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Entrevista com Aaron V. Cicourel

DOSSIÊ - HISTÓRIA SOCIAL DOS INTELECTUAIS LATINO-AMERICANOS

Entrevista com Aaron V. Cicourel* * Esta entrevista foi realizada a 26 de outubro de 2006 em Caxambu, Minas Gerais, durante o Encontro Anual da Anpocs, no Hotel Glória, onde Cicourel fez uma conferência como convidado de honra. Participaram da entrevista os pós-graduandos Arthur Oliveira Bueno, Dmitri Cerboncini Fernandes e Célia da Graça Arribas, e os professores Fernando Pinheiro, Heloisa Pontes e Sergio Miceli.

Edição Final de Sergio Miceli

Poderíamos começar com um relato de sua experiência familiar, pois é importante para conhecer suas opções posteriores.

Sobre a minha própria família?

Sim.

Minha mulher, meus filhos?

Primeiro seus pais, em que momento chegaram aos Estados Unidos... Você pode pular os pais, se não quiser falar deles...

Não, ouça, os dois estão mortos, não há problema.

E, depois, sobre a sua experiência de trabalho intelectual, sublinhando, por exemplo, a diferença com Garfinkel, a diferença com Goffman.

O interacionismo simbólico não incluiu a linguagem como item de seu programa de pesquisa, apesar de certo esforço por parte de Norman Denzin de aplicar tal metodologia no estudo das atividades da vida cotidiana. Tampouco os etnometodólogos incluíram o estudo sistemático do discurso em sua agenda de investigação. É claro, houve exceções. Por exemplo, diversos autores ingleses, como David Silverman e Wesley Sharrock, e também o norte-americano Douglas Maynard. Salvo engano, Harold Garfinkel nunca utilizou a análise de conversação tal como foi desenvolvida por Harvey Sacks. Já no final de sua carreira, Erving Goffman realizou algumas análises de materiais discursivos com trechos gravados de programas de rádio, mas nunca estudou o discurso como tal em sua pesquisa, a partir de fitas que ele mesmo tenha gravado. Harvey Sacks, por sua vez, não buscou contextualizar etnograficamente seu estudo de conversação, nem incluiu informações a respeito das relações sociais mantidas entre os interlocutores. Além disso, nenhum desses pesquisadores empregou estratégias de amostragem sistemática no âmbito de ambientes socialmente articulados. Por exemplo, algo similar ao uso de estratégias de amostragem como as desenvolvidas pelos ecologistas do comportamento que estudavam animais não-humanos no interior da biologia.

Sim, é isso que queremos saber.

Ao mesmo tempo, existem nuanças. Mas você quer que eu comece com minha família?

Sim, pois é uma experiência muito singular nos Estados Unidos.

Meu pai nasceu em Esmirna, na Turquia. Os pais dele eram de classe média.

O que faziam?

Meu avô era alfaiate. Meu pai estudou em uma escola francesa e não quis prestar o exército turco, porque naquele tempo, se você fosse judeu, católico ou protestante, não te mandavam lutar, te mandavam limpar as ruas. Então ele não quis ir. Mas se você fosse militar profissional, aí sim, tinha verba oficial e tudo o mais. Assim, ele se escondeu por bastante tempo, não terminou a escola. Ele estudava em uma escola especial, mantida por uma entidade chamada Alliance Universelle Israelí – que havia aparecido em Paris em 1864, fundada por um grupo de empresários e intelectuais, encorajados pelo governo francês. Tal grupo criou essa entidade e recrutou professores treinados na França que, em seguida, foram enviados tanto ao antigo império turco como a países como Tunísia, Argélia e Marrocos; o grupo turco inicial, com ajuda de professores franceses, organizou as escolas que ensinavam a língua e a cultura francesas. Os professores turcos de origem sefardita ajudaram a espalhar essas escolas por todo o império turco e, mais tarde, fundaram outras similares em todo o norte da África. Inclusive em Rodes, de onde vem minha mãe... A família dela vem de lá e de Milas. Entre Milas e Rodes havia um intercâmbio constante. E eu tinha parentes em Israel, na Palestina, no Egito, no Líbano, não sei, mas com certeza na Tunísia, na Argélia e no Marrocos.

Mas nessas cidades em que sua família estava, essas comunidades eram pequenas, não?

Nem sempre. Por exemplo, em Istambul tinha bastante gente; em Esmirna, menos. No Marrocos havia uns 400 mil judeus, em Fez, Casablanca, Marrakesh. Mas os poucos sefarditas viviam na costa desde a expulsão da Espanha, no tempo da Inquisição. E os outros judeus viviam no interior, assimilados aos árabes. Portanto, já havia judeus, mas eles não eram da Espanha, nem falavam castelhano, e a Alliance chegou até eles também. As famílias sefarditas não se casavam com outros judeus, porque o contrato matrimonial (kitubá) era diferente. Os de filiação árabe se divorciavam como os árabes, mas eles firmavam também um kitubá em hebreu. Esse kitubá dos sefarditas exigia tomar conta da mulher e dos filhos. Não se podia deixá-los de lado, sem ajuda. Os sefarditas tinham em Tetuan, por exemplo, uma escola para treinar rabinos, em estilo sefardita. Há diferentes estilos. Por exemplo: na Turquia, minha família, e todos de lá, se expressavam em hebraico e em castelhano antigo. Já no Marrocos, não. Na Tunísia, também não.

E tinha uma sinagoga?

Sim, mas as sinagogas, como em todas as partes, eram formadas principalmente por familiares, por laços de parentesco. Em Esmirna, tinha uma sinagoga dos Cicourel, pois ali viviam muitos Cicourel. Lá existe um subúrbio que se chama Kasabah, e todos os Cicourel vêm de Kasabah e de Esmirna. E há muitos outros. Tenho parentes em todo o mundo. Dizem que não são parentes, mas há cinco Cicourel que vivem em Salvador, na Bahia. Eu os conheço, e cozinham como minha mãe. Um deles tem a aparência um bocado parecida, quase como se fosse meu filho, é curioso. Estive na Austrália, ensinando por um mês, em Sidney, e encontrei um Cicourel. Havia uma prima em Bruxelas, vários primos em Paris, o que serve para mostrar que a família do meu pai era educada, e eles tinham se inscrito no consulado francês. Tenho os papéis. Os parentes de minha mãe vinham de Rodes e de Milas, mas havia muito intercâmbio em Rodes, entre turcos, gregos, italianos, por isso minha mãe saiu com passaporte italiano. Meu pai saiu com documentos franceses. Ele foi para Nova Orleans. Seu irmão mais velho trabalhava com despachantes e alfândegas e tinha conexões com os barcos e embarcou meu pai para Atenas, até Pireus. Meu pai e toda a família Cicourel nasceram em um bairro de gregos. Esse mesmo tio meu criou-se com um Onassis. Ele teve sorte com dinheiro, meu tio não. Como falava grego, meu pai foi para Atenas e não teve problemas. Depois o barco foi para Marselha e lá ele conseguiu embarcar para Barcelona por poucos dias. Ali havia uma comunidade de sefarditas, com os quais ficou em contato por pouco tempo. Levaram-no a Nova Orleans, onde não conhecia ninguém. É preciso levar em conta que meu pai, um sujeito muito rebelde, falava francês perfeitamente, porque passou pela Alliance e por um colégio francês. Deixaram-no entrar em Nova Orleans porque lá havia muitas pessoas que falavam francês e, como tinha documentos franceses, não houve nenhum problema, ele entrou. Ali, um dia, ele escutou alguém falando castelhano antigo, ladino. Não tem nada a ver, mas se você for a Montgomery, no Alabama, no coração do sul, há ali uma delicatessen, e alguém disse: "Aí você vai encontrar um 'dos nossos'". Foi até lá. Eles eram primos da minha mãe e disseram: "Olhe, tem mais de 'nós' em Atlanta". Nessa cidade havia três tipos de judeus: os sefarditas, os da Alemanha e os da Rússia ou Polônia. E não se entendiam. Em Atlanta, por meio desses primos da minha mãe, ele conheceu o irmão da minha mãe. Minha mãe chegou de navio a Nova York. Seus irmãos – dois irmãos que chegaram em 1908 e 1910 – foram para Atlanta e mandaram a passagem para a minha mãe e o dinheiro. Ela não veio pela Ellis Island, que era o caminho dos que não tinham documentos, porque ela tinha todos os documentos, e um primo dela, que vivia no Bronx, a esperava. Ela chegou no Bronx e ficou um ano em Nova York, trabalhando como costureira por seis meses, e depois foi para Atlanta. Na Turquia, ela sofreu um acidente. Uma vez estava andando em um cavalo, em um burro, caiu e perdeu um olho. E naquele tempo não havia o que fazer. Para ir atrás de um médico, era uma dificuldade. Taparam o olho assim [gesticula colocando a mão no olho] e se foram. E vejam, isso é importante para mim, porque significa um "produto com defeito": uma mulher sem um olho na Turquia não se casa com ninguém. Então ela não quis nenhum homem. Assim, os irmãos, finalmente, depois da Primeira Guerra Mundial, tiveram que esperar muitos anos para fazer algo. Ela foi para Atlanta e meu tio disse a meu pai: "Aqui está! uma irmã minha, tem que conhecê-la". Eles se casaram em pouco tempo, e então começou a milonga, como dizem os argentinos. Foi um pouco difícil porque meu pai se tornou um bocado americano bem rápido. Ele falava muitos idiomas e os aprendia com facilidade. Minha mãe nunca aprendeu direito nem o inglês. Tornou-se cidadã americana, mas não era desenvolta com a língua. Meu pai andava de moto, jogava beisebol, tudo isso ajuda a explicar o "choque" entre eles. Existe um livro do Lloyd Warner, o antropólogo, sobre os imigrantes de Massachusetts – irlandeses, italianos, gregos –, no qual ele falava de imigrantes P1 e P2. Aí está o problema dos meus pais. Um era P1 e o outro era P2. Minha mãe era muito tradicional, bastante religiosa. Já meu pai teve de aprender o Velho Testamento com muito empenho, porque seu tio em Esmirna era rabino. Pelo que sei, meu pai não era pessoalmente um verdadeiro crente na religião, embora buscasse ajudar nos serviços religiosos, tanto em Atlanta como em Los Angeles, para satisfazer minha mãe. E a parte mais especial da Bíblia é aquela que acompanha os ritos religiosos durante a celebração judaica da Páscoa. Os sefarditas turcos usavam um livro de orações escrito em hebraico, mas lido em ladino. Entendidos no Marrocos me disseram que isso não ocorria lá.

Havia a versão em castelhano, que eles utilizavam?

