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RESENHAS

Leonidas Hegenberg

Ex-professor de Lógica e Metodologia da Ciência - Instituto Tecnológico da Aeronáutica - 12225-000 - São José do Campos - SP

MATURANA, H., VARELA, F. J. The Tree of Knowledge (The biological roots of human understanding). Boston: Shambala, 1992. 269p.

O primeiro autor trabalhou na Universidade do Chile; o segundo foi seu discípulo e, mais tarde, colega. Em 1973, diante da situação política, ambos deixaram o Chile e viveram em locais diferentes. Atualmente, Maturana está vinculado à Universidade do Chile; Varela, ao Institut de Neuroscience, de Paris. De 1980 em diante, porém, voltaram a trabalhar juntos. Retomaram certas idéias antes desenvolvidas (em colaboração ou independentemente) e escreveram o livro em epígrafe.

A quarta capa da edição que temos em mãos registra duas opiniões breves a respeito do que disseram Maturana & Varela: são palavras de J. Lovelock e de F. Capra (este, aliás, tem obras já traduzidas para o português). O primeiro olhar lançado sobre a paisagem que Maturana & Varela nos levam a contemplar, associado aos ditos de Lovelock & Capra, permite asseverar, talvez como conclusões provisórias que:

a) precisamos rever concepções acerca de vida e pensamento pois, a rigor, damo-las por sabidas, sem, na verdade, entendê-las;

b) é viável buscar teoria científica unificada, abrangendo vida, pensamento e matéria;

c) o conhecimento não é representação de um mundo "exterior" a nós, mas um gerar mundo pelo próprio processo de viver;

d) a concepção que tenhamos da cognição trará conseqüências de ordem social e ética, porquanto o mundo erigido pelos seres humanos é mundo gerado pelas ações da convivência.

O livro está cheio de ilustrações e todos os capítulos se abrem com o mesmo "diagrama", em que os principais temas de toda a obra aparecem repetidos, com as interconexões imaginadas pelos autores. Há varias "caixas" (em cor avermelhada) em que esclarecimentos paralelos são apresentados. Isso facilita seu manuseio e a tentativa de "abarcar" o pensamento dos autores, principalmente depois de perceber que as idéias ficam numa espécie de terra "de ninguém", meio cá, na biologia, meio lá, na filosofia, com propostas inusitadas. Mas a "viagem" pela obra requer esforço, sobretudo se o leitor não conhece biologia (como se dá comigo); de outra parte, paralelamente, como o admitem os próprios autores, o texto pode parecer inadequado aos especialistas em biologia. Apesar disso, seu êxito tem sido retumbante: ja foi traduzido em sete idiomas (p.151). Será preciso voltar, com olhos novos, ao que dizem Maturama & Varela, depois de ver a obra comentada por especialistas de variados campos.

Basicamente, o livro procura mostrar que uma Teoria do Conhecimento deve deixar explícita a maneira como conhecer gera a explicação do conhecimento. A idéia ganha aparência de circularidade (os autores reconhecem), pois inexiste ponto fixo de referência em que ancorar descrições, a fim de legitimá-las (p.240).

Biologistas, Maturana & Varela ressaltam que os seres humanos só têm, em comum, a tradição biológica. Viver é algo que acontece, sem deixar registros a respeito de origens (p.242). O máximo que podemos fazer é gerar, por via lingüística, explanações capazes de revelar o mecanismo de geração de um mundo. Como seres que existem, criamos "pontos negros" cognitivos, eliminados apenas por meio da colocação de outros pontos negros, em outros domínios (p.242). Depois dessas considerações, algumas "frases de efeito" resumem, de certo modo, o pensamento que norteia o trabalho da dupla de escritores. Eis algumas dessas frases: "Cognição não diz respeito a objetos, pois cognição é ação efetiva" (p.244); "o conhecimento do conhecimento compele-nos a adotar atitude de permanente vigilância contra a tentação da certeza ... Compele-nos a ver que o mundo só seria diferente se vivêssemos diferentemente" (p.245).

O representacionismo sustentaria que o conhecimento resulta da consideração de vários aspectos (tidos como relevantes) de um universo previamente dado, passível de ser decomposto em fragmentos. Maturana & Varela defendem posição diferente: o ser humano constrói caprichosamente seu próprio mundo e, a par disso, ser vivo e ambiente são apenas as duas faces da moeda - conhecedor e conhecido especificam-se mutuamente (p.253).

