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Florestan Fernandes e Tiago Marques Aipobureu: biografia e sociedade

CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA BRASILEIRA

Florestan Fernandes e Tiago Marques Aipobureu: biografia e sociedade

Marcos César Alvarez

Florestan Fernandes (1920-1995) foi uma das principais personalidades intelectuais no Brasil do século XX. Figura mais importante no processo de institucionalização da Sociologia na Universidade de São Paulo e autor de uma obra extensa e multidimensional no campo das ciências sociais brasileiras, Fernandes destacou-se, igualmente, pela singular trajetória pessoal. Filho de uma imigrante portuguesa pobre, tendo começado a trabalhar ainda criança e, por isso, abandonado precocemente a escola, ele conseguiu, por meio de seu esforço e do autodidatismo, superar as condições adversas de sua origem social e ingressar no curso de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1941, onde desenvolveu sua impressionante trajetória acadêmica, violentamente interrompida com a aposentadoria compulsória em 19691 1 Sobre sua vida e obra, consultar, entre outros: D'Incao (1987); Revista USP: Dossiê Florestan Fernandes, n. 29, 1989; Arruda (1995, pp. 107-231); Martins (1998); Garcia (2002). .

Longe do simples estereótipo do menino pobre que conseguiu ascender socialmente, essa singular trajetória desenvolveu em Florestan Fernandes um especial interesse pelas questões da mudança social e dos desafios enfrentados pela sociedade brasileira, de tal modo que ele não se limitou ao papel de scholar consagrado pela academia, voltado exclusivamente para a construção de uma carreira universitária e para a formação de grupos de pesquisadores, mas igualmente buscou pensar e enfrentar os desafios de seu tempo, o que terminou por levá-lo ao engajamento político mais direto em sua atuação como deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores entre o final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990.

Por sua vez, o texto que a seção Clássicos da Sociologia Brasileira disponibiliza ao leitor foi escrito ainda no período de formação de Florestan Fernandes, momento um pouco menos conhecido de seu percurso intelectual2 2 Garcia (2002) considera o marco final do período de formação de Florestan Fernandes a defesa de sua tese de livre-docência, em 1953. . "Tiago Marques Aipobureu: um bororo marginal" foi escrito em 1945 para um seminário organizado por Herbert Baldus e publicado pela primeira vez na Revista do Arquivo Municipal em 19463 3 Baldus, orientador de Fernandes na Escola de Sociologia e Política, era presença marcante nessa revista, cuja publicação fora iniciada em 1935 (cf. Jackson, 2004, pp. 263-283). O próprio trabalho de Baldus sobre Tiago Marques Aipobureu serviu de fonte para Fernandes (cf. Baldus, 1937, pp. 163-186). . O apêndice foi publicado como artigo no jornal O Estado de S. Paulo, em 19494 4 Posteriormente, o texto foi republicado em Fernandes (1975) (cf. Garcia, 2002). .

No texto, Fernandes analisa a biografia de um membro da tribo dos Bororo, Akirio Bororo Keggeu, depois conhecido como Tiago Marques Aipobureu. Nascido no planalto oriental de Mato Grosso, Tiago Marques recebeu, por iniciativa dos missionários, educação letrada em Cuiabá e, graças ao seu ótimo desempenho, chegou a viajar para Roma e Paris. Após dois anos na Europa, retornou ao Brasil, onde os salesianos o empregaram inicialmente como professor. Aí percebeu, no entanto, que entre os "civilizados" ele não passava de um simples bororo das missões. Ao passo que os missionários esperavam que ele se tornasse passivo, obediente e trabalhador, colaborando modestamente com o trabalho de catequese, Tiago Marques pretendia, em contrapartida, ganhar o reconhecimento e o prestígio que um verdadeiro professor poderia desfrutar numa sociedade letrada. Privado desse reconhecimento e mesmo de um convívio mais íntimo com os missionários, Tiago decepcionou-se e buscou romper totalmente com o mundo "civilizado" ao retornar aos Bororo.

