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Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”

Como abordar questões da forma “O que é x?”, e.g., “O que é o casamento”? Violência “sutil” pseudo-não dogmática é como pode ser chamada a ação de x de lidar com disputas, feito essa, como se x não tivesse nenhum outro.2 2 Ver, nesse viés, Moreira (2022a). Um outro de x, pressuponhamos, é uma pessoa que tem uma visão diferente e uma sensibilidade radicalmente distinta da de x acerca de uma disputa. Isso ocorre, por exemplo, quando esse outro desafia o logos de x, ao rejeitar, ignorar, violar ou interpretar diferentemente os pressupostos ou os critérios de x para lidar com uma disputa. Eu sou menos simpático do que André J. Abath (2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.) em relação à bibliografia da assim chamada “engenharia conceitual” que ele considera, no seu artigo. A razão é que eu tendo a achar que os autores - sobretudo, anglo-americanos - que constituem essa bibliografia recorrentemente expressam a violência “sutil” pseudo-não dogmática, ao abordar disputas.

Consideremos uma das representantes dessa bibliografia, Sally Haslanger, uma autora em relação à qual Abath não exatamente tem uma motivação conflitual, mas apenas aquela de “fazer justiça” ao que ele acredita serem “alguns de seus importantes insights” (ABATH, 2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023., p. 111).3 3 Para um tratamento mais detalhado acerca do que é uma motivação conflitual, ver Moreira (2022b). “Para começo de conversa”, Haslanger (2000aHASLANGER, S. Feminism in Metaphysics: Negotiating the Natural. In: MIRANDA, F.; HORNSBY, J. (ed.). The Cambridge Companion to Feminism in Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2000a. p. 107-126., p.108, tradução nossa) explicitamente disse uma vez: “[...] eu devo deixar claro que a minha discussão vai focar exclusivamente na metafísica anglo-americana e no feminismo anglo-americano.” Esse foco restrito também é o de Abath (2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.) e o de praticamente todos os trabalhos de Haslanger.

Imaginemos, então, um outro de Haslanger: Hasloutro, uma pessoa de qualquer gênero, sexo, cor de pele ou inclinação sexual que não nasceu e presentemente não estuda ou trabalha nas universidades de países como os EUA, a Inglaterra, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá, onde a metafísica e o feminismo anglo-americano têm sido articulados. Suponhamos que Hasloutro tem outras trezes características, C-1 a C-13:

C-1: Hasloutro considera a presença do mencionado foco restrito uma indicação de que Haslanger expressa a violência “sutil” pseudo-não dogmática.

C-2: Hasloutro acha relevante enfatizar que não começou no nosso século, mas, ao menos, há mais de 2500 anos, atrás a disputa sobre como abordar questões da forma “O que é x?”.

C-3: Hasloutro sabe que - como Gilles Deleuze (1962DELEUZE, G. Nietzsche et la Philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1962., p. 86-88) indica - já os sofistas apontavam para a tese que Abath (2022ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023., p. 104) considera característica da “engenharia conceitual”; a tese de que devemos perguntar se certos conceitos, como o de “casamento”, são “ferramentas eficazes para cumprir metas importantes” (ABATH, 2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023., p. 104).4 4 Para uma leitura detalhada de Deleuze, ver Moreira (2022a, Capítulo 6).

C-4: Hasloutro crê que aqueles que não enfatizam esse ponto correm o risco de fazer a posição de Haslanger parecer mais nova do que ela realmente é.

C-5: Hasloutro não acha interessante dizer que “[...] uma das nossas metas é - ou pelo menos deveria ser - a promoção da justiça social” (ABATH, 2022ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023., p. 104), porque falar assim é excessivamente impreciso, quando não se determina explicitamente quem seria a referência desse nós implícito que teria tais metas.

C-6: Hasloutro sabe que uma plausível referência desse nós são aqueles que estudam ou trabalham nas nomeadas universidades e/ou os que, de modo mais ou menos direto, se beneficiam do que pode ser chamado de imperialismo de vanguarda.

C-7: Hasloutro entende que esse imperialismo, promovido pelos EUA, com a ajuda dos demais nomeados países, é caracterizado tanto por intervenções militares (e.g., a guerra do Afeganistão), quanto por intervenções mais “sutis”, tipo a de financiar golpes de Estado, como os que ocorreram no Brasil, em 1964 e, provavelmente, em 2016. O que faz esse imperialismo ser de vanguarda, Hasloutro crê, é o fato de que alguns de seus líderes promoveram o uso de toda sorte de violência não “sutil” e, ainda assim, se descreverem como defensores de “minorias”.

C-8: Hasloutro acha importante enfatizar que esse parece ser o caso do atual presidente dos EUA, Joe Biden. No dia 4 de maio de 2012, ele concedeu uma entrevista para o programa da NBC, “Meet the Press”, quando ele problematizou uma resposta tradicional e sugeriu uma resposta alternativa para a questão, “O que é o casamento?” A resposta tradicional é que o casamento é “[...] a união legal ou formalmente reconhecida de um homem e uma mulher como parceiros em um relacionamento interpessoal.” (ABATH, 2022ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023., p. 106). A resposta alternativa é que “[...] o casamento é a união legal ou formalmente reconhecida de duas pessoas como parceiras em um relacionamento pessoal.” (ABATH, 2022ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023., p. 118).5 5 No dia 05/12/2022, a transcrição dessa entrevista podia ser achada no seguinte link: https://www.nbcnews.com/id/wbna47311900

C-9: Hasloutro é antipático à resposta tradicional e simpático à resposta alternativa, mas crê que, para que uma defesa persuasiva dessa última seja feita, é preciso reconhecer o seguinte: embora a rejeição da resposta tradicional e a aceitação da resposta alternativa possam beneficiar certas pessoas (e.g., a nomeada plausível referência do nomeado nós), não é claro como essa atitude seria pertinente em relação a outras pessoas. Tipo: as do Afeganistão ou mesmo certas pessoas do Brasil que se engajam em práticas sexuais não majoritárias e não estão interessadas em “casamento”, mas em não sofrer violência.6 6 Para uma abordagem mais detalhada a essas últimas pessoas, ver Butterman (2021).