Maturana & Varela sublinham que "Ali doing is knowing, and ali knowing is doing" (p.26) e lembram que a explicação é proposição que reformula, ou "recria" observações de um fenômeno em um sistema de conceitos (aceitável para um grupo de pessoas que admitem um critério específico de validação - p.28).

O termo "organização" denota, para os autores, "relações que precisam existir entre componentes de um sistema a fim de que ele se torne elemento de uma classe específica". A par disso, o termo "estrutura" denota "componentes e relações que, de facto, constituem uma particular unidade" (p.47). Seres vivos são colocados em uma classe porque todos têm certa característica, certa organização. De acordo com os dois autores, "living beings are characterized in that, literally, they are continually self-producing" (p.43). A organização que define os seres vivos é convenientemente denominada "organização autopoiética" (p.43). Em outras palavras, seres vivos diferem quanto à estrutura, mas são similares quanto à organização (p.47).

As unidades interagem. Há, entre elas, ligações, ou acoplamentos {"structural couplings", p.75) que se orientam em dois sentidos: 1) há "fusão" das linhas fronteiriças das unidades (simbiose); ou 2) há preservação dos limites individuais das unidades, acompanhada, porém, de certa nova "coesão" que as transformam em unidade "maior" (que os autores denominam [impropriamente (?)] "metacelular". A fim de estudá-las, cientistas precisam ver essas novas unidades como entidades estruturalmente determinadas (p.96). Elas sofrem, naturalmente, alterações variadas, e, ao lado disso, por sua vez, interagem incessantemente. Algumas alterações não afetam a organização (embora possam afetar a estrutura); outras são destrutivas. Gradualmente, os acoplamentos produzem seres mais complexos com sucessivo desenvolvimento que culmina com o aparecimento de sistemas nervosos.

O capítulo 6 contém considerações a respeito do sistema nervoso e de sua atuação. O capítulo seguinte registra um ponto curioso (p. 163): os autores dizem (tradução mais ou menos livre) que o efeito de projetar uma imagem na retina não se compara a uma chamada telefônica; assemelha-se, antes, a uma voz adicionada a muitas outras vozes, numa acalorada discussão em família. O consenso das ações, eventualmente alcançado, não depende do que possam ter dito quaisquer das pessoas envolvidas na discussão...

Depois de mais comentários a respeito do sistema nervoso (lembrando que ainda é um tanto misteriosa a forma pela qual neurônios se interligam), The Tree of Knowledge compara o cérebro e o computador, asseverando totalmente errônea a metáfora de acordo com a qual "o cérebro seria um dispositivo de processamento de informações" (p.169). Encerrando, o livro nota que "há conhecimento sempre que observemos comportamento efetivo (ou adequado) em um determinado contexto, ou seja, em um campo que ficou delimitado por alguma questão" (p.174).

Nilo Odália

Professor aposentado da UNESP - 14800-901 - Araraquara - SP. Diretor Técnico do Arquivo do Estado de São Paulo.

MORAES, R. C. C. de. Celso Furtado - O subdesenvolvimento e as idéias da Cepal. São Paulo: Ática, 1995. 119p.

Nas duas décadas que se seguiram ao término da Segunda Guerra Mundial, o mundo, especialmente o ocidental, viveu um clima de euforia e de esperança, por se acreditar que os problemas crônicos da humanidade, pobreza, miséria e ignorância, poderiam ser, finalmente, superados. À raiz dessa crença estavam, de um lado, a emergência da URSS como grande potência e com ela a concretização do ideal de uma sociedade sem classes; de outro, a derrota do nazi-fascismo, personificação do mal. Ambos os acontecimentos desempenharam, diferentemente, um papel significativo no clima que se instaura no pós-guerra. Para os países ocidentais pobres e que não haviam ainda se libertado da canga do colonialismo, a luta contra o nazi-fascismo representou a possibilidade de tomar consciência de seus próprios problemas. Unir o mundo contra o nazi-fascismo, que representava, então, o autoritarismo, a falta de democracia, o monstro liberticida, requereu um esforço propagandístico em que os valores de uma sociedade aberta e livre eram vistos como o fundamento ideológico das prometidas e esperadas vitórias militares. A derrota final do regime nazi-fascista confundia-se com a afirmação dos valores éticos e morais de uma sociedade justa, livre, democrática e próspera. A criação da ONU, velho sonho que tivera como antecessora a Sociedade das Nações, corporificava a possibilidade de um mundo novo solidário que pudesse responder a um problema de longa tradição histórica, a existência de países ricos e opulentos contrastando com a miséria e a pobreza de tantos outros. Para a América Latina, a criação provisória da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), em 1948, e sua consolidação, em 1951, representaram a concretização do ideal de romper o círculo vicioso da pobreza.