Tendo se casado com uma mulher de sua tribo, Tiago constituiu família e buscou reintegrar-se de forma plena ao estilo de vida, às crenças e à religião originais, mas igualmente sem sucesso. Sua educação letrada o havia distanciado das habilidades necessárias à vida na tribo, de tal modo que Tiago não conseguia definir seu status na hierarquia tribal, já que seu vigor físico e sua agilidade eram muito inferiores ao que se esperava de um caçador adulto. Passou a ser, deste modo, duplamente rejeitado, já que, de um lado, não revelava as qualidades necessárias para um bom caçador e, de outro, manifestava publicamente atributos desconhecidos no grupo e considerados indesejáveis e supérfluos. Diante do desprezo da comunidade, inclusive de sua mulher, Tiago passou ora a tentar conduzir-se rigorosamente segundo os padrões tradicionais de comportamento da tribo – como se quisesse se tornar um bororo completamente "normal" –, ora entrando em conflito aberto com as pessoas e os valores da sociedade bororo, ora isolando-se completamente de seus semelhantes.

Incapaz de corresponder às expectativas quer dos missionários, quer dos membros de sua tribo, Tiago Marques, o bororo letrado, permanecia no meio do caminho, incapaz de adaptar-se plenamente tanto à sociedade e cultura "civilizadas" como à sociedade e cultura indígenas. Para Fernandes, ele manifestava o destino do marginal, de acordo com a definição de Robert Park, do homem situado na margem de duas culturas, sem pertencer a nenhuma delas.

A análise realizada por Fernandes neste texto ilustra muito bem as principais características de seu rigoroso estilo intelectual: a preocupação com a definição precisa de conceitos, como o de marginalidade; a circunscrição acurada do campo de trabalho – no caso, o estudo concreto da "crise de personalidade" vivida por Tiago Marques –; a preocupação com os limites dos dados disponíveis para análise, recolhidos por Baldus e outros; a reflexão sobre a validade científica do estudo de um único caso etc.

Mas a análise manifesta, igualmente, a já citada interpenetração entre vida e obra, que singulariza sua trajetória, no caso a particular sensibilidade do autor para com as situações de desencontro entre personalidade e sociedade, sensibilidade esta forjada a partir de sua própria experiência de vida. Se a biografia de Florestan Fernandes contrariou as limitações de sua modesta origem social, se ele soube, em vários momentos de sua trajetória, enfrentar corajosamente os ardis da história, mantendo-se pessoalmente íntegro como forma de enfrentar as condições degradantes de vida5 5 Ver Garcia (2002, pp. 172-173). , por diversas vezes se viu na encruzilhada de diferentes estilos de vida, de diferentes expectativas sociais, ao transitar do mundo do menino pobre para a universidade, posteriormente da vida acadêmica consagrada ao exílio e, por fim, ao realizar sua reconversão no mundo da política.

Tal experiência traduziu-se, em momentos de sua obra, como no texto sobre Tiago Marques, numa especial atenção analítica aos complexos vínculos que se estabelecem entre trajetórias individuais e destinos coletivos. Como afirma José de Souza Martins6 6 Ver Martins (1989, pp. 14-19), republicado em Martins (1998). Ver também Cohn (2005, pp. 245-250) e Arruda (2001, pp. 303-330). , mesmo neste estudo de caso acadêmico transparece sua identificação com aqueles cuja vida manifestava de modo particular as tensões entre a história pessoal e os horizontes sociais, biografias gestadas nos desencontros e nas rupturas da realidade histórica. Mas, da mesma forma, pode-se perceber como inevitavelmente Fernandes projeta seus próprios conflitos, o drama de sua própria biografia, na análise da vida do bororo marginal.