Sim. Mas a letra era hebraica. E eu percebi que os sefarditas realmente não sabiam bem o turco. Até que Atatürk obrigou todos a tirar passaporte, quer dizer, todos "viravam" turcos e tinham que ir ao colégio. Eis por que todos os meus primos falam turco muito bem, e escrevem também. Mas minha mãe não sabia escrever turco. Falava um turco antigo. Meu pai sabia mais. Quando estive no Marrocos, percebi uma coisa em comum entre todos os sefarditas: estavam isolados em um gueto. Tenho umas fotos interessantes do Marrocos, e, claro, da Turquia, tiradas em Esmirna e também em Istambul. Eles fechavam as portas à noite, e mesmo de dia, e se encarregavam de tudo, desde o nascimento até morte. Uma vez ao ano limpavam tudo e a cada sexta-feira eles iam às casas dos pobres e lhes davam de comer. Tinham sua própria organização, é por isso que os turcos e os árabes deixavam-nos mais o menos tranqüilos. Isso é algo que não querem reconhecer em Israel, que os judeus conviviam bem com os árabes e com os muçulmanos, enquanto na Alemanha, na Polônia, no Ocidente, matavam muitos e faziam um montão de coisas. Esse é um fato que me enraivece muito, e por isso sou tão contrário à política de Israel, mas não posso falar disso com todos os parentes, apenas com uns poucos. Meus pais se casaram em Atlanta e tiveram três filhos, mas um morreu, e iria se chamar Aaron, como eu. O meu avô se chamava Aaron Victor Cicourel, eu me chamo Aaron Victor Cicourel, meu pai se chama Victor Aaron Cicourel. Meu nome deveria ser Jacques, porque havia muitos nomes franceses. Minha irmã e eu nascemos em Atlanta, ela é dois anos mais velha. E quando veio a grande depressão, meu pai perdeu o emprego.

Que língua eles falavam em casa? Inglês?

Nunca. Castelhano. E quando não queriam que nós entendêssemos, falavam turco. Minha mãe tinha passado pela Alliance também, falava francês, não como meu pai, mas falava. Falavam turco ou francês. Então meus pais foram viver com meu tio, comigo e com a minha irmã, e meu pai às vezes perdia dinheiro sem razão. A família da minha mãe não queria que ela fosse com ele, mas como ela era muito tradicional, não podia deixar o marido. Ele foi para Los Angeles. Lá ele tinha uma prima que o ajudou. Nós fomos dois anos depois.

O que ele fez nesses dois anos?

Primeiro, ele foi leiteiro. Quando eu cheguei, ele tinha uma caminhonete velha cheia de caixas vazias com garrafas de vidro e nos encontrou na estação. Naquele tempo, ainda não havia uma boa estação em Los Angeles, que ainda estava sendo construída em 1936. Nós chegamos em 1934. Eu tinha cinco anos, quase seis. Eu e minha irmã fomos atrás, com as malas e as garrafas, ele nos levou a um apartamento no mesmo edifício em que morava sua prima. Não quero contar muito sobre ele, mas meu pai fazia coisas que não deveria fazer. Sempre tinha problemas, nunca tinha dinheiro, e comecei a vender jornal aos seis anos; trabalhei até terminar o doutorado, porque não havia outro jeito. Meus pais ganhavam pouco e eu tratava de trazer algo. Era difícil. Éramos talvez a família mais pobre entre os sefarditas. Ele fazia empréstimos com outras famílias e não pagava. E, quando eu queria sair com uma menina, o pai dela dizia não. Porque eu era um Cicourel, e meu pai era um problema. Eu não entendia isso até que a minha mãe me explicou. Alguns eram primos dela, de Milas e de Rodes. Na comunidade em que vivíamos, quase todos eram de Rodes. Como meu pai veio de Esmirna, não se dava bem com os outros. Mas minha mãe conhecia todos. Então fui a uma sinagoga, cujo rabino era da Palestina, para aprender tudo da Bíblia...

Disse que trabalhava durante todo o tempo...

Todo o tempo, vendendo jornal desde os seis anos, e depois dos treze anos trabalhei em um mercado, enorme, de pelo menos três andares, no centro de Los Angeles, chamado Grand Central Market. E havia coisas muito baratas, lá tinha uns sefarditas e consegui um trabalho pelo qual me pagavam vinte e cinco centavos por hora, quase nada! Eu trabalhava depois do colégio, tinha que tomar um bonde para chegar. Trabalhava no sábado e às vezes no domingo, e durante o verão também.

Você freqüentava um colégio público?

Público. Nunca estudei em escola privada. Até em Cornell, que é privada, me deram uma ajuda. Um dia um homem perguntou: "Vocês querem se inscrever no sindicato?". Eu pensei: "Sindicato, o que é isso?". Lembro que ele tinha um sobrenome italiano, e respondi: "Não, eu sou sefardita", e ele disse: "Cicourel, venha", e me deu o endereço. Havia um pequeno escritório. Fiz a inscrição. Fui enviado a um lugar no qual iriam me pagar 65 centavos por hora. Uma fortuna. Era um novo supermercado chamado Vons. Ainda existe em San Diego. É uma rede, mas agora pertence à Safeway, outro grupo o comprou, mas mantiveram o nome. Em Berkeley e em Stanford se chama Safeway, mas em Los Angeles e em San Diego é Vons. Trabalhei duro, mas era muito próximo à minha casa, então podia trabalhar todos os dias. Quase no fim da Segunda Guerra Mundial me dei conta de que era possível trabalhar nos Correios e ganhar mais. Pagavam mais e eu trabalhava no sábado, durante o verão, no Natal, era assim. Eu entregava cartas. Percorrendo meu bairro, o conheci muito bem.

E como decidiu ingressar na UCLA [Universidade da Califórnia, Los Angeles]?

Era difícil, porque eu não podia conseguir boas notas. Até por volta dos treze anos, eu tirava notas muito boas, e antes, no primário, eu me sobressaía. Tinha uma professora que me ajudou, que mudou minha vida. Freqüentei outros três primários, porque meu pai não pagava o aluguel e tínhamos sempre que mudar. Era terrível. Ele acabou alugando uma casinha pequena de um sefardita que se chamava Soriano, e moramos lá por uns dez anos; o bairro era de classe média, mas a casa não. Havia outros judeus sefarditas lá, havia uma sinagoga perto, aonde podíamos ir caminhando. Eu aprendi tudo, mas hoje já esqueci tudo também. Podia escrever, podia ler, podia rezar em hebraico, ocorreu meu bar mitzvah, tinha que ler, abria o livro e podia ler sem problema. Dei três conferências: uma em inglês, uma em hebraico e uma em castelhano. O rabino era da Palestina e sabia as três línguas. Eu era um bom aluno, até que comecei a trabalhar mais, tinha as tarefas do colégio e não havia tempo para estudar. Fui para o colégio secundário, fiz os cursos para entrar na universidade, mas as notas não eram boas, com média quatro ou cinco, mas, ao mesmo tempo, fiz os cursos, jogava basquete e ainda corria. Eu me relacionava com um grupo de amigos, havia uma turma de sefarditas, quase todos eram do bairro. E havia outros grupos na escola, judeus asquenazes e cristãos, e dessa turma alguns foram para a universidade, eu os conheci bem, mas não pude entrar na UCLA porque não tinha as notas necessárias. Freqüentei então o Community College, onde tive que fazer os cursos para a universidade de novo, e os fiz bem, mas sempre trabalhando à noite. Fiz o exame nacional para os Correios e comecei a trabalhar quarenta horas por semana, não dormia muito e fiquei doente várias vezes. Trabalhei em várias funções, dirigi caminhões, fazendo entrega de produtos de um supermercado em casas particulares. Mas terminei os estudos e consegui entrar na UCLA.

Que cursos você fez?

Psicologia experimental e muita filosofia também, porque a UCLA tinha um curso de filosofia muito bom.

Por que escolheu o curso de psicologia?

Porque um dos meus professores no Community College era psicólogo e me aconselhou: "Cicourel, se você continuar com a filosofia, não irá conseguir trabalho". Então decidi que o melhor era fazer psicologia. O que ocorria era que eu poderia ter continuado, mas as notas não eram boas, tirei um oito uma vez, mas o comum era cinco ou seis. Queriam me levar para o exército, para servir na Coréia; a essa altura, faltava apenas um semestre para eu terminar o curso. Mas como eu vivia em um bairro humilde, e tinha me alistado lá, falaram: "Você irá à Coréia". Ninguém na UCLA tinha que ir, porque eram de classe média.

E por que você teria de ir?

Porque decidiram por bairro quem iria para onde. Os estudantes dos bairros de classe média eram dispensados.

Você ainda não tinha terminado o curso?

Só faltava um semestre! Então apelei: "Olha, eu sou doente". Tive problemas de estômago por ter trabalhado muito e pensei que algo estivesse registrado. Mandaram-me para o hospital dos veteranos, lá fizeram exames e disseram que talvez eu tivesse mesmo alguma doença, pelo menos me confirmaram que eu tinha algo e que não era trivial. Decidiram esperar um pouco. No entanto, no Natal, não queriam mais esperar. Mas eu pude terminar as provas. Ninguém queria me dar trabalho depois de saber que eu estava indo para o exército. Fui removido para um lugar no norte, Monterey. Lá fui treinado na infantaria.

Que idade você tinha?

Vinte e um, acho. Casei-me onze meses antes de ir para a Alemanha.

E de onde vinha sua mulher?

