escrevi sobre essas questões em Campello, 2017). Diferentes desse tipo de sofrimento - que podemos entender como mais radicalmente contingente e idiossincrático -, as tarefas de teorias normativas devem ser dirigidas ao que chamamos de sofrimento social, isto é, a instituições e práticas sociais que poderiam oferecer um significado terapêutico, diante de causas sociais do sofrimento.

Gostaria de sugerir que sofrimentos podem ser sociais não somente no sentido mais estrito de como podem ser confrontados, no âmbito de uma teoria das instituições, mas também em dois sentidos mais imanentes à normatividade social: por um lado, em relação às normas que constituem os imperativos de realização dos sujeitos; e, por outro, nos limites dados pela gramática social, impedindo que as formas de vida disponíveis ao sujeito possam ser ampliadas. Nos dois casos, o horizonte de realização da liberdade - em outras palavras, de como a liberdade pode ser efetivada - precede o próprio sujeito. Diferentemente de sofrimentos resultantes de contingências da subjetivação, esse horizonte socialmente compartilhado pode ser objeto da crítica social. Nesse sentido, trazer narrativas ao âmbito da crítica não significa criticá-las de maneira isolada, como escolhas individuais, mas inseri-las em um horizonte semântico compartilhado.

Contudo, quando a crítica toma os afetos como propriedades individuais, ela perde de vista os padrões normativos que antecedem o horizonte no qual se inscreve a fenomenologia das experiências subjetivas. Com isso, ele deixa de oferecer um potencial crítico ao vocabulário que antecede o modo como experiências subjetivas são articuladas. Mais do que isso: se experiências e relatos são propriedades individuais intangíveis, eles deixam de ser um problema de justiça. A partir dessa perspectiva unilateral dos relatos, experiências singulares de sofrimento não mais podem ser enfrentadas naquilo que poderiam ser suas causas sociais. Se digo “[...] isto que eu sinto é propriedade exclusivamente minha”, esses sentimentos não mais teriam qualquer relevância do ponto de vista da crítica social. O resultado seria um conjunto de escafandros epistêmicos: mônadas que não mais poderiam se comunicar, bloqueando o conflito inerente ao próprio pluralismo democrático sobre o grau de relevância normativa dos afetos para questões de justiça.

Na perspectiva pública de acomodar a pluralidade de visões de mundo, percepções particulares sempre encontrarão divergências e eventualmente estarão em conflito com outras narrativas, as quais poderão ou não ser legítimas, do ponto de vista de seu valor moral. Na perspectiva de teorias procedimentais ou mais próximas ao construtivismo moral, cabe ao próprio discurso entre as pessoas diretamente afetadas, e não ao filósofo moral, encontrar a validade de suas demandas. Apesar de seu aparente deflacionamento normativo, por trás de pressupostos de racionalidade e universalidade podem esconder-se categorias pouco abrangentes, nas quais, por conta dos critérios que são tomados de antemão como racionalmente válidos, acabam por excluir a relevância epistêmica de outras narrativas. A teoria empobrece-se, reduzindo-se a um ventrículo que apenas repete a si própria. Para sair desse imbróglio autorreferencial, a teoria precisa continuamente abrir-se à revisão do que toma como critérios abrangentes. Se reduzimos a crítica ao potencial epistêmico dos relatos, enredamo-nos em dificuldades de legitimação, uma vez que tais perspectivas singulares integram um quadro plural de visões de mundo.