A recuperação histórica dessa problemática, ainda que feita de maneira sucinta, é um dos primeiros méritos deste livro. Acompanhando sua trajetória de Montesquieu a Ragmar Nurkse, ela nos permite ter um quadro bastante sugestivo das análises e das soluções propostas para vencer-se o terrível circulo vicioso do subdesenvolvimento. A não-existência de um governo mundial, o que permitiria a transferência de capitais dos países ricos aos pobres, impõe que se encontrem formas e maneiras de criar os instrumentos que possibilitem poupanças para o desenvolvimento. O grande instrumento será o Estado, ao qual caberia induzir, pela persuasão (quando possível) e pela imposição (quando necessária), a transferência de capitais para os setores industriais essenciais para o desenvolvimento. O planejamento substitui, assim, o mercado como regulador da economia. O que ressalta, contudo, como uma das conseqüências mais significativas da Cepal é a quantidade de estudos e análises que dela decorreram. Os debates e as sucessivas e freqüentes discussões sobre a melhor maneira de conduzir o processo de desenvolvimento formam um rico material que está longe de ter sido inteiramente absorvido como fonte de novas reflexões sobre o assunto.

Contudo, um dos aspectos mais importantes deste livro é reencontrar-se o pensamento do jovem Celso Furtado e seu desenvolvimento, após passar pela experiência da Sudene e do Ministério. Sua fé e esperança no papel que deve desempenhar o "trabalhador intelectual" num processo de desenvolvimento económico do país não é apenas uma conseqüência de seu desencanto com as forças populares; é, antes, a retomada de uma longa tradição intelectual brasileira que tem a ciência, especialmente a ciência social, como o alicerce das modificações a serem introduzidas no país.

Para terminar o livro, nada melhor do que a presença de Roberto Campos, cujas posições políticas e teóricas são a negação do que buscaram a Cepal e Celso Furtado. Este pequeno livro, pelo diálogo que estabelece entre teóricos que ousaram ir além de suas teorias, ocupando cargos públicos de vital importância na condução do processo de rompimento do círculo de ferro da pobreza e do subdesenvolvimento, é uma leitura obrigatória para todos aqueles que, estudantes ou especialistas, reconhecem que a solução de um problema passa obrigatoriamente por sua história.

Isabel Maria Loureiro

Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP - 17525-900 - Marília - SP

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez, Editora da Unicamp, 1995. 155p.

Será que vivemos mesmo numa época em que se anuncia, como quer Habermas, o fim da "utopia da sociedade do trabalho"? Ricardo Antunes não acredita nisso. Com este Adeus ao trabalho? (incluindo um apêndice com vários artigos relativos ao tema), resultado da sua tese de Livre-Docência, o autor contrapõe-se a Gorz, Habermas e Offe, de cuja perspectiva eurocentrista discorda.

O livro tem, entre outros, o grande mérito de conjugar uma análise rigorosa da crise do mundo do trabalho, fundada em dados empíricos, com uma busca de alternativas políticas voltadas para a igualdade, a justiça e a solidariedade entre os homens. Este estudo é, antes de mais nada, uma excelente contribuição para auxiliar a esquerda a ter maior clareza teórica sobre as recentes transformações do trabalho, clareza absolutamente necessária para não ser arrastada pelo canto de sereia do neoliberalismo.

Claro e sóbrio, este livro é uma voz dissonante na medíocre aridez do "pensamento único", em que a realidade social é vista como resultado de um processo natural que se impõe aos homens como uma fatalidade. Contra essa perspectiva - ideológica -, e fazendo uma detalhada análise em termos de luta de classes, o autor refaz a história das mudanças do processo produtivo nas últimas décadas, mostrando-as como a vitória do capital contra o trabalho.