Ela era de classe média, de uma família de judeus asquenazes. Até minha esposa não acreditava que eu fosse judeu: "Não sei se posso sair com você". Antes eu tinha saído com outra garota do Community College, alta e bem bonita. Fui à casa de minha esposa e o pai dela me disse: "Você não é judeu, não tem nome judeu nem nada!". "Mas meu nome é Aaron." "Muitos podem ter esse nome também." Então eu arrisquei: "Traga uma Bíblia em hebraico", e comecei a ler... a mãe e o pai ficaram boquiabertos: "Muito bem, mas a sua pronúncia não é muito boa". "É que eu tenho sotaque de Israel e vocês têm sotaque do leste da Europa, da Letônia". Eu havia concluído a UCLA, onde tive vários professores reputados: Ralph Beals, Ralph Turner, um excelente estatístico, William S. Robinson, aluno de Paul Lazersfeld. E havia também o Edwin Lemert. Lemert era excelente, estava escrevendo um livro, Social pathology, e tínhamos apenas um esboço, que não está publicado ainda. Eu tirava boas notas nesse curso. Ele me ajudou: "O que vai fazer?". "Ora, tenho que ir para o exército." Ele me chamou para jantar em sua casa, e naquele tempo, como hoje também, nenhum professor fazia esse tipo de convite, ele tinha dinheiro; vivia em Brentwood, Los Angeles, em um lugar luxuoso. Eu tinha um Dodge velho, 1936, que soltava tanta fumaça que minha noiva tinha que colocar a cara para fora para não desmaiar. Era muito ruim, mas andava. Então fui lá, mas o problema era encontrar a casa; lá estava também outro professor, de antropologia, muito importante, e jantamos. Para nós era difícil porque eu não tinha na verdade nem roupas para vestir! Minha mulher tinha, eu não. Depois fiquei dois anos no exército e comecei a me candidatar a postos em psicologia, mas era sempre reprovado! Notas ruins. Fiz o mesmo em sociologia e antropologia, sem sucesso! Enquanto isso, estudava mais matemática, lia ainda o livro de Talcot Parsons, de 1937, e Robert K. Merton. Como tinha licenciatura em psicologia, me mandaram para um grande hospital em Indiana, onde eu trabalhava no setor neuropsiquiátrico, com jovens procedentes da Coréia que estavam com problemas mentais. Tinha que trabalhar com suas famílias, dar choques elétricos e aplicar outros tipos de terapia. Era encarregado de 48 pacientes, 24 totalmente esquizofrênicos e outros 24 que estavam melhores, por causa da terapia. Então aprendi bastante. Corria sempre o risco de ser mandado à Coréia: a cada mês saía uma lista, mas havia alguns oficiais que me ajudavam. Por fim me dei conta de que eles iriam mesmo me mandar. Havia alguns amigos, mas pouco a pouco foram saindo. Meus amigos e minha esposa trabalhavam perto e lhes disse o que temia. O que vamos fazer? Um deles me sugeriu: "Olha, tem uma lista de seis pessoas que vão para a Alemanha; vou te pôr aí, apesar de não poder ser oficialmente." Fui a Los Angeles me despedir de toda família, de minha esposa e dos amigos. Ao chegar a Fort Dix, Nova Jersey, já sabia que ia ter problemas. Cheguei dez minutos antes da meia-noite. Havia um sargento lá, meio adormecido, lhe dei os papéis e reagiu: "Cabo Cicourel, não devia estar aqui!". "Não? E por quê?" Mas eu já sabia por quê. "Não pertence ao exército regular, de carreira, e não tem tempo suficiente para ir à Alemanha; deve ter pelo menos um ano." Eu só tinha oito ou nove meses. Insisti: "Minha esposa, minha família, já me despedi de todos e aqui estou, não é minha culpa". "Tenho que fazer todas as mudanças... que diabo! Ok! Assina isso e me dê os papéis!" Naquela noite me deram uma cama, não muito boa, mas não importa. No dia seguinte estavam todos lá, prontos, com o capitão. "Quem é Cicourel? Onde está esse rapaz?" Eu tremi: "Sou eu". "E por que está aqui?" "Tenho ordens, capitão." "Mas não devia estar aqui! Você não tem carreira normal de exército nem a experiência mínima de um ano." Outra vez expliquei que já havia me despedido da família, da esposa. "Cicourel, entra aí!" Entrei num navio de três andares, terrível! A comida, horrível! E cheguei em Bremerhaven, Alemanha, e lá aconteceu a mesma coisa: "Quem é Cicourel? Você não devia estar aqui!". "Mas vão me mandar para trás? Eu já estou aqui na Alemanha." "Você é psicólogo?" "Sim." "Bem, então... ok!" E a mesma cena outra vez, nas montanhas, nos Alpes! Um castigo! "Quem é Cicourel?"

Em que ano isso aconteceu?

1952. Então finalmente me deixaram em paz. Vamos mandá-lo para Munique; precisamos de um psicólogo lá, em um pronto-socorro militar dentro de um hospital municipal. E assim fui para lá e trabalhei outra vez com terapia, mas, em minha opinião, ela era mal-feita. Eu me queixava com o médico. "Você não é médico, Cicourel!" "Mas tenho boa experiência." "Não importa para nós!" Me deram um trabalho em outro lugar, mas fiquei no mesmo hospital em Munique. Minha esposa veio como turista, ilegalmente, porque não tinha direito de ficar comigo, e se hospedou numa pensão de refugiados da Áustria. Todos ultradireitistas, trabalhando para a Radio Free Europe, emissora norte-americana. Eles diziam: "Nós escapamos do comunismo!". Escaparam quando os russos chegaram, todos com dinheiro, muito bem-vestidos. Nem falamos com essa gente. Fomos a um local de turismo e encontramos outro casal, ele era soldado. Almoçamos juntos. Éramos os únicos soldados e entre vários alemães... Então me dei conta de que eles tinham sotaque... ela era de Viena e ele, de Berlim, os dois judeus. Ele trabalhava para a Agência do Exército Norte-americano para Investigação Criminal (American Army Criminal Investigation Detachment), mas falava alemão perfeitamente. Esteve no campo de concentração por anos. Escapou. Ele nos ajudou a conseguir outro lugar para ficar, porque eu não agüentava aquela gente. Com uma família alemã que não era fascista, nazi, ele garantiu. Fomos para lá, era perto do hospital e eu podia ficar com a minha esposa pouco tempo.

Você não acha que essa experiência no hospital nessas circunstâncias foi muito importante?

Sim, bastante. Com toda essas boas experiências que tive no exército, fui percebendo que, na Alemanha, para eu poder ter um cargo num departamento, tinha que saber datilografar, e eu não sabia muito bem. "Temos aqui um cargo para quem saiba bem datilografia, e você vai ser também psicólogo ali." Inicialmente trabalhei não com um psicólogo, mas com um oficial, um major que bebia, era difícil. Ele não me queria porque eu era universitário, esse foi o problema. Eu podia chegar a cabo, porque ele saiu de férias e mostrei os papéis exigidos para ser promovido; falei com o coronel, um homem de carreira: "O major saiu de férias e esqueceu de assinar os papéis". Acabei aprendendo todas as regras. Tenho uma memória muito boa. Ele me dizia: "Cicourel, vamos fazer assim". "Major, eu creio que existe uma lei segundo a qual não se pode." Ele se irritava comigo. Uma vez, me lembro, eu voltava de férias e encontrei um afro-americano muito religioso, que falava uma língua incompreensível. Mandaram-no primeiro para a prisão; depois disseram que era louco, mas ele não era louco. Eu conversava com ele e percebi que o coitado tinha uma religião. Ele não devia estar preso, nem com os loucos. Um capitão psiquiatra falou comigo: "Cicourel, esse homem não é para estar aqui". Era um homem muito amável, de Ohio, e me instruiu: "Prepare os papéis. O coronel vai embora e eu serei responsável por tudo". Eu arrumei os papéis e mandamos o pobre para casa.

E quando você voltou para os Estados Unidos? Havia ficado dois anos na Alemanha?

Não, oito meses, mas dois anos no exército. Naquela ocasião havia a possibilidade de entrar na UCLA como pós-graduando por seis meses, talvez, se tivesse tirado boas notas. O chefe de departamento que havia me recusado antes foi embora para a Austrália. Um antropólogo o substituiu, lingüista, e eu era bem amigo desse professor, que falou a meu favor: "Ele foi muito bem no meu curso, trabalhava sempre. Deixe-o entrar. Eu o respaldo". Comecei a trabalhar, minha esposa também conseguiu trabalho na UCLA, como secretária, e eu recebia do governo, não da UCLA, e estudava, fazia tudo certo. Mas o outro chefe voltou e viu que eu estava no seu curso, era um curso obrigatório, de metodologia. Ele quis me pegar como ajudante, não imediatamente. Então terminei o mestrado e, apesar de ter feito tudo muito certo, não quiseram me dar uma posição, e assim decidi sair de UCLA para Cornell.

Era um mestrado em sociologia e antropologia?

Nas duas. Eu fazia curso de estatística, de psicologia, todos os principais cursos, sobretudo matemática, cálculo, álgebra, cursos mais avançados, e fiz estatística na matemática. Logo percebi que a estatística em sociologia e em psicologia não era tão sofisticada. Depois, já em Cornell, encontrei matemáticos estatísticos muito bons. Eu fazia mais os cursos de matemática, não tive de fazer quase nada de sociologia porque já estava mais adiantado do que outros estudantes. O mestrado da UCLA era excelente.

Por que escolheu o Robin Williams?

Porque já sabia que era ótimo e que havia estudado com Sorokin e Parsons, e com Schumpeter em Harvard.

Robin Williams já era um homem reconhecido naquele tempo?

Bastante. Ele era um dos autores dos três tomos da obra The American soldier. Esse trabalho havia firmado, nos Estados Unidos, diversas metodologias com forte respaldo em pesquisas. Por exemplo, a escala de Guttman. Ele se deslocou até a fronteira, na guerra, e fez entrevistas com soldados. Era chefe do departamento e me tornei seu ajudante. Um homem muito bom. Ele me propôs: "Você fará um exame de duas horas com outros dois professores e vamos ver em que pé estão as coisas; depois verei que cursos você terá de fazer". Depois do exame, ele disse: "Não precisa fazer nenhum curso, apenas o de estratificação social". Fiz esse curso e muitos outros de matemática. Depois fiz um ano de trabalho de campo. Também como ajudante, fiz uma pesquisa e escrevi um inquérito para uma pesquisa depois de muito estudo, para uma sondagem de opinião com cinco mil entrevistas em todo o país, todos aposentados, mas briguei quanto à metodologia.

Mas esses dados foram obtidos por você?

Fiz o questionário inteiro. Fui sozinho a Connecticut e a Nova York (Yonkers) para testá-lo. Voltei e fomos a Rochester para elaborar outra versão do questionário, junto com dois professores. Analisamos e percebemos o que corrigir. Começaram a corrigir e eu disse: "Espera aí, professores, não posso mudar isso sem testar de novo...". "Não temos tempo, Cicourel! Temos que enviar um relatório para Washington porque o dinheiro vem da Agência Nacional de Saúde." "Mas vocês me contrataram porque eu conhecia as críticas às pesquisas, tinha experiência em pesquisa, e tinham que fazer algo diferente, por que agora não me deixam fazer...?" "Não temos tempo, Cicourel, você não entende?" E se zangaram comigo. Sinceramente, o mais velho, que era titular, me disse: "Você quer terminar o doutorado aqui?". Minha esposa estava grávida e eu assenti: "Quero". "Então faça tudo que for preciso." Eu refleti que não iria fazer minha tese com essa gente e com esses dados.