O conteúdo semântico das experiências refere-se, em suma, às próprias experiências; relatos permanecem apenas como relatos, se neles não é reconhecido o potencial epistêmico de transcender seu horizonte narrativo. Enquanto fala a partir da sua própria experiência particular, não concerne ao sujeito a autoridade epistêmica para, com base nela, discernir entre o horizonte de justificações de suas preferências a ponto de pô-las como régua moral alargada à sociedade. Nesses casos, a reinvindicação por justiça não deriva apenas de um conjunto privilegiado de experiências exclusivamente particulares, porém, é compartilhada por outros sujeitos. O rol de nossas experiências, por mais particulares que possam ser, inscrevem-se em um vocabulário que transcende a nossa singularidade. Abdicar disso nos faria recair no que podemos chamar de escafandro epistêmico: relatos e experiências particulares aos quais ninguém pode ter acesso. Teorias normativas, portanto, não podem se arrogar o direito de conceder aos relatos subjetivos, pelo fato de eles tenham autoridade sobre suas próprias visões de mundo, a autoridade epistêmica da crítica. Assim como pretensões de universalidade são permanentemente retificadas, pouco avançamos, se assumimos que teorias normativas concernem apenas ao particular.

Nem sempre temos à disposição o vocabulário necessário para justificarmos nossas escolhas. Quando não temos o espaço de razões, para usar a expressão de Willfried Sellars, não temos à disposição a distância semântica necessária para criticar o rol singular do que sentimos. Logo, podemos chamar o esforço de imparcialidade de perspectiva da teoria: ela consiste na contínua tradução em critérios normativos de um quadro plural e frequentemente conflituoso de narrativas singulares. Teorias normativas e o próprio sentido epistêmico atribuído à filosofia - naquilo que lhe resta, enquanto tentativa de crítica - não podem se reduzir a biografias. Se bastassem relatos, não precisaríamos mais do que literatura.

Contudo, nem a filosofia nem a literatura se restringem a relatos biográficos. A força imagética de novos vocabulários constitui-se como heterônoma enquanto tenciona relatar um outro de si. Se seguirmos de perto e mais atentamente relatos autobiográficos, veremos que raramente conseguem ser encapsulados em identidades rígidas; são como câmaras escuras da identidade, invertendo imagens.

Quando teorias se reduzem a experiências, elas assumem a premissa de autorreferencialidade dos relatos, os quais, encerrados em si próprios, acabam por obstruir a percepção de outras formas de injustiça. Inversamente, é o descentramento da perspectiva particular que permite ampliar sua capacidade de ouvir e incorporar continuamente outros relatos. O que se percebe é uma mudança de perspectiva de onde fala o filósofo ou a filósofa: ao invés de tomar como norte sua própria teoria, toma-se a posição de ouvinte, ou seja, alguém que não somente fala, como também escuta narrativas e percepções de injustiça. Significa assumir que a visão do teórico ou teórica é enraizada em um determinado contexto. Reconhecer essa situabilidade da teoria nos coloca numa posição de escuta: ser sensível a narrativas que antes não encontravam razão para serem ouvidas; ouvir como discurso o que antes era ouvido como ruído. Esse pêndulo da cooperação recíproca se mostra num esquema simples, como este a seguir:

Teoria Narrativas

Além desse pêndulo entre narrativa e teoria, o qual nos leva a buscar critérios da crítica além das narrativas, perspectivas ligadas à virada narrativa reduzem-se a um horizonte semântico de vocabulários que aparentemente são propriedades nossas. Trata-se, aqui, de perguntar quais afetos são possíveis, o que podemos (e devemos) sentir? É por isso que, mais do que continuar insistindo na tensão entre perspectiva em primeira pessoa e teoria, devemos nos perguntar como afetos são vividos e narrados, não apenas singularmente, mas sobretudo no horizonte de uma gramática socialmente partilhada.