Recuperemos rapidamente o movimento do texto. Ricardo Antunes começa analisando as transformações ocorridas no processo produtivo como resposta do capital à crise dos anos 70, transformações que se traduzem no avanço tecnológico, nas formas de acumulação flexível e nos modelos alternativos ao taylorismo-fordismo, entre os quais se destaca o modelo japonês (toyotismo). Ao fazer o histórico do toyotismo, mostra como este se constituiu na luta contra os fortes movimentos grevistas dos trabalhadores japoneses no início dos anos 50, que, uma vez derrotados, permitiram a criação do sindicalismo de empresa, subordinado aos patrões.

O modelo toyotista, com seu sistema de trabalho flexível (tanto no interior da fábrica, onde um trabalhador opera em média com cinco máquinas ao mesmo tempo, quanto no exterior, com empresas subcontratadas, terceirização), supõe a flexibilização das relações de trabalho, o que significa, em bom português, a disponibilidade de mão-de-obra temporária ou subcontratada para suprir necessidades imediatas da produção.

Ricardo Antunes vai ao "xis" da questão quando lembra aos "modernos" defensores do modelo japonês que este, embora aparentemente menos alienante que o taylorismo-fordismo (por diminuir a distância entre elaboração e execução), na realidade, "só é possível porque se realiza no universo estrito e rigorosamente concebido do sistema produtor de mercadorias, do processo de criação e valorização do capital" (p.33). O que acaba ocorrendo, sob a aparência de participação no processo produtivo e de fim da divisão e hierarquia das tarefas, é, na verdade, uma submissão do trabalhador à lógica do capital, tanto na esfera objetiva, quanto na subjetiva. O resultado, lamentável, é o "acrítico sindicalismo de participação e de negociação, que em geral aceita a ordem do capital e do mercado, só questionando aspectos fenoménicos desta mesma ordem" (p.35).

Os sindicatos, que nos anos 60 e 70 visavam ao controle social da produção, limitam-se agora à participação dentro da ordem. Isto significaria que precisamos mudar de paradigma e abandonar a idéia de uma "revolução do trabalho"? Significaria que a "classe-que-vive-do-trabalho" está desaparecendo? Não é o que pensa o nosso autor. Embora os dados mostrem, por um lado, a diminuição do operariado fabril, por outro, a expansão do trabalho parcial, temporário, subcontratado, "terceirizado", ligado à economia informal, ao setor de serviços etc, revela que na realidade houve um significativo crescimento da "classe-que-vive-do-trabalho". Ela não está desaparecendo, mas, pelo contrário, tornou-se maior, mais complexa, mais fragmentada, mais heterogênea.

Daí os desafios postos para o movimento sindical. Este atravessa uma crise aguda, revelada por "uma nítida tendência de diminuição das taxas de sindicalização, especialmente na década de 80" que "não encontra similar em nenhum momento da história sindical do pós-guerra" (p.59, 61). Um dos problemas mais graves apontados por Ricardo Antunes é o surgimento de uma "tendência neocorporativa" no sindicalismo, que se limita à defesa dos interesses dos trabalhadores "estáveis", deixando à margem o subproletariado, sem nenhuma forma de representação. A conseqüência dessa divisão é o surgimento de movimentos racistas e xenófobos no interior do próprio movimento operário, dificultando ainda mais o surgimento de uma consciência de classe dos trabalhadores. A grande tarefa dos sindicatos, neste fim de século, seria, segundo o autor, organizar os desorganizados numa luta contra o sistema produtor de mercadorias e propor "um modelo econômico alternativo, com claros traços anticapitalistas" (p.70). Para este desafio, considera Antunes ainda não haver respostas claras.

No último capítulo do livro, o autor avança uma série de teses, uma espécie de "programa provisório" para a esquerda desorientada. Com esse objetivo, retoma alguns conceitos básicos do marxismo, sintomaticamente esquecidos pelos arautos do fim da sociedade do trabalho e que permitiriam esclarecer o problema em pauta. Exponho a primeira tese, no meu entender a mais importante.

Segundo Antunes, a categoria trabalho continua central para a compreensão da sociedade contemporânea, cuja característica primeira consiste em ser uma sociedade produtora de mercadorias. Como embasamento dessa tese, Antunes recorre à distinção feita por Marx entre trabalho concreto, que produz valor de uso, e trabalho abstrato, que produz valor de troca. Numa sociedade centrada na produção de mercadorias, o valor de uso é reduzido ao valor de troca e a dimensão concreta do trabalho é subordinada à sua dimensão abstrata.