Fiz um estudo de campo e fui conhecer as pessoas em um local onde havia homens bem pobres e algumas pessoas um pouco mais ricas. Elas se reuniam em um tipo de clube. Lá conheci o pessoal e a chefe, que tinha doutorado, casada com um famoso professor de nutrição. Mas ela era chefe de fachada, o diretor era de fato outra pessoa. Eu ia lá almoçar com eles todos os dias; tinha bailes, dançava com eles. Freqüentava um grupo de homens, não tinha ninguém para ajudar os homens, pois, imagine, 90% eram mulheres. Eu me reunia com um grupo aos sábados. Consegui filmes, muitas coisas do New York Times, eu os levava aos lugares... Tinha uma senhora de 76 anos, que pessoa bacana! Disse que eu tinha de fazer uma entrevista na casa dela; eu a via também no clube. E um dia, na sua casa, ela disse: "Aaron, fui ao médico ontem e vou morrer daqui a um mês. Faça toda a entrevista agora! Não quero que sua tese e você sofram com a minha doença". Que mulher! Eu estava quase chorando... Ainda me emociono quando falo dessa gente porque me ajudaram tanto! Então havia duas mulheres, uma era a diretora, seu filho era o melhor especialista em pediatria em Ithaca e o marido dela, o pai, era professor na Carolina do Norte, me parece. Ela me apresentou uma amiga, cujo marido faleceu também. Ela era mãe de um professor meu em Cornell que se chamava Whyte, William F. Whyte, e que estava um pouco preocupado porque eu estava estudando a mãe dele. Ela era uma mulher muito boa, eu ia à sua casa tomar um trago e falar da minha pesquisa e do que acontecia, e eles me contaram muitas coisas, obviamente. Então para mim era fenomenal. Juntaram alguns centavos para me dar, porque meu filho nasceu. "Isso é para o teu filho, Aaron." Essa gente não tinha nada. A maior parte era de condição humilde, mas havia alguns professores aposentados que estavam todos juntos, e isso para mim foi interessante, ver como a riqueza e a pobreza se juntavam nesse lugar. Eu ia à casa dessa gente, eles falavam de seus filhos, que os roubavam: "Esses jovens são maus, mas você, Aaron, você não é mal". Eu era muito bom. Os filhos é que eram o problema. Tinha um que se chamava Thomas Banta e tinha 86 anos. Esse homem fez a primeira lâmpada elétrica para Thomas Edison. Ele me disse que tinha inventado várias coisas, mas como não era engenheiro, nunca davam crédito a ele. Todo o reconhecimento ficava para Edison. Era assim. Ele fazia coisas de vidro para o departamento de física, mas estava aposentado. Que homem bom! Fazia vinho e me dava...

Fez a tese com base nessas entrevistas?

Isso mesmo, ao longo de um ano de observação.

Como era Garfinkel? Quando você voltou à UCLA ele já estava lá?

Ele estava no mestrado, em 1954. Em 1953, eu já estava de volta. Mas ele só chegou no outono de 1954. Tentei entrar num curso de Garfinkel para formados. Disseram-me que eu não podia freqüentar.

E por quê?

Eu teria antes que me tornar bacharel, mas eu já havia feito outro curso, então ele me recusou. Mas eu não entendo por quê. O chefe saiu do escritório e disse: "O que está acontecendo?". E ele se irritou muito porque o chefe interferiu. Eu esclareci que Garfinkel não queria que eu fizesse o curso. Garfinkel já tinha problemas dentro da UCLA e ele tinha medo. Dava um curso que poucos entendiam. O que é isso? Um curso sobre normas, mas um curso muito interessante (segundo testemunho de amigos), que remava contra a corrente. Como ele tinha que apresentar algo ao departamento – cada novo professor tinha que fazer isso na primavera –, ele estava apreensivo. Um amigo de Garfinkel, William S. Robinson, propôs: "Por que não fazemos um seminário informal na minha casa? Vamos reunir três professores, um doutorando, algo assim". Eu havia passado nos exames e já podia entrar no doutorado. Não quis por causa do chefe, do qual não gostei. À noite, fomos à casa desse Robinson, onde Garfinkel apresentou algo que ia expor ao departamento. Fiquei escutando. Ele estava irritado porque eu estava lá.

Ele não queria que você estivesse lá?

Não. Ele não estava bem, não sei... Garfinkel, nesse momento, estava dando assessoria para a American Sociological Review. O chefe era o editor. Deram um artigo para Garfinkel e ele o utilizou para fazer algo por conta própria. Eu fiz a ressalva: "Isso não me parece bom". "E por que não?" "Pelo que você disse, não mesmo." Ele me olhava. Harold disse: "Tem razão". Estava irritado, e me disse: "Cicourel, por que você não vem me ver no meu escritório amanhã?".

Que idade ele tinha?

Ele tinha 35, algo assim. Fui vê-lo e começamos um seminário, um dos alunos era Egan Bitner, muito bom. Ele era polonês, falava bem o alemão, passou toda a guerra no campo de concentração e conseguiu sobreviver. Nesse pequeno seminário começamos a fazer coisas diferentes.

E quanto tempo durou esse seminário?

Uns seis meses. Planejamos muitas coisas com Garfinkel, mas fiquei irritado porque ele não me dava crédito.

Vocês faziam tudo juntos e ele [Garfinkel] queria todo o crédito para ele?

Ele tinha problemas para conseguir ser titular, ter estabilidade para toda a vida. E publicou pouco. Tinha muito medo.

Vocês escreveram textos juntos?

Eu escrevi algo com ele, mas não tenho esse trabalho.

Não publicaram? Não quiseram publicar?

Não.

Qual é a história desse livro que pensaram em fazer mas não fizeram?

Garfinkel era um homem complicado, sempre desconfiado. Ele sempre pensava que eu estivesse roubando coisas dele. Porque eu dizia uma coisa e ele: "Ah, e como sabe disso?". Inquirição. E nós trabalhamos depois. Quando voltei como pós-doutorando, ele estava lá também, tinha uma bolsa e era um ano decisivo para ele. Então começamos a escrever esse livro; eu escrevi a parte metodológica, mas conhecia a teoria também.

De que tratava o livro?

Sobre tudo o que se chama de etnometodologia!

Há algumas partes que estão em seu Cognitive sociology?

Não. Coloquei algo da minha parte no livro Method and measurement in sociology. Garfinkel não sabia estatística, não conhecia muito de metodologia, então precisava de mim. Nós às vezes trabalhávamos doze horas por dia. Eu não ganhava dinheiro com isso, com ele era tudo informal. Eu pensava: vamos fazer um livro que seja interessante e importante.

Para os dois?

Exato. Mas o que aconteceu foi que, no verão de 1956, na Reunião Nacional de Sociologia, em Detroit, eu disse a Garfinkel o que estava pensando fazer. Falava teoricamente das categorias que pensava utilizar, um pequeno inventário numa folha e nada mais. Vi que tinha de elaborar tudo. Ele não me indicou nada. Depois, em 1957-1958, trabalhamos todo o ano e, em setembro de 1958, houve um congresso internacional. Schütz morreu um pouquinho antes e ele iria falar nesse evento. O responsável pela organização desse congresso, Kurt Wolff, conheceu Garfinkel e decidiu que, como Schütz não iria, Garfinkel assumiria seu lugar. Ele apareceu com um texto sobre aquilo que havíamos escrito juntos e depois me mandou uma cópia. Mais tarde me toquei. Ele havia escrito: "Quero agradecer a Aaron Cicourel, que me ajudou muito" em uma nota de rodapé. Publicou isso e pôs só o nome dele.

Aí então vocês brigaram, romperam o relacionamento?

Depois me dei conta de que não íamos fazer mais nada juntos. E brigamos várias vezes. Em 1962, eu estava em Riverside, na Califórnia, quando ele me telefonou: "Cicourel, temos que reatar, que nos ver". "Não quero te ver." "E por quê? Acontece que tenho um problema no estômago, no cólon; encontraram duas coisas e me parece que pode ser câncer." Fui de carro, esbaforido, até Los Angeles. Fui à sua casa. A esposa dele era muito amável, muito amiga de minha esposa. "Aaron, tenho este artigo, e mais este, vou te dar tudo para editar. Sei que você conhece tudo isso e vai fazer tudo muito bem." O que eu podia dizer? Mas, depois, o resultado é que não era câncer! Eu estava para terminar o primeiro rascunho do meu livro Method and measurement in sociology e o livro The educational decision makers, com John Kituse. Tinha muito trabalho, tinha que fazer toda a estatística à mão, e não tinha dinheiro para nada. Escrevi cada capítulo do primeiro rascunho. Naquele tempo não havia computadores, informática, era tudo à mão. Depois passava para a máquina, uma máquina velha. Minha esposa me ajudou, minha irmã também.

Nesse momento você estava em Riverside?

Em Riverside. Saí de Riverside em 1965 e passei um ano em Buenos Aires. Em 1962, mandei a Garfinkel vários capítulos do livro sobre metodologia. Ele ficou irritado: "Cicourel, não está bom. Precisa arrumar: me citar aqui e ali, citar Schütz lá e aqui, Mannheim idem". Não podem imaginar! Meu chefe Williams me perguntou: "Aaron, quem é esse homem? Não o conheço, mas isso não tem sentido. Você tem que citar umas coisas que não fazem sentido".

Vocês brigaram porque ele era muito difícil e muito malandro. Mas vocês brigaram também porque você não pensava exatamente como ele? Qual era a diferença?

A diferença era que eu tinha uma orientação diferente da dele, empírica e metodologicamente. Ele também tinha interesse empírico, mas de uma maneira que para mim não servia para a sociologia. Ele pensava que a sociologia tradicional não importava, e quis fazer coisas que, para ele, mostravam a base fundamental, digamos, das regras implícitas da vida cotidiana. Então brigamos por isso. Mas o que acontecia era, segundo ele, que eu queria melhorar a sociologia, algo que não lhe parecia importante. Por exemplo, quando eu fazia coisas sobre educação e pesquisas com jovens, sobre fecundidade. Ele queria mudar a sociologia.

Ele tinha uma idéia muito nítida de que estava inaugurando uma nova escola?

Sim, totalmente. É um homem muito difícil pessoalmente.

E investia muito nisso.

Totalmente. Até hoje!

E qual é a sua opinião sobre Goffman?

Goffman é complicado também. Era um homem que saiu de Winnipeg e foi para Toronto, onde se deu muito bem. Depois foi para Chicago, estudou com Everett Hughes, que era canadense também. Pessoalmente, nunca se podia chegar perto de Goffman. Podia-se apertar sua mão, mas lhe dar um abraço, nunca! O que eu posso lhe falar? Seria especulação, não sei! Mas conheci esse cara muito bem. Depois de Edimburgo, foi no Instituto Nacional de Saúde Mental que, na minha opinião, ele fez o seu melhor trabalho empírico. Quando saiu Everyday life, ele mudou bastante sua tese. Então trabalhou com um monte de coisas de literatura, com muitas coisas. Fez isso muito bem. Contrataram-no em Berkeley em janeiro de 1958 e nos víamos várias vezes. Era um homem realmente com cabeça. Havia três pessoas assim, com cabeça: Goffman, Garfinkel e Sacks. E cada um tinha a sua manha, o seu caráter forte e os seus sonhos de mudar as ciências sociais.

Você acha que Goffman manejava o material literário com liberdade excessiva?

Não.

Isso o ajudou muito?

Sem dúvida. Suas teorias são realmente importantes, interessantes.

Quais as diferenças entre o momento em que começou e depois?