Referências

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  • VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
  • 1
    Uma versão preliminar deste artigo foi publicada em língua inglesa, em Pragmatism Today (v. 12, n. 1, 2021). Tive a oportunidade de discutir algumas dessas ideias em um seminário de pós-graduação na Universidade de Bergen, em um colóquio sobre afetos e crenças, organizado em uma parceria entre a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade de Bergen, e no seminário “Memória, Trauma e Narrativas de Si”, na Universidade de Coimbra. Agradeço pelos comentários e sugestões do público, nessas ocasiões, em particular a Franz Knappik, Marina Haddad, Joana Ricarte e Claudio Carvalho.
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    As distinções entre conceitos como emoções, afetos, paixões ou sentimentos são bastante controversas na literatura filosófica sobre o tema (cf., por exemplo: HARTMANN, 2010HARTMANN, M. Gefühle: Wie die Wissenschaften sie erklären. Frankfurt: Campus, 2010.; DEMMERLING; LANDWEER, 2007DEMMERLING, C.; LANDWEER, H. Philosophie der Gefühle: von Achtung bis Zorn. Stuttgart: Metzler, 2007.; RORTY, 1980RORTY, A. (ed.). Explaining Emotions. Berkeley: University of California Press, 1980.). A minha preferência pelo termo afeto deve-se a um certo teor naturalista, mas que, ao mesmo tempo, é suficientemente flexível para adequar-se a um conteúdo cognitivo. O termo distingue-se ainda de outros já mais carregados semanticamente - como em certos recursos aos termos emoção ou sentimento. Em todo caso, entendo que mais relevante que a preferência pelo termo afeto é o significado que lhe será atribuído.
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    Não por acaso, são raros os relatos de escravos em primeira pessoa. O fato de que a autobiografia de Mahommah Gardo Baquaqua, ex-escravizado que fugiu para os Estados Unidos, ter sido o único relato autobiográfico de pessoas escravizadas, no Brasil, atesta a discrepância de como esses relatos circulam e da relevância epistêmica que assumiram historicamente, na percepção da injustiça.
  • 5
    Em Epistemic injustice, trabalho pioneiro sobre o tema, Miranda Fricker (2008FRICKER, M. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford: Oxford University Press, 2008.) chama esse problema de injustiça testemunhal - quando relatos não são ouvidos, em seu potencial epistêmico. Esse sentido difere do que Fricker chama de injustiça hermenêutica: diferente da injustiça testemunhal, que se refere aos preconceitos diante do conteúdo do relato a depender de quem o faz, nos casos de injustiça hermenêutica, relações de injustiças arraigadas em prática sociais sequer chegam a ser percebidas pelos sujeitos como injustas. Certamente, a importância dada a relatos em primeira pessoa se refere apenas à dimensão epistêmica da injustiça, mas não é suficiente para superar dimensões políticas da injustiça. Basta lembrar que Frederick Douglass, o qual se tornaria um dos principais nomes do abolicionismo, nos Estados Unidos, deixou suas memórias relatadas em três autobiografias - a primeira delas, The Narrative of the Life of Frederick Douglass, An American Slave, Written by Himself - que viriam a se tornar um grande sucesso de vendas. O significado moral do reconhecimento epistêmico não substitui o significado das dimensões jurídicas e sociais que constituem o horizonte normativo do vocabulário da justiça. É também por essa razão que divirjo das reflexões sobre a justiça que a reduzem à dimensão epistêmica da experiência vivida, a qual interpreto como sendo uma das pré-condições para que o vocabulário disponível para as disputas sobre justiça possa ser posto de maneira mais simétrica e, portanto, mais justa.
  • 6
    Também nesse sentido da relação entre narrativa e poder escreve Adichie: “É impossível falar sobre a história única sem falar do poder. Há uma palavra, uma palavra malvada, em que penso, sempre que penso na estrutura do poder no mundo. É ‘nkali’. É um substantivo que se pode traduzir por ‘ser maior do que outro’. Tal como os nossos mundos económico e político, as histórias também se definem pelo princípio do ‘nkali’. Como são contadas, quem as conta, quando são contadas, quantas histórias são contadas, estão realmente dependentes do poder.” (ADICHIE, 2019ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. Tradução de Júlia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 37).