Ricardo Antunes frisa, com muita pertinência, ser necessário esclarecer, quando se fala de crise da sociedade do trabalho, se se trata de uma crise da sociedade do trabalho abstrato, como quer Kurz, ou da "crise do trabalho também em sua dimensão concreta enquanto elemento estruturante do intercâmbio social entre os homens e a natureza", como querem Gorz, Offe e Habermas (p.77).

Se for uma crise da sociedade do trabalho abstrato, é preciso ainda distinguir entre os que pensam que o trabalhador nao tem mais nenhum papel fundamental na produção de mercadorias (com o que ele já mostrou reiteradamente não concordar), e os que criticam a sociedade do trabalho abstrato por este ser trabalho alienado, não permitindo ao homem a realização de todas as suas potencialidades.

Segundo Antunes, os teóricos da sociedade pós-industrial, pós-capitalista, de serviços, não mais regida pela lógica do capital e na qual conseqüentemente o trabalho não teria mais nenhum papel estruturante a desempenhar, incorrem em "forte equívoco analítico" (p.79) ao não distinguirem entre trabalho concreto e abstrato, ou entre work e labor. Dito de maneira breve, eles jogariam fora a criança junto com a água do banho. Para o nosso autor, em contrapartida, a emancipação do homem significa o fim do trabalho alienado, do trabalho abstrato, e não o fim do trabalho concreto, entendido como "protoforma da atividade humana emancipada" (p.80). Uma sociedade emancipada seria assim não só uma sociedade do tempo livre, mas também uma sociedade em que o trabalho é condição para a realização do ser humano total.

Adotando em relação ao trabalho uma posição próxima à de Marcuse (embora este não seja mencionado), escreve Ricardo Antunes:

que a ação efetivamente capaz de possibilitar o salto para além do capital será aquela que incorpore as reivindicações presentes na cotidianidade do mundo do trabalho, como a redução radical da jornada de trabalho e a busca do "tempo livre" sob o capitalismo, desde que esta ação esteja indissoluvelmente articulada com o fim da sociedade do trabalho abstrato e a sua conversão em uma sociedade criadora de coisas verdadeiramente úteis, (p.81)

Em resumo, na óptica dos Manuscritos de 1844 do jovem Marx, adotada por Ricardo Antunes, a abolição do trabalho alienado, que submete os homens às exigências do capital, é o pré-requisito necessário de uma sociedade emancipada.

Estamos aqui a léguas de distância das ingenuidades do nosso sociólogo presidente que, numa de suas tiradas recentes (Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 19.11.1995), considerou uma grande inovação para a emancipação do trabalho a "assinatura" do operário no chassi do caminhão da Volkswagen. Para Fernando Henrique Cardoso, teríamos aqui o sinal de "uma nova revolução tecnológica que faz revalorizar esses aspectos da criatividade, de responsabilidade individual, da liberdade".

A própria Volkswagen do Brasil, pouco dada a utopismos, apressou-se a esclarecer que a "assinatura", longe de visar à "criatividade" do "artesão responsável", como pensa FHC, tem como objetivo o "controle de qualidade" para que "o cliente saiba a quem reclamar". É evidente que não se anuncia aqui o início do fim do trabalho alienado, mas a costumeira e sempre renovada submissão do trabalhador a mais um imperativo do capital. É a esse tipo de polêmica, tão atual nos dias que correm, que o livro de Ricardo Antunes vem dar respostas esclarecedoras e contundentes.

Ricardo Musse

Departamento de Filosofia - Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP - 17525-900 - Marília - SP

LOUREIRO, I. M. Rosa Luxemburg. Os dilemas da ação revolucionária. São Paulo: Editora UNESP, 1995. 197p.

Rosa Luxemburg tem uma história de vida e uma reputação póstuma que se prestam preferencialmente à heroicização biográfica e ao personalismo romântico. Liderança do movimento operário alemão no início do século, Rosa foi uma das primeiras a criticar tanto a capitulação da social-democracia, patente no voto favorável aos créditos de guerra em 1914, quanto o desvio autoritário dos revolucionários russos que tendiam a substituir a classe (e a ação das massas) pelo partido. Assassinada em 1919, com a complacência ou talvez a conivência do governo social-democrata, logo após participar de uma derrotada tentativa de insurreição revolucionária, seu nome e sua vida (e às vezes uma parcela restrita de seus escritos) serviram como bandeira ora para os comunistas da ex-RDA, ora para liberais avessos ao bolchevismo, ora para independentes em busca de um caminho próprio.