Responder isso requereria uma retomada muito delicada. E, claro, muitas coisas serão resumidas. O que me dei conta quando comecei a estudar psicologia foi que, primeiro, analisávamos os experimentos fundadores. Quando iríamos chegar aos seres humanos? Nunca chegávamos. Quase tudo era metodologia, estatística, sempre lidando com animais. No semestre seguinte, fiz alguns cursos de sociologia e antropologia, não quis continuar na psicologia. Mas mantive uma metodologia que aprendi na pós-graduação em psicologia. Eu tinha lido o livro de D. O. Hebb, da Universidade McGill, em Montreal, no Canadá, The organization of behavior. Ele trabalhava com Penfield, um neurologista. O livro era incrível, falava do cérebro, da aprendizagem, de coisas que eu nunca tinha realmente lido. Quando perguntei ao meu professor do curso de aprendizagem se podia usar esse livro, ele se mostrou cético: "Você deve escrever alguma coisa, mas essa coisa nunca vai funcionar na prática". Hoje em dia, o livro é a principal referência em teoria cognitiva e em tudo relacionado a cérebro, neurônios, a obra mais importante. Percebi que eles estavam em outro mundo e por isso acabei largando. Mas em antropologia e em sociologia tinha gente boa. Nos quatro cursos que fiz em antropologia e sociologia, havia muitas coisas que me interessavam. Logo me dei conta de que nos outros cursos não havia uma realidade fixa análoga ao que existia em sociologia. Falávamos de normas em termos ideais, em lugar de observarmos como as coisas operavam na vida cotidiana. E o que eu encontrava na vida, coisas minhas, porque quando eu me deparava com a polícia, percebia que as regras oficiais nunca se cumpriam. Então comecei a apresentar minhas idéias aos professores de pós-graduação. Quando descrevi quais eram os procedimentos da polícia no curso dado por Donald Cressey, um especialista em criminologia, ele reagiu: "Ora, mas isso não se estuda, é muito difícil". Mas então falei com Lemert. Ele entendeu imediatamente, apesar de nunca ter se metido em nada parecido: "Vai ter um pouco de trabalho". Por isso eu fui a bares e a outros lugares, para xeretar o bairro. Conheci assim o bairro onde cresci, uma parte desse bairro. Eu podia entrar e não me perguntavam nada sobre minha idade; tinha por volta de vinte, vinte e um anos. Observei a quantidade de cheques sem fundos que os clientes davam. Eu queria saber mais sobre isso e recolhi muitas informações. Lemert tinha outro estudo, sobre prostitutas em Hollywood. Mulheres que eram secretárias durante o dia e se prostituíam à noite. Ganhavam cem dólares cada noite, e naquele tempo isso era muito dinheiro. Ganhavam dez vezes mais do que o salário. Ele comentou: "Isso é um problema, porque o mundo relacionado à prostituta é de gente mais humilde, mulheres mais humildes. E isso é coisa de comerciantes que freqüentam um hotel de luxo". Nos livros que escreveu, falou de algo muito importante: o que leva uma secretária de classe média a se tornar prostituta e que tipo de mentalidade necessita adquirir para manter a vida dupla. Ele seguia o esquema inteiro de George Herbert Mead. Por intermédio de Melville Dalton, aprendi bem como fazer pesquisa numa pequena fábrica. Eu ajudava as pessoas na fábrica, mas no dia em que quis fazer uma pesquisa mais formal, elas reagiram: "Cicourel, achamos que você é um espião do supervisor. Nós não podemos te dar nenhuma informação". Então comecei a me preocupar com a confiança com a qual podemos contar numa pesquisa. Em certo sentido, a confiança é quase nula. Sempre corremos esse risco. O mesmo acontece numa sondagem. Me dei conta de que essas estatísticas oficiais não demonstram nada válido sobre o que as pessoas fazem na prática. Quem estuda a prática por horas, dias e meses? Estudam a prática com entrevistas formais e não se pode confiar nisso. Eu pratiquei uma espécie de antropologia na cidade. Fiz coisas na Espanha, em três regiões: nas montanhas da Andaluzia; em Las Hurdes, perto de Portugal, ao norte da Extremadura; e na Galícia, ao norte de Portugal. Percebi ao entrar numa casa num vilarejo andaluz, ao norte de Gibraltar, uma cidadezinha de quatro mil habitantes, que essa gente tinha no máximo três anos de escolaridade. E lá havia uma fábrica de cortiça [rolha], muito bonita, era a maior de toda a península ibérica, exceto uma em Portugal, e pertencia ao município. O prefeito era o dono, mas também era o chefe da escola primária. Eu ia lá para ver como andava essa gente e consegui bastante informação paralela. Acabei por indagar: o que acontece com o dinheiro de toda a cortiça? E disseram: "O senhor conhece o prefeito, certo? Então deve saber melhor do que eu". O que mais eu poderia perguntar? Eu morava nesse vilarejo, mas até que ponto se pode ter confiança? Eu confiava mais num homem dono de um bar, recém-chegado da Alemanha, onde ficara quase doze anos trabalhando na indústria; vários ali trabalhavam numa fábrica da Mercedes-Benz. Ele começou a me dizer coisas das quais só foi se dar conta um tempão depois de seu regresso. Esses espanhóis tiveram uma vida dupla. Voltavam para seu país uma vez ao ano para ver a família. As crianças cresciam e eles quase não as viam. Ele não se conteve: "Voltar para a Alemanha era uma coisa que me enchia de lágrimas". Outro, Pedro Duarte, lembro até de seu nome, um sujeito muito bacana, ele morava na Suíça com mais doze conterrâneos, todos de Las Hurdes, quase nenhum tinha educação, apenas o suficiente para escrever alguma coisa; ele era o chefe. E foram para lá de ônibus, viviam como escravos. Os suíços eram maus com essa gente. Trabalhavam como loucos. Voltaram também depois de dez, doze anos. Isso para mim foi muito importante, conhecer o que acontece quando se está trabalhando com as pessoas. Pedro tinha outro ponto de vista. Ele e o homem do bar levavam, nas palavras de Schütz, uma vida marginal. Estavam em dois mundos. Tinham uma perspectiva diferente de todas as outras pessoas de lá.

Quando você tentou formalizar um pouco seu trabalho, como no livro Cognitive sociology?

Fui me dando conta de que estava fazendo uma mescla de antropologia, lingüística, sociologia e novos enfoques cognitivos. Apesar de ter sido bastante influenciado pelas obras de Noam Chomsky, desde 1957, percebi que, em sua teoria lingüística, não havia lugar para o uso da linguagem na vida cotidiana, nem para a interação social. Compilar os artigos foi minha saída para mudar a sociologia na direção de abordagens mais válidas e capazes de lidar com teoria, métodos e dados, que eram mais dinâmicas do que amostras e resultados demográficos. Por exemplo, como reconhecer que se deve aplicar uma norma e o que significa cumpri-la em situações concretas na vida cotidiana? A percepção, a linguagem, a memória, sempre entram, o que implica certa fusão de cognição e cultura. Ao redigir um relatório para Melville Dalton sobre a fábrica, pensei: Como vou conquistar confiança? O que fez Dalton? Ele era químico antes de entrar no departamento de sociologia. Trabalhava prestando serviços para as fábricas ao redor de Chicago. Ele entrava nas fábricas como um químico de verdade, mas na realidade estava fazendo seu doutorado. Logo, Dalton precisava usar a linguagem de um especialista, ou melhor, comportar-se de tal maneira que pudesse ser percebido como um especialista. Ele tinha de conquistar a confiança dos empregados. Ele ia ao banheiro para poder registrar o que observava sem ter de mostrar sua pesquisa. Ele podia perceber muitas coisas que os pesquisadores de estudos industriais não apreendiam porque ele nunca fora percebido como um investigador. Seu colega Roy escreveu as primeiras coisas sobre normas oficiais de trabalho. Por exemplo, como um trabalhador seguia as normas de produção, mostrando como os operários trabalhavam por peça e ganhavam quase nada. E de repente o dono descia e eles aceleravam o ritmo de produção para ganhar mais. A escala terminava e depois os operários percebiam: "Este ladrão está nos enganando". Nos Estados Unidos, esse trabalho foi muito importante, foi publicado em 1948, aproximadamente. Antes havia apenas pesquisas formais, mostrando que a produção tinha normas oficiais e não oficiais. Ninguém escrevia sobre isso em sociologia. Eu retive algo disso no livro porque podia observar tais práticas ao trabalhar em vários lugares. Comecei a entender e a escrever algo a respeito e Dalton gostou.

O Cognitive sociology era um projeto que você pretendia escrever? Porque são vários artigos que podem ser lidos com certa autonomia.

Eram diferentes trabalhos que não podiam ser publicados do ponto de vista sociológico.

E por que não podiam ser publicados?

Porque aquilo não era "sociologia". Neles há críticas a Talcott Parsons, a Robert K. Merton.

Por questões políticas, então?

Exatamente! Acadêmicas.

Havia alguma influência da antropologia no seu trabalho naquela época?

Sim, porque eu sempre tive antropólogos como professores.

Nesse momento você já tinha lido Street Corner society, de William Foot Whyte?

Claro, porque Whyte fazia parte da minha banca de doutorado. Eu conhecia Whyte.

Você trabalhou com ele?

Trabalhei um período, em que fiz análise dos dados que ele coligira na Venezuela. Ele me perguntou se podia ajudá-lo, mas eu achava que era necessário mais trabalho de campo. "Aaron, podemos ir à Venezuela juntos." Mas quem iria me pagar era a Standard Oil Company e eu não queria trabalhar para essa empresa, para mim era difícil. Whyte ficou bravo, especialmente quando discordamos acerca dos dados sobre os membros das famílias de operários do petróleo. Por exemplo, quando compravam uma geladeira, eles a colocavam na sala. Na opinião dele, "uma geladeira para essa gente é como ter um carro!". E a Standard Oil Company lhes oferecia medicamentos grátis, mas eles não os queriam! E por quê? Averigüei e pude entender que todos eram brancos [os medicamentos] e na farmácia os venezuelanos dizem: quero o vermelho para isso, o azul para aquilo. Eles entendiam azul, branco e vermelho, mas não entendiam tudo branco. Então, para eles, era difícil distinguir. Esse era um problema culturalmente interessante, mas Whyte não quis estudar isso. Ele queria que eu fizesse estatísticas da pesquisa com base na amostra concluída, mas isso não me interessava.

Seu trabalho enfatiza a cognição, você acha que isso te diferencia em relação a Goffman ou aos outros? De que modo sua proposta se diferencia em relação aos demais? É essa ênfase na cognição? Acha que existe uma ruptura entre a etnometodologia e a sua proposta, ou simplesmente um desenvolvimento?

Está perguntando se a etnometodologia tem algo de cognição?

É. Acha que existe alguma ruptura entre o seu trabalho e a etnometodologia, ou continuidade?

Certamente não cabem dúvidas. Mas se nos dermos conta do que fez Garfinkel em sua tese e depois, vemos que seu trabalho possui muita coisa sobre cognição, mas ele não menciona muito essa palavra. Porque ele estudou não só com Parsons e, de fato, com Schütz durante os verões em Nova York, mas também com Jerome Bruner. E entre esses psicólogos havia também Georg Miller, o mais importante cognitivista. E Bruner também, muito importante.

Onde Garfinkel estudou com todos esses professores, em Harvard?