  • 7
    “Devem observar como a encenação do mundo em representação - sua cena de escrita, sua Darstellung - dissimula a escolha e a necessidade de ‘heróis’, procuradores paternos e agentes de poder - Vertretung. Na minha opinião, a prática deve estar atenta a esse duplo sentido do termo representação, em vez de tentar reinserir o sujeito individual por meio de conceitos totalizadores de poder e de desejo.” (SPIVAK, 2010SPIVAK, G. Pode o Subalterno Falar? 1. ed. Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010., p. 43).
  • 8
    “Na antropologia, é conhecida a imagem do xamã enquanto diplomata ou tradutor cósmico, aquele que viaja por diferentes mundos e lida com sujeitos diversos, mas igualmente humanos. Para voltar e contar o que viu, o xamã não pode confundir as perspectivas, caso contrário corre o risco ser capturado pela visão alheia, virando outro definitivamente. Na teoria da tradução xamanística, um mesmo referente, objeto ou palavra pode significar outra coisa por completo, a depender da perspectiva. Não há uma língua adâmica, absoluta, responsável por igualar as diferenças entre mundos e idiomas.” (IMBASSAHY, 2019IMBASSAHY, A. A arte de segurar o céu pela diferença. Suplemento Pernambuco, n. 162, p. 12, ago. 2019., p. 12).
  • 9
    Entrevista de Davi Kopenawa a Terence Turner, representante da comissão especial da American Anthropological Association, formada em 1991, para investigar a situação dos Yanomami no Brasil. Citado em A Queda do Céu (KOPENAWA; ALBERT, 2019KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 63.
  • 10
    Já há algum tempo, trabalhos no âmbito da antropologia levantaram o questionamento sobre os vieses da construção epistemológica enquanto falso universalismo que acabava por fetichizar o que não pertencia ao centro da construção do conhecimento. Eles apontavam para um deslocamento de perspectiva que, ao invés de mostrar-se como descrição supostamente neutra, significava uma “invenção” - p. ex. Mudimbe, A invenção da África, Edward Seid, Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. Nada mais distópico do que imaginar Kant, do alto de sua Könisberg, descrevendo detalhadamente as diversas culturas do mundo. Por trás desse suposto - e até arrogante - cosmopolitismo da filosofia, esconde-se uma posição que chega a ser surpreendente na sua presunção: um provincianismo com pretensões colonialistas. Sobre isso, cf., p. ex., Andrade, 2017ANDRADE, É. A opacidade do iluminismo: o racismo na filosofia moderna. Kriterion, v. 58, n. 137, 2017., e Mignolo, 2011MIGNOLO, W. The Darker Side of Western Modernity: Global futures, Decolonial Options. Durham & London: Duke University Press, 2011. 408 pp..
  • 11
    Distinções entre primeira e segunda ordem se tornaram familiares, por exemplo, no que se refere a níveis volitivos (FRANKFURT, 1971FRANKFURT, H. Freedom of Will and The Concept of a Person. The Journal of Philosophy, v. 68, n. 1, p. 5-20, 14 jan. 1971.) ou de intencionalidade (DENNETT, 1978DENNETT, D. Brainstorms. Philosophical essays on mind and psychology. Harmondsworth: Penguin, 1978.). Mais recentemente, o modelo de primeira e segunda ordem foi também utilizado por Alessandro Pinzani (2019PINZANI, A. First-order and second-order suffering. Conference Paper. Disponível em: Disponível em: http://www.iea.usp.br/eventos/eventos-procedimentos-e-normas/materiais-de-referencia/first-order-and-second-order-suffering , 2019. Acesso em: 10 mar. 2022.
    http://www.iea.usp.br/eventos/eventos-pr...
    ), em relação a experiências de sofrimento, mais próximo ao que Miranda Fricker (2008FRICKER, M. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford: Oxford University Press, 2008.) entende por injustiça testemunhal e injustiça hermenêutica. Já meu intuito, ao recorrer a essa distinção, é o de clarificar conceitualmente duas dimensões de justiça (que entendo como interligadas) em torno do reconhecimento epistêmico e do lugar das experiências subjetivas, na crítica de injustiças.
  • 12