Um dos muitos méritos do livro de Isabel Maria Loureiro é desfazer esses equívocos não só ao evitar o usual tratamento biográfico (e, com ele, o tom romantizado), mas, principalmente, por inseri-la com pertinência e perspicácia no seu lugar de direito: na história do marxismo.

Nesse terreno movediço, o resgate de Rosa Luxemburg conjuga dois movimentos concomitantes. Um procura destacar as peculiaridades e especificidades do seu modo de agir e pensar. Outro, visa a identificar constantes e inseri-la em tendências teóricas e históricas. O ponto de partida de Isabel Loureiro são as interpretações que a acusam de combinar dois vícios opostos, embora complementares: determinismo histórico, isto é, a crença em leis objetivas inexoráveis, e voluntarismo político, a adesão a um subjetivismo extremado incapaz de avaliar as condições objetivas. Desfazendo-se dessa dicotomia primária, Loureiro mostra como Luxemburg, ao visar como horizonte último à unidade entre teoria e prática, supera as relações mecânicas estabelecidas no seio do marxismo de então entre a compreensão (sobretudo econômica) do capitalismo e as tentativas de derrubá-lo. Essa unidade assenta-se, principalmente, na teoria que faz da experiência histórica dos movimentos de massas o solo e a matriz da ação revolucionária.

Traduzido em termos filosóficos, esse refinamento conceituai da ação histórica introduzido por Rosa Luxemburg aponta para um retorno e uma reincorporação marxista do pensamento de Hegel. Afinal, a Fenomenologia do Espírito caracteriza-se por uma combinação peculiar entre uma filosofia da história e uma teoria da experiência (em medidas que variam conforme a coloração dos intérpretes). Rosa não apenas resgata a noção hegeliana de experiência histórica, mas também compreende os dilemas da ação política à luz de um quadro teórico que toma como molduras - freqüentemente inconciliáveis - um conjunto de leis históricas inexoráveis (cujo ponto central aponta para a inevitabilidade do colapso do capitalismo), isto é, uma filosofia da história e, no outro pólo, uma teoria da prática política aberta aos riscos e vicissitudes da ação das massas.

Tal ênfase na experiência histórica, se, por um lado, delimita com precisão a novidade da concepção política de Rosa Luxemburg, por outro, permite-nos colocá-la (e esta é uma das teses polêmicas que Loureiro defende argutamente) como uma precursora do marxismo ocidental. A atenção à concepção de Rosa acerca da ação histórica das massas permite-nos, entre outras coisas, ler História e consciência de classe - livro de Lukács tido como marco fundador desse marxismo renovado - literalmente. Assim, deve-se atribuir a abertura e a abrangência da sua concepção da ação política, avessa a determinismos pela incorporação de riscos e dúvidas, menos ao legado do liberalismo de Max Weber (como se pensa desde As aventuras da dialética de Merleau-Ponty) do que ao pensamento político de Rosa Luxemburg.

Mais ainda, o apoio das massas á guerra e a passividade com que uma parcela ponderável da classe operária marchou para a morte nos campos de batalha levaram Rosa, pela primeira vez no seio do marxismo clássico, a meditar acerca de uma provável integração da social-democracia e do operariado à sociedade burguesa, o que sem dúvida abriu caminho para que Lukács retomasse e desse um papel central á teoria marxista do fetichismo da mercadoria, inaugurando assim uma nova vertente no marxismo.

Como já disse, não se trata de um livro apologético (e, por isso, necessariamente parcial) sobre Rosa Luxemburg. Isabel Loureiro, a par de uma reconstituição precisa do pensamento de Rosa, indaga também pela viabilidade histórica de suas concepções, confrontando, por meio de um minucioso relato do dia a dia da revolução de 1919, a teoria com a ação preconizada e adotada por Rosa Luxemburg no calor da luta. O saldo dessa reconstrução aponta para impasses e aporias que decorrem não só de uma determinada teoria acerca da necessária imbricação entre teoria e prática (o que não deixa de ser um dos dilemas definidores do mundo moderno) - isto é, dos limites da junção hegeliana de filosofia da história e experiência histórica mas também derivam, como bem salienta Loureiro, da própria complexidade da ação revolucionária.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1996
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