C-10: Hasloutro concorda com Abath quando esse diz que existem “sociedades (reais ou possíveis)”, onde a resposta alternativa falha “em promover justiça social” (ABATH, 2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.). Mas Hasloutro acredita que sociedades reais são conflituais, no sentido que, para todo x tal que x é um membro dessa sociedade, existe um y tal que y é um outro de x.

C-11: Hasloutro, então, não acredita que “progresso” filosófico possa ser medido em termos de criação de consenso (ABATH, 2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.). Mais: Hasloutro não acha interessante a sugestão de que, ao pensar o casamento, não como um conceito, mas como uma “categoria fortemente social”, alguma espécie de consenso possa ser atingido (ABATH, 2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.). Isso, diz Hasloutro, é improvável. Também é improvável que o consenso seja atingido acerca do “aprimoramento erotético” (ABATH, 2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.). Logo, Hasloutro não acha interessante a sugestão de que essa visão traria consenso, ao satisfazer dois critérios que não poderão ser debatidos em detalhe, aqui: poder de lidar com o desafio da “preservação de tópico” e vantagem em relação ao “Quadro Austero” de Herman Cappelen (2018CAPPELEN, H. Fixing language: An essay on conceptual engineering. New York: Oxford University Press, 2018.), outro filósofo que possui o mencionado foco restrito (ABATH, 2023ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.).

C-12: Hasloutro concede que as sugestões acima podem até apelar para o nomeado nós.

C-13: Hasloutro, porém, não faz parte da referência desse nós e gostaria que sua existência fosse reconhecida por esses autores da “engenharia conceitual”, cujos trabalhos, Hasloutro está convencido, expressam a violência “sutil” pseudo-não dogmática.

Não tenho muita fé que o apelo de Hasloutro será ouvido por autores como Haslanger ou Cappelen. Afinal, tendo a crer que as obras desses autores estão alicerçadas na violência “sutil” de não reconhecer a existência desse tipo de pessoa. Na verdade, tendo mesmo a achar que muita dessa bibliografia da “engenharia conceitual” ecoa “sutilmente” os discursos dos líderes do imperialismo de vanguarda, esses que sugerem que as formas de vida dos mencionados países são um parâmetro que todas as outras pessoas devem procurar satisfazer e que as que assim não o fazem são “homofóbicas”, “sexistas” etc.

Mas eu tenho, no entanto, outra fé: a de que, ao reconhecer a existência de Hasloutro, André J. Abath se coloque uma motivação mais explicitamente conflitual em relação a Haslanger, no futuro. Caso ele esteja disposto a assim o fazer, penso que ele poderia articular uma perspectiva mais interessante em relação à disputa que abre esse texto: como abordar questões da forma “O que é x?”, e.g., “O que é o casamento”?

Referências

  • ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.
  • BUTTERMAN, S. Queering and Querying the Paradise of Paradox: LGBT Language, New Media, and Visual Cultures in Modern-Day Brazil. Maryland: The Rowman & Littlefield Publishing Group, 2021.
  • CAPPELEN, H. Fixing language: An essay on conceptual engineering. New York: Oxford University Press, 2018.
  • DELEUZE, G. Nietzsche et la Philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1962.
  • HASLANGER, S. Feminism in Metaphysics: Negotiating the Natural. In: MIRANDA, F.; HORNSBY, J. (ed.). The Cambridge Companion to Feminism in Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2000a. p. 107-126.
  • MOREIRA, F. G. A. The Politics of Metaphysics. Cham: Palgrave MacMillan, 2022a.
  • MOREIRA, F. G. A. To be or not to be ‘Subtly’ Philosophically Colonized. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, n. 151, p. 121-142, abr. 2022b.
  • 2
    Ver, nesse viés, Moreira (2022aMOREIRA, F. G. A. The Politics of Metaphysics. Cham: Palgrave MacMillan, 2022a.).
  • 3
    Para um tratamento mais detalhado acerca do que é uma motivação conflitual, ver Moreira (2022bMOREIRA, F. G. A. To be or not to be ‘Subtly’ Philosophically Colonized. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, n. 151, p. 121-142, abr. 2022b.).
  • 4
    Para uma leitura detalhada de Deleuze, ver Moreira (2022aMOREIRA, F. G. A. The Politics of Metaphysics. Cham: Palgrave MacMillan, 2022a., Capítulo 6).
  • 5
    No dia 05/12/2022, a transcrição dessa entrevista podia ser achada no seguinte link: https://www.nbcnews.com/id/wbna47311900
  • 6
    Para uma abordagem mais detalhada a essas últimas pessoas, ver Butterman (2021BUTTERMAN, S. Queering and Querying the Paradise of Paradox: LGBT Language, New Media, and Visual Cultures in Modern-Day Brazil. Maryland: The Rowman & Littlefield Publishing Group, 2021.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2023
  • Aceito
    20 Fev 2023
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