    Apesar de partirem de premissas distintas, aspectos da justiça de primeira ordem são encontrados desde teorias procedimentais até teorias decoloniais. Ora, de um modo ou de outro, elas têm em vista a possibilidade de incluir no discurso quem estava fora dele. Contudo, o que essas diferentes abordagens compartilham não impede que as próprias premissas de racionalidade e universalidade tomadas por teorias procedimentais acabem por limitar a inclusão de outras narrativas, entrando em contradição com o que pretendem defender. Ao ter em vista superar um sentido transcendente de bem, apostas procedimentais de Rawls a Habermas assumem pressupostos de racionalidade que acabam por restringir o quão extensas poderiam ser aquelas mesmas noções de bem. Ao fim e ao cabo, os esforços de ampliar e tornar mais inclusivas as esferas discursivas esbarram em seus pressupostos bem mais implícitos e silenciosos, quase invisíveis, os quais acabam por limitar a ampliação do vocabulário que temos disponível para nos referir ao mundo e a nós mesmos.
  • 13
    Tenho em vista aqui o que Jacques Rancière entende por atividade política, como “[...] o que desloca um corpo do lugar ao qual estava assinalado e muda o destino de lugar; faz ver o que não tinha razão para ser visto, faz escutar como discurso o que era escutado somente como um ruído.” (RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 2018., p. 45).
  • 14
    Uma das questões que naturalmente surgem aqui é se vale a pena manter ou abandonar pretensões teóricas assim caracterizadas como “universais” ou “grandes” narrativas. Certos conceitos, como pluriversalismo ou perspectivismo ameríndio, têm sido propostos como formas de resistência a abordagens teóricas com pretensões de abrangência universais (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2016VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.). No meu modo de compreender, podemos ampliar nosso vocabulário sobre questões de justiça, sem com isso termos que abandonar a crença de que questões como a escravidão podem ser criticadas como universalmente injustas. Por isso, entendo que, para se abrir à crítica, não precisamos prescindir do potencial de razões que continuem a oferecer a própria possibilidade da crítica a injustiças que transcendam o caráter particular das experiências. No entanto, são essas mesmas pretensões que devem assumir a abertura constante à sua correção, ao incluir, de maneira mais sensível, outras narrativas. Um dos maiores erros dos que são logo refratários quando criticados é a arrogância de não se permitir rever suas crenças, tomando-as sempre como verdade, ao invés de tentativas mais modestas de acertos que eventualmente podem falhar. Um pouco mais de humildade possibilitaria ver que os que continuam falando em nome da razão universal assim o fazem somente porque historicamente outras perspectivas foram excluídas desse universal. São anões em ombros de gigantes, mas por motivos contrários ao que a expressão queria originalmente indicar.
  • 15
    “Body of rules and basic principles governing the distribution of benefits and burdens within a community, and it demands the establishment of effective and impartial institutions to guarantee the enforcement of these basic rules and principles” (p. 17). “This rule-bound, generalized approach is necessary for justice to be institutionalized as laws and organizational practices. But as a result, normal justice frequently has blind spots, gaps and unintended consequences.”
  • 16
    No âmbito das teorias psicanalíticas, a esse tipo de sofrimento singularmente contingente refere-se o papel da clínica. Trazer luz a essa complementaridade de uma divisão de trabalhos entre psicanálise e teoria social significa, como defendi em outro lugar, dar espaço àquilo que a psicanálise tem de melhor a oferecer: ainda que imaginássemos uma política no seu potencial terapêutico, sempre haverá formas de sofrimento próprias de processos contingentes de subjetivação e de histórias de vida individuais e que, como tais, escapam a uma teoria normativa da sociedade. É pelo fato de uma relação intersubjetiva não depender de um conteúdo previamente determinado que uma teoria social não pode satisfazer todos os critérios de uma subjetividade plenamente imune ao sofrimento e ao sintoma (escrevi sobre essas questões em Campello, 2017CAMPELLO, F. Crítica e patologia social: ambivalências da relação entre psicanálise e teoria social. Dissertatio, v. 46, p. 3-23, 2017.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
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