O leitor tem a oportunidade, desse modo, de acompanhar como Florestan Fernandes transforma essa empatia pelo bororo letrado, por esse indivíduo em busca de sua identidade, interpelado violentamente por dois mundos distintos, num rigoroso exercício de análise da história de vida de um marginalizado. Só pelos aspectos citados, a reedição do texto já estaria justificada. Mas, para o leitor contemporâneo, ele talvez possa abrir-se a novas significações. Afinal, nas condições atuais da "modernidade líquida"7 7 Bauman (2001). , quando a construção das identidades individuais e coletivas aparece como cada vez mais flexível e passível de experimentação e mudança, mas, em contrapartida, quando os projetos individuais não encontram terreno estável e se perdem na incerteza permanente, os dilemas de Tiago/Akirio – "solitário entre os seus e estranho aos estranhos"8 8 Baldus (1937, p. 171). – não deixarão de despertar renovado interesse.

Texto recebido e aprovado em 29/11/2007.

Marcos César Alvarez é doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e professor de Sociologia na mesma instituição. E-mail: mcalvarez@usp.br.

  • ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. (1995), "A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a 'escola paulista'". In: MICELI, Sérgio (org.), História das Ciências Sociais no Brasil São Paulo, Sumaré/Fapesp, vol. 2, pp. 107-231.
  • _____. (2001), Metrópole e cultura: São Paulo no meio século XX Bauru, SP, Edusc.
  • BALDUS, Herbert. (1937), "O professor Tiago Marques e o caçador Aipobureu: a reação de um indivíduo bororo à influência da nossa civilização". In: _____. Ensaios de etnologia brasileira São Paulo, Companhia Editora Nacional, pp. 163-186.
  • BAUMAN, Zygmunt. (2001), Modernidade líquida Rio de Janeiro, Zahar.
  • COHN, Gabriel. (2005), "Florestan Fernandes e o radicalismo plebeu em sociologia". Estudos Avançados, 19 (55): 245-250, dez.
  • D'INCAO, Maria Ângela. (1987), O saber militante: ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra/Unesp.
  • FERNANDES, Florestan. (1975), A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis, Vozes.
  • GARCIA, Sylvia Gemignani. (2002), Destino ímpar: sobre a formação de Florestan Fernandes. São Paulo, Editora 34.
  • JACKSON, Luiz Carlos. (2004), "A Sociologia paulista nas revistas especializadas (1940-1965)". Tempo Social, 16 (1): 263-283, jun.
  • MARTINS, José de Souza. (1989), "Vida e história na Sociologia de Florestan Fernandes: reflexões sobre o método da história de vida". Revista USP: Dossiê Florestan Fernandes, 29: 14-19, mar./abr./maio.
  • _____. (1998), Florestan: sociologia e consciência social no Brasil. São Paulo, Edusp. Revista USP: Dossiê Florestan Fernandes, São Paulo, 29, mar./abr./maio.
  • 1
    Sobre sua vida e obra, consultar, entre outros: D'Incao (1987);
    Revista USP: Dossiê Florestan Fernandes, n. 29, 1989; Arruda (1995, pp. 107-231); Martins (1998); Garcia (2002).
  • 2
    Garcia (2002) considera o marco final do período de formação de Florestan Fernandes a defesa de sua tese de livre-docência, em 1953.
  • 3
    Baldus, orientador de Fernandes na Escola de Sociologia e Política, era presença marcante nessa revista, cuja publicação fora iniciada em 1935 (cf. Jackson, 2004, pp. 263-283). O próprio trabalho de Baldus sobre Tiago Marques Aipobureu serviu de fonte para Fernandes (cf. Baldus, 1937, pp. 163-186).
  • 4
    Posteriormente, o texto foi republicado em Fernandes (1975) (cf. Garcia, 2002).
  • 5
    Ver Garcia (2002, pp. 172-173).
  • 6
    Ver Martins (1989, pp. 14-19), republicado em Martins (1998). Ver também Cohn (2005, pp. 245-250) e Arruda (2001, pp. 303-330).
  • 7
    Bauman (2001).
  • 8
    Baldus (1937, p. 171).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Nov 2007
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