Exatamente, em Harvard. As partes teóricas da tese de Garfinkel, em especial o capítulo mais longo do trabalho, eram excelentes. Aí ele revelou a importância do trabalho de Husserl, Schütz, Merleau-Ponty e outros, para a sociologia. A parte empírica da tese também era importante e se tornou a base de todo o trabalho empírico subseqüente, que outros o ajudaram a completar. Ele não fez entrevistas, Garfinkel é incapaz de fazer entrevistas. Na verdade, porque não sabe como se relacionar com as pessoas. Mas um amigo, Henry Riecken, psicólogo social, ele as fez!

O que eu quero ressaltar é que percebi o quanto a parte de cognição está intimamente vinculada com as culturas. O livro de Michael Tomasello, As origens culturais da cognição humana (The cultural origins of human cognition), é importante porque capta o nexo. Mas o problema é que ele nunca fez trabalho de campo para ver em que sentido a cultura está relacionada. No meu trabalho digo que não existe cultura sem cognição, nem cognição sem cultura. É impossível! Então, não se pode ter etnometodologia sem cognição, não se pode entender estrutura social. Quando Max Weber falou de ação social e do curso que ela toma, isso é fundamental para se entender a importância da interação social na sociologia. Refiro-me à famosa definição weberiana da ação social, que consiste de todo comportamento humano a que o agente individual atribui um sentido subjetivo, levando em conta o comportamento de outrem e sendo também por ele orientado. Os autores que falam de Weber nunca escrevem muito sobre isso.

A interação é como aparece em Goffman, quer dizer, não se trata de uma descrição do que alguém observa diretamente, a cada momento, mas de uma representação num nível mais abstrato.

De fato, é bastante formalizado.

Exatamente. Existem muitas regularidades numa interação social, é por isso que eu também gosto da linguagem. Não se pode falar de qualquer maneira, porque há muitas expectativas em qualquer conversa. Quando vamos a uma loja e pedimos alguma coisa: Senhora, quanto custa isso? Seis reais. Se não nos parece certo, apelamos: Ofereço quatro, porque a coisa não está bem-feita. E a senhora insiste: Isso custa seis! E se você não sair imediatamente, vou chamar a polícia. E quando falamos com a amante, ou o esposo: Como foi o dia? E ele responde: Foi bom. Então perguntamos: O que aconteceu nele? Nada, respondem. E insistimos: Mas o que você fez hoje? Já não disse que foi tudo bem? E nós: Não, algo deve ter acontecido... E dizem: Não! Nada! E dizemos de novo: Já sei que nem tudo correu bem; diga para mim o que aconteceu!? E ele vai dormir e ainda perguntamos o que aconteceu e responde: Nada! E dizemos: Não vamos dormir até que você me diga! Não podemos falar de qualquer forma. Os sociólogos não percebem que na vida cotidiana as condições, a linguagem, a interação, tudo isso está junto.

Mas como você faz a ponte entre a micro e a macroestrutura? Porque existem maneiras diferentes de fazer essa ligação. Alguns fazem de um jeito, outros de outro. Gostaria de entender um pouco mais.

Fazer a ponte é difícil, você tem razão. Em primeiro lugar, quando alguém estuda uma organização estruturalmente, como no caso da tese de doutorado de Peter Blau, o melhor trabalho nessa área. Ele fez uma pesquisa muito importante, estudou duas burocracias públicas e queria aplicar a teoria de Max Weber. E percebeu que, analisando as duas, as coisas não eram como Weber dizia. Ele observou que existia uma organização informal que era tão ou mais importante que a formal. Em suma, confinou suas importantes e limitadas observações descritivas às duas organizações burocráticas estudadas, tendo efetuado entrevistas com o pessoal de ambas entidades. Ele registrou aspectos essenciais de como a burocracia discutia a aplicação de suas políticas no dia-a-dia, tudo isso por meio de entrevistas. A entrevista era realizada dentro das organizações e ele tomava notas manualmente. Naquele tempo, ninguém usava gravadores em sociologia. Não se pode criticá-lo por não haver utilizado gravadores. Mas ele não pôde acompanhar os funcionários dessas organizações quando faziam entrevistas com clientes em suas casas e suprimiam informações indispensáveis à implementação de políticas e diretrizes dessas entidades. Não temos a mínima idéia de como o pessoal dessas organizações falava com os clientes, embora Blau nos diga que alguns deles podem não ter seguido as políticas da empresa pelo fato de haverem simpatizado com determinadas famílias. Então, pelos apontamentos, temos que ter cuidado, pois não são bons. Ele falava um pouco dessa interação, mas pouco. Por meio da interação social ele se deu conta de que Weber falava de organização social de forma insuficiente, porque temos que analisar a parte informal. E então, isso não é interação? Ela está vinculada à parte formal, porque ele mostrou o que os supervisores desses homens falavam, e uns diziam: "Você não está observando as regras!". E isso, o que é? Você pode obter muitos dados formais, e ele os obteve, mas a interação está aí, sempre, mas sem descrever a diferença entre como falava com seus clientes e como escreveu os relatórios. Blau tentou formular uma compreensão estrutural da interação social, mas seus dados estavam baseados em entrevistas que giravam em torno de eventos que ele não pôde observar ao vivo, de modo direto. Por outro lado, Dalton se ateve à parte da interação, não falava da parte formal, nunca mencionou Weber. Eu acho isso um erro; temos que mencionar Weber e seguir depois com a outra parte. E as pessoas – como Anselm Strauss, Howard Becker, Melville Dalton – que utilizam a interação simbólica fazem referência a George Herbert Mead e a John Dewey, em especial o livro de Mead, Mind, self and society. Mas falam pouco dos livros iniciais de Mead, como Movements of thought in the Nineteenth Century, The philosophy of the act e the philosophy of the present. Os primeiros são muito importantes e quase nunca são citados.

A verdade é que a verdadeira sociologia é uma etnometodologia, é isso?

Em certo sentido, sim. Mas em outros sentidos, não. Isso acontece porque Garfinkel não quer reconhecer que a sociologia tem alguns aspectos que devemos pelo menos levar em conta. Podemos separar os diferentes níveis [micro e macro] pelo uso da metodologia, mas devemos sempre entender que eles estão vinculados teórica e empiricamente. Ele nunca quis fazer isso ao lidar com a interação social observada e registrada nos ambientes reais das organizações. E não quis falar de cognição. Quando falava de linguagem, fazia de uma maneira bastante geral. Mostrei a ele que Schütz, quando falava de linguagem, era muito genérico, que havia problemas – não porque Schütz não entendesse, mas porque ele não se interessava pelo tópico. A etnometodologia reconhece a importância da linguagem, da cognição e da organização social, embora apenas alguns poucos – Douglas Maynard e Hugh Mehan, por exemplo – tenham estudado os usos da linguagem em ambientes organizacionais com métodos etnográficos explícitos, em períodos de tempo prolongados. Após sua tese, Garfinkel começou a adotar um estilo de escrita que foi se tornando cada vez mais difícil de compreender. É por isso que quando Garfinkel tentava mostrar, em inglês, o que ele chamava de etnometodologia, primeiro em 1968, num congresso, em Purdue, onde quase todos eram "metodólogos" e estatísticos de sociologia, ninguém pôde entender o que ele disse. Porque ele falava de uma maneira que era deliberadamente obtusa. E sempre dizia: "Se eu tivesse um pouco mais de tempo...". Mas ele tinha o dia todo! Porque a conferência era sobre ele. "Não posso continuar." Mas outra coisa que eu ia dizer era que Garfinkel escreveu um texto que qualquer sociólogo pode entender. O texto fora endereçado aos psiquiatras, e não aos sociólogos. Garfinkel escreveu aí: quando os sociólogos ouviam a palavra ação social, isso significava algo dentro de uma organização, onde existem pessoas, postos, uma hierarquia, tudo o que fazem diariamente. Ele estava respaldado pelo departamento de psiquiatria naquela época. Eu fui para a UCLA anos depois, na faculdade de medicina, e lhe perguntei como havia escrito aquilo. "Porque o chefe me disse que se eu não escrevesse algo que os psiquiatras entendem, estava fora" [disse Garfinkel]. Ele tinha uma bolsa de estudos do Instituto Nacional de Saúde Mental por três anos, o que salvou a sua vida.

Sempre tive a impressão de que você queria escrever um texto muito próximo daquilo que considerava a experiência. Isso foi um dos atrativos que você bloqueou?

Isso também foi o que Goffman fez. Quando você lê Goffman, pensa que está dentro do contexto real.

Mas Goffman mobiliza muitos repertórios, que se interconectam.

E com muita imaginação.

E você tenta sempre vincular essa microrreconstrução com o contexto. Do contexto, aliás, você capta muitos dados que são constrangedores para as pessoas envolvidas nele. Não há milagre por causa disso!

Não há milagre em etnometodologia.

Existe sim um trabalho muito árduo. Falando em milagres, eu tenho uma pergunta. Em Bourdieu, por exemplo, nós temos uma tentativa de desvendamento de tudo o que acontece em termos de símbolos de uma sociedade, mas ele tinha, principalmente no final de sua vida, como podemos ver nos livros Contrafogos, a idéia de utilizar a sociologia para uma possível transformação da sociedade, toda essa tradição marxista. Na sua maneira de fazer sociologia, existe algum plano político parecido de desvendar no intuito de transformar?

Desvendamento?

Significa tirar o véu, a venda; desvendar, destapar. Desvendar todo o funcionamento da sociedade, das interações, para uma possível transformação. É isso que você pretende?

Nesse sentido, Bourdieu e eu estamos de acordo teoricamente, mas nem sempre em termos de prática de pesquisa. Seria preciso criar um sistema político ideal para transformar a vida cotidiana, algo muito difícil. Eu queria desvendar todas as ciências sociais, incluindo a psicologia. Ele queria isso mais para melhorar a vida cotidiana em sociedade, especialmente tirar o véu que encobre os políticos, os economistas. Ele queria liquidar os economistas tradicionais, não gostava deles mesmo. Havia só um que ele gostava em Princeton, Hirschman, que era bom. De todo modo, isso é importante porque acho que você tem razão. O que ocorre é que na França, penso eu – Sergio conhece bem –, existe uma divisão desde o tempo de Napoleão, da direita e da esquerda. Então, para Bourdieu era impossível votar numa pessoa de direita, não importando se ela era boa ou não. Para Bourdieu, era preciso obedecer a essa divisão. Para ele, qualquer sociedade tem que desvendar os seus problemas. Quando eu estava em Cuba, num congresso em Santiago, e depois em Havana, uma amiga me disse algumas coisas. Aí eu vi que o seu marido estava envolvido com a política de Castro. Moravam bem. Uma outra amiga, que fazia filosofia da ciência, mais jovem, me contava coisas quase totalmente opostas. Ela tinha uma boa casa porque o marido trabalhava numa embaixada. Quero dizer, em Cuba existem muitos problemas e, ao mesmo tempo, alguém tem que falar sobre eles. Em qual país os pobres receberam educação gratuita, saúde, medicamentos, tudo de graça? Mas lá eles têm uma vida muito controlada.

Em nenhum.

Quando Bourdieu começou, na Argélia, ele fez uma parte demográfica, um levantamento com os cabila, mas ele não falava árabe, eis um dado importante! Porque, apesar de achar que fazia algo antropológico, ao mesmo tempo não podia fazer isso a fundo. Quando regressou à França, acho que ele se deu conta de que o mais decisivo para sua carreira seria escrever ensaios lastreados em suas experiências etnográficas, mas que também precisava coligir dados de nível macro para que pudesse competir com os numerosos estruturalistas que dominavam a sociologia francesa. Pelo que sei, ele teve poucos alunos que fizeram de fato trabalho de campo.

Ele era muito dependente de dados secundários nesse momento.

Mas sua pesquisa sobre a escola tampouco era trabalho de campo. O que acontecia então era que ele conseguia ver o que sucedia por debaixo do véu. Ele espetava a sociedade e sempre podia entender a importância da base etnográfica em sociologia. Bourdieu conhecia tudo isso e Garfinkel também leu tudo, profundamente. Os dois liam em alemão, mas penso que Bourdieu dominava o idioma melhor que Garfinkel. Para Bourdieu, poder é muito importante, mas Garfinkel não está interessado no poder. Ele estava interessado nos fundamentos da vida cotidiana. Essa etnometodologia não estudou nada sobre crianças. Como as crianças aprendem a linguagem e as normas tácitas da vida cotidiana? E tampouco fizeram alguma coisa em termos comparados.

Seria interessante que você falasse sobre seus últimos trabalhos, sobre os médicos, e como você chegou a esse objeto.

Quando quiseram me contratar em San Diego, eu estava em Santa Bárbara. O chefe do departamento me disse: "Aaron, temos dois postos, um em sociologia em tempo integral, outro em medicina e sociologia". Porque, no meu modo de ver, aconteceu algo muito curioso. A faculdade tinha vinte postos no campus: cinco em química, nove em biologia, dois em matemática, outros em economia, sociologia, psicologia, entendem? E os de sociologia nunca eram preenchidos. Mas ele tinha falado com Garfinkel antes. Garfinkel foi lá, mas foi difícil para ele. Eu já tinha trabalhado num hospital de crianças em Buenos Aires, já tinha feito estágio em Paris num hospital infantil, e também na Itália, em Roma, tenho uma aluna italiana que trabalha como pós-doutoranda num hospital. Quer dizer, já tinha um pouco de experiência. Quando me entrevistaram, eu podia falar. Então decidi ficar com o outro cargo. Era mais difícil, porque seis meses depois me fizeram chefe da sociologia. Eu tinha cursos lá também, alunos de doutorado residentes em Santa Bárbara, e ao mesmo tempo tinha uma sala na medicina e uma secretária que trabalhava meio período, um luxo! Minha secretária podia comprar qualquer máquina necessária, porque tinha mais dinheiro. Mas havia um problema: eu não era médico. Então os médicos se perguntavam: "Por que esse Cicourel conseguiu um posto?". Só para situá-los, era muito difícil um lugar na medicina. Começam por baixo. Então eu era um dos poucos, muito poucos. E não achavam justo um sociólogo ali.

Sua função era voltada para a pesquisa, principalmente?

Não. Eu dava aula para alunos de medicina sobre linguagem de crianças, como entrevistar pacientes, como a memória está vinculada com a entrevista. Não sabiam nada disso. O primeiro ano foi fenomenal. O curso tinha cinqüenta alunos, naquele tempo a turma era menor, agora são 250. Eu obrigava os alunos a gravar as entrevistas dos pacientes e tinham que criticar o que eles mesmos faziam. O resultado foi que, dos cinqüenta, saíram dez realmente bons. Quando o tamanho da classe chega a duzentos, a coisa complica, porque a maioria dos alunos de medicina não quer saber nada disso. Eles acreditavam que as técnicas de entrevista de pacientes não eram importantes, as consideravam demasiado óbvias. A maioria dos estudantes acreditava que, se se soubesse o suficiente a respeito de ciência básica, o trabalho de entrevista seria fácil. Os professores responsáveis pelo ensino de medicina clínica também sentiam que um médico acabava aprendendo a entrevistar com base em certa experiência clínica com os pacientes, o que tornava dispensável o ensino dos modos de fazer entrevista. Entretanto, esses mesmos docentes me diziam que históricos médicos e exames físicos cuidadosos correspondiam a 80% do diagnóstico. Tive dificuldades até mesmo com os psiquiatras, que não queriam permitir que eu desse meu curso sozinho. Um ano depois, eles acabaram assumindo o encargo de ensinar aos estudantes sobre ciência social e comportamental. Meu curso foi eliminado. Fui falar com o decano, um homem muito inteligente: "Essa coisa é uma porcaria". Ele ponderou: "Aaron, você tem razão, mas veja, não podemos mudar porque o chefe da psiquiatria tem muito poder por conta dos vínculos com o chefe da cirurgia, com o chefe disso e daquilo, e pior, ele tem dois votos. Nós não podemos fazer nada". Comecei a ficar irritado, depois de três anos com essa gente, e saí do programa para dar pequenos cursos de informática a alunos de medicina, com um amigo da cirurgia que também tinha doutorado em engenharia. Dava ainda um curso para todos os residentes de primeiro ano em pediatria. Durante dezessete anos participei do comitê com todos os chefes dos departamentos da faculdade de medicina, que têm poder. Havia um professor de biologia, um de química e um de matemática. Então veio esse homem, um canalha chefe da psiquiatria: "Acho que devemos cortar o posto do Cicourel, que não está ensinando aqui. E vamos cortar meio período". Na realidade isso não me prejudicava em nada, porque eu podia continuar ensinando em sociologia, mas fiquei muito nervoso. Ainda bem que tinha amigos em ciências exatas na faculdade. Eles faziam pesquisas e tinham muito poder. Um deles tinha a cada ano, e podem imaginar isso em 1974, ao seu dispor, um milhão de dólares para pesquisas. Esse homem era conhecido por ter publicado artigos sobre colesterol, aminoácidos, um especialista mundial. Ele me segurou: "Acho que o Cicourel tem um papel muito importante aqui". E outro amigo, também pesquisador, reforçou essa linha. Todos os decanos disseram que eu tinha que dar cursos optativos. Dei então o curso de informática com o cirurgião que era doutor em engenharia e medicina, e outro sobre entrevistas, como fazê-las e como explorar suas relações com a memória. Mas eu não podia mais continuar lá. Aquele sujeito era um ditador! Conheci muita gente na clínica, sobretudo na parte de doenças infecciosas. O chefe era doutor em microbiologia e medicina, um homem generoso, poderoso. Também éramos amigos socialmente. As pessoas da área de doenças infecciosas eram para mim as melhores, as de pediatria também, gente muito boa. Mas eles são muito honestos, gente que não tem vergonha de demonstrar que havia um erro; já os demais, os de cirurgia, sempre escapavam. Eles não. Então comecei a estudar, a freqüentar o laboratório de microbiologia, onde um amigo me ensinou sobre micróbios, bactérias de todos os tipos, e assim pude entender algo sobre isso. Estava no laboratório, olhava tudo, me valia de gravadores, e depois pude fazer isso na radiologia, na neurologia e na psiquiatria, claro. Com esses amigos, e por causa daquela mulher de que já falei, que morreu muito cedo e que me disse para não publicar isso. Ela conhecia muito de música, era incrível, um bocado inteligente. Era muito amiga e íamos almoçar juntos freqüentemente. Na sua clínica, me mostrou muitas coisas. Os médicos envolvidos com doenças infecciosas eram como detetives. Eram um bocado abertos acerca do que faziam e me ensinaram a compreender o quão importante era combinar um conhecimento profundo de microbiologia, de medicina clínica e das condições de vida no cotidiano para ser capaz de descobrir a origem de doenças originárias de bactérias e vírus. Com esses amigos, os outros não podiam mais me criticar. Eu podia entrar na faculdade, mas não deixava qualquer sociólogo entrar, porque eles sempre buscavam problemas, erros. Queriam criticar a medicina e eu ponderava: "Não é que vocês não possam criticar, eu critico, mas é necessário levar em consideração que essa gente está deixando vocês virem aqui e vocês querem "tirar o véu". Eles querem saber quem são vocês. Que confiança podem ter? Eu estou com eles há muito tempo, estive em muitas bancas sobre assuntos difíceis para mim, como ciências exatas". Mas não tinha remédio; eu tinha que aprender um pouco mais. "Mas Aaron, éramos colegas na sociologia." Certo, mas eu quero saber o que você vai fazer. E quando ele começou a contar, percebi imediatamente que queria cutucá-los, entrar para criticar e nada mais. Ele não queria estar ali para entender melhor a organização social, a interação social, como as decisões são tomadas. Não estou dizendo que os médicos sejam santos, existem muitos de quem eu não gosto, mas nem todos são maus, como nem todos os sociólogos são santos. Então, por favor, não faça isso. A medicina norte-americana é uma porcaria, com um mercado livre que realmente favorece as pessoas que querem ganhar dinheiro. E ganham muito, isso é verdade, e fazem muitas coisas com o público que não deveriam fazer. Mas ao mesmo tempo, nessa faculdade, eu sobrevivi.

Mas o seu trabalho era muito dependente desses laços de sociabilidade?

Exato. Sem esses laços não existe pesquisa. Pesquisadores atuantes em demografia não têm de estudar as condições de vida cotidiana, de onde procedem os resultados das amostras estatísticas sobre os quais eles se debruçam. Tampouco se vêem instados a examinar os tipos de decisões que as pessoas tomam quando decidem migrar, ter filhos, fazer um aborto; limitam-se a formular perguntas sem tentar descobrir sequer se os entrevistados compreendem essas perguntas. Ou seja, não estão interessados em averiguar de que maneira os entrevistados percebem cada uma das alternativas a essas perguntas. As pessoas não têm confiança, e os pesquisadores não sabem a confiança que podem obter nas entrevistas. Mas mesmo assim alcançam resultados! Mas o que eles dizem? Que os entrevistados respondem. Quando o pessoal que trabalha com imposto me pergunta, eu também respondo, mas não vou dizer tudo que sei! Isso é algo normal na sociedade. Então o médico enfrenta o mesmo problema, o psiquiatra enfrenta esse problema de maneira muito forte. Eles não podem saber diretamente nada o que acontece na casa do paciente. O que a esposa faz para ele? E o que o marido faz? O que acontece ali? E o que acontece na cama? Quando a gente faz uma investigação, devemos dizer que temos "três filhos... um deles é grande, parecido com o seu...". E pouco a pouco os laços começam a se formar. Sem esses laços não existe confiança, e é isso que eu tento falar para as pessoas das ciências cognitivas. Somos talvez três, quatro em ciências sociais. Os demais estão envolvidos com neurocirurgia de animais, e fazem isso muito bem. A compreensão do que seja o sentido da validez ecológica é bastante nítida quando se faz pesquisa com animais não-humanos; quando se trabalha com um paciente, diferentes controles não se mostram tão prontamente disponíveis. A pesquisa clínica tentativa ajuda a compreender a validez de um dado medicamento, mas dispor de um modelo animal é especialmente importante, com a finalidade de demonstrar a validade de uma hipótese e de sua aplicação prática caso seja possível aplicá-la em cirurgia experimental. Em ciências sociais, poucas vezes estamos aptos a lograr validez ecológica, sobretudo no caso de pesquisa amostral ou demográfica.

Você sempre se interessou por problemas pelos quais a sociologia da medicina não se interessa muito? Como Freidson, por exemplo, ele se interessa por outras coisas que não as suas.

Os estudos de Freidson eram muito bons. Mas ele nunca entrou num hospital para investigar; jamais trabalhou com pacientes, nunca observava o que faziam os médicos, mas suas pesquisas com dados de tipo estrutural eram sempre muito importantes. Ele era um bom homem, um amigo.

Aqui no Brasil, quando falamos de Becker, Cicourel, Goffman, Strauss, todos são considerados interacionistas simbólicos.

Eu entendo o porquê disso, mas é necessário falar em que sentido Becker, digamos, e também Goffman, e Strauss, querem "tirar o véu". Goffman escreve de uma maneira que a gente pensa que está na própria interação, de uma maneira muito aguda. Mas nunca diz o que realmente aconteceu ou observou. Como disse antes, ele não mostra suas anotações, nada, e as anotações são sempre comprimidas. Eu sempre tento mostrar todo o possível. Foi por isso que paguei aos meus ajudantes na Argentina para me mostrarem as falhas. Porque sem as falhas, como poderemos saber? O problema mais geral é o seguinte: para fazer o que faço em sociologia é preciso levar uma vida dupla. Uma vida em que fosse necessário apelar aos conceitos sociológicos tradicionais e, simultaneamente, tentar fazer pesquisas que tornem problemáticos os conceitos tradicionais. Isso significa questionar a utilidade de dados coligidos por meio de surveys ou de pesquisa demográfica, quando não houver trabalho de campo etnográfico capaz de tornar inteligíveis certos aspectos da validez ecológica. É difícil publicar em periódicos consagrados trabalhos que desafiam a sociologia tradicional.

Estão tentando, mas não podem explicar dessa forma.

Não podem, e ao mesmo tempo pensam que já têm evidências. Mas não têm. Isso é um problema. Se vamos falar dessa gente, é necessário utilizar as suas palavras sobre o "véu". Tal como formulei antes, era difícil aplicar etnometodologia à sociologia tradicional e àqueles interacionistas simbólicos que, de início, se mostraram contrários à etnometodologia. Isso ocorria por conta dos interesses sobrepostos entre etnometodologia e interacionismo simbólico. Fui treinado por diversos interacionistas simbólicos e, mais tarde, senti que não poderia prosseguir com as idéias importantes deles porque achei que era necessário realizar mais trabalho de campo sistemático, inclusive o sorteio de ambientes comportamentais e o intento, sempre que possível, de gravar e registrar a interação social cotidiana. Também senti ser preciso desafiar importantes teorias tradicionais e tentar modificá-las. Não acho que muitos interacionistas simbólicos queiram fazer isso. Assim como os etnometodólogos, eles criaram seu próprio nicho no interior da sociologia. Como já disse, corre-se um grande risco ao aplicar a etnometodologia. Isso até certo ponto é um risco. Para outros pontos, podemos utilizá-la. Criamos problemas-chave com essa gente, porque se está colocando a mão no fogo. Mas não podemos pôr as pessoas sobre as quais estamos falando no fogo. Elas se queimam! E não gostam de ficar queimadas! Num certo sentido, uma coisa é falar sobre etnometodologia, outra coisa é mostrá-la.

O mais difícil é fazer etnometodologia, praticá-la.

Claro, porque uma vez que ela é praticada, você vai ter problemas. Eu tento fazer como no futebol americano, ou como os militares, os políticos. O que se pode fazer é comparar a maneira como as pessoas criam as estatísticas, como elas fazem os códigos e a verificação dos dados, e como a estatística une uma coisa geral e quais inferências são tiradas daí. Quais são as inferências que se pode obter se queremos atingir um nível mais baixo? Vamos perceber que não são as mesmas inferências, e isso vai complicar para um sociólogo porque não se pode colocar a mão no fogo. Uma razão por que é arriscado praticar etnometodologia é o fato de que a maioria dos departamentos norte-americanos não contrata etnometodólogos, nem pesquisadores em análise de conversação. Esses departamentos preferem atrair interacionistas simbólicos. Durante muitos anos, não consegui publicar meus trabalhos em periódicos tradicionais e tive de escrever livros para chamar a atenção dos sociólogos convencionais.

A questão principal é sobre a metodologia da pesquisa desde seu início.

E entender que essa metodologia está vinculada com a teoria. Em sociologia, a teoria está aqui e a metodologia ali. Isso não pode ser. Esse problema de teoria versus metodologia é muito importante. Porque é preciso perguntar aos grandes, como Durkheim e Weber, que fizeram pesquisas de nível macro. Não se pode exigir desses teóricos que digam como fazer uma pesquisa de campo, a qual estaria derivada diretamente de sua teoria, e vincular tais dados com a teoria. Os livros de metodologia também não dizem o suficiente acerca do que se deve fazer quando estamos em campo. Por exemplo, se eu quiser fazer uma pesquisa sobre medicina numa clínica, não é fácil chegar lá com barba e vestido como um "hippie", ou com o cabelo comprido. É preciso ir de gravata, senão te olham de uma forma diferente. O mesmo acontece se vamos a um bairro de luxo. Sobre isso os livros não dizem nada. Nos meus cursos eu falo disso sempre.

Você realmente "tira o véu"!

Eu tento fazer isso, mas nem sempre tenho êxito. Você tem que lutar um pouco. O que eu quero dizer é que a metodologia é importante se estiver vinculada à teoria. Você não pode entrar e gravar diretamente num determinado cenário sem muita confiança por parte das pessoas no local. "Mas eu quero ver quem toma as decisões", alguém propõe. Mas quem? Quem está no balcão? Mas quero saber de antemão por que se criou um problema. Na América Latina, isso tampouco é uma coisa fácil. É muito difícil.

Quais são as diferenças entre a sua perspectiva metodológica e a do Bruno Latour?

O trabalho de campo de Latour raramente incluiu o uso de um gravador ou de vídeos em ambientes de laboratório. Não acho que a pesquisa dele tenha sido concebida em grande proximidade com as idéias e os métodos de Garfinkel, e tampouco adotou a metodologia etnográfica da antropologia lingüística.

Depois de seu primeiro livro, não fez mais pesquisas de campo em laboratórios. Muitas pesquisas em sociologia da ciência seguiam o modelo de Latour, mas sem fazer bem a descrição da metodologia. Karen Knorr Cetina é uma exceção positiva.

Quero fazer só uma pergunta pela escassez de tempo. Bourdieu escreveu o prefácio da versão francesa do seu livro Le raisonnement médical. Lá ele disse algo e queria saber se você se reconhece nas palavras dele: "Cicourel encarna a face mais exigente, a mais ascética, a mais rigorosa, a mais árida por vezes, da sociologia".

Eu não posso responder isso! Porque éramos amigos. Ao mesmo tempo, eu o criticava e a única coisa que posso dizer é que ele pelo menos reconheceu o que eu fazia, mas nunca convenceu os seus alunos disso e ele também não realizou algo parecido.

E quais são as suas críticas a ele?

Isso é complicado agora, porque ele tinha uma maneira de pensar muito profunda. Ele fazia tanta coisa que não tinha tempo para se aperfeiçoar na pesquisa de campo, coligia dados que, para mim, não eram suficientes. Mas ao mesmo tempo criticava os resultados; utilizava uma pesquisa e criticava a pesquisa, porque já conhecia os problemas dela. O homem era brilhante, muito provocativo, e estou agradecido pelo que escreveu sobre mim. Não tem sentido criticá-lo e deixar assim, entendem? A mesma coisa quando critico Goffman, porque ao mesmo tempo ele nos deixou algo interessante. O problema dos dois é que não sabemos como ir mais adiante do que foram, do que fizeram. E isso também ocorre com Garfinkel. Como podemos ir mais adiante? Eles e seus alunos não nos dizem. E eu sempre falo para os meus alunos que eles devem ir mais adiante do que eu fui. Não se pode dizer exatamente como; eles é que têm de pensar como, porque não quero que ninguém me tenha como um deus.

Eles queriam ser deuses?

Sim. Isso é um problema do poder acadêmico e em geral. Ter tanto poder é realmente perigoso.

Mas você pensa realmente que a sua sociologia é árdua, como disse Bourdieu?

Eu acho que sim, num certo sentido. Não digo que chego a fazer o que eu gostaria de fazer, mas dou tudo o que tenho quando faço uma pesquisa, mas depois sempre vejo como poderia melhorar. Cada vez mais tento melhorar. Se não posso melhorar, penso que foi um fracasso, entendem?

Quais são seus próximos passos?

Estou fazendo um trabalho histórico e também um trabalho com robôs. O dos robôs são com dois amigos: um é do Japão, da Sony, que traz os robôs, é um engenheiro; o outro é do centro que produz modelos de informática; ele tem software para medir as feições do rosto, para medir e elaborar formas de falar. Então sou eu e duas crianças de não mais de dois anos, e agora vamos receber mais uma. Isso para mim é bom, eu gosto muito. Vamos publicar um artigo, numa revista, que já está escrito. Mas esse pessoal é muito rigoroso e por que querem falar comigo? Porque posso mostrar a eles uma maneira de observar em vídeos e analisar isso. Faço algo mais qualitativo e nos coordenamos muito bem. Por isso que digo, e não tenho nenhuma vergonha de dizer, que posso ajudar muito. Mas é preciso sempre melhorar. Meus colegas – os sociólogos – pensam que sou louco. Como vou trabalhar com robôs? Os robôs vão nos ensinar a entender melhor as crianças e mudar o que disse George Mead, um homem inteligente, mas com base nele, melhorá-lo. Não digo que não vale, vale muito, mas é preciso melhorar. É preciso sempre melhorar. Do contrário, por que estamos aqui?

Muito obrigado.

Muito obrigado.

Texto recebido em 13/12/2006 e aprovado em 13/12/2006.

Tradução e transcrição de Dmitri Cerboncini

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    Esta entrevista foi realizada a 26 de outubro de 2006 em Caxambu, Minas Gerais, durante o Encontro Anual da Anpocs, no Hotel Glória, onde Cicourel fez uma conferência como convidado de honra. Participaram da entrevista os pós-graduandos Arthur Oliveira Bueno, Dmitri Cerboncini Fernandes e Célia da Graça Arribas, e os professores Fernando Pinheiro, Heloisa Pontes e Sergio Miceli.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Ago